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O Léxico e a dialética
Ana Portich1

Em 1985 o encenador e dramaturgo Jacques Lassale afirmava que as teorias


de Jean-Pierre Sarrazac vinham ocupar, nos dias de hoje, a função que no
século XVIII coube à Dramaturgia de Hamburgo.2 Assim como Lessing nesta
obra capital reatualizou a teoria dos gêneros, fazendo frente ao classicismo
francês, Lassale atribui a Sarrazac, pela postura crítica e pelas ações
afirmativas, o papel de fundar uma nova poética do teatro em resposta à
desordem reinante e à consequente falta de critérios para apreciar e julgar
peças teatrais.
O Léxico do drama moderno e contemporâneo, elaborado por uma
equipe de pesquisadores sob supervisão de Sarrazac, explica por que os
critérios usados anteriormente haviam se tornado obsoletos. Se Lessing, ao
propor o trânsito entre tragédia e comédia, abriu caminho para o drama
burguês, o Léxico sai em defesa de um drama que não seja apanágio de
nenhuma classe, mas expresse a própria condição humana.
Refuta-se assim o teatro que teria se rendido ao épico, em vista de
mudanças radicais na estrutura de texto ou na concepção de encenação
ocorridas desde as últimas décadas do século XIX. Se a dinâmica dos gêneros
literários, tal como Brecht, Adorno, Benjamin, Lukács e Szondi a viam, deixa de
se inscrever na dialética da história, o paradigma hegeliano sofre todo um
revisionismo. Enquanto na Alemanha o materialismo havia sustentado as
balizas da teoria literária, na França a abordagem fenomenológica das artes
cênicas implicou sua paradoxal anulação, em busca de um teatro sem
artificialidade, ancorado antes no corpo que na mente.
Daí a necessidade de passar a limpo o aparato crítico, o que esclarece o
advento, nas últimas décadas, de uma série de publicações sobre as novas
maneiras de ler o teatro. Com efeito, o Léxico do drama moderno e

1
Professora do departamento de filosofia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), câmpus
de Marília. Doutora em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e autora de A arte do
ator entre os séculos XVI e XVIII – Da commedia dell’arte ao Paradoxo sobre o comediante
(editora Perspectiva).
2
Gotthold Ephraim Lessing, Dramaturgia de Hamburgo (Seleção antológica), tradução,
introdução e notas de Manuela Nunes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, col. Textos
Clássicos, 2005.
2

contemporâneo tem na semiótica teatral de Anne Ubersfeld3 e no Dicionário de


teatro,4 de Pavis, referências de base. Conta ainda, na equipe de
colaboradores, com Jean-Pierre Ryngaert,5 especialmente na redação dos
verbetes “Personagem (crise do)” e “Fragmento/ Fragmentação/ Fatia de vida”.
Além de propor uma alternativa à leitura dialética do teatro, esse novo
corpus aparece em razão da premissa teórica que o pauta, qual seja, a
permanente desconstrução e ressemantização do vocabulário cênico. Os
autores de orientação marxista listados em parágrafo anterior continuam a ter
papel de destaque, esvaziados porém de sua prerrogativa esquerdista. Por
princípio é preciso submeter a exames periódicos toda uma terminologia que
abarca desde a Poética,6 de Aristóteles, até noções emblemáticas de teorias
que, sob outros aspectos, o próprio Léxico contesta, como no caso do verbete
“Gestus”.
Neste ponto Sarrazac toma um desvio e se distancia de alguns de seus
interlocutores, em especial Hans-Thies Lehmann. Em primeiro lugar, por
rejeitar explicitamente, no próprio título do Léxico, a solução pós-moderna
segundo a qual o teatro não corresponde a nada de objetivo e portanto perde
todo vínculo com as convenções estabelecidas. Para os defensores do
radicalismo performático, no combate ao espírito de sistema o teatro pode
assumir as mais variadas formas, sem nenhum compromisso com a teoria dos
gêneros. Ao explanar sobre a tendência que inviabilizaria a constituição de um
vocabulário sobre o drama, o verbete “Pós-dramático” informa que “nem sequer
figuras identificáveis são necessárias para produzir teatro”7.
Sarrazac combate o logocentrismo e ao mesmo tempo dá direito de
cidadania ao texto, conciliando posições antagônicas pela mediação do “Devir
cênico”. Na encenação o texto se coloca em pé de igualdade com os demais

