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FILOSOFIA E MUSICA O BOLERO DE SER E NAO SER! Emmanuel Carneiro Leao Com o homem, rompe-se o siléncio da noite césmica de ser € nao set. Desde entio, € tao dificil ser musica como nao ser miisica. Na cia eletroactistica, surgiu na Itélia entre os miisicos eruditos a seguinte burzata: antes, 0 dificil era ser miisica. Hoje, nao, Hoje o dificil € nao ser miisica, pois tudo é miisica. Essa buttata perde logo seu lugar de origem ¢ sua data de nasci- mento quando se pensa a esséncia da musica. Entao, se ha de sentir € perceber que sempre seré dificil, senao impossivel, em qualquer tempo ¢ lugar, ser miisica sem nao ser miisica, ndo ser musica sem ser mtisica. E que, por imposicéo do bolero de ser ¢ nio ser, néo existe nada que néo vibre ¢ vibre, de algum modo. Fa estranheza prépria de ser e néo ser homem de todo homem, cantada por Séfocles no famoso coro de Antigonia (v. 332): Moda re Bevver K od8év detvorepov dvipeimou née Mia sio as coisas estranhas, nada, porém, pulsa sendo mais estranho do que um homem, E este pulsar cstranho de ser ¢ nao ser homem dos homens no ho- mem que constitui a musica origindria, i é, a esséncia da musica, fonte de toda criagio, interpretacio e escuta musical. Trata-se de entoagao tio cxordial que flui por toda parte, no ruido néo menos do que no acorde. Nem mesmo é possivel remontar-lhe 0 fluxo, de vez. que é dessa entoa- ‘so primigénea que nasce todo vigor inaugural do ir ¢ vir sonoro, de subir ¢ descer qualquer escala. Assim todo homem, em simplesmente Fuosona ewosca—o sotto ce sin eno ser sendo e nao sendo, jd sempre produziu em si qualquer musica que ve- ‘nha a escutar e/ou deixar de escutar, que chegue a compor e/ou deixar de compor, Tal € a ligio que nos deixou com Sécrates de Atenas Diotima, a sacerdorisa de Mantineia, segundo o testemunho de Platéo no didlogo O banguete (v, 205 b5) th yore éxpr) Biro Elle 76 dv idvm brwodv atria nécaon notvore em eudo que responder pla passer De nfo ser para set, qualquer que sj, E criagao musical! Essa passagem de ir e vir entre nao set e ser perfax a musicalidade de toda a misica. Nesses termos, a miisica éa arte do arquciro zen, de que nos fala uma antiga estéria chines: Quando um arqueiso atira sem alvo, nem mira, sem arco, nem flecha, esté na inariedade da arte de atirar. Quando aia par accra, instala-se uma dvisio ene arate acerta. Sente-se nervoso ¢ hesita. Quando atira por um premio, eto, fica cego. VE dois alvos,o disco eo prémio. £6 mesmo atiradog, mas, divisio Ine quebra a unidade. Preacupa-se mais em ganhar do que em ara. Ve mais 0 prémio do que oalvo. A neccsidade de vencer o fz perder a identidade entre oarqueiro © 0 alvo, entre arqueio efecha, entre arquivo e a arte dear! A miisica é a arte de atirar, numa composicéo, numa interpretaga ‘numa escuta, sempre antigas sempre novas, ritmo melodia, harmo- nia timbre, tanto do compositor como do intérprete, tanto do produ- tor, como do ouvinte, O pensamento chinés atingiu o auge entre 550 ¢ 250 a.C.. No final desse periodo, viveu, pensou e more Chuang-Te, tum dos maiores pensadores da humanidade. Suas est6rias nos presen feiam com a pujanca criadora do taoismo antigo. Uma delas fala do bolero de ser e nao ser da mtisica na natureza: 12+ Terceira Maraem + Rin de laneirn « Miimorn 96 «0 $4-4€ thon de ser ¢ nao ser, de acordo com 0 Tao-Te-King de Lao- Exnuone Caen Lo Quando a natureza magndnima suspia, sscutamos 0 asobio dos ventos, que, em siléncio, desperta