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EVA APARECIDA DE OLIVEIRA

“’O FIM E O PRINCÍPIO’ OU O FIM TRAZ O


RECOMEÇO: A ESTÉTICA DO TEMPO NO
FILME DE EDUARDO COUTINHO”

CAMPINAS
2015

i
iii
iv
v
RESUMO

Este estudo faz uma abordagem estética do filme “O fim e o princípio”, do cineasta
Eduardo Coutinho. A reflexão se dá em torno da questão do tempo e o tempo do
encontro com o outro ao entrecruzar memórias, imagens, palavras e sons do filme.
É uma interpretação do filme como criação estética do tempo e da memória, para
apreender e entrecruzar temas que emergem dele. A imagem-tempo explora o
tempo de forma direta no filme. A Metodologia utilizada é a análise alegórica que
apela à imaginação ao construir a ligação entre sentido e imagem, sem a
preocupação de estabelecer uma relação lógica. O filme como motivador do
pensamento, afirma a potência da arte como forma de pensar o mundo e
reinventar outras relações e sensibilidades com o outro. O estudo é entremeado
pelos conceitos teóricos de Deleuze, Aumont, Bazin, Martin, Tarkovski, Benjamin e
Xavier.

Palavras-chave: Cinema, Eduardo Coutinho, alegoria, estética temporal, imagem-


tempo, memória.

ABSTRACT

This study is an aesthetic approach to the film "The end and the beginning," the
filmmaker Eduardo Coutinho. The reflection revolves around the issue of time and
the meeting time with each other to intersect memories, images, words and sounds
of the film. It is an interpretation of the film as an aesthetic creation of time and
memory, to seize and interlacing themes that emerges from it. The time-image
explores the time directly in the film. The methodology used is the allegorical
analysis that appeals to the imagination when building the connection between
meaning and image, without the worry of Flores, a logical relationship. The film as
a motivator of thought says the power of art as a way of thinking about the world
and reinvent other relationships and sensitivities with each other. The study is
punctuated by theoretical concepts of Deleuze, Aumont, Bazin, Martin, Tarkovski,
Benjamin and Xavier.

Keywords: Cinema, Eduardo Coutinho, allegory, temporal aesthetic, image-time,


memory.

vii
Sumário

APRESENTAÇÃO................................................................................................................... 19

INTRODUÇÃO: AS VICISSITUDES DO TEMPO E A IMAGEM CINEMATOGRÁFICA ...................... 27

1- “O FIM E O PRINCÍPIO” OU O FIM TRAZ O RECOMEÇO ...................................................... 41

2- A ESTÉTICA DO CINEASTA EDUARDO COUTINHO: UM NOVO COMEÇO NO FIM .................. 73

3- IMAGENS COMO COMPOSIÇÃO ALEGÓRICA DO TEMPO ................................................... 95


Tecer o tempo e tecer a vida -----------------------------------------------------------------------123

4- FABULAÇÕES, MEMÓRIA E TEMPO ................................................................................ 143


Chico Moisés: representando a representação da vida real - pura fabulação ........................ 147
O relato dos ressentimentos: a memória das provas e sofrimentos suportados - alegoria do
sentimento de duração ........................................................................................................ 154

Dimensão temporal dos objetos como alegoria .................................................................. 167

CONSIDRAÇÕES FINAIS ...................................................................................................... 171

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA .............................................................................................. 179

ANEXOS............................................................................................................................. 189

Transcrições das falas dos personagens nas entrevistas do filme "O fim e o princípio" (Eduardo
Coutinho, 2005) ........................................................................................................................ 189

ix
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho ao meu filho João Bernardes que dos


dois aos sete anos de idade me acompanhou no doutorado,
à minha mãe Amélia Medeiros que sofreu a ausência dos
meus cuidados durante os três anos que estive em
Campinas, à minha orientadora Profa. Dra. Cristina Bruzzo
que acreditou o tempo todo em mim, aos meus irmãos Maria
Santíssima (in memorian) e José Bernardes (in memorian)
que tiveram suas existências no nosso tempo interrompidas
durante o meu curso de doutorado e ao meu querido pai
João Bernardes de Oliveira (in memorian).

xi
AGRADECIMENTOS

A todos os meus familiares que me apoiaram, especialmente o meu


sobrinho Vilson Nunes de Freitas Júnior, a minha irmã Glória e meu cunhado
Sinvaldo pelo apoio enquanto estava em Campinas; a todos os meus irmãos e
irmãs: Glaucia, Sebastião, Glenda e Antônio e seus familiares, aos meus
sobrinhos e sobrinhas;
A Dedé (Edimar Miranda) pelos cuidados com minha mãe no período em
que estive fora;
Aos meus amigos: Mariana, Nima, Alê, Carol, Henrique, Edite, Heron, Dona
Ana, Adriana e Mauro Marton, pelo carinho enquanto estive em Campinas, SP;
A amiga e colega Verônica, a sua mãe Regina e seu irmão Marinho pelo
apoio na etapa de defesa. Muito obrigada!
A amiga e colega da UFG Dra. Rosemara pelas leituras e correções da
Tese;
Aos meus colegas de trabalho (Pedagogia UFG/Regional Jataí) que me
apoiaram especialmente as Professoras Elizabeth Raimann e Hercília Beneti que
deram minhas aulas no 1º semestre de 2010, para eu estar em Campinas, SP;
Aos professores do Programa de Pós-graduação em Educação da
Unicamp: Cristina Bruzzo, Milton Almeida (in memorian), Patrízia Piozzi, Débora
Mazza, Antonio Carlos Amorim, Débora Cristina Jeffrey, Maria Carolina Bovério
Galzerani, Ana Maria Fonseca Almeida, Dario Florentini, Wenceslao de Oliveira
Jr., Carmem Lúcia Soares;
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Multimídias do
Instituto de Artes da Unicamp: Marcius Freire e Fernão Ramos;
Aos funcionários da FE/Unicamp: Nadir, Luciana, Rita, Cléo e Marcinha
(Biblioteca);
Aos membros da Banca Avaliadora dessa tese, pela disposição de estar
colaborando com o meu conhecimento: Débora Mazza, Alik Wunder, Patrízia
Piozzi, Suely Lima Assis Pinto, Giovanna Scareli, Suely Santos Silva, Antônio Reis
Júnior, Vera Lúcia Sabongi de Rossi.
A todos os meus amigos e amigas que sempre torceram por mim nesta
caminhada.

xiii
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 01 – O “Cone da memória” de Bergson (DELEUZE, 2007, p. 101).


Figura 1. 1 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 2 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 3 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 4 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 5 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 6 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 7 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 8 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 9 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 10 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 11 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 12 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 13 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 14 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 15 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 16 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 17 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 18 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 19 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 20 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 1. 21 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 2. 1 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 2. 2 – Foto-imagem dos Créditos Extras, do Filme “O fim e o princípio”, de
Eduardo Coutinho.
Figura 3.1 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.2 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.3 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.4 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.5 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.6 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.

xv
Figura 3.7 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.8 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.9 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.10 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.11 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.12 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.13 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.14 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.15 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.16 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.17 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.18 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.19 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.20 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.21 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.22 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.23 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.24 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.25 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.26 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.27 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.28 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.29 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.30 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.31 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.32 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.33 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.34 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.35 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.36 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.37 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.38 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.39 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.40 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
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Figura 3.41 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.1 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.2 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.3 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.4 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.5 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.6 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.7 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.8 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.9 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.10 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.11 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.12 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.13 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.14 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.15 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.

xvii
APRESENTAÇÃO

Eis o desafio colocado por mim neste estudo: pensar o tempo a partir das

narrativas e imagens de um filme, entrecruzando memórias, imagens, palavras

e sons, através da estética cinematográfica.

A memória, a narrativa destes outros, que não cabem nas nomeações

acadêmicas, mulheres e homens que declinam as lógicas escolares, modernas,

urbanas, o velho, o rural, o popular, o artesanal, o que está em vias de

desaparecimento na sociedade capitalista. Existências que não são de outro

tempo, inserem-se neste mundo contemporâneo, e, no filme, abrem, com seus

gestos e palavras, outras perspectivas existenciais, outras temporalidades.

Este estudo aposta no processo de construção da temporalidade no filme:

apresenta o tempo, ao nos fornecer memórias e nos aproximar do mundo de

memórias outras. Tendo em vista o objetivo de interpretar o filme como criação

estética do tempo e da memória, não como apreensão do real – não uma

associação direta entre as narrativas do filme e os sentidos produzidos pelo diretor

- mas aprofundar na sua estética para apreender, entrecruzar temas que emergem

dele, através de uma visão alegórica.

Para desenvolver esta Tese, utilizei o filme “O fim e o Principio”, de Eduardo

Coutinho (2005). Necessariamente, trilhei pela ideia de tempo numa perspectiva

estética. Esta busca é tecida a partir da análise e interpretação do filme, voltando,

especialmente, para a relação tempo e a imagem móvel, em que faço uma

reflexão sobre o tipo de temporalidade nela construída: as relações estabelecidas

19
entre os personagens e seu processo de rememoração e a concepção de tempo

representado e apresentado nas imagens.

A realização deste estudo aponta futuros estudos sobre como a

temporalidade pode ser pensada numa perspectiva da Educação estética,

considerando que o Cinema estabelece várias relações com a memória,

pensando-o como um grande fornecedor de imagens para as nossas memórias, e

considerando-o como um mediador do mundo das memórias das personagens

para o nosso mundo.

Os elementos ligados ao conceito de tempo, que estão no filme, e que são

importantíssimos no desenvolvimento desta reflexão são: imagem-tempo, alegoria,

fabulação, memória, duração, ressentimento, velhice e morte. Esses conceitos

formam o conjunto de análises que compõem a minha tese de doutorado.

A análise cinematográfica, em seus aspectos técnicos e estéticos, tem sua

fundamentação nos seguintes teóricos: Deleuze (Imagem tempo), Bazin, Aumont

e Ismail Xavier (estética do cinema), Andrei Tarkovski (esculpir o tempo), Marcel

Martin (profundidade de campo).

A metodologia utilizada é a pesquisa bibliográfica, a assistência e análise

fílmica, através do processo de decupagem das entrevistas dos personagens e

realização de fotogramas do filme.

Para analisar o filme utilizei o conceito de alegórica em Benjamin, que

apresento como a metodologia viável para captar o sentido que o filme tem para

mim. A alegoria é um gesto interpretativo que preserva a verdade do sentido do

filme, abolindo, ao mesmo tempo, o seu sentido primeiro e literal. Não se trata de

20
uma leitura do filme através da direção ou uma educação dos sentidos pela

articulação do autor, mas por um olhar singular da tela, proporcionando uma

leitura de tempos e memorizações.

Desse modo, a interpretação alegórica não pretende oferecer nenhum

fundamento seguro, especialmente conciliar o teor do filme com as exigências da

razão e da moral. Na verdade, nessa perspectiva, o sentido verdadeiro nunca será

alcançado. A alegoria não precisa estar expressa na linguagem, ela se dirige aos

olhos de quem observa, ela está expressa nas artes em geral: pintura, escultura,

cinema. A interpretação alegórica apela à imaginação, quando constrói a ligação

entre sentido (interpretação dada) e imagem, sem a preocupação de estabelecer

uma relação necessária ou uma verdade lógica nessa ligação.

No referido filme é possível perceber um tratamento dado ao cotidiano que

revela um senso estético: a temporalização das imagens através dos planos fixos

e dos aspectos estéticos da profundidade de campo. Nesse sentido, apresento na

introdução uma reflexão teórica breve sobre “as vicissitudes do tempo e a imagem

cinematográfica” em Deleuze. A imagem-tempo é uma imagem fílmica que explora

o tempo de forma direta e não só o movimento. O movimento nestas cenas possui

como característica principal o fato de ser óptico e sonoro, ao invés de sensório-

motor. Estas imagens apenas mostram, elas não dependem de um encadeamento

de montagens. É um tempo do cinema que não é mais cronológico ou linear; é um

tempo como duração, em que o passado e o futuro convivem e não se sucedem.

Os capítulos representam diferentes exercícios de entradas no filme: ora

pelos pensamentos de Eduardo Coutinho e outros autores que discutem sua obra,

ora pelas imagens do filme, ora pelas narrativas do filme e memórias dos
21
personagens, ora por cenas ou objetos específicos. Nestes movimentos de

diversos pensamentos com o filme, o outro, por vezes, são as narrativas e os

personagens, as imagens e os sons, a ética e a estética do filme e o diretor.

Conforme indicação da Banca de Qualificação relacionada ao relatório de

pesquisa, eu segui a alternativa que tem mais força para desenvolver a Tese: os

pensamentos que voltam à estética do filme e aos pensamentos do diretor,

entremeadas por conceitos teóricos. Estes são os pontos reconhecidos como

potências, em especial, na forma de pensar o tempo com palavras, imagens e

sons do filme e com o diretor e os outros teóricos.

No capítulo 1 “O fim e o princípio” ou o fim traz o recomeço - Faço uma

contextualização do filme, apresento os personagens criados pelo diretor. Há

neste capítulo um movimento de pensar o filme como criação estética do tempo e

da memória e não como apreensão do real.

Ao atentar-se em como o tempo é narrado pelas imagens que focam nos

corpos, abre-se uma potência de ampliação de pensamentos e assim uma

atenção maior não apenas aos corpos, mas à forma que o diretor, nos

enquadramentos, dá intensidade a estes e conta suas histórias por imagens. Faço

uma análise não só a partir da ótica do diretor, mas de um encontro com sua

criação estética, que envolve uma conversa com os enquadramentos e com a

edição. É uma leitura que se mantém singular, mas aprofunda nos aspectos que

envolvem a dimensão estética do cinema.

No capítulo 2, “A estética do cineasta Eduardo Coutinho: um novo

começo no fim” dou uma atenção ao ato de iventibilidade que se dá nesse

22
tempo de filmagem: o encontro com o diretor, o encontro com a câmera, com a

encenação, com a rememoração. O tempo do encontro na filmagem entre

personagem-câmera-diretor, um abrir-se ao tempo do acontecimento, ao

imprevisível, àquilo que irrompe e muda a lógica, como forma interessante de

pensar a temporalidade e a relação com o outro. Na “conversa” com o diretor

sobre o tempo da narrativa, sobre a busca por pessoas que possuem rigor e força

na fala, o foco na cultura oral, pode ter início a uma conversa breve com Benjamin.