3
Ver Anne Ubersfeld, Lire le théâtre. Paris: Éditions sociales, col. Les Classiques du Peuple,
Critique, n. 3, 1977 [ed. bras., Ler o teatro, trad. José Simões Almeida Júnior (coord.),
Edvanda Bonavina da Rosa, Lídia Fachin e Maria Celeste Consolin Dezotti. São Paulo:
Perspectiva, col. Estudos, 217, 2010].
4
Patrice Pavis, Dicionário de teatro, trad. Maria Lúcia Pereira, J. Guinsburg, Rachel Araújo de
Baptista Fuser, Eudynir Fraga e Nanci Fernandes, 3ª. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.
5
Ver Jean-Pierre Ryngaert, Lire le théâtre contemporain. Paris: Dunod, 1993 [ed. bras., Ler o
teatro contemporâneo, trad. Andréa Stahel M. da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1998].
6
Aristóteles, Poética, tradução e comentários de Eudoro de Sousa, in Aristóteles – Os
Pensadores IV. São Paulo: Abril Culaootural e Industrial, 1973.
7
“Pós-dramático”. In Jean-Pierre Sarrazac (org.), Léxico do drama moderno e contemporâneo,
trad. André Telles. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 146.
3

elementos da escrita teatral, dentre os quais o desempenho do ator, o cenário,


luz e som. Além disso, não precisa ser dramático para ser representado. À
noção da escrita como recipiente oco, contendo todas as suas versões cênicas
em limites estreitos,

convém hoje opor a ideia de um trabalho de superfície, ou melhor de interface:


deslizamento da estrutura-texto e da estrutura-representação uma sobre a
outra; sobreposição graças à qual o texto se vê posto em movimento por sua
própria teatralidade, que lhe permanece exterior. Nesse sentido, o devir cênico
– reinvenção permanente do palco e do teatro pelo texto – é o que liga mais
proximamente, mais intimamente esse texto ao seu “Outro” exterior e
estrangeiro. A saber: o teatro, o palco.8

A categoria de drama, mesmo em devir, continua valendo para definir a


cena. Mas o fato de que o Léxico tome partido contrário ao niilismo pós-
dramático expõe acima de tudo uma discordância para com o legado
brechtiano. Na “Introdução”, admite-se que qualquer discussão em torno do
teatro contemporâneo deva ter como ponto de partida a crise do drama
constatada por Peter Szondi, de quem Sarrazac diverge no tocante aos
desdobramentos sofridos pelo gênero a partir de então, ou com relação aos
fatores que determinaram sua emergência. Enquanto Szondi a localiza em um
momento histórico determinado, em meio ao qual o sujeito entendido como
detentor de autonomia perde espaço de atuação – não por acaso proliferam
protagonistas à beira da morte ou post mortem, estado em que ninguém pode
agir, restando apenas relatar o que já foi feito –, Sarrazac considera o drama
do homem sem liberdade uma situação crônica.
Em sua versão, o drama moderno demarca o surgimento do eu dividido.
Vive-se em tempos de angústia, quando “o ‘ser-aí’ do personagem, sua relação
problemática com o mundo – com a sociedade, com o cosmo – tende a
prevalecer sobre a pura relação interpessoal”,9 o que provoca uma crise sem
fim. Quanto às conclusões a que Szondi chega, ao ver no incremento do fator
narrativo a supremacia do gênero épico sobre o dramático, trata-se, segundo

8
“Devir cênico”, pp. 68-69.
9
“Diálogo (crise do)”, p. 69.
4

Sarrazac, do mesmo tendenciosismo teleológico que prevê, na esfera político-


econômica, a superação do capitalismo pelo comunismo10.
O paradigma preferível é aquele que mantenha a tensão entre épico,
lírico e dramático, sem subsumir nenhum dos gêneros. Não é preciso dizer que
se contesta aqui a teoria crítica, em favor de uma estética que desconstrua o
drama, mas não implique sua obsolescência. A premissa de decomposição, ao
invés do acréscimo de preceitos a partir de alguns fundamentos, engendra o
Léxico como exame a contrario de cada um dos componentes dramáticos já
abordados pela tratadística. Por exemplo, a noção de ação é reavaliada a partir
de seus limites, ou melhor, da inação imperante no teatro atual:

