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SERVIÇO SOCIAL DA INDÚSTRIA

DEPARTAMENTO REGIONAL DA PARAÍBA


PROGRAMA DE EDUCAÇÃO BÁSICA E EDUCAÇÃO PROFISSIONAL
ESCOLA DIONÍSIO MARQUES DE ALMEIDA

Disciplina: Redação Professora: Maria do Socorro S. Medeiros

Elogio da migração
(Márcia Tiburi)
Por Charles Feitosa
E há tempos nem os santos
Têm ao certo a medida da maldade
E há tempos são os jovens que adoecem
E há tempos o encanto está ausente
E há ferrugem nos sorrisos
Só o acaso estende os braços
A quem procura abrigo e proteção.
Legião Urbana, Há Tempos (1989)
Existem no mundo, segundo pesquisas de 2017, cerca de 345 milhões de migrantes, representando
3% da população mundial. O Brasil sempre foi historicamente uma meta dos fluxos migratórios, mas
recentemente está se tornando também um dos países que mais exporta migrantes no planeta. O Itamaraty
estimou, em 2017, que cerca de três milhões de brasileiros vivem no exterior, a maioria no Estados Unidos,
Europa e América do Sul. Ao mesmo tempo, o número estimado de estrangeiros que moram no Brasil é 700
mil, cerca de 0,3% da população. Pesquisas recentes mostram que 62% dos jovens brasileiros querem deixar
o país, e que cresceu em 19% a migração brasileira para Portugal em 2017. Simultaneamente, somos
informados que oficialmente 1336 compatriotas foram barrados e devolvidos ao país pelas autoridades
lusitanas e, finalmente, que cresceu em 20% o número de brasileiros desencantados com o eldorado ibérico,
a ponto de solicitar ajuda estatal para poder voltar para casa. Dentro desse contexto, é com tristeza e revolta
que assistimos às recentes imagens de brasileiros em Roraima expulsando migrantes venezuelanos com
extrema violência ao som do hino nacional, ao mesmo tempo em que somos informados de que o relatório
da ONU, com dados de 2017, indica que havia, pelo menos até a crise se acentuar, mais brasileiros vivendo
na Venezuela do que venezuelanos no Brasil.
A situação de Roraima é complexa, envolvendo uma equação delicada entre poderes locais, crises
econômicas e éticas; contextos históricos de disputas territoriais, típicos de regiões de fronteira. Mas não
tem como não deixar explodir diante de nós a questão: como é possível que um povo constituído por filhos
e/ou pais de migrantes ouse não ser hospitaleiro e solidário com outros povos em condições similares ou
ainda piores? O fato é que o lado mais sombrio do patriotismo, a xenofobia, está de volta aos noticiários e
talvez seja uma boa hora para conversar de novo sobre a questão da migração do ponto de vista da filosofia.
Nada melhor nessa oportunidade do que fazer ecoar novamente a voz de alguém como Vilém
Flusser, que foi filósofo, brasileiro (por opção) e migrante. Flusser nasceu em 1920 em Praga, estudou
filosofia na universidade de Praga a partir de 1939, mas teve que interromper os estudos com a invasão de
Hitler à república tcheca. Emigrou então para Londres e depois para o Brasil. Sua família foi toda dizimada
em campos de concentração. No Brasil, durante a década de 1940 realizou diversos trabalhos para
sobreviver, continuando continuou seus estudos de filosofia de maneira informal e autodidata. Nos anos
1950, apareceram as primeiras publicações em jornais e revistas sobre problemas de filosofia da linguagem e
fenomenologia do cotidiano. De 1965 a 1972, divide a tarefa de lecionar filosofia na faculdade humanística
do ITA, de São José dos Campos, com a publicação de diversos artigos em jornais e revistas, além de
palestras como professor visitante em Yale, Barcelona e Berlim. Em 1972, começa a enfrentar problemas
com o regime militar e decide emigrar novamente, dessa vez para a França. A partir de 1975, torna-se
professor da escola nacional de fotografia de Aix-en-Provence, onde prosseguirá suas pesquisas sobre novas
mídias e cultura até sua morte, em 1991, em um acidente automobilístico.
Flusser costumava dizer que não tinha pátria, porque muitas pátrias se acumulavam nele. Sua