No capítulo 3, “Imagens como composição alegórica do tempo: tecer o

tempo e tecer a vida” apresento na primeira parte as imagens do filme como

constituição alegórica do tempo. São dois exercícios de pensamento com o filme,

em especial pelas imagens: primeiro, pelo conceito de imagem-tempo e, segundo,

sobre a profundidade de campo. Os dois movimentos são potentes, ainda que seja

mais afirmado pela presença das imagens e aprofundamento nas passagens em

que reconhece estas potências. Há uma acentuação dos aspectos óticos e

sonoros, da imagem-tempo. Entro na estética do filme, descolo-me das narrativas

verbais e “experimento” o filme por suas imagens e sons: outros tempos. Na

segunda parte, faço um exercício de pensamento com as imagens do fiar, juntar

fios da mitologia. As imagens do fiar é uma constituição alegórica do tempo e faz

pensá-lo como estética do filme. Trabalho, aqui, uma fabulação do tempo pela

simbologia das fiandeiras: amor e morte se entrelaçam o tempo todo na trama da

vida. Considero que as imagens do fiar pela mitologia e modos de pensar a

mulher não vêm de fora do filme, pois ocorrem no processo de fabulação do

próprio diretor, no processo de edição. Existe uma percepção e uma relação breve

23
com o pensamento do filósofo Walter Benjamin e o texto “O narrador” (o narrador

artesão).

No capítulo 4, “Fabulações, memória e tempo”, faço uma reflexão com a

problemática que instiga este estudo: a relação da memória e o ressentimento

com o tempo e como estes são situados como elemento alegórico do tempo e

ajuda a pensar a estética do filme. Eu faço a relação da memória e ressentimento

com a estética do tempo. Nesta parte, o meu exercício de entrada no filme se dá

pela memória e narrativa da personagem Tia Dôra, quando faço o nexo entre os

conceitos de ressentimento e memória e tempo. A aproximação é realizada

através da narrativa dos personagens, ou seja, traz a forma do diretor lidar com o

seu tema e suas escolhas fílmicas.

Na reflexão sobre o personagem Chico Moisés: Apresento o personagem

no seu jogo de representação, de alteridade com o diretor. Remeto novamente ao

tempo do encontro e da fabulação pela presença da câmera. Chico é um exemplo

de pessoa em devir personagens e todos os jogos que a atravessam. O texto

reflete sobre as relações de alteridade, as fabulações de si (a indiscernibilidade

entre o real e o ficcional, o jogo ambíguo e tenso da relação). Portanto, a

fabulação do personagem também aparece como elemento alegórico do filme.

Encerro o capítulo 4 refletindo sobre a temporalidade presente em alguns

objetos significativos no filme como a roca, os retratos de santos católicos, o

cavalo e a carroça.

A Tese se afirmou como foco na estética do tempo, por isso realizo uma

conversa teórica e discussão de como esta relação faz pensar certa noção de

24
temporalidade através das alegorias do tempo, considerando que o próprio filme

pode apresentar-se como uma fabulação sobre o tempo do próprio Eduardo

Coutinho.

25
INTRODUÇÃO: vicissitudes do tempo e a imagem cinematográfica

Nesse texto inicial, faço uma breve reflexão sobre o conceito de alegoria em

Walter Benjamin e uma releitura, também breve, da reflexão deleuzeana sobre o

tempo. O termo vicissitude1 aparece no título, como “designação da continuidade

das coisas que se seguem”, para lembrar que o texto não pretende esgotar e nem

aprofundar sobre a temática do tempo, mas esclarece os princípios teóricos

básicos da análise estética do filme do cineasta Eduardo Coutinho, nos capítulos

deste estudo.

A alegoria está no modo de percepção e comportamento do ser humano

diante da sua realidade do seu tempo. É a alegorização do seu tempo. Ela é

produzida na distância histórica de uma obra de arte e os seus

observadores/espectadores. O gesto alegórico manifesta um enigma a ser

decifrado revelando artifícios entre o significante e o significado. E esse processo

de decifrar é lento, exigindo uma sucessividade de momentos, contrariando a

compreensão simbólica que é imediata e instantânea. A alegoria apresenta o

eterno processo voraz do tempo que fragmenta o mundo, enquanto o símbolo

assume o papel do eterno na pretensão da unidade de significação. A visão

alegórica provoca deslocamentos que permitem a inclusão do que foi excluído,

emergindo o outro da história. Nesse sentido, ela transforma-se em uma

manifestação importante de conhecimento.

1
O conceito segue a orientação de diversos dicionários da Língua Portuguesa: designação da
continuidade das coisas que se seguem; denominação atribuída à sequência de alterações ou
mudanças; a diversidade de coisas que se sucedem.
27
A temporalidade histórica do processo de significação é o fundamento da

alegoria. Por isso, ela também é um termo relacionado ao conceito de tempo. O

processo de alegorização está presente em todos os modos de representação,

especialmente na linguagem e na arte, quando de modo arbitrário, uma coisa

possui outro significado que não o seu. Para Benjamin (1984), a alegoria cria

sentidos efêmeros, diante da falta de algum referencial último. A alegoria possui

linguagem imagética e busca conciliar imagem e significado irreconciliáveis

promovendo uma síntese da não identidade entre significante e significado.

Criptografia, entre o imagético e o conceitual, ela balbucia o conceito sem

especificá-lo. E mais: o alegorista se dá o direito de usar qualquer objeto para

expressar uma ideia. Em seu desejo de conhecer, desconstrói o objeto e diz o que

ele passa a significar, desconsiderando as relações naturais. O objeto em

questão, privado do seu sentido, torna-se uma ruína de si mesmo apresentado

outro significado.

A visão moderna é caracterizada pelas antinomias própria da interpretação

alegórica. O ótico, ao contrário do verbal, desperta o interesse pelo alegórico.

Portanto, a visão alegórica, em forma de desvio, quase se torna necessário na

sociedade capitalista, onde a racionalidade da lógica do capital é de natureza

oculta e ambígua. Por isso, o artista, em sua missão de configurar a modernidade,

de construir sentido para significa-la, de proteger o instante efêmero do

desaparecimento produz uma arte, cujas imagens apresentam formatação de um

determinado tempo, paralisa o tempo e preserva a imagem de uma determinada

época.

28
As figuras alegóricas da modernidade são concretizações da perda de

experiência. A alegoria foi um procedimento estético que esteve no auge da época

moderna. Daí a importância da compreensão desse modus operandi que é o gesto

alegórico. A perda da tradição e dos valores, a violência da experiência em

declínio na época moderna causados pela submissão do homem à ditadura do

tempo homogêneo e vazio proporcionou o surgimento da única experiência

possível, a experiência vivida do choque e desencanto, individual, fragmentária,

incomunicável, que opõe à experiência autêntica, de continuidade.

O saber humano parece um saber morto, fragmentário. Um quebra-cabeça

que será montado pelo alegorista numa época em que não tem mais meditação.

Um gesto que junta a significação a uma imagem e uma imagem a uma

significação, estabelecendo uma mediação pela rememoração.

A rememoração como uma visão motivada pelo desejo de reunir os

destroços e as ruínas: a do anjo alegórico diante da catástrofe da história humana

(BENJAMIN, 1984). A rememoração como um gesto alegórico desintegra as

impressões, é destrutiva, e faz oposição a memória, que conserva e protege essas

impressões. Ao rememorar a experiência vivida, a falsa aparência das coisas é

aniquilada e estilhaçada, recriando-a e obrigando-a a significar. Esse processo

produz um saber durável, não transitório e petrificado. A memória tem a tarefa de

conservar e selecionar a experiência, mas na rememoração ocorre o contrário, se

reencontra esse passado ou não. Na rememoração a vida não é descrita como ela

foi, mas como ela permanece na memória daquele que a viveu, não da forma

como ele viveu, mas como suas lembranças foram tecidas. Um tecido que

entrelaçam esquecimento (conteúdo) e lembrança (embalagem), fios


29
heterogêneos, mas que são essenciais e se convergem na sua constituição. É

uma relação entre presente e passado que se desdobram numa tensão dialética

chamada por Benjamin de imagem de caráter alegórico.

A alegoria é o modus operandi que transfigura a experiência vivida através

da rememoração, apresentando-a em forma de imagens e constituindo-a como um

elemento que estabelece uma relação entre presente e passado, diferente da

forma pensada habitualmente.

A noção de rememoração na análise do mundo moderno alegórico ganha

importância, justamente porque ela se configura como o modelo de conhecimento

crítico. A rememoração é o esforço de redenção da história humana, é a alegoria

(como processo dialético) a única forma de petrificar a história e o tempo pela seu

estilhaçamento reconhecido. O método do olhar alegórico e crítico é o

procedimento utilizado por Benjamin (1984) para compreender e pensar a história,

além de ser o procedimento estético peculiar como uma visão de mundo

decadente em relação à perda de experiência autêntica.

Partindo do procedimento estético benjaminiano que oferece apoio teórico a

este estudo sobre imagens no cinema, passo ao complemento teórico deleuziano

sobre a imagm-tempo.

O tempo, muitas vezes foi um enigma diante da nossa percepção. O

entendimento do tempo múltiplo e uno, da vida e da morte, como necessidade de

sucessão sempre confundiu o nosso conhecimento sobre a realidade. Será que a

invenção da fotografia e do cinema pode representar o desejo da humanidade de

eternizar o instante? A “vida” continua, aparentemente, o seu processo de

30
efemeridade. Portanto, a angústia e a incerteza do homem sobre a passagem do

tempo continuam. A humanidade caminha a sua busca pela paralisação do tempo

e tentando deter o esquecimento, ou seja, cristalizar o tempo.

O cinema é uma das artes desenvolvidas que, desvenda o enigma do

tempo e acaba por desenvolver ou se apresentar como uma forma de superação

do esquecimento.

O filme é “a única experiência em que o tempo me é dado como


percepção” (Schefer 1999); ver um filme é ver o tempo passar.
São poucas, portanto, as reflexões teóricas sobre o cinema que
não abordam, ao menos indiretamente, a relação entre cinema e
tempo; é notadamente, o caso de todas as teorias de montagem e
das teorias da narrativa (AUMONT, 2012, p. 287).

Discutir a concepção de tempo na obra filosófica de Gilles Deleuze não foi

uma tarefa comum e fácil. Ao realizar esta reflexão, fiz uma revisão bibliográfica

sobre sua obra, buscando os principais textos que abordam a questão do tempo.

O modelo da relação espaço, tempo e movimento é retomado por Deleuze

de uma forma mais aprofundada, quando ele elabora a crítica da imagem fílmica,

dividindo-a em dois tipos: imagem-movimento e imagem-tempo. A questão

levantada por Deleuze é que a relação entre duração vivida e a memória,

colocada por Bergson, está posta no cinema.

Quando Deleuze trabalha a modalidade de tempo partindo do conceito de

aion e “duração” bergsoniana, ele considera que a memória não contém uma

versão única e linear dos fatos e possui um caráter múltiplo, caótico e difuso,

desdobrando-se em múltiplos planos temporais e até contraditórios. A memória é

um dispositivo que opera em fluxos de tempo que são diferentes e coexistem.

31
A leitura de memória em Deleuze é diferente de arquivo ou da perspectiva

de restituir algo. Não é possível refletir sobre a memória sem referir-se ao tempo.

Deleuze nega a temporalidade linear e segmentada, dividida em passado,

presente e futuro, modelo linear e descontínuo, onde tudo é cronometrado (o

tempo cronos).

A compreensão de tempo em Deleuze se passa por saltos, acelerações,

rupturas e diminuição de velocidades. Ao invés de uma linha temporal, tem-se um

emaranhado de tempo, em lugar de um rio, tem-se um labirinto, não um círculo, e

sim um turbilhão em espiral, ao invés da ordem do tempo, uma variação infinita.

Quando alguém conta alguma história sobre o seu passado, percebemos

que utiliza atos do agora para dizer sobre aspectos do passado ou ao contrário.

Vemos que o seu discurso se move por diversos planos temporais, sem

continuidade e a sucessão de tempo se perde. Pelo caráter múltiplo da memória, o

processo de rememoração de cada sujeito é singular.

A duração faz o tempo fugir da linearidade (cronos) e avançar em outros

sentidos, aproximando-se da temporalidade subjetiva (aion), tempo das vivências

e intensidades. Segundo a teoria deleuziana, em aion, só o passado e o futuro

consegue existir no tempo. É um futuro que fraciona o presente a cada instante e,

ao mesmo tempo, subdivide-o ao infinito, em passado e futuro.

A memória começa a existir quando o passado e o presente começam a

coexistir, quando o passado contém o presente e o futuro. O presente e o futuro

aparecem na memória-tempo, enquanto multiplicidade e duração (e não aparece

mais o passado e o futuro como dimensão do presente, como em cronos).

32
O conceito central de duração bergsoniano traz a memória enquanto

multiplicidade. O tempo é duração onde o passado e o presente coexistem: o

passado não segue o presente e o presente não precisa acontecer para constituir-

se num passado (os dois se atualizam juntos). A coexistência virtual de tempos

diferentes ou a coexistência de múltiplos planos temporais diferentes se define

como duração. Deleuze (1999) considera que a duração também é memória, é

vida, e, por isso, se comporta como duração. A lembrança não é posterior à

percepção, elas se constituem juntas.

Bergson (Apud DELEUZE, 2007, p. 101) elaborou o “cone da memória”

(veja figura 1) para ilustrar a concepção de tempo adotado neste estudo: o cone é

invertido e sua base é AB; o vértice S é o atual presente, mas não é um ponto,

pois já compreende o passado deste presente (é a imagem virtual que duplica a

imagem atual); toda a área do cone está composta pelo passado, em múltiplas

camadas: AB, A’B’, A’’B’’ etc., e estas camadas “são circuitos puramente virtuais

que contém todo o nosso passado tal como ele se conserva em si (as lembranças

puras)”.

33
Figura 1

Vejo nesse modelo, os movimentos do passado para o presente, da

lembrança à percepção. As lembranças surgem no presente, o presente contrai a

memória. As lembranças (virtual) coexistem com o presente (atual). O movimento

segue do virtual para o atual.

Pelo cone, o presente é um passado imediato, é o grau mais contraído da

memória. Esse mesmo presente produz a novidade e a diferença, ao diferenciar-

se do passado e abrir espaço a um futuro iminente. Deleuze o explica da seguinte

maneira:

Conforme a natureza da lembrança que procuramos, devemos


saltar para este ou aquele círculo. Claro, tais regiões (minha
infância, minha adolescência, maturidade, etc.) parecem-se
suceder. Porém, elas só se sucedem do ponto de vista dos antigos
presentes que marcaram o limite de cada um. Inversamente, elas
coexistem do ponto de vista do atual presente que cada vez

34
representa o seu limite comum, ou mais contraída dentre elas
(DELEUZE, 2007, p.122).

O ser humano é construído como memória, ou seja, é infância, velhice e

maturidade ao mesmo tempo. O tempo a cada instante é passado que passa e

que se conserva. Na imagem cristal, o tempo é passado virtual (lençóis e regiões

que coexistem) e é, também, presente atual (as pontas de passado contraídas).

A memória, como multiplicidades de lembranças e percepções que

coexistem, produz o presente, o presente não para de passar, o passado, que não

para de ser e pelo qual todos os presentes passam. As distintas combinações da

memória geram diferentes tipos de recordações e realidades.