viva tsi nos seres,soprando nels. Ji thes escutastes 0 ressoar profundo? Li stéa floresta no alto da montanha, velhas drvores com fends ¢ rachaduras, focinhos abertos, golas profandas, orelhas em pé (Ocos nos troncos, crateras nas pedtas, veios na madeira. Todos os buracos cheios d'égua. Ouve-se tanto 0 mugit rouco das profundezas, como o estronda claro do trovio. Assovios finos e gritos de comando, lamentagées tristes « flauras plangentes ¢ afadas. Ventos suaves cantam timides, tempestades violentas rompem obstéculos de repente coda vibrasio cede. (Os diltimos sons reboarn em suspitos. Hi notastes como tudo treme e se apaga? Ya e Wi responderam: Vibrasio perpassa cm silencio todas as coisas Sargem, entio, os sons crescendo e esmaccendo, Que vibragio € esta? Mistécio de sere nio se, misia cradora! Na miisica, como em tudo, é sempre o vazio que dé a possibilidade ‘Trinca raios rodelam um eixo, ‘mas é onde 0 raios no raiam que toda a roda. ‘Vasa-sea vasa ¢ fas 0 vaso, Mas € 0 vazio que perfiz a vaslhe. Fuoson msc ~ 0 sotto oe Sk nko sen Levantam-se paredes ¢ se encaixam portas, mas é onde no hi nada aque se esté em casa Falam-se palavras ese apalaveam falas, Mas &no silencio ‘que mora a linguagem, Ser presta servigos Mas é nio ser Que empresta sentido, Esséncia da musica! Aesséncia da musica nao pode ser tocada, mas também nao carece sé-lo. Pois a esséncia da musica vem sempre pensada e nao apenas em tudo que se toca e/ou se deixa de tocar, como em tudo que se é e/ou se deixa ser. E que a esséncia da miisica nao é musica nem ritmo nem me- odia nem timbre nem harmonia. Também néo é elemento, no sentido antigo de ororyetov, como som e tom num acorde, como sintonia e distonia numa polifonia. Tudo isso jé & misica ¢ assim supde ¢ cumpre a esséncia da muisica para vir a ser 0 que ¢ € nao é. Ora, nao ser nada de tudo que esté sendo, de tudo que néo é nem esta sendo, nao constitui privilégio da esséncia da miisica. Pertence a toda ¢ qualquer esséncia. Assim, diz Heidegger, “quando se procura a esséncia da drvore, deve-se levar em conta e perceber que o vigor de ser ¢ nio ser que faz da dtvore drvore nao é uma drvore que se pudesse encontrar entre as drvores de uma floresta”. Eda esséncia que vale 0 que 0s medievais diziam matéria primordial: Nec quid, nec quale, nec quan- tum, nec ullum eorum quibus ens determinatur, “nio & quididade nem qualidade nem quantidade nem determinagio alguma do que é ¢ esta sendo”, Para se referir a esse nada criativo, Aristételes inventou uma for- mulagéo estranha: 10 11 fv elvat, que Boécio traduziu para um latim nao menos estranho: quad quid erat ese, “o que ja sempre era de ser”. A esséncia é como se fosse pescada, 0 peixe que antes de ser jé era sempre Exner Cano Leto pescada! Em sua esséncia, a miisica também jé era sempre mtisica antes de ser composta, tocada, escutada, Esté vigente aqui a pureza radical de todas as coisas, cantada por Hélderlin numa das estrofes do hino dedicado ao Reno: Ein Ractselist Reinentipnngenes. Auch der Gesang kaum darfes enthuellen. Denn wie du anfingst, wirst du bleiben, s0 viel auch wirket die Nos, und die Zucht, das meste naerlich vermag die Gebure Und der Lichorahl, der Dem neugevornen begegnet! ‘Um mistério 0 que brota da pureza, nem mesmo a miisica consegue desvendae! Por mais que possa a caréncia e a disciplina, ‘© mais poderoso &0 nascimento ¢ @ raio de luz ‘que atingeafronte de quem nasce sempre de novo! Num livro de 1939, What to listen for in music, Aaron