“filosofia da migração” nunca foi sistematizada, mas apresenta algumas teses instigantes, a partir da sua
própria experiência de vida. Em primeiro lugar, o filósofo afirma que a dificuldade dos enraizados em lidar
com os migrantes é sintoma não apenas de limitações ético-políticas, mas também de um adoecimento
estético. A boniteza do lar habitual é a fonte do amor à pátria. Tudo que parece familiar reflete nossa própria
face. O confortável parece bonito; já aquilo que é diferente, inusual, causa desconforto, parece feio. O que
vem de fora é inabitual, estranho, incômodo. O patriotismo exacerbado é, portanto, uma incapacidade de
perceber a beleza diferente do outro. Por isso o migrante é, para o enraizado, alguém ameaçador, que expõe
a banalidade e a fragilidade do lar tido como sagrado.
O problema não é do migrante, mas daqueles que acreditam que têm raízes fixas em algum lugar. As
“raízes” do homem representam uma ilusão sem futuro, pois na prática ninguém é enraizado. Falar de raízes
para Flusser faz o homem parecer um legume: fixado inexoravelmente à terra. Ao contrário, a filosofia da
migração flusseriana defendia que precisamos reconquistar o desenraizamento como nossa condição humana
fundamental. A dignidade humana está na falta de raízes e na liberdade de permanecer estrangeiro, sempre a
cada vez diferente dos outros, um outro com os outros: “A pátria do apátrida é o outro”. Por isso, só quem
se sente estrangeiro na sua própria pátria é capaz de desenvolver também responsabilidade pelos que
chegam à nossa casa, igualmente em processo de “despatriação”.
É obvio que dá trabalho não ceder ao mito das “raízes a serem fincadas e defendidas a qualquer
preço”, e é por isso que Flusser considera a chegada dos migrantes enriquecedora para os moradores
originais. Os migrantes são os desenraizados, que procuram desenraizar tudo a sua volta. Os migrantes nos
obrigam a rever nossos hábitos, que são como um cobertor de algodão que cobre todos os cantos e abafa os
sons, é anestésico, esconde informações. O hábito faz tudo ficar bonito e tranquilo. Tira-se o cobertor e tudo
fica monstruoso, inabitual, entsetzlich (deslocado/apavorante em alemão). Através dos migrantes surge a
oportunidade de reaprender a própria casa com outros olhos, vislumbrando outras e melhores perspectivas
para o viver em comum.
A migração é um tema filosófico por excelência, porque fazer filosofia também é uma espécie de
migração interior. Pensar é se exilar em si mesmo, elevando a cobertura do habitual que repousa sobre as
coisas. É sintomático que a maioria dos textos, anotações e projetos de livros de Flusser que tinham como
tema a migração tenham sido escritos em meados da década de 1970, depois do seu banimento por causa da
ditadura militar. É também sintomático que o tema da xenofobia reapareça agora, em tempos onde a volta do
regime militar é reivindicada em nome da instalação da ordem e do progresso.
Pode parecer um pouco utópico, mas a hipótese flusseriana carrega uma proposta alternativa para o
futuro e vale tanto para os brasileiros auto-exilados nos EUA ou em Portugal, como para para os sírios e
venezuelanos refugiados no Brasil. E vai ainda além, na medida em que considera a migração não apenas
um processo geopolítico, mas o próprio modo de ser do humano. Todos nós temos que aprender a migrar da
infância para a vida adulta; todos nós teremos que aprender a migrar, se tivermos sorte, da vida adulta para a
terceira idade. E todos nós, vivendo na pós-modernidade, estamos tendo que migrar dos textos lineares para
a hiper-textualidade da era digital. Enfim, viver consiste em ser constantemente expulso de algum território
(geográfico ou simbólico) e reaprender a morar em terras novas. Como vamos esperar que acolham a nós ou
a nossos filhos nos novos continentes do futuro, quaisquer que sejam, se nós mesmos não formos capazes de
estender os braços a quem procura abrigo e proteção?
Vila Isabel, Rio de Janeiro, Inverno de 2018.

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