é o “Teatro estático” de Maeterlinck que constitui uma de suas manifestações


mais radicais, uma vez que tende a anulá-la, cortando pela raiz o que constitui
a dinâmica do ato teatral. Agir é “pôr em movimento”, como lembra Hannah
Arendt baseando-se no latim agere.11

Na medida em que a ação passa a ser entendida como movimento de


palco ou ligação causal entre episódios, articulação de palavras, jogo de cena,
o termo deixa de indicar uma relação entre sujeitos, enquanto tal, autônomos.
E autonomia, desde a pólis grega que serviu de base para Aristóteles definir o
drama como imitação da ação, somente se consolida na atuação política. Hoje,
entretanto, como diz Sarrazac, essa possibilidade foi minada pela introversão.
Fechado em si mesmo, o indivíduo se separa definitivamente dos outros.
Que tipo de ação ainda é possível? O verbete “Peça-paisagem” recorre
ao termo cunhado por Gertrude Stein para elucidar o espetáculo feito para
estar-aí. Episódios que se sucedem aleatoriamente diante do público não
devem ser confundidos com peças soltas de um quebra-cabeças – que
ganhariam forma se colocadas em ordem – nem precisam se submeter a um
processo de interpretação que desvende sua mensagem. Segundo o
dramaturgo Michel Vinaver, a melhor definição para a peça-paisagem surge do
contraste com a peça-máquina, na qual o encadeamento lógico é reconhecível
com nitidez.

10
Cf. “Introdução”, p. 30.
11
“Ação”, p 37.
5

Para sanar a dúvida de que, diante de tableaux feitos para contemplação


do espectador só lhe caberia uma atitude passiva, outros verbetes continuam a
tratar do assunto, dentre os quais a importância do teatro como obra aberta aos
“Possíveis”. Se o drama deixa de ser unívoco, o artista não dá precedência a
qualquer “Ponto de vista/ Focalização/ Perspectiva”,

[a peça] não recorre a nenhuma instância épica capaz de restaurar a


perspectiva ausente, o espectador, deliberadamente privado das informações
necessárias para julgar da veracidade das diferentes perspectivas, vê-se
frustrado pela falta de um ponto de vista que, não obstante, ele deve supor
existente [...].
Nessas dramaturgias contemporâneas, a construção do sentido global
da obra deslocou-se radicalmente do palco para a plateia, uma vez que o
espectador não é mais capaz de posicionar-se numa relação hermenêutica
com o palco: não se trata mais de descobrir o sentido, mas de procurar um. 12

Não podem ser corrigidas as anamorfoses, as deformações operadas


em cena, elas não correspondem, nas devidas proporções, a nenhuma
situação conhecida. A proposta é substituir o paradigma organicista de
composição de peças teatrais para algo como uma criatura quimérica, um
monstro ou besta que aniquile a unidade preconizada pelo modelo aristotélico,
donde o verbete “Belo animal (morte do)”. Em última instância a ausência de
completude, a hibridização na composição do texto, o andamento inusual da
fábula, às vezes até certo amadorismo na encenação e tantos outros recursos
de estranhamento seriam escandalosos por si sós,13 traduzindo, não a
passividade dos artistas e seu público, mas uma espécie de ativismo pontual
“numa época em que se proclama o ‘fim das grandes narrativas’”.14
Mediante esta amostra se percebe que o Léxico difere dos demais
dicionários de teatro pelo arranjo sui generis das ocorrências: termos contíguos
aparentemente desconexos esclarecem uns aos outros e aos poucos
acrescentam dados, formando um todo. Ainda que seu recorte metodológico
gire em torno da crise do drama deflagrada há pouco mais de cem anos, o livro

12
“Ponto de vista/ Focalização/ Perspectiva”, pp. 145-146.
13
Cf. “Endereçamento”.
14
"Ironia/ Humorismo/ Grotesco”, p. 100.
6