Copland diz. que todo compositor, intérprete ¢ ouvinte so o que hé de pritico na tisica. Todo o resto é abstracio, como esséncia. Eo contrario do que Sécrates diz a Ifo, 0 famoso miisico-cantor de Homero.! Nota crates —F oque me disponho afer, Ho, para explicar-e 0 que mie parece sera causa do aque dzes. O dom de ilates com fildade a espeita de Homer, confor conclu i pouco, io efit de art, porém resulta de wma fre divina qu teat, semelhante 3 orga da pera aque Euripides deromina magnética e que é mais conhecida como pedra de Heracles. Porque essa pera nio somente tem o poder desrairanis de fero, como comunia a todos eles am tna propridade,deixando-os cpazes de aust como a propia pera ede atrair outros ani, a tonto de, por yeu, formas uma cadets longa deans ede peasor de fero,pendentes uns dls outs: ¢ todos ram esa frga da peda. Do mesmo modo, as Musas dela os homens Inypirados, comuricando-seo entusiasmo deste a outaspesoas, que pasam a formar cadeias Aelnspiados. Porque os verdadcto poes, os ciadres ds antigncpopele, nao compusermn Fuosona aca ~ 0 sutton se seus belos poemas como eéenicos, porém como inspirados ¢ possudos, © mesmo acontecendo ‘om os bons poets liicos.Iguais nesse particular aos coribantes, que 6 dangam quando estio fora do juizo, do mesmo modo os poets lticas Ficam Fora de si préprins o comporem seus poems: quando sacurados de harmonia ede ritmo, mostram-se tomados de furor igual a0 das Dacantes, que s6 no estado de embriaguer caractersticacolhem dos ros ete e mel, dexando de fiatlo quando recuperam o juize. O mesmo se di com a alma do yoeta lirico, como cles proprios o eatam, Dizem-nos os poets, justamente, que & de cetas fortes de mel dos jardins «e vergéis das Musas que les nos trzem suas canes, tal como as abelhay, adejando daqui para aldo mesmo modo que eas. E sé dizem a verdade. Porque 0 poeta € un ser alado e sagrado, todo levera,e somente capar de compor quando saturado do deus fora do jutzo,€ no ponto, até, em que perde toda o senso, Enquanto néo atinge ese estado, quale pessoa € incapaz de ‘compor versos ou vatcinar. Porque néo é por meio da arte que dizer tatase to belas cosas sobre determinados assuntos, como se dé contigo em relagio a Homers (..J"(PLATAO, Ido, w 5334-5346). “Tradugio de Carlos Alberto Nunes, posta como referéaca& citagio fit no final do texto pelos cedivores. Resume [Neste ensaio, Emmanuel Cameizo Leo mos- ‘ta, em um didlogo rico com viras obras de ppensamenta ede pocsa, a proveniénca esen- al de toda e qualquer misica, A “eséncis da misica,longe de ser uma abstracio,¢ a tara cde um pensimento da misica, Ness sentido ‘origindrio, coda misica devém do siléncio & do nadz, que alimentam e sustentam, como rum bolero, tudo que € e, necestaramente, io €. A essdncia da misicaeaessncia do ser portato, dicen o mesmo, Palarnaechave Misica;eséncia;filosofa Recebido pana publicagio em Fevereiro de 2011 Abroace In chis esay, Emmanuel Cameito Leio ar- ges, in a rich dialogue wich many works of thought and poetry, fer the essential prove- rieace ofall and whichever music. The "es- sence" of music, far fiom being an abstrac- tion, isthe task of a musical thought In this csential meaning, all music derives fom silence and nochingnes, which feed and sup- ‘port, ike ina boleo, what is and, necessarily, isnot. Te esence of music and the essence of being, therefore, mean the same. Keywords Musi: essence; philosophy. Aecto om julho de 2011

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