Ao romper com o tempo linear, pode-se dizer que o cinema contemporâneo

atingiu o “tempo puro”, a memória por excelência e de fato, que não retém o

passado linear como sucessão de instantes. É a memória que está contida e

permanece na duração.

Com o surgimento da imagem-cristal no cinema, muda a concepção de

passado deste. No cinema da imagem-tempo, uma cena pode possuir, de forma

virtual, o que já foi mostrado durante o filme, além de conter a memória do mundo,

enquanto possibilidade de ser atualizada, pela sua pré-existência.

No cinema anterior a 1940, a imagem representa a matéria sempre em

movimento. Isso ocorre nos enquadramentos e na montagem do filme, onde cada

plano é um corte sobre o movimento de pensamento que desenvolvo em mim

diante de uma situação. As imagens-movimento são determinadas pela montagem

cronológica fundamentada na lógica dos acontecimentos espaço-temporal.

35
Nas imagens do chamado cinema clássico, se via a passagem dos

instantes que morriam enquanto passavam. Algumas partes desse instante eram

apagadas pelo esquecimento. As imagens atuavam com a função de cristalizar o

instante e perenizar as lembranças num tempo tomado de espaço. É a chamada

imagem-movimento. A imagem-movimento implica a presença de um tempo

empírico (o cronos), o curso do tempo (o passado é um antigo presente e o futuro,

o presente que virá). A existência do antes e depois permite medir o tempo, com

encadeamentos e critérios lógicos de verdades (sucessão lógica entre percepção

e ação).

O cinema clássico apresenta situações sensório-motoras. É o cinema de

ação: uma imagem reage sobre a outra e assim sucessivamente. As imagens

formam unidades organizadas. Elas prendem o espectador numa cadeia

sucessiva de eventualidades numa velocidade padrão, mas a velocidade é a

efemeridade dos movimentos.

A primeira fase do cinema também não foi suficiente para resolver a

angustiante incerteza diante da passagem do tempo. O cinema pensado por

Deleuze como um mecanismo moderno de expressar o pensamento, o movimento

e o tempo está sintetizado na sua obra “A imagem-tempo”, onde expressa outra

concepção de mostrar o tempo através da imagem.

O passado coexiste com o presente que ele foi; o passado se


conserva em si, como o passado em geral (não cronológico); o
tempo se desdobra a cada instante em presente e passado,
presente que passa e passado que se conserva (DELEUZE, 2007,
p. 103).

36
O tempo do cinema é o registro de um tempo que passou. Um filme é como

a memória: o que se vê ali já não existe mais. Por isso, é o registro da morte, mas

é o que ainda vive, é o do que era do que hoje é. Segundo Deleuze (2007), a

imagem-tempo é a fruição do filme. É a imagem fragmentada da duração. Na

continuidade é a imagem do descontínuo.

O cinema funciona na forma de preservação de um tempo, como memória

de um presente, do passado que se atualiza em todos os presentes. Assim, se

torna necessário entender como imagem-movimento e imagem-tempo apresentam

o tempo e a maneira como explicam as experiências cinematográficas em sua

relação com a forma de atuar na memória.

Segundo os estudos feitos por Deleuze (2007), no período Pós Segunda

Guerra, alguns cineastas utilizam recursos em seus filmes que diferenciam a

concepção de temporalidade nas imagens cinematográficas. É o denominado

cinema moderno. Surge, então, a imagem cristal que se desconecta com a

espacialidade. Esta imagem adquire novos potenciais. O movimento dos objetos e

rostos e as falas se aproximam do mundo real de forma diferente. A duração, a

espessura dos instantes e a contemporaneidade do passado são mais autênticas.

A imagem passa a ser mais que representação do real pensado e vivido pelo

homem. Essa imagem nos leva ao pensamento, a uma busca de mundos

possíveis (um vir a ser).

Na imagem-tempo, a própria imagem é pensamento, ela pensa o mundo. O

pensamento da imagem ocorre na imagem mesmo. A imagem anterior, do cinema

clássico, restringia-se à imagem pelo movimento. A imagem-tempo desvincula do

mundo que se acostuma a olhar e promove o impensado no pensamento. A


37
impossibilidade de discernir entre presente e passado, atual e virtual, real e

imaginário não ocorrem na cabeça ou no espírito de quem assiste ao filme, mas

faz parte do carácter de certas imagens na sua essência.

Para Deleuze (2007), no cinema moderno há devir, há mudança, mas a

forma do que muda, não muda e não passa. O cinema armazena a memória em

movimento, não só pelas imagens, mas pela memória em si que modifica seu

olhar sobre o passado, à medida que o tempo passa, embora acredite que os

fatos se mantenham imutáveis na sua essência.

O presente tem que passar para que o novo presente chegue, o que

significa que ele passa, ao mesmo tempo em que chega (o presente). Uma

imagem é presente e passado necessariamente (ainda presente e já passada ao

mesmo tempo, senão o presente jamais passaria); então, “o passado não sucede

ao presente que ele não é mais, ele coexiste com o presente que foi. O presente é

a imagem atual, e seu passado contemporâneo é a imagem virtual, a imagem

especular” (DELEUZE, 2007, p. 99). Portanto, todos os momentos de nossa vida

são virtuais (lembrança-pura) e atuais (imagem-lembrança).

Junto com a imagem-tempo surge a profundidade de campo2, um recurso

cinematográfico que sugere percepção diferente do plano. É uma técnica

inovadora usada nos processos de filmagem, que permite ao espectador observar

um só plano, que põe em relação, o plano de fundo com o primeiro plano, e, ao

mesmo tempo, passa por todos os tipos de planos: o geral, o médio e o close.

2
Welles desenvolveu esse procedimento que aparece pela primeira vez no filme Cidadão Kane, na
década de 1940, que, ao por a câmera em um ângulo diagonal preciso, conseguia atravessar todos
esses níveis e mantê-los em foco. Ele acrescentou diferentes níveis de situação e de tempo em
uma única imagem.
38
Esse recurso é explorado para acrescentar níveis de situações e de tempo

diversos em uma única imagem. Com esta mudança, a filmagem não precisa mais

dar conta da totalidade do espaço e sim permitir a exploração, de forma contínua,

de cada região do passado, aproximando o passado distante dos mais próximos e,

assim, apresentar um tempo em sua totalidade.

Na profundidade de campo, são colocadas lembranças junto com imagens

e daí surge uma percepção específica da ordem do tempo dividida em duas, os

sonsignos e opsignos. Para Deleuze (2007, p.14-15), “esse novos signos remetem

a imagens bem diversas”: banalidades cotidianas, circunstâncias excepcionais ou

limites.

Mas, acima de tudo, ora são imagens subjetivas, lembranças de


infância, sonhos ou fantasmas auditivos e visuais, onde a
personagem não age sem se ver agir, espectadora complacente
do papel que ela própria representa, à maneira de Fellini, ora,
como em Antonioni, são imagens objetivas, à maneira de uma
constatação, ainda que a mera constatação de um acidente,
definida por um enquadramento geométrico que, entre seus
elementos, pessoas e objetos, só deixam subsistir relações de
medida e de distância, transformando desta vez a ação em
deslocamento de figuras no espaço [...] Haveria, portanto, dois
tipos de opsignos, as constatações e as “instatações”, uns dando
uma visão profunda à distância, tendendo para a abstração, os
outros, uma visão próxima e plana, induzindo a uma participação
(DELEUZE, 2007, p. 15).

Para Deleuze, essa distinção: banal e extremo, subjetivo e objetivo, tem

valor relativo. Ela apenas indica polos entre os quais há passagens constantes.

Por isso são chamados de tempos mortos ou espaços vazios, que podem indicar

situações cotidianas e banais, assim como, podem apresentar consequências ou

efeitos de algum acontecimento. Na relação objetividade e subjetividade, ela vai

perdendo a importância, à medida que a situação ótica substitui a ação motora.


39
Na imagem tempo há, sim, a possibilidade do movimento, mas de forma

rara. Nesse caso, não existe mais a subordinação do tempo ao movimento, e sim

o movimento subordinado ao tempo. Muitas vezes, esta imagem-movimento

aparece como aberração do movimento, são imagens irracionais e fazem parte da

essência da imagem.

A natureza morta aparece como imagens puras e diretas do tempo. Cada

uma é o tempo, cada vez, sob estas ou aquelas condições daquilo que muda no

tempo. Assim, apesar de este tempo estar no passado, o ato da fruição também

dá ao cinema a possibilidade de simular uma ilusória atualidade.

Na teoria deleuzeana do tempo, o cinema é um dispositivo de criação do

cristal do tempo quando armazena as imagens no pretérito, com semelhança à

realidade. A câmera funda uma consciência definida pelas relações mentais, e não

mais pelo movimento, nas quais é capaz de entrar, e o espectador se torna um

personagem.

40
1- “O FIM E O PRINCÍPIO” OU O FIM TRAZ O RECOMEÇO

Que coisa mais veloz, mais fugitiva, e mais instável que o tempo?
Tão instável que, nenhum poder, nem ainda o divino o pode
parar3.

Figura 1- 1

O filme “O fim e o princípio”, do cineasta Eduardo Coutinho, foi produzido

no ano de 2004 e o seu lançamento ocorreu em 2005, distribuído pela

Vídeofilmes, com duração de 101 minutos. Este foi o último filme do cineasta que

se enquadra na estética que vinha desenvolvendo até então na produção dos

seus filmes, embora ele utilize elementos novos que aperfeiçoa o seu método de

3
VIEIRA, Pe. Antônio. Sermões da primeira dominga do advento; obras completas, sermões.
Lisboa, Chardron, 1907, p. 11 (Apud NUNES, 1988, p. 24).
41
produção cinematográfica. Os outros filmes posteriores a este: Jogo de Cena

(2007), Moscou (2009) e As canções (2011), não foram produzidos com

características de reportagens ou de documentário. O fim e o princípio, segundo

Araújo4 pode ser uma alusão ao processo de produção do primeiro filme

documentário de Eduardo Coutinho Cabra marcado para morrer (1984).

O filme em questão é resultante de uma busca, pelo cineasta, de um núcleo

geográfico, sem pesquisa prévia (Princípio da surpresa total) com uma equipe

pequena, considerando que quatro ou cinco pessoas diminuem o custo da

produção.

Em entrevista a Consuelo Lins (2004), Eduardo Coutinho, depois do

lançamento dos filmes “Edifício Master” (2002) e “Peões” (2004), revela o seu

projeto do próximo filme a ser produzido em 2004-2005:

Qual a razão para querer fazer agora um filme em um distrito rural


do Nordeste? Porque eu quero fazer o contrário da cidade grande.
Cidade grande é Peões, Master, Babilônia – tudo isso é cidade
grande. Agora eu quero voltar para o campo, mas sem tema. Uma
vila rural que mal tenha televisão. O meu prazer seria encontrar
um núcleo geográfico e fazer um filme inteiramente neste lugar,
sem pesquisa e com uma equipe mínima, quatro ou cinco
pessoas.
Não há porque ter um tema. O que é a vida em uma vila? E por
que no sertão nordestino? Porque lá a invenção verbal é muito
forte. O lugar no Brasil onde se inventa melhor é no sertão. Podia
ser também no vale do Jequitinhonha [Minas Gerais] (COUTINHO
apud LINS, 2004, 189-191).

A ideia anterior ao filme era fazer uma película no polo oposto aos grandes

centros urbanos, de preferência com pouco contato com a indústria cultural, onde
4
ARAUJO, Mauro Luciano Souza de. À procura do interior em O Fim e o Princípio: a subjetividade
em Eduardo Coutinho. CONFIBERCOM. www.academia.edu./1050777 - Acessado em janeiro de
2014.

42
a população não vive de televisão ligada e numa região onde houvesse um

processo rico de criatividade verbal, onde as pessoas têm histórias para contar.

No caso, o cineasta optou pelo sítio de Araçás, no sertão nordestino, uma

comunidade onde estas características são muito fortes. Eduardo Coutinho, aos

setenta e dois anos de idade, retorna ao local, pelo ao menos na mesma Região

Nordeste do Brasil, onde tudo começou em termos de sua projeção como

cineasta.

Figura 1- 2

Segundo Coutinho (Apud LINS, 2004), a forma de produção prevista era

interessante, pois “você vai para o Nordeste e não volta mais até acabar o filme”.

Para ele o desafio seria grande, já que,

Não é fácil em uma vila dessas, as pessoas aceitarem uma


equipe. Se há pesquisa, pode-se preparar, escolher antes. Mas
chegar com a câmera para filmar é diferente. [...] os mapas não
43
dizem nada. Só no campo você acha a locação [...]. Não é que a
pesquisa não seja necessária, É que, em lugar que é longe,
primeiro você diminui o custo; e segundo, parte para a surpresa
total. É o acaso mesmo. Mas o negócio é que você está no campo,
tem um prazo de filmagem, e nesse prazo tem que descobrir as
pessoas, criar o filme e filmar. Pode dar certo ou não (COUTINHO
Apud LINS, 2004, p. 189-190).

Para o diretor, o acaso, além de fascinante, era constante e, também, uma

das condições para a realização de seus filmes. O acaso é um jogar-se numa

realidade sem conhecê-la. Embora o diretor necessite de elementos de controle

ou da manutenção de certos parâmetros, como: consciência da impossibilidade

total do acaso e a possibilidade de, na montagem, ressaltar os aspectos da sua

ideia central. O acaso, no filme, ocorre como ritual de efemeridade no discurso dos

personagens. Eu vejo em suas falas o encontro fortuito e abrupto com a realidade

e com a ruralidade. Coutinho trabalha com a precisão e o acaso ao mesmo tempo,

e, ao misturar a sua criatividade ética de alteridade, que vai além do “cuidado com

o outro”, proporciona uma ação disparadora que fornece abertura para esse

encontro com o determinado. O acaso registrado no filme, como prática estética

do cineasta, é o encontro do cineasta com os gestos e a voz dos personagens.

O espaço delimitado para realizar a filmagem de “O fim e o princípio” é uma

região rural do sertão da Paraíba, um mundo cujas características estão em vias

de desaparecimento: comunidade rural, lugar onde as pessoas contam histórias,

presença muito forte dos lavradores, com características muito comuns ao

“lavrador sedentário” de Walter Benjamin5: idosos que fabulam sobre suas vidas,

5
Walter Benjamin (1892-1940) Filósofo, ensaísta, crítico literário e tradutor, escreveu peças para
rádio, além de artigos para diversos jornais e revistas literárias. Colaborou com a revista do
Instituto de Pesquisa Social (“Escola de Frankfurt”). Era alemão e filho de judeus, fugiu da
Alemanha em 1933, e viveu em Paris até a invasão nazista. Em 1940, fugiu ilegalmente para a
Espanha e, em Portbou (Catalunha) se suicidou para não ser capturado pela Gestapo. Ele deixou
44
camponeses desprovidos da cultura escrita, mas com uma rica comunicação oral,

espaço da vizinhança e dos moradores que se conhecem, as pessoas têm pouco

contato com a televisão, telefone e Internet. Essa relação do oleiro (narrador) que

ao esculpir o jarro (conteúdo narrado) deixa as marcas de seus dedos no bairro:

“pelo lado sensorial, narrar não é de forma alguma, apenas obra da voz [...].