remete à história do teatro, seja ao discorrer sobre a teoria da mímesis


enunciada por Platão, passando, é claro, pela Poética aristotélica, a preceptiva
do drama burguês na França setecentista, o classicismo alemão, o naturalismo
que dá início à problematização do gênero, bem como a pulverização das
escritas cênicas atuais. A finalidade pedagógica justifica-se pela larga
experiência de Sarrazac com oficinas de escrita e como professor de
dramaturgia na Sorbonne.
Sua pesquisa acadêmica está associada à de Bernard Dort, que o
orientou na tese publicada em 1981 sob o título L’Avenir du drame [O futuro do
drama, em edição portuguesa].15 Seguidor declarado de Roland Barthes,
comunga com ambos a certeza de que o teatro contemporâneo tem na obra de
Brecht sua pedra fundamental. Em 1954, quando da passagem do Berliner
Ensemble por Paris, Barthes e Dort estavam na plateia. O primeiro se
impressiona com a encenação e o emprego da escrita fragmentária como
instrumento para que a matéria se torne signo. Do ponto de vista técnico, não
vê contradição em aproximar Brecht, Artaud e Mallarmé. Dort leva esse
raciocínio às últimas consequências e sai em busca de uma teatralidade que
não seja textocêntrica.
Em livro publicado em 2000, Sarrazac destaca: “De Brecht, Barthes
mantém tudo, exceto a pretensão teleológica do teatro épico de se constituir
como superação da forma dramática”.16 No limite, conforme trecho já citado do
Léxico, mais do que uma questão estética, trata-se de divergência política.
Embora siga a tendência dos mestres na remissão a Brecht, Sarrazac vê
Peter Szondi como a referência mais marcante, em termos de crítica dialética
na atualidade. Um dos méritos do Léxico do drama moderno e contemporâneo
é justamente reconhecer que Teoria do drama moderno dá régua e compasso
ao empreendimento, ao passo que, nos demais compêndios pós-
estruturalistas, o ecletismo implícito na opção programática não permite
identificar um fio condutor. O recurso a Szondi se justifica por dar a ver um
estado de coisas problemático, expresso no desmonte e na desfiguração de

15
Jean-Pierre Sarrazac, L’Avenir du drame. Écritures dramatiques contemporaines. Lausanne:
L’Aire, col. L’Aire Théâtrale, 1981 (reed. Saulxures, Circé Poche, 1999). O futuro do drama,
trad. Alexandre Moreira da Silva. Porto: Campo das Letras, 2002.
16
Id., Critique du théâtre: de l’utopie au désenchantement. Belfort: Circé, 2000, pp. 122-123.
7

cada um dos elementos constitutivos do drama – fábula, personagem, diálogo


e relação palco-plateia.
Em que pese ter assumido a crise do drama, Sarrazac diverge de Szondi
ao defender a integridade do gênero. Como consta da “Introdução” ao Léxico,

o sujeito da dramaturgia subjetiva de Strindberg não é simplesmente épico;


semelhante ao sonhador, que é ao mesmo tempo o que sonha e o sonhado,
ele se desdobra e é alternadamente, ou mesmo simultaneamente, épico e
dramático. Este é o duplo erro de Szondi a respeito de [...] Strindberg: ignorar
um sujeito clivado, ao mesmo tempo épico e dramático, e considerar um
fracasso o que é pura e simplesmente a originalidade e, a nossos olhos, [sua]
modernidade [...].17

Szondi, devido ao parti pris marxista de não levar em conta o homem


privado – neste ponto Sarrazac incorpora a afirmação de Sartre sobre Brecht –,
teria sido incapaz de captar a originalidade de Strindberg. No entanto, o
dramaturgo sueco deu projeção a “um drama íntimo que se desenrola apenas
dentro de uma cabeça”.18 Motivo pelo qual a equação responsável por reduzir a
intersubjetividade dramática ao conflito interior antecedeu de muito, segundo
Sarrazac no livro Critique du théâtre, “a derrocada histórica do socialismo real,
a queda do Muro”.19 O dado objetivo só fez consolidar um drama com sinal
trocado, que tem como finalidade revelar os segredos da intimidade, derrubar
as quatro paredes do interior doméstico e tornar pública a vida privada, esta
correspondente ao drama, aquela, ao épico. Daqui em diante, toda iniciativa
teatral socializante continuará a ser intimista, na medida em que se restringe a
pintar em escala mais ampla o indivíduo isolado.
Um dispositivo imprescindível para que as personagens e o espectador
se abram para a ideia de comunidade teria sido a reintrodução do coro nos
espetáculos teatrais, crescente desde a virada do século XX. Trata-se, ao lado
do conceito de teatro como rapsódia, de um dos pontos-chave da nova poética
proposta por Sarrazac. Por atribuir dimensões macrocósmicas ao microcosmo
dialógico do drama, o “Coro/ Coralidade” provoca mudanças na concepção de

