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comportamento

por walter cândido

BALADA SEM ADITIVOS:


VALE A VIAGEM?
Os baladeiros do novo milênio contam como estão embarcando em
diferentes (e muito mais saudáveis) possibilidades de curtição
2010. A música eletrônica e o mundo percorreram um longo caminho. dos anos de atividade noturna para ampliar sua visão de mundo e seu
Tudo o que se precisa para uma boa balada hoje são um um sistema de auto-conhecimento. “Sempre achei que aquilo tudo era passageiro. Que
som potente, algum top DJ nas picapes e uma galera bonita e animada fazia parte de um momento da vida. Chegou uma hora que meu corpo
na pista, certo? “Peraí”, você pergunta, “mas e os drinks, e todas aquelas começou a rejeitar. Então achei que estava na hora de dar um ‘level up’ e
outras substâncias químicas potencializadoras da diversão?”. Hummm... abrir uma nova fase, mais saudável, mais lúcida e consciente”, declara.
eu mencionei que nós estávamos em 2010, não? Faz parte de uma nova Mayara Beckhauser Amaral, 23, outra adepta das ‘noitadas sem aditivos’,
concepção de mundo romper com antigos paradigmas, abrir a mente, já se acostumou com as reações cômicas, mistas de incredulidade e
blá-blá-blá. Talvez você estranhe esta idaia a princípio, ou ainda não admiração, de seus amigos e conhecidos: “As pessoas que não sabem e
a tenha considerado com a devida atenção; provavelmente nunca a nem imaginam que eu não bebo. Quando descobrem, ficam abismadas
experimentou. Mas dê a ela uma chance… Tem bastante gente curtindo e perguntam: ‘noooossa, mas aquele dia você estava bêbada né?’,
- ou seja, não é impossível. Um deles é Norman Cook, conhecido recordando alguma ocasião na qual fiquei até de manhã na balada, ou
popularmente pela alcunha de Fatboy Slim. que dancei muito. Quando digo que não, sempre escuto: ‘ai… queria ser
assim…’”, conta ela. Como bônus adicional, a memória, a atenção e a
“Eu tive que aprender um novo modo de vida que não envolvia álcool concentração ainda agradecem a ausência das substâncias corrosivas.
e drogas. Quando estou viajando e tocando, a diferença é incrível. Eu “Pelo fato de estar sóbria sou capaz de lembrar a maioria das músicas
simplesmente vou pra cama depois do show. Agora, eu me lembro de que escuto num set que eu goste”, diz ela.
tudo”, diz ele. Podemos dar crédito a Norman, que prestou tantos anos
de serviço à boa música eletrônica e até pouco tempo atrás costumava Mas qual é o segredo para se divertir sem os tradicionais alteradores
tomar ‘uma ou duas garrafas de vodka a cada noite que estivesse de consciência? Seria algum super-poder desconhecido?! ‘Atitude’
tocando’, e que agora já tem uma maratona completa no currículo (sim; sempre funciona – por mais chavão e auto-ajuda barata que a expressão
42 quilômetros, correndo). Não é preciso levar em conta a motivação que possa parecer. Mas é tão óbvia, justamente, por ser verdadeira. Raphael
levou Norman a esta mudança de hábitos, tampouco fazer disto uma Cagnotto, 28, nos dá a sua receita de posicionamento eficaz: “Tenho
cruzada ou caça às bruxas. A ideia aqui é apenas propor uma reflexão, amigos queridos que bebem e fumam; sempre saíamos juntos para
uma transgressão saudável à associação vigente ‘balada-música-alta- a antiga Lov.e, ou a D-Edge, nos dias de hoje. Nem por isso eu sinto
álcool-drugs’. atração pelos hábitos deles. Por sinal, não foram poucos os que, depois
de me observarem como referência, pararam de beber, fumar ou usar
Antigamente, ‘it was all about music’; Derrick May que o diga. Tendo drogas. Como me posiciono sem medo de parecer careta, todos sempre
sido um dos criadores do techno de Detroit, nos idos de 1987, ao me respeitaram e me tiveram em alta conta”. Bem, se você quer ajudar a
lado de Kevin Saunderson e Juan Atkins, o ‘Innovator’ ainda hoje fica mudar o mundo, comece por você mesmo - pode acabar dando certo.
perplexo com o rumo tomado pelo comportamento-padrão na cena “Volta e meia aparece alguém perguntando se tenho ‘bala’, porque estou
eletrônica: “Infelizmente, a maior parte da garotada nunca vai entender o tempo todo dançando e bebendo água… (risos) Mas sempre tiro um
sobre o que a música era ou sobre o que poderia ser. Somente alguns sarro da situação”, diz Fernando Almeida, 29, que há sete anos só cai na
de nós têm algum coração, alguma intenção real de fazer algo ou tentar night ‘movido a água’. Ele aponta ainda uma expansão da sensibilidade
fazer a diferença. Apenas alguns de nós entendem do que se trata. percebida durante as baladas: “Hoje consigo literalmente sentir a vibe das
O resto destes caras surgiram do nada e não estão levando a cena a festas, pois estou consciente o tempo todo.” Ricardo concorda: “Sinto
absolutamente lugar nenhum. E a cultura das drogas está acompanhando que agora estou mais exigente com o tipo de som e o ambiente que
isto por que a maioria da garotada aí dançando esta música não entende cada balada apresenta, e escolho melhor do que antes. Antes nada disso
como alguém curtiria este som sem tomar uma ‘bala’ para a música tinha tanta importância”, conta ele. Realmente, quando se está numa boa
instantaneamente ficar legal.” festa, o excesso de estímulos para os sentidos é tão grande (o contato
com muitas pessoas, a música alta, pulsante e hipnótica, as luzes
Mas mesmo descendo do Olimpo das cabines dos mega-DJs e pioneiros coloridas, os perfumes, etc.), que pode terminar por provocar um tipo de
da senda eletrônica, esta ideia vem ecoando em alguns corações hiperestesia - um intenso aguçamento dos sentidos, acompanhado de
e mentes mais sintonizados das pistas. Talvez seja algum tipo de uma saudável sensação de euforia, efeito da produção de determinados
‘maturidade’ adquirida após anos de boemia, ou pode ser que uma hormônios e neurotransmissores naturais do nosso próprio organismo.
nova consciência esteja mesmo aflorando neste ritual tribal milenar que Uma verdadeira viagem consciente, cujo combustível é a festa, a nave é o
é o dancefloor. “Eu adoro sair, principalmente, pra curtir o som e deixar seu corpo e o piloto é a sua consciência. Será que você está pronto para
meu corpo falar a língua da música. Pra mim esse é o foco, e o resto embarcar?
é consequência.”, diz Ricardo ‘Johnnie’ Martins, 32. Ele é um destes
baladeiros que tem naturalmente uma filosofia ‘Derrick May-feel the beat’ * Walter Cândido é consultor de qualidade de vida, baladeiro costumaz,
por trás – mas que também conta com a bagagem adquirida ao longo músico e produtor nas horas vagas. walter.candido@metododerose.org ■

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