Aquela velha coordenação de alma, olho, mão, gestos, é a coordenação artesanal

que encontramos no habitat da arte de narrar” (BENJAMIN, 1980, 74). As pessoas

mais velhas ainda transmitem suas experiências via oral. É uma comunidade rural

constituída por dezenas de famílias e os personagens entrevistados têm uma

média de idade de setenta anos.

O cineasta Eduardo Coutinho, com sua paciência de ouvir, conversa com

esses homens e mulheres velhos, donos de uma experiência vivida maturada pelo

tempo. Os personagens, em relação a si mesmos, retratam, em suas narrativas, a

história de suas vidas no sertão.

Na produção do filme, são entrevistadas várias pessoas, mas, na edição

final, apenas 18 permanecem como personagens, sendo que, com algumas, o

cineasta, ao voltar para se despedir, retoma a conversa e acaba realizando novo e

interessante diálogo, seguindo o critério da forte oratória e intensidade de suas

histórias. Os personagens entrevistados no filme fazem parte do universo de

Coutinho: o narrador ou narradora nata que tem uma boa articulação entre

palavras e gestos. Em relação à idade, quase todos os personagens deixam isso

extensa e brilhante obra literária e contribuiu significativamente para a teoria estética, para a
filosofia, para o pensamento político e para a história.

45
expresso em suas falas, mas alguns não fazem referência a ela, em nenhum

momento da entrevista.

Há uma presença muito forte do feminino no filme, não só pelo maior

número de mulheres entrevistadas, mas pela presença da figura da mãe nas

narrativas dos entrevistados, inclusive na fala dos personagens masculinos.

Os personagens do filme são:

Rosa (Rosilene Batista de Sousa) – Atuou como mediadora durante as

filmagens e foi responsável por fazer a ligação entre a equipe de Coutinho e a

comunidade de Araçás. Em vários momentos das entrevistas ela se torna, ela

mesma, a entrevistadora, pois mantém uma relação de intimidade com esses

moradores.

“A Rosa, abreviação afetuosa de Rosilene Batista de Sousa,


verdadeiro filão de ouro que nos ligou à comunidade de Araçás,
fala melhor do que qualquer membro da CPI” garante Coutinho.
Sua história é um exemplo da geração decidida do Nordeste. “Quis
ir para a cidade, o pai não deixou. Insistiu e, com o apoio da mãe,
conseguiu. Estudou, formou-se e, contrariamente à maioria dos
casos, voltou para Araçás, onde é pessoa da maior importância
naquele grupo”, diz Coutinho. “Os valores do catolicismo mais
conservador estão todos corporificados em Rosa, uma católica à
La João Paulo II. Ela lidera a Pastoral da Criança, puxa a
procissão mensal, já que padre quase lá não pisa, e mansamente
se impõe como a pessoa a quem os velhos recorrem quando
necessário” (Revista Raiz, edição n. 01, Eduardo Coutinho, “O fim
e o princípio na terra do fim do mundo”, por Silvio Ferraz.
www.revistaraiz.uol.com.br, em 03/11/2011).

Eduardo Coutinho – Com setenta e dois anos na época da filmagem, é

diretor do filme, mas também personagem. Ao fazer as entrevistas e depois editar

as imagens do filme, realiza a mediação entre os personagens e os espectadores.

Ele também é um velho, ou seja, um personagem entrevistador velho que


46
conversa com outros velhos. Não é só uma questão de alteridade, de se colocar

no lugar do “outro” ou de fazer-se um “outro”, mas ele é um desses “outro”. Este é

o elemento comum entre os personagens entrevistados e o cineasta entrevistador,

embora ele continue sendo um “outro” de classe e de cultura acadêmica. É

importante pensar, nesse filme, sobre o ponto de vista do seu autor, que também

é um personagem do filme e tem a média de idade dos entrevistados. Coutinho

realiza o seu próprio processo de rememoração na produção do filme, já que é o

seu último filme caraterístico de cinema documentário e que, de alguma forma

volta a Região e Estado de origem do filme O cabra marcado para morrer, que foi

o início da história de Coutinho como cineasta do gênero documentário.

Dona Mariquinha, noventa e quatro anos, viúva há quarenta e cinco,

segundo ela, não teve um bom casamento, pois apanhou muito do marido

alcoólatra. Teve 14 filhos, sendo apenas dois sobreviventes. É conhecedora de

curas através da reza. Apesar da idade avançada, ainda gosta de beber umas

“biritas”. Sempre demonstra bom humor durante suas falas. Ela é entrevistada

duas vezes, em momentos diferentes.

Zefinha – Cento e seis anos. É a mais velha de todos os personagens do

filme. No entanto, ela não passa pelo processo de entrevistas. Ela é tecelã. As

suas imagens tecendo o fio, apresentam para mim, um sentido temporal no filme,

a atualização do Mito da tecelã aprofundado nesta análise, no Capítulo 3.

Senhor Assis – oitenta anos. É possível perceber que este personagem cria

fortes laços afetivos com o cineasta e sua equipe. Ele também é entrevistado duas

vezes, em momentos diferentes.

47
Rita e Zeca – Setenta e sessenta e três anos, respectivamente. Ela já

trabalhou muito na roça e gostava. Casou-se aos 26 com um rapaz mais novo

(diferença de oito anos). Ele aparenta ser um homem simples e fala calmamente.

Leocádio – Nunca se casou. Segundo Rosa, ele é considerado o “sabidão”

na comunidade em que vive, pois foi, por muito tempo, o único que sabia ler e

escrever. Demonstra, durante toda entrevista, um estilo provocador. Ele também é

entrevistado duas vezes, em momentos diferentes. Esse personagem faleceu

antes do retorno de Coutinho ao Sítio de Araçás, depois de um ano.

Vigário e Antônia – Ele é um bom narrador, tem cinquenta e seis anos de

idade; ela gosta muito de se arrumar, é vaidosa. Eles formam um casal divertido.

São entrevistados duas vezes, em momentos distintos.

Maria Borges – No passado, foi uma parteira muito requisitada e fala com

muito orgulho da atividade que fazia e que, se precisar, ainda faz. Ela fala com

firmeza, e, seus gestos e falas são delicados. É viúva, relata com muito orgulho o

casamento feliz e se declara uma mulher vitoriosa e sem medo da morte. Ela se

comunica bem e reafirma a tradição oral do lugar onde vive.

Zequinha Amador – É um personagem que se declara não estar muito bem

de saúde, demonstrando certo desânimo para a entrevista. A sua voz soa meio

fraca, e, quase incompreensível. É poeta e declama sua poesia, carregada de

imagens temporais, para a câmera. Ele mora com suas duas irmãs: Lice e Lica.

Lice – É formada em Letras e Direito, mas não atua em nenhuma das duas

profissões. Sua fala não tem o sotaque da maioria dos habitantes daquela

48
comunidade. É uma cuidadora da família (dos irmãos mais velhos), borda e pinta

tecidos, mas não para vender. É proveniente de camadas médias da região.

Lica – É, também, um personagem que parece viver em outro tempo e em

outro lugar. Suas respostas são sempre vagas, seu silêncio parece transportá-la

para outros lugares. Embora não tenha pronunciado uma palavra ao diretor, seus

gestos e expressões (imagens) transmitem um sentido importante para a minha

análise.

Tia Dôra – Senhora com aparência delicada e muitas rugas no rosto. Com

voz firme, relata o sofrimento que passou para criar os filhos, sozinha, trabalhando

na roça. Ficou viúva muito cedo e nunca mais quis se casar. A sua fala denota que

tem muito orgulho da sua peleja para criar as filhas.

Dona Vermelha – Trabalhou muito na roça. Suas rugas no rosto

demonstram as marcas do tempo. Mora com os dois filhos solteiros, que cuidam

dela.

Nato – Homem simples. Prolixo em seus dizeres e conciso em suas

sentenças. É um vendedor da água que ele mesmo descobre no solo seco do

sertão nordestino, por isso, talvez, seja um dos cidadãos de melhor condição

financeira no Sítio de Araçás entre os entrevistados. O autoelogio está sempre

presente nas suas histórias. Ele é entrevistado duas vezes, em momentos

diferentes.

Neném Grande – Noventa anos. Sempre fez todo o serviço da roça até

mais de oitenta anos e se compara a um homem, por causa disso. Nunca casou

ou quis saber de homem. A religiosidade arcaica está presente em sua fala.

49
Zé de Souza – É um personagem surdo e com muita dificuldade de

comunicação por esse motivo. A entrevista ocorre por meio da linguagem escrita,

feita por Rosa. Este personagem também morre antes do retorno de Coutinho

para mostrar o filme aos personagens.

Chico Moisés – Cinquenta e sete anos, sempre trabalhou na lavoura. É um

personagem fabulador. Ele também é entrevistado duas vezes, em momentos

diferentes. É um personagem que oferece, em sua rememoração, um rico

processo de fabulação.

A grande maioria dos personagens será, no meu ponto de vista, portador de

elementos alegóricos do tempo no filme, ou através de suas falas, do seu corpo e

de suas imagens em geral. Alguns personagens têm mais força, no sentido de

apresentarem o tempo em suas falas, encenações e imagens.

Bem no início do filme Eduardo Coutinho faz a seguinte informação em voz

over6:

E. COUTINHO – Dois dias de filmagem em Riachão dos Bodes e


comunidades semelhantes nos convenceram a interromper a
busca por outros lugares. Na verdade, agente sentiu que, a
relação de Rosa com outros moradores, não ia muito além das
questões de trabalho, não criava realmente intimidade. Daí,
decidimos nos concentrar em Araçás, a comunidade onde a família
de Rosa vive a mais de um século.

6
Segundo Ramos (2008), “definimos “voz over” como a voz sem corpo ou identidade que assere
fora-de-campo. O termo “locução” cobre de modo satisfatório o campo semântico da expressão
“voz over”” (p. 115). “A voz over ou a voz de Deus é uma voz que possui saber sobre o mundo,
enunciada, em geral, por meio de tonalidades grandiloqüentes” (p. 23).

50
Araçás é o campo de relato que mantém relações com o espaço da

intimidade reclamado pelo cineasta. O Sítio de Araçás apresentado no mapa de

Rosa é o espaço que ela navega de forma afetiva.

Figura 1- 3

Figura 1- 4

51
Figura 1- 5

Este é o desenho do mapa relacional de Rosa (figuras 1.3 a 1.5): ela traça

os limites do sítio e os pontos que ligam as casas de cada morador com uma

única linha e, ao mesmo tempo, dá as características de cada um. Rosa conhece

bem a região e Coutinho trata-a, como mais um membro da equipe, além de seu

guia.

No filme “Santo Forte” (1999), em que houve a realização da pesquisa

prévia, uma moradora da comunidade, Vera, fez parte da equipe de pesquisa e

teve um papel muito importante. Na gravação, Vera assume que foi a “porta de

entrada” para o filme. No entanto, ela não tinha a relação de intimidade com os

moradores, como Rosa, no Filme “O fim e o princípio”. Rosa participou

efetivamente do processo de entrevistas juntamente com Coutinho, além da

52
relação de maior proximidade que Coutinho estabeleceu com Rosa. A memória se

conserva através do tempo pelo ouvinte receptível e disponível: “o tédio é o

pássaro onírico que choca os ovos da experiência” (BENJAMIN, 1980, p. 62). Eu

imagino que Rosa possa ser comparada com o “ouvinte atento”, de “O narrador”,

de Benjamim, pela sua posição respeitosa e por ser respeitada diante dos

moradores velhos de Araçás.

No filme, quando vejo Rosa chegando com a equipe nas casas dos

entrevistados ou saindo para outras casas, ou quando vejo as imagens de cada

caminho, logo imagino o desenho do lugar feito por Rosa na folha de papel. É

como se a câmera fosse montando, através das imagens, o mapa de Rosa. As

imagens externas das casas, os caminhos de terra, as cercas de arame ou de

pau... Cada imagem de itinerário vai revelando as linhas traçadas por Rosa no

papel. O desenho se constitui numa figura narrativa que representa um conjunto

de ações a serem realizadas.

O mapa do filme inclui Rosa, o gesto de Rosa, as descrições de


Rosa. Ela faz parte do mapa tanto quanto seu desenho, porque
define para espectador o espaço do filme: Será Leocádio sabichão
ou não? Será D. Vermelha esperta ou não? (OLIVEIRA FILHO,
2008, p. 39).

Segundo Oliveira Filho (2008), esses tipos de mapas, comum até o século

XVII, eram figuras “narrativas” de diversos gêneros (caravelas, animais e outros

tipos de personagens). O mapa de rosa é um elemento alegórico do tempo no

filme já que o mesmo é um instrumento de uma sociedade que não é a moderna.

A modernidade foi apagando, aos poucos, as descrições de percursos dos mapas.

O mundo moderno, ao privilegiar o distanciamento, ao “ver a cidade de cima, não


53
ensina a maneira de se chegar a algum lugar, como ultrapassar as barreiras

presentes no percurso concreto da cidade” (OLIVEIRA FILHO, p. 39, 2008). Se

Rosa não compreendesse a ligação entre as pessoas do Sítio de Araçás, não

seria possível ler no mapa a interação dos personagens, suas falas e suas

constituições. Ele seria um mapa sem referência e ações.

O diretor não tinha tema, mas já tinha a delimitação prévia, o espaço

definido e a convicção do tipo de narração que buscava: relatos sobre a

experiência de vida, que determina o dispositivo desse filme: a crença no relato da

experiência pessoal. Esse dispositivo é o elemento novo na metodologia

cinematográfica de Coutinho nesse filme.

Na entrevista que Eduardo Coutinho forneceu a Lins (2004), seis meses

antes das gravações de “O fim e o princípio”, ele declarou:

A vontade que eu tenho é finalmente usar o tempo morto, filmar


uma mulher preparando a comida, trabalhando no pilão, sei lá, e
isso durar cinco minutos. Não que eu não pudesse fazer isso na
cidade, com momentos repetitivos, que isso também tem. Não é
porque estou numa cidade primitiva, não é isso. É que tenho uma
vontade enorme de fazer assim, as pessoas fazendo coisas
anódinas mesmo, no pilão, preparando lenha, sem falar. Não se
trata de paisagem, é como se fosse uma etnografia do gesto
(COUTINHO apud LINS, 2004, p. 190).