17
“Introdução”, p. 27.
18
“Óptica”, p. 128.
19
J-P. Sarrazac, Critique du théâtre: de l’utopie au désenchantement, op. cit., p. 136.
8

espaço-tempo, uma vez que o concerto de vozes passa a se distribuir


independentemente da lógica de ação e reação. Além disso, em sua
pluralidade o coro moderno dá voz tanto ao coletivo quanto ao relato pessoal,
de cunho lírico, fazendo com que exterior e interior se tornem indiscerníveis.
O teatro cumpre hoje o papel de satisfazer desejos de agregação que
fora dali não podem mais se realizar. Recorrer ao coro

é quase sempre, na hora do desencantamento do mundo, oportunidade para


uma deploração fundamental, aplacando a maldição do disjunto e a insuperável
separação dos seres.20

O desencantamento emerge em tempos modernos, mas sempre esteve


latente. Nesse sentido Sarrazac glosa o anti-humanismo que remonta a
Nietzsche e Heidegger, prevendo no homem uma tendência atávica à
destruição. Histórias como a do serial killer Roberto Zucco, peça de Jean-Marie
Koltès que fez furor na Europa em 1990, embora sejam uma parábola e não
reflexo da realidade, podem denunciar ou chamar atenção para “o homem
comum contaminado e criminalizado pelo medo reinante em nossas
sociedades”.21
Como a aproximação entre os homens, por não ser um pendor natural,
só pode se dar virtualmente, o teatro assumido como completo artifício
consegue promover esse encontro. De maneira que dramaturgos como Ibsen e
Tchekhov, ao deslocar partes do drama que pareciam naturalmente unidas e
assim tornar aparente o artifício, encetam uma crise bastante salutar.
Do pressuposto inscrito no pessimismo filosófico acima referido, que vê
com suspeita toda tentativa humana de compreender o mundo e por isso nos
remete à transcendência ou ao mito, decorre uma teoria estética em que é
necessário tornar evidente a falta de organicidade entre as partes e o todo da
obra de arte, mediante a desestruturação das categorias que antes a
sistematizavam. Em seguida, os pedaços soltos são submetidos a uma espécie
de colagem que explicite suas emendas. Na superposição dos modos

20
“Coro/ Coralidade”, p. 62.
21
“Parábola (peça-)”, p. 133.
9

dramático, épico e lírico, do alto e do baixo, do trágico e do cômico, afirma-se a


centralidade do conceito de rapsódia no teatro.
Porque o autor-rapsodo já não disfarça os recursos técnicos
empregados, toda nuança ilusionista desaparece. Em outras palavras, se
etimologicamente “rhaptein significa ‘costurar’”,22 as costuras são deixadas à
mostra para que se dê ênfase ao aspecto convencional do teatro. Com isso a
escrita rapsódica relativiza o significado da linguagem dramática, embora não
anule sua efetividade. Com o propósito de abrir espaço para o autor, para as
personagens, para atores e emissores extraficcionais que não tenham voz em
lugar algum, a rapsódia adota o ponto de vista dramático lado a lado com o
épico e o lírico. Segundo Sarrazac, a colaboração entre os gêneros, e não a
superação de um por outro, produz novos significados per se transitórios, como
ponto de contato entre teoria e imanência.
Grande parte da filosofia do século XX assevera que o mundo é aquilo
que percebemos, e a mente só funciona porque encarnada. Junto à primazia
dada à percepção, desponta tudo o que seja inconsciente e o que não tenha
sido sintetizado pelo pensamento. Não obstante, a própria expressão do
inconsciente implica o emprego da linguagem, que, por estar no lugar das
coisas, corre o risco de se interpor e prejudicar a percepção do mundo. Uma
das alternativas é tratar qualquer linguagem, a artística inclusive, ao modo da
teologia negativa, que pela negação de seus atributos permite falar de Deus
sem comprometer a inefabilidade.
Até certo ponto o Léxico do drama moderno e contemporâneo pratica
esse tipo de análise a contrapelo adotada pelo existencialismo alemão. Mas o
empenho de Sarrazac em definir a forma aberta, “que não é ausência de
forma”23, em positivar a terminologia cênica e dar novos significados à noção
de drama, insere sua iniciativa no amplo espectro da fenomenologia e da
semiologia francesas, que nunca abandonaram sua crença no logos, desta vez
totalmente entrosado com o corpo.

22
“Rapsódia”, p. 152.
23
“Introdução”, p. 32.

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