Quando realizou o filme, Coutinho não filmou nenhuma imagem de

mulher no pilão, mas o filme mostra diversas cenas que correspondem ao

interesse do cineasta: o tempo morto. Abaixo, eu inseri as fotos-imagens do

Senhor Assis produzindo fogo por meio de um instrumento centenário no Brasil, “o

bendengo”, que quase não se vê mais (figuras 1.6 a 1.13). Mas poderia ser a cena

de Zefinha tecendo ou de Mariquinha acendendo o cachimbo com a lamparina, de


54
Geraldo Timóteo tocando o gado no pasto, da Kombi fazendo propaganda política

no povoado, das mulheres e crianças cantando na procissão religiosa, de Rosa

andando em sua moto, da caminhada da câmera junto a cerca de madeiras, do

caminho rodeado de árvores entre uma casa e outra, do preparo das refeições na

cozinha da casa de Rosa, da filmagem do momento das refeições ou do momento

posterior, em que a cozinha é filmada totalmente vazia, ao final do filme.

Figura 1- 6

Figura 1- 7
55
Figura 1- 8

Figura 1- 9

56
Figura 1- 10

Figura 1- 11

Figura 1- 12

O tempo morto é o tempo de suspensão que faz parte da narrativa de um

filme. É o momento em que o cenário fica sem nenhuma tensão. Mas não é

imagem despojada de significado nenhum. Ela é uma continuidade da história

contada, ela leva o espectador a pensar na cena anterior. É a ocasião de o

espectador reunir seus sentimentos e imaginar qual seria a continuidade dos


57
personagens na cena. Portanto, para Deleuze (2007), o tempo morto é um tempo

que aparenta não acontecer nada, do ponto de vista das falas, mas pode ser

usado como elemento de linguagem. A impressão que se tem é que no tempo

morto ocorrem determinadas coisas de pouca relevância ou insignificantes para o

filme (o anódino).

O tempo morto é um elemento alegórico do tempo e constitui uma imagem-

tempo. Segundo Deleuze (2007), no tempo morto, o movimento não desaparece,

mas inverte a relação entre movimento e tempo. O tempo não resulta mais da

composição do filme, da montagem. O movimento decorre do tempo. A montagem

muda o sentido. As imagens adquirem novas relações com seus elementos óticos

e sonoros e o seu sentido não depende mais das sucessões cronológicas dos

acontecimentos. As imagens duram na temporalidade e dessa duração resulta o

movimento, o sentido.

O filme apresenta a imagem do relato do cotidiano de homens e mulheres

velhos e entretidos em si mesmos. O diretor capta, através de sua câmera, a visão

de mundo desses homens e mulheres do sertão, pelos seus gestos, olhares e

falas.

O filme trata da experiência e da memória, num momento da nossa história

em que as pessoas não aprendem mais apenas pelas histórias contadas.

Seguindo um raciocínio benjaminiano, o homem moderno tem mais capacidade de

percepção do que de lembranças, graças ao desenvolvimento das tecnologias7.

Na sociedade atual, há uma grande consciência do mediato e a memória, cuja

7
Refere-se ao desenvolvimento técnico que se junta ao pensamento científico e proporciona o
avanço dos instrumentos e máquinas em geral utilizados na sociedade capitalista.

58
base é a experiência, vai perdendo os laços com a tradição, provocando, assim,

um esquecimento nos indivíduos, empobrecendo sua experiência cultural. As

lembranças dos entrevistados passam a ser um conjunto de impressões,

transformadas pelo cineasta em imagens, que resultam no filme, que pode ou não

simbolizar referências e estilos daquela comunidade onde o filme foi realizado.

Nos relatos desses homens e mulheres velhos, percebo certa reivindicação

de significados. Eles têm muitas recordações. Os seus relatos apontam uma

imaginação muito mais criativa do que uma memória retrospectiva. À medida que

o cineasta se envolve com cada personagem entrevistado, as lembranças fluem e

parece que o passado vai sendo recomposto através da história que cada um vai

contando. Ocorre aí uma presentificação da memória: as narrativas recuperam o

tempo, a infância, o inconsciente, o antigo. No exercício de ouvir e dialogar, cada

um dos personagens descreve sua vida vivida, sua experiência do real. Os

encontros do passado fazem parte da memória e, portanto, serão parte de todos

os presentes a serem vividos por eles.

Este filme, ao tratar das narrativas de velhos, expressa imagens de outras

memórias. A memória de velhos é a imagem de outras memórias. Os homens e

mulheres velhos têm a palavra. O filme faz uma valorização da tradição oral. É um

encontro efêmero do passado com a luminosidade do presente. As falas

apresentam a riqueza das histórias pessoais. A memória está enraizada no

concreto do cotidiano dos contadores, nos seus espaços e objetos, nos seus

gestos e nas suas imagens captadas pela câmera.

Algumas escolhas técnicas ajudam Eduardo Coutinho na abordagem do

real pela câmera, na produção do filme. Estas escolhas são os recursos fílmicos
59
utilizados pelo diretor para construir novas temporalidades e experiências

singulares no filme “O fim e o princípio”.

No processo de filmagem, a fala do outro, com suas expressões faciais e

seus gestos, predominam. O movimento e a expressão dos corpos em cena são

destaque.

Não há plano de cobertura, não há música, exceto aqueles sons captados

pelo ambiente. Valoriza-se a palavra filmada e o momento filmado. Apenas nos

planos iniciais do filme aparece a voz over do diretor para esclarecer os

dispositivos usados na filmagem.

Os personagens do filme são pessoas comuns e anônimas no universo

popular que, pelos depoimentos sempre frontais, expressam seus afetos, em

primeiro plano (planos tradicionais), com a câmera fixa no tripé. O entrevistado em

close (à direita do quadro, olhando para a esquerda). O eixo da câmera na mesma

altura do entrevistado (não indica superioridade da câmera e nem subserviência

do personagem). Quando a equipe chega às casas, apresenta os planos de

chegada e apresentações.

As filmagens fixas das falas realçam e exploram a expressão da face. Os

personagens encenam a si mesmo, contando histórias do seu passado (o diretor

deixa o personagem falar e desenvolver-se diante da câmera). Os personagens

falam para a câmera no filme. O encontro do personagem com o diretor ocorre só

no dia da filmagem (sem contato prévio), mas este é um encontro em que os

personagens aceitam a presença do cineasta, talvez, pela alteridade na relação

com os mesmos.

60
Os personagens do filme podem ser descritos como aqueles tipos

marcantes que Coutinho busca que saibam contar bem sua história de vida

pessoal, por meio da expressão de si, gestos e fisionomia. Coutinho costuma

lapidar estes estilos, no processo de edição, pois eles são o núcleo central do

filme. Coutinho, ao tencionar suas estratégias e o dispositivo montado, apresenta

ao espectador os personagens descobertos meio ao acaso, no seu estilo próprio.

As narrativas do filme são fontes de outros tempos, mas que propõem

questões sobre o presente. Não se trata de pensar, aqui, se os personagens do

filme são ou não testemunhas orais autênticas. Tanto a lembrança, quanto o

esquecimento fornecem possibilidades de interpretação.

As palavras desses homens e mulheres vividos apresentam o “instante”.

Esse instante é o passado (a experiência vivida) pensado a partir do futuro dessas

experiências (o presente). Portanto, é o “presente” olhando o “passado”, a partir

de uma maturidade de quem aprendeu fazendo. A velhice, por si só, revela a

história e a experiência de vida e, em cada uma das falas, fica sinalizado a parte

final de um contínuo, a vida em seu tempo. Quando tudo parece começar, quando

o sofrimento se acaba e o descanso pela lida, enfim, chega, na verdade, é o fim

da vida. Nessa fase da vida, o ser humano parece estar pronto, ele acredita que é

o grande entendedor da própria vida.

O tempo em que uma pessoa vive dá-lhe a oportunidade de se


conhecer como um ser moral, engajado na busca da verdade: no
entanto, esse dom que o homem tem nas mãos é ao mesmo
tempo delicioso e amargo. E a vida não é mais que a fração de
tempo que lhe foi concedida, durante a qual ele pode (e, na
verdade, deve) moldar seu espírito de acordo com o seu próprio
entendimento dos objetivos da existência humana. No entanto, a
rígida estrutura na qual ela se insere torna nossa responsabilidade
61
para conosco e para com os outros ainda mais flagrantemente
óbvia. A consciência humana depende do tempo para existir
(TARKOVSKI, 2010, p. 65).

A fala de D. Maria Borges pode nos mergulhar nesta ideia de consciência

do tempo da existência humana:

E. Coutinho: - A Senhora tem medo de morrer? Ou não pensa


nisso?
Maria Borges: - Eu não tenho medo de morrer não. Tenho não
sinhô!
- É no dia que Deus quiser... No dia que Jesus determinar e disser
assim: chegou minha hora!
- Tô pronta!
- Eu posso me arreceitar com o doutor e ele disser assim: você
não tem jeito, você vai morrer amanhã!
- Eu não vou pensar, não. Vou imaginar, não!
- Eu vou rezar pra Deus e esperar a morte chegar.

Quando o corpo já está velho e cansado da lida – a sobrevivência que

move as pessoas para a vida, o viver para conseguir comida, o viver para matar a

sede, o viver para fazer os filhos viverem, o viver para não ficar sozinho –, então, é

hora de descansar, aposentar e ter sossego.

O tempo é irreversível. O passado não volta jamais. Será que, no passado,

está tudo que é constante na realidade do presente, de cada momento do

presente? O passado parece ser muito mais real e estável, mais resistente do que

o presente. Segundo Tarkovski (2010), o presente desliza e esvai, rapidamente,

adquirindo o concreto somente pela recordação. O tempo, em seu significado

moral, volta-se para o passado. Como categoria abstrata, espiritual, subjetiva, o

tempo vivido fixa-se em nossa consciência como uma experiência situada no

interior do tempo. Para Tarkovski, quando uma pessoa volta ao passado, ela faz o
62
tempo retroceder por sua consciência. Diante de algum efeito, remontamos

constantemente à sua fonte, às suas causas.

Ao contar a história do passado, cada personagem fundamenta a história

do presente. Parece que o destaque maior se dá nos relatos do processo de

constituição da família, na concepção de casamento, no ter ou não um parceiro ou

uma parceira. Cada personagem tem uma opinião singular; sobre o grande amor

de sua vida ou o que não deu certo; sobre o amor perdido no meio do caminho;

sobre a descrença em encontrar um novo amor e a opção de se fechar para isso.

A fala de D. Maria Borges pode revelar a ideia do amor que deu certo.

E. Coutinho: - E valeu a pena?


Maria Borges: - Valeu à pena! Ele era pobre, mas era uma
pessoa muito bom pra mim.
- Nunca... Nunca bateu em mim!
- Nunca nóis andemo arengando.
- Nóis era muito bem unido. Muito bem casado.
- Era... Isso é o que era.
- Senti muita farta dele, quando ele morreu viu!

O que deu certo ou o que deu errado, não importa! Esse argumento é

definitivo na história da vida de cada um, inclusive na história daqueles que

escolheram viver sozinhos (que não casaram e não tiveram filhos), caso de

Leocádio e Neném Grande. Eles declaram que nunca quiseram se casar.

A câmera consegue mostrar a cultura de um povo sertanejo, interligado

com sua história. É o conhecer sobre a vida que já foi experimentada. Por

exemplo, quando D. Maria Borges fala sobre seus conhecimentos e práticas de

parteira:

Coutinho: - Como é que a Senhora se meteu em ser parteira?

63
Maria Borges: - Começou assim... Uma vez uma mulher adoeceu.
Aí vieram me chamar. Eu não tinha nem essa atenção. Aí...
Vieram me chamar. Aí eu fui. Quando cheguei lá... a criança
nasceu, né? Aí ajeitei. Eu já tinha visto com eu mesmo.
Coutinho: - A Senhora ganhava bem para fazer o parto ou não?
Maria Borges: - Era o que eles pudessem me dar.
- Eu não tinha preço marcado, não. Tinha uns... Tinha uns que
pagavam bem mesmo... recompensava bem. E os outros eram
pobrezinhos... Não tinham nem com que enrolar a criança. O que
eu ia fazer? Quem sabe?... Deus é quem me dava. Pronto!...
Dispensava. Deus é quem me dava! Porque teve muitos... Muitos
mesmos. Muitos que não tinham nem... As mulheres não tinham
nem um paninho pra enrolar as crianças. Nenhuma roupinha. Nem
nada. Eram pobrezinhas. Se chegar um aqui e dissesse assim...
Olha é já já! Olha se eu não vou! Vou!
Coutinho: - Vai lá?
Maria Borges: - Ou! Jesus me ajuda... Deus me ajuda, eu vou!
Chego lá! O ano passado eu já fui. O ano passado vieram aqui...
Uma mulher tava de saída pra ir pra rua. Aí... Não dava mais
tempo em ganhar um neném na rua. Vieram me chamar. Cheguei
lá... foi ligerim. Pronto! Mas estou satisfeita! Que venci a batalha!
Hoje estou bem!

Possivelmente, algum espectador da cidade grande, que ouve e assiste a

esses relatos, pode ter a impressão de estar conhecendo a realidade de uma

sociedade brasileira que ainda está por desvelar. São conhecimentos que podem

ser relativizados com a teoria e com a prática, sem qualquer preocupação em

diminuir a qualidade das fontes de relatos, especialmente porque o filme faz em si

uma valorização dessas fontes, conferindo certa confiabilidade aos relatos de

cada personagem. Esses homens e mulheres velhos impõem, talvez, pelas

marcas do tempo em seus corpos, uma presença que faz o espectador contemplar

a beleza da fala de cada um dos personagens, moradores de Araçás. Os rostos e

os braços de cada homem e mulher entrevistados passam a ideia de quem

presenciou e testemunhou cada acontecimento da vida cotidiana, mesmo que

alguns desses relatos façam parte de alguma invenção e imaginação dos

personagens.

64
O saber do homem comum sobre a natureza é produzido no
cotidiano, nas artes da vida em contato com os elementos
naturais, respirando, amando, refletindo... ...um saber ancestral,
tecido nos fios da memória transmitida de geração a geração, que
se perpetua na cultura dos homens pobres do sertão (NEVES
Apud MARTINS, 2006, p. 13).

É como se cada dia vivido pelas pessoas entrevistadas constituísse cada

marca de seu corpo ou no seu corpo.

A experiência é um saber de valor diferenciado dos demais por


representar um testemunho do corpo e dos sentidos. Deste modo,
a experiência é o que nos permite partilhar o sensível e construir
uma memória que afirma o homem como sujeito de seu destino e
o inscreve em uma comunidade humana (MARTINS, 2006, p. 14).

O que mais poderá aparecer, que seja tão diferente, para alguém que já

viveu a esta altura da vida? Pois já se experimentou tantas coisas. Talvez nada

seja tão novo e chamativo como participar do filme, como personagens

protagonistas. Cada personagem parece estar muito seguro de si. Nada os

abalam. Para alguns, o sofrimento já é experiência consolidada, apesar de parecer

não ter se esgotado. Talvez essa impressão tão segura dos personagens seja

dada pela experiência de participar do filme, o que pode representar para esses

homens e mulheres velhos uma experiência singular, em que os sujeitos comuns

emergem do anonimato, ainda que eles, talvez, nunca tenham consciência disso.

As marcas do tempo esculpidas nos corpos podem representar o universo

das experiências de sofrimento ou o golpe do tempo sobre os corpos. A morte

pode aparecer nos corpos como influência inexorável do tempo.

65
Não que o corpo pense, mas, obstinado, teimoso, ele força a
pensar, e força a pensar aquilo que se furta ao pensamento, a
vida. A vida não será mais forçada a comparecer diante das
categorias do pensamento, o pensamento é que será lançado nas
categorias da vida. As categorias da vida são, precisamente, as
atitudes do corpo, suas posturas (DELEUZE, 2007, p. 227).

Uma das questões que me instiga nesse filme é a intensidade dada aos

corpos nas imagens. De Deleuze subtrai-se a ideia de corpo intenso. O raciocínio

deleuzeano lembra que um corpo é composto por forças inconscientes. O cineasta

expressa isso de diversas formas: suprime o espaço, aproxima a câmera para

impedir que o corpo se mova, elimina o fundo para dar presença. Uma imagem do

corpo introduz o tempo e o corpo no tempo. O corpo na imagem se torna tempo e

duração, velocidade e lentidão, transformação ou repetição; O corpo recebe o

tempo, é infiltrado pelo tempo; é passado e futuro ao mesmo tempo. A postura e

os momentos sucessivos de sua construção expressa pensamentos.

Coutinho trabalha com expressões e gestos. O gesto é o modo mais

aceitável de “colocar o corpo no cinema”. O personagem se equivale de suas

posturas e atitudes corporais que emanam história.

‘Dar’ um corpo, dirigir uma câmera sobre o corpo, assume outro


sentido: não se trata mais de seguir e acuar o corpo cotidiano, mas
de fazê-lo passar por uma cerimônia, (...) que faz dele um corpo
grotesco, mas também extrai dele um corpo gracioso ou glorioso,
para atingir enfim o desaparecimento do corpo visível (DELEUZE,
2007, p. 228).

Quando, na imagem, vemos o corpo de Leocádio em contraponto com as

paredes desgastadas pelo tempo, vemos um corpo que é a ideia. O corpo tem

começo e fim expressivo, ele encerra em si uma ideia. Não se fala da ideia na

imagem, se fala com ela. Filma-se o corpo, mas o personagem não está ali. O
66
personagem é um elemento a ser lido, entendido. Mais rico será o personagem, se

o corpo que ali se apresenta ativar mais sentidos. A imagem do corpo se atualiza.

Figura 1- 13

“El tiempo? No se vê. La hora? Se mide apenas, corre mucho. El arbol,

enfrente, se Dora” (JORGE GUILLÉN Apud NUNES, 1988, p. 9). Esses homens e

mulheres velhos, com seus corpos insurretos das dificuldades que passaram pela

vida, formam o corpo de um coletivo, de pessoas resistentes que, tempo após

tempo, entre os antes e os depois, a duração, continua como árvores frondosas

que ali nasceram, desenvolveram-se e fortaleceram-se. Elas sobreviveram e, por

isso, mostraram aos muitos durantes que vale a pena resistir.

67
Figura 1- 14

As marcas no corpo são pequenos e delicados sulcos que revelam

verdades traçadas delicadamente. As sutilezas das marcas de um longo tempo

vivido, mas que a câmera traduz de uma forma que pode, para mim, apresentar

beleza e encanto.

O seu corpo fala por meio das marcas, que são as provas do mundo vivido

por estas pessoas que já existem desde há três quartos de um século. Apesar da

idade, a luta pela vida continua. Quem será por eles? Parece que nada disso

importa mais. Até parece que o tempo não lhes dá mais possibilidade de fazerem

projetos pessoais em longo prazo. Mas há uma expectativa envolta a uma

esperança infinita no aqui e agora, no que o presente pode proporcionar para

68
aqueles corpos frágeis, de “cabeças duras”, no sentido de carregar conhecimentos

que foram solidificados com o tempo da vida.

A certeza do fim, não tão longe, para os homens e mulheres velhos é o que

lhes resta, diante das incertezas da contemporaneidade. Esses velhos, para a

sociedade, são o que já não é mais, a quem a sociedade já não reserva mais

lugar. O cinema, como obra de arte, considerando a perspectiva estética, propõe

“conhecer o imperceptível, o pequeno, e fazer daquilo que desaparece uma

aparência” (KIFFER, 2006, p. 213). Nesse caso, o cinema, por meio da câmera

consegue captar o real sempre incerto e problemático.

Os créditos do início (princípio) e do final (fim) do filme aparecem sobre um

fundo preto. Elemento considerado por Deleuze (2007) como ausência de

imagem. Para ele,

“A ausência de imagem”, a tela preta ou a tela branca, têm uma


importância decisiva no cinema contemporâneo. Como Noel Burch
mostrou, elas já não têm uma mera função de pontuação, ao modo
da fusão, mas entram numa relação dialética entre imagem e sua
ausência... Este novo valor da tela preta ou branca parece
corresponder aos caracteres analisados anteriormente: por um
lado o que conta já não é a associação das imagens, a maneira
pela qual se associam, mas o intertístico entre duas imagens: por
outro, o corte numa sequência de imagens já não é um corte
racional que marca o fim de uma ou o começo de outra, mas um
corte dito irracional que não pertence a uma nem a outra, e
começa a valer por si mesmo (DELEUZE, 2007, p. 239 - 240).

O fundo preto sugere a ideia de tempo que permanece. O tempo sempre

esteve aí. O ser humano e tudo que está ao seu redor é que passa pelo tempo. A

tela preta sugere suspensão, momento no qual o expectador pode entrar com

suas leituras. As imagens (figuras 1.16 a 1.22) que encerram esse capítulo

69
representam esse tempo que continua esse todo aberto a que se refere Deleuze.

Observo todo um processo de passagem pelo tempo na cozinha da casa de Rosa,

quando a família almoçava. As imagens da cozinha vazia encerra o filme e

apresenta a ideia da continuidade do tempo. A ideia de que o tempo não volta

perde sua razão de ser. Ele não volta porque ele não foi. A existência (humana)

vai, mas não volta.

Figura 1- 15

70
Figura 1- 16

Figura 1- 17

Figura 1- 18
71
Figura 1- 19

Figura 1- 20

Figura 1- 21

72
2- A ESTÉTICA DO CINEASTA EDUARDO COUTINHO: UM NOVO

COMEÇO NO FIM

Figura 2- 1

Eduardo Coutinho é um dos mais importantes documentaristas

contemporâneos brasileiros. Não é possível entender o cinema brasileiro sem

passar por um estudo de sua obra cinematográfica. Coutinho mudou as noções do

documentário de entrevistas. Seu cinema é marcado por uma coesão, já que traz,

no conjunto de sua obra, as marcas muito fortes de sua estética.

Os diversos elementos fílmicos presentes em seu cinema e, especialmente

nesse filme, já foram abordados em outros estudos8, mas aqui faço uma releitura

8
BERNARDET, Cineastas e imagens do povo, 2008; ESCOREL, Objetivo subjetivo, Revista
CINEMAIS Especial, 2003; FERRAZ, Eduardo Coutinho, “O fim e o princípio na terra do fim do
mundo”, REVISTA RAIZ, 2011; LINS, O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e
vídeo, 2004; MOCARZEL, A palavra no documentário, Revista CINEMAIS Especial, 2003;
73
breve, por causa de suas relações intrínsecas com o foco de análise em questão:

o tempo.

Em relação à valorização do singular, Eduardo Coutinho, ao invés de trazer

nos seus filmes a ideia geral, valoriza a dimensão cotidiana do entrevistado,

considera as pequenas singularidades. Para Coutinho, conhecer o ser único e

singular apresenta suas fragilidades, então ele será objeto de seu filme. Valorizar

esse singular é mostrar a voz do homem comum, o indivíduo historicamente

silenciado pela sua invisibilidade social. A colocação em evidência desse singular

é uma questão estética e ética, quando significa uma valorização do mesmo.

O diretor tenta compreender o imaginário do outro sem aderir a


ele, mas também sem julgamentos ou avaliações de qualquer
ordem, ironias ou ceticismos, sem achar que o que está sendo dito
é delírio, superstição ou loucura – “o que o outro diz é sagrado” –
Sabe também que o seu imaginário pode ser tão frágil quanto o do
outro. ... Não vejo por que achar que é demais alienado quem
acredita em outro mundo do que quem acredita em um paraíso na
terra (LINS, 2004, p. 107).

Para Coutinho, a singularidade do ser humano se expressa na

subjetividade, na dúvida, nos silêncios e incomunicabilidade, valores próprios da

vida afetiva, que a criação artística e intelectual pode dar conta.

Coutinho, segundo Bragança (2008), acredita que sua própria experiência

de vida é que o ajuda a produzir, porque já não acredita nas grandes palavras ou

paradigmas epistemológicos. Ele não quer ensinar ninguém com os seus filmes.

Afirma o autor que ele não é indiferente aos problemas que acontece no mundo,

mas que a sua questão é mais ética do que política, pois o seu objetivo é

MOURÃO, Ética e documentário, In: FURTADO (Org.), Imagem contemporânea: cinema, tv,
documentário, fotografia, videoarte, games, 2009 e outros.
74
conhecer as razões das pessoas, as suas próprias razões não interessam.

Eduardo Coutinho não tem a intenção de resolver a sociedade nos seus filmes,

pois o cinema não resolve o social. A ética de Coutinho é a tentativa de respeitar a

voz, a memória, a experiência do outro, sem ensinar nada ou querer mudar o

mundo, no entanto, esta posição e a filmagem não deixam de provocar mudanças

e deslocamentos.

Querer mudar o mundo com o cinema é uma utopia maluca, mas


tudo bem, cada um pode ter a sua. Agora, querer mudar o lugar e
as pessoas que você está filmando, isto é de uma arrogância e de
um autoritarismo absurdos. De toda maneira, para mudar o
mundo, é preciso antes conhecer (COUTINHO apud BRAGANÇA,
2008, p. 95).

O cineasta faz um engajamento ético nos seus filmes e mantém certa

lealdade com as pessoas que ele filma, com quem ele conversa, e isso impede

que o filme cause prejuízo a essas pessoas, mas sem garantias de vantagens ou

que essas pessoas mudem suas vidas por causa do filme (COUTINHO,1998,

apud BRAGANÇA, 2008). Esse engajamento tem como objetivo tentar conhecer

as razões e as versões que estão por aí.

Coutinho, em particular, sabe como poucos trabalhar dentro desta


premissa para compor um cenário de empatia e inclusão que se
apoia numa filosofia do encontro que não é difícil formular em
teoria, mas cuja realização é rara. Ela exige a abertura efetiva para
o diálogo (que não basta programar), o talento e a experiência que
permitam compor a cena apta a fazer com que aconteça o que não
seria possível sem a presença da câmera. O conhecido efeito
catalisador do olhar do cinema na gestação da fala inesperada
deve chegar a sua potência máxima, de modo a compensar a
assimetria dos poderes (XAVIER, 2003, p. 224).

75
A ética coutiniana se aprende na relação do diretor com o personagem,

inclusive a intenção do cineasta no momento da concepção do filme (filmagem e

edição), e Eduardo Coutinho acredita no encontro com o outro. É no momento de

dar a voz ao outro que conhece as razões do outro.

Os filmes de Coutinho propõem outra forma de resolver a questão da

imagem do país. Ele não quer tirar verdades da sociedade como um todo e impor

essa verdade aos sujeitos do filme (personagens). Se num filme há síntese (uma

parte do todo) de nação, ela não traz consigo um sentido totalizante de nação.

Coutinho propõe um cinema de multiplicidade. O cineasta não pretende, com seus

filmes, falar pelo outro ou escolher pelo outro.

Na maioria dos filmes de Eduardo Coutinho, é possível perceber uma

interpenetração entre subjetividade e objetivação, em que histórias de vidas e

pequenos fatos do cotidiano dialogam com a história oficial, com a história do país.

As reflexões tecidas entre realidade e imaginário ampliam os diferentes tons do

senso comum sobre determinado grupo social. Segundo Coutinho (apud

BRAGANÇA, 2008, p. 44), “é que há um plano da história, dos grandes

acontecimentos, das revoluções, e há a vida – o sujeito nasce, fica adolescente,

tem filhos, morre -, os ciclos da vida e da morte... E a mediação entre a vida e a

história é a família”. A beleza está em juntar a pequena história e a grande

história. Ele mostra e aguça, através dos marcos que vêm da vida privada, a

separação entre o real e o ideal.

Para Lins (2007), o cinema de Coutinho se encarrega de trazer à tona um

“concentrado” do que ocorre na nossa existência cotidiana, de cuja dimensão nem

sempre nos damos conta. É no contato com o mundo, com o outro, que as ideias
76
vão tomando forma. Esses pensamentos confusos e sem lógica, que ainda não

estão prontos para serem expressos, só serão organizados numa situação de

interação social (o “exterior”).

A delimitação do espaço a ser filmado é outro aspecto dos filmes de

Coutinho. Seus filmes não passam uma ideia generalizante, muito menos

retratam um caso à parte como singularização excessiva. Ele estabelece uma

conexão entre o particular e o geral. Segundo Lins (2007), o seu interesse em

filmar pessoas e a aplicação do seu princípio da “locação única9” faz com que

seus filmes mantenham esse aspecto: preservação da singularidade das situações

e dos personagens filmados. Segundo Lins (2004, p. 67), “A história e a memória

ganham uma outra substância quando se parte de uma geografia específica;

irrompem ligadas à terra, às pessoas, as suas falas, aos encontros, misturados a o

cotidiano”.

A relação interativa entre câmera e personagem (entrevistador e

entrevistado) é uma relação que surge diante da câmera e é significativa. O real e

o imaginário se constroem entre a palavra e a escuta. Quando o personagem

entrevistado conta sua experiência, emite uma mensagem que pode ser parte do

seu imaginário, como também pode ser uma verdade. Essas narrações

demonstram a memória do que o personagem viveu, leu e ouviu e, também, suas

fabulações.

9
A delimitação de um espaço de filmagem: uma determinada comunidade rural do nordeste, uma
determinada favela, um determinado morro carioca, um único edifício em Copacabana (o mundo
cabe numa esquina, só é preciso escutar bem) (LINS, 2007).

77
O cineasta, quando se comunica com seus personagens, usa uma

linguagem coloquial, mas não finge que é um igual, em termos sociais, porque

está atrás da câmera. O importante nas entrevistas ou conversas, segundo Lins

(2004), é a forma como este se coloca, desejoso de ouvir o outro. É uma presença

interessada, que motiva a fala. É um encontro de interlocutores (é um cinema feito

com o outro e não sobre o outro).

Como superar os limites da nossa “natureza” e entrar na


“natureza” alheia? Como lidar com a imagem do outro, quando
esse outro é um personagem de cuja visão de mundo não
compartilhamos? [...] O objetivo é filmar sem forçar o traço, sem
caricaturar, intervindo o menos possível. O que interessa é a visão
de mundo do personagem, o ponto de vista específico que ele tem
sobre o mundo e sobre si mesmo (LINS, 2004, p. 24).

Quando essa diferença é assumida, há o estabelecimento de certa

igualdade e a relação se dá de forma positiva, criando certa intimidade na

entrevista. Na relação do cineasta com seus personagens, aprende-se ética.

Nos filmes de Coutinho, ocorre uma interação entre os dois lados da

câmera e as condições de produção dos mesmos são identificadas claramente e

marcam seu processo de filmagem.

Estamos filmando um encontro sempre: o encontro entre o mundo


do cineasta e da sua equipe, mediado pela câmera, e o mundo
que está em frente a essa câmera. É por isso que a maioria dos
meus filmes começa com a equipe chegando ao local de filmagem:
uma favela, um lixão, um prédio. […] A imanência desse momento
é fundamental. Por isso, a presença de um ao outro, e a presença
da câmera filmando esse encontro, é o que importa (Eduardo
Coutinho, entrevista à Revista Galaxia, 2003)10.

10
FIGUEIRÔA, Alexandre, BEZERRA, Claudio e FECHINE, Yvana. O documentário como
encontro: entrevista com o cineasta Eduardo Coutinho. REVISTA GALAXIA. São Paulo, 2003, p.
213.
78
O contato do entrevistador com o entrevistado se dá sempre, e pela

primeira vez, na frente da câmera. Em outros filmes, é a equipe que faz esse

primeiro contato. No caso do filme “O fim e o princípio”, o contato foi feito por

Rosa. Só no momento da filmagem que se sabe o que será dito pelo entrevistado.

É aí que ocorre a tensão do filme: uma pessoa demonstra que não vai render uma

boa entrevista, depois da tensão, desenvolve um bom diálogo.

No seu processo de filmagem, predomina certa agilidade de filmar em

situações de não-entrevista11.

O que cria a tensão é chegar na casa da pessoa com a câmera


ligada. Isso obriga toda a equipe a inventar: o câmera, o cara do
som, porque eu tenho que estar absolutamente ligado na pessoa
que está falando. Em muitos casos, portanto, o câmera é que tem
que decidir o enquadramento (COUTINHO apud BRAGANÇA,
2008, p. 68).

A fala de Coutinho mostra como a arte do cinema, em geral, é produzida

em equipe e como esta é importante nos seus filmes12. A entrevista é um dos

poucos recursos da linguagem audiovisual com chance de deixar que o

entrevistado se revele diante da câmera. “Um mestre do documentário como

Eduardo Coutinho nos ensina que é possível deixar o “outro” se reinventar, se

ficcionar diante da câmera, utilizando apenas o próprio imaginário” (MOCARZEL,

2003, p. 72).

O que interessa aqui é o caso extremo em que a entrevista (ou a conversa,

como prefere Coutinho) é a forma dramática exclusiva, e a presença dos

11
Processo que não é comum no cinema de documentário e presente na televisão, embora
Coutinho considere mal utilizado pelas produções televisas (BRAGANÇA, 2008, p. 68).
12
SCARELI, Giovana. Santo Forte: a entrevista no cinema de Eduardo Coutinho. 2009. Tese
(Doutorado em Educação) Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2009.
79
personagens não está acoplada a um antes e um depois, nem a uma interação

continuada ou outras figuras do seu entorno. Aí se define uma identidade radical

entre construção de personagem e conversa. No centro do método está a fala de

alguém sobre sua própria experiência, alguém escolhido porque se espera que

não se prenda ao óbvio, aos clichês relativos à sua condição social. O que se quer

é a expressão original, uma maneira de fazer-se personagem, narrar quando é

dada ao sujeito a oportunidade de uma ação afirmativa. “Tudo o que o

personagem se revela vem de sua ação diante da câmera, da conversa com o

cineasta e do confronto com o olhar e a escuta do aparato cinematográfico”

(XAVIER, 2003, p. 223).

Eduardo Coutinho usa a entrevista como estilo e não como uma falsa

justificativa de dar a palavra ao outro. Ele faz o diferencial. Ele só entra em contato

com o entrevistado na hora da filmagem (mesmo que a equipe tenha entrado em

contato com a pessoa antes, mas ele não). Então o trabalho de entrevista é mais

rico, talvez porque há um sentido de descoberta.

Os dois lados da câmera, no cinema de Coutinho, se integram, em alguns

momentos da entrevista, via conflitos, como um jogo, pois criam situações

complexas que são mostradas. O que mais interessa para o autor é o diálogo, que

é difícil, pois ocorre entre pessoas diferentes socialmente. A situação de filmagem

é, por si, hierárquica (documentarista versus documentado). Especialmente

porque é o documentarista quem faz a edição do filme. “Pelo diálogo, a diferença

abre uma possibilidade de igualdade, temporária e utópica, mas que pode existir”

(COUTINHO apud BRAGANÇA, 2008, p. 71). Coutinho desconstrói a relação

sujeito versus objeto e tenta estabelecer a relação sujeito versus sujeito.


80
Se eu mostro as circunstâncias de uma filmagem, estou mostrando
que as “verdades” são contingentes. A interferência do acaso e da
circunstância para mim é fundamental. Aquilo que não entra nos
outros filmes, a sobra, é o que me interessa (COUTINHO apud
BRAGANÇA, 2008, p. 71).

Na conversa, o cineasta cria uma espécie de ponte com o outro, ao

construir a relação de confiança, descobrindo seres humanos com pensamentos

próprios. Coloca-se no lugar do outro, em pensamento, e, assim, os dois lados da

câmera não se anulam. O personagem sai da condição passiva de entrevistado,

respondendo e assumindo a posição autoral, com iniciativa de, também, fazer

perguntas ao entrevistador. Dos personagens entrevistados, Mariquinha, Leocádio

e Chico Moisés foram os que mais fizeram questionamentos ao entrevistador, no

caso, o diretor no filme.

A abordagem da vida de homens e mulheres insignificantes está presente

em suas obras. O cinema de Eduardo Coutinho aborda “a vida dos homens

insignificantes que se perderam no tempo, nomes sem glórias, biografias menores

e erráticas... As filmagens trazem à tona esses anônimos” (LINS, 2007, p. 32). A

sua obra de arte atenua uma sensibilidade de existências. O seu olhar de empatia

e curiosidade conduzem o foco ao homem comum, cuja história não seria

conhecida, se não fosse a câmera de Coutinho ligada e focada em si. Não

interessa a figura pública para a qual todas as câmeras estão voltadas. O filme

trata do cotidiano das pessoas e dos seus sentimentos do dia-a-dia. É um cinema

de narrativa verbal e a escolha de cada personagem é fundamental para significar

a obra.

81
O documentário é um espaço de resistência contra uma visão
massificada e demagógica do povo brasileiro. E a palavra, ou
melhor, o discurso do “outro”, por mais que direcionado por um
entrevistador, é uma das poucas possibilidades de deixar que ele
se reinvente, ficcionalmente, por meio do próprio imaginário, como
já disse. E o cinema de Eduardo Coutinho é o ápice desse
comovente exercício de alteridade (MORCAZEL, 2003, p. 74).

Na maioria das vezes, a nossa percepção está presa pelas nossas próprias

vontades e somos impedidos de ver as coisas como elas são. Coutinho descobre

ouvindo a voz do outro e, nesse caso, o espectador tem grandes chances de

aprender junto com ele (no filme). O conjunto de sua obra cinematográfica é

marcado pela percepção do ser humano como sujeito de seu próprio destino.

A valorização da oralidade do narrador, para Eduardo Coutinho, é

fundamental. A linguagem oral é essencial no imaginário presente, especialmente

porque o local escolhido para o filme “O fim e o princípio” tem menos penetração

da indústria cultural. Para ele, os analfabetos ou os poucos alfabetizados, que

vivem em espaços onde predomina a cultura oral, necessitam mais de se

expressarem bem do que as pessoas que vivem numa cultura industrial. A

expressão oral dos que vivem no sertão do Brasil é muito mais rica em termos de

conteúdo, na eloquência, como também é mais precisa do que a linguagem

urbana. Esta é outra característica da arte cinematográfica coutiniana: resgatar o

vigor e a força de uma fala. Por isso, no seu cinema predomina a valoração da

oralidade.

Eu faço documentário para não ter que preparar um roteiro. E para


mim escrever é insuportável porque eu tenho que escolher
palavras, e o mundo das palavras é infinito, cada palavra gera
dúvidas e dramas de consciência. E eu opto pela reportagem, pelo
improviso, diferentemente da maioria dos documentaristas, porque
aí eu me livro de outro problema, tão insolúvel na minha
82
consciência quanto o da palavra: onde colocar a câmera? Eu só
filmo o outro para resolver um mal estar comigo mesmo. Um dos
filhos da Elizabeth, apesar de todos os problemas, falou uma coisa
sobre mim: “o cara está é procurando uma família”. E talvez seja
verdade (COUTINHO apud BRAGANÇA, 2008, p. 78 a 79).

Eduardo Coutinho não gostava de escrever, e por isso não utilizava

roteiros. Ele valorizava a improvisação que se tornou essencial para capturar os

momentos de acaso na produção dos seus filmes. Segundo Lins (2004, p. 12),

“Em vez de roteiro, ele filma a partir de “dispositivos” – procedimentos de filmagem

que elabora cada vez que se aproxima de um universo social”.

Eduardo Coutinho mostra ter uma aproximação com Walter Benjamin,

assumindo algumas identificações com os conceitos de narrador, alegoria, a

melancolia e o lado poético do descontínuo.

No caso de O fio da memória e em outras coisas que eu fiz, tenho


uma fascinação pelo Walter Benjamin e a alegoria do anjo de Paul
Klee sobre a ruína. Tem uma melancolia com a qual eu me
identifico, apesar do lado messiânico dele, que é mais difícil de
compartilhar. Mas tem um lado poético do descontínuo que eu
acho fascinante. E quando eu estava filmando a história do
Gabriel, eu pensei: “esse filme tem que ter um anjo”; e quando eu
descobri aqueles sacos de ossos no cemitério, terminei colocando
aquele anjo do cemitério. Para mim, aquilo foi uma homenagem a
Benjamin, mas ninguém nunca falou disso. Colocar aquele anjo
olhando para os ossos do Gabriel foi uma forma de alegorizar a
destruição do passado dele e dos negros. Como o anjo voltado
para as ruínas, em que o passado é uma catástrofe de ruínas e o
vento do progresso arrebata o anjo. Mesmo que ninguém tenha
entendido, o anjo é lindo e estava no cemitério, então tudo bem
(COUTINHO apud BRAGANÇA, 2008, p. 72)13.

Talvez no filme “O fim e o princípio”, ele faça outra homenagem a Walter

Benjamim, ao apontar o narrador em extinção, o tempo descontínuo, a memória e

13
Referência ao filme “O fio da memória”, de Eduardo Coutinho. Brasil, 1991.

83
a alegorização do tempo vivido, da experiência daqueles homens e mulheres

velhos do sertão nordestino, mas, também, da sua própria experiência vivida e,

especialmente, da sua obra cinematográfica. “O fim e o princípio” foi seu último

filme com as características de documentário. O filme é uma alegoria dos seus

filmes passados (anteriores), isto é, uma rememoração da experiência técnica do

seu cinema, especialmente porque nele há uma radicalização do seu método

cinematográfico.

Para Coutinho, há uma razão antropológica nos seus filmes, pois, ele trata

dos mesmos problemas que os cientistas (o que é um relato, a fidelidade do relato

e como traduzi-lo), mas não é um deles. ”Eu não preciso traduzir o oral para o

escrito, mas tenho que editar, e a edição também é um ato de intervenção”

(COUTINHO apud BRAGANÇA, 2008, p. 73). No cinema documental de Eduardo

Coutinho, a sua postura ética é confirmada a cada filme, pois, em nenhum

momento, o diretor apresenta a condição de sentir piedade do personagem e de

sua situação filmada. O diretor se concentra no encontro, na fala e na

transformação do personagem diante da câmera e não em utilizar o filme para

mudar a realidade do mesmo.

“Filmo o que existe”. Mas não quer dizer que a realidade fala por
si, ou que ele não interfere no que filma. É uma prática que recusa
a acrescentar verdades, ideias, informações ou elementos
estéticos a cenas que já se bastam, que não precisa de mais nada
(LINS, 2004, p. 94).

O cinema de Coutinho investe na radicalidade da palavra filmada. Ele se

interessa pelos filmes de conversação: a fala (o caráter obsessivo da fala) e a

narração das experiências. “O sentido da ação da personagem está na força,


84
neste tipo de documentário, não está na relação com os seus pares numa trama,

mas na exclusiva força de sua oralidade quando em interação com o cineasta e o

aparato técnico” (XAVIER, 2003, p. 228).

Ele trabalha com o microcosmo, no singular. Não procura o caso típico. E

essa relação entre o singular e o geral, a história coletiva e o singular, o país e o

microcosmo, acontece porque todos esses elementos são partes do mesmo todo.

Aspecto exemplar da abordagem cinematográfica de Coutinho:


“Ele parte de personagens reais, porém, o que filma não é a
pessoa ‘tal qual ela é’ na vida cotidiana. Da mesma forma, não
pretende obter de seus entrevistados, palavras que expressem
uma verdade ou reproduzam o que efetivamente aconteceu”. ...
em que está em questão um passado, uma memória [...], o que
importa é como essas lembranças surgem no presente, como são
narradas no momento da filmagem, mesmo que não coincidam
com o que está estabelecido na história oficial. É a “memória do
presente” que interessa, a alteração que suas lembranças
imprimem em seu corpo, gestos, voz e na sua vida. Narrar, nesse
sentido, já é uma prática ativa, produtiva” (LINS, 2004, p. 47).

A apresentação do contraditório, ao explicitar as contradições e fragilidades

da filmagem, é um sistema de trabalho de Coutinho. É um sistema que consiste

em deixar a contradição aparecer nos seus filmes, mostrando a instabilidade do

seu lugar como cineasta e produtor do filme. Esta instabilidade pode representar o

seu poder manipulatório nas entrevistas e a articulação das imagens como forma

de contar as histórias, sob o seu ponto de vista e não do entrevistado, o fato de o

sujeito que filma impor um silêncio mais profundo que o anterior, quando quem

não tinha espaço para falar, agora tem sua própria fala apropriada e deslocada.

Segundo Lins (2004), Coutinho valoriza as contradições nos filmes e não

julga a fala do personagem com o critério do cineasta, não resolve as

85
ambiguidades e os sentidos múltiplos na montagem. Por isso, as contradições não

são sintetizadas, mas são postas lado a lado. Os depoimentos se contradizem

voltando para um mundo heterogêneo e com múltiplas direções. “Mas é

justamente essa diversidade que “abre” os personagens uns aos outros, sem que

uma verdade final sobre eles seja estabelecida” (LINS, 2004, p. 47).

“São desacordos, contra-sensos, disparates que podem emergir


no mesmo personagem ou em depoimentos diferentes,
expressando pedaços de uma história pessoal e, ao mesmo
tempo, fragmentos de uma história coletiva, sem que seja possível
a criação de tipos. É fundamentalmente, uma maneira de
estabelecer relações complexas entre a vida de cada um deles,
entre cada situação e algo como um “estado de coisas” que
vivemos no Brasil (LINS, 2004, p. 72-75).

Pedaços de história pessoal, fragmentos de história coletiva, levam a

estabelecer relações ambíguas e complexas. O documentário não é a busca da

verdade. Para qualquer história existe muitas versões diferentes e ele tem a sua

versão e está profundamente imbricado nela. Cada filme é um mundo de versões

e vivências. Os personagens diferentes, numa rede de aproximações,

desencontros e versões, é que fazem o filme ser forte.

Eu poderia tirar na montagem as situações em que aparecem as


pessoas se criticando, me criticando, ou criticando a situação. Mas
eu faço questão de deixar, explicitando o processo de um
documentário. E se eu estou deixando é porque eu acho que tem
algo ali que faz pensar (COUTINHO apud BRAGANÇA, 2008, p.
69).

Coutinho assume que busca evitar o processo ficcionalizante, respeitando a

cronologia da filmagem. Mas declara que, ao contar uma narrativa, o seu lado

ficcional aparece. “E sem narrativa não há documentário, mas a montagem pode

86
privilegiar a ficção. Eu tento manter uma certa lógica de progressão do

personagem e da ação” (COUTINHO apud BRAGANÇA, 2008, p. 69). Nesse

sentido, há cenas que mais lembram cenas de um teatro, pois tudo o que

acontece é contínuo.

Os elementos ficcionais, no documentário, não aparecem gratuitamente.

Você só chega à verdade pelo imaginário, e nem é um problema


de se chegar à verdade, são versões da verdade. Uma pessoa
pode te dar um relato extraordinário da vida dela, um relato da
história do Brasil que seja, que tem alguma verdade, e tem mil
coisas inventadas; a pessoa se projeta no papel que não teve, e
que a memória construiu. Mas não é completamente fictício, tem
que ter uma base no real, pra você subir ao imaginário
(COUTINHO apud BRAGANÇA, 2008, p. 76-77).

Segundo Mocarzel (2003), o cinema documentário, por mais que seja

ficção, manipulação, sempre oferece uma possibilidade de descortinar, com

maravilhamento, a cultura do “outro”, de algo que transcende, de algo que está

além da experiência de vida mais umbilical. Por isso, o recurso da entrevista é um

dos poucos capazes de promover, em toda a sua exuberância, a epifania da

alteridade na tela grande.

Cinema é sem dúvida manipulação e documentário é logicamente


uma ficção, mas uma ficção que tem o ato de documentar como
ponto de chegada, a “realidade”, o “real”, o tema a ser focalizado,
enfim, fazer um documentário é de alguma maneira assumir um
compromisso com algo que nos escapa, com alguma coisa que
nos transcende, que está além do nosso umbigo autoral
(MOCARZEL, 2003,p. 72).

A transparência ética, segundo Morcazel, é fundamental ao cine-

documentário, já que se trata de ficcionar a cultura de outras pessoas, por mais

que o cinema seja manipulação. Para Coutinho, as histórias, no real, são tão ricas
87
que a ficção não dá conta de superá-las. Por isso, ele valoriza muito as lacunas

nos relatos de suas entrevistas. O seu interesse é fazer filmes sobre aquilo que

ele tenha paixão. Interessa-lhe explorar a relação entre os dois lados da câmera e

contar histórias. Interessa-lhe o encontro.

Na hora que eu filmo uma pessoa, eu a amo mais que a qualquer


outra. Aliás, quando a câmera está ligada é que eu vejo as
pessoas. Eu sou uma pessoa que não olha para o mundo. Sou
totalmente distraído, me perco nas ruas, em todas as cidades.
Agora, quando eu ligo a câmera e selo os olhos na pessoa, é isso
que vale a pena para mim (COUTINHO apud BRAGANÇA, 2008,
p. 77).

Uma das características de sua obra de arte cinematográfica é a estética

caracterizada por uma ética da alteridade na produção do cinema documentário.

Quando se trata de documentário, a primeira coisa a ser observada é a

relação direta que se dá com os corpos que se prestam a produção do filme, ou

seja, o embate entre quem filma e quem é filmado.

Não há como “dar voz ao outro”, porque a palavra não é


essencialmente “do outro”. O documentário é um ato no mínimo
bilateral, em que a palavra é determinada por quem a emite, mas
também por aquele a quem é destinada, ou seja, o cineasta, sua
equipe, quem estiver em cena. É sempre um “território
compartilhado” tanto pelo locutor quanto por seu destinatário
(LINS, 2004, p. 108).

A relação que Coutinho estabelece com a alteridade aparece na sua

capacidade de fazer da representação um espaço de construção em que cineasta

e personagem entrevistado constroem juntos.

Um documentário, segundo Freire (2009), é resultado de relação de poder

de forças que se instalam na realização do filme. O realizador do filme detém o


88
controle sobre a montagem, desde as filmagens, a edição até o produto final.

Nesse caso, Eduardo Coutinho preserva, na edição final, os eventuais conflitos de

interesses (as contradições) surgidos nas relações com os sujeitos filmados,

como, por exemplo, a recusa dos sujeitos em submeterem-se ao olhar da câmera.

Partindo de uma abordagem estética que, segundo Aumont (1995), reflete

os fenômenos de significação considerados como fenômenos artísticos, ou seja,

estuda o cinema como arte, analisa os filmes como mensagens artísticas,

subentendendo uma concepção do “belo”, do gosto e do prazer do espectador,

que pode ser um indivíduo comum ou um teórico, considerarei o efeito estético

próprio do cinema, como, também, a análise ou crítica do filme como uma obra de

arte.

Uma das características estéticas do cinema de Eduardo Coutinho que

percebo no filme “O fim e o princípio” é o modo como ele imprime o tempo nas

imagens e nas falas dos personagens. Em torno dessa tessitura estética dada no

filme é que reflito sobre os elementos alegóricos constituidores da estética da

temporalidade apresentada em suas imagens e narrativas.

A ética e a estética coutiniana se articulam de forma imbricada nos filmes

de Coutinho, por causa da prática atenta ao material oferecido pelo universo a ser

filmado. O movimento ético na obra desse diretor

permite aos personagens desenvolver suas visões de mundo no


limite da capacidade de convencer, com uma intervenção pequena
por parte do diretor; pontual e absolutamente necessária para que
o personagem aprofunde o seu pensamento (LINS, 2004, p. 26).

89
Coutinho filma em vídeo, pois, assim, tem condições de contar história de

vida, porque, em cinema, ele se obriga a ser econômico. Filmar em vídeo

proporciona continuidade, diminuindo, assim, a ficção e ampliando o tempo real.

Isso evita, também, ter que conversar com os personagens com antecedência ou

fazer perguntas muito diretas, como é comum todos fazerem em documentários,

considerando o custo muito alto.

Não me interessa o plano curto. Eu quero a dimensão temporal


das coisas. Às vezes uma pessoa fala, e é cinco, três minutos, e é
isso mesmo. Tem uma densidade, tem progressão, ela hesita,
volta pra trás. Isso é inadmissível na televisão. As pessoas têm um
tempo, têm uma memória, têm um passado, mas para isso vir à
tona tem uma temporalidade, que precisa estar nos planos, na
edição. Essa dimensão do tempo está no conteúdo e na forma, na
memória e no plano. Por isso a televisão não me interessa, ela
vive no presente puro (COUTINHO apud BRAGANÇA, 2008, p.70).

A dimensão temporal do filme é uma preocupação desse cineasta, já que

quer captar a intensidade e a progressão singulares da história de vida, a memória

das pessoas entrevistadas, trazendo à tona a dimensão do tempo no cinema, que,

no seu caso, precisa aparecer não só no conteúdo, como também na forma, na

memória e no plano. O tempo é o tempo de memória tal como se imprimisse no

presente, no momento de narração. Coutinho se refere ao tempo que cada

entrevistado requisita para constituir seu relato, já que rememorar é um ato do

presente e a filmagem lida com esse tempo.

O filme “O fim e o princípio” penetra no universo daquelas pessoas velhas,

especialmente no universo das mulheres colhendo intensos depoimentos de vida.

O resultado do contato vida/encenação é muito forte no filme. Coutinho explora o

tipo/personagem nas tomadas. Surge, então, o personagem denso, que fala e

90
desenvolve sua fascinante personalidade diante da câmera. Explora uma espécie

de primeira pessoa da encenação, dramatizando a performance de sua vida, ou

de sua opinião, face à câmera.

Os filmes de Coutinho caracterizam menos ação e mais expressão. Esse

corpo do sujeito no mundo é uma expressão de afeto pela face e pelos gestos.

Nos rostos em primeiro plano, a encena-afecção aparece. É o estilo que faz

expressar os gestos imperceptíveis do ser no mundo e a encenação direta e a

articulação narrativa do documentário direto, enquanto unidade fílmica, compõem

seus argumentos, através do corpo que fala.

Depois da produção de “O fim e o princípio”, Eduardo Coutinho modifica

seu método radicalmente. A procura pelo real e a alteridade do personagem são

abandonadas: a identidade nacional, o popular, o gestual e a geografia

esquecidos pelo imaginário. Não se vê nos próximos filmes o tempo do encontro.

Acabou-se o núcleo da procura. Ele passa a produzir filmes com abordagens

ensaísticas, onde a ficção torna-se inevitável.

O termo “fim” do título do filme explica o término de um processo de

experiências cinematográficas que teve o seu “princípio” ali, na Região Nordeste,

Paraíba, com a filmagem de “Cabra marcado para morrer”. Coutinho era muito

jovem, na primeira parte desse filme, em 1964. Depois de vinte anos, sua carreira

de cineasta se alavancou com a filmagem da segunda parte e sua conclusão em

1984. Com o sucesso desse filme, Eduardo Coutinho se projeta

internacionalmente como cineasta. E, em 2004, quarenta anos depois do “início”,

quando Coutinho já está velho (72 anos), eis que ele se propõe a voltar ao início.

91
O filme “O Fim e o princípio” é um processo de rememoração do estilo

criado pelo cineasta. Ele é a memória do cinema coutiniano, isto é, a expressão

máxima do seu estilo cinematográfico, pois ele aperfeiçoa todos os dispositivos de

filmagem desenvolvidos na história do seu cinema. Eduardo Coutinho podia estar

prevendo o fim de um método de produção cinematográfica, pelas dificuldades

físicas de um corpo moldado pelo tempo, de se embrenhar em produções inéditas,

Mas, também, acredito que ele previa a possibilidade do fim próximo,

considerando a sua velhice como a aproximação do fim da existência humana no

tempo.

O que fica de Eduardo Coutinho no seu cinema é a disposição para o

diálogo (o debate), a descrença nas respostas prontas, o espaço do encontro, a

tomada de posição, o peito aberto para o inesperado, o gosto pela investigação, a

busca pelo original e verdadeiro (ou pelas verdades de cada um). A busca intensa

pelo outro chegou ao fim. Nos últimos anos viveu intensamente essa busca, no

sentido de um novo recomeço pelos caminhos da memória, que não é real, mas

também não é imaginária. O princípio é o reconhecimento do fim.

Eduardo de Oliveira Coutinho não está mais entre nós, faleceu aos oitenta

anos, em 02 de fevereiro de 2014, no Rio de Janeiro. Muitos dizem que sua obra

de arte cinematográfica está eternizada. Eu concordo com isso. Mas, se alguém

me pergunta: o que é eterno? Eu respondo assim, meio sem pensar: “eterno é

tudo aquilo que não tem começo e nem fim”. Nesse sentido, eu digo sobre o

conjunto da sua obra: “o fim é o princípio”! Ou “o fim traz um novo recomeço”!

92
Figura 2- 2

93
3- IMAGENS COMO COMPOSIÇÃO ALEGÓRICA DO TEMPO

Diante de uma imagem – por mais antiga que seja –, o presente


jamais cessa de se reconfigurar [...]. Diante de uma imagem – por
mais recente, por mais contemporânea que seja –, o passado, ao
mesmo tempo, jamais cessa de se reconfigurar, porque essa
imagem só se torna pensável em uma construção da memória
(DIDI-HUBERMAN, 2000, p.10)14.

Neste capítulo aprofundo a reflexão sobre os elementos alegóricos do

tempo no filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho, especialmente a

estética do tempo apresentada nas imagens, procurando entender e ultrapassar o

significado dado no filme e como esse significado pode me levar à ideia de tempo.

Examino o filme na direção de identificar se e como Coutinho emprega elementos

alegóricos para subverter a linearidade do relato, como trabalho da memória e, ao

mesmo tempo, acentuar a rememoração que desestabiliza a falsa aparência do

tempo vivido.

Todo filme (característica do cinema) aciona a memória, e isso permite

relacionar a última cena vista com as anteriores e o filme com outros

acontecimentos da vida de cada espectador. Também cada cena é transitória,

quando vemos, já passou. A esse respeito, os escritos de Benjamin sobre cinema

e a experiência da vida moderna trazem uma reflexão muito interessante. Aqui

procuro mostrar as variadas possibilidades que o cinema pode fazer com o tempo

e que são utilizadas pelo diretor, especificamente nesse filme.

14
DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant le temps. Histoire de l’art et anachronisme des images.
Paris: Minuit, 2000, p. 10.
95
A análise alegórica é a metodologia que escolhi como viável para captar o

sentido que o filme tem para quem o analisa. Além de que a própria alegoria

significa em si ou reivindica para si o conceito de tempo ou o tempo faz parte da

sua especificidade. “A reabilitação da alegoria por Benjamin será uma reabilitação

da história, da temporalidade e da morte na descrição da linguagem humana”

(GAGNEBIN, 2011, p. 35). Para Benjamin, a interpretação alegórica implica numa

compreensão histórica. Se a medida temporal da experiência simbólica é o

instante, o repentino, o transitório, na forma mediata; na alegoria ocorre o

contrário, a análise é profunda por causa da sua historicidade. A alegoria é

profundamente histórica para Benjamin. “A alegoria se instala mais duravelmente

onde o efêmero e o eterno coexistem mais intimamente” (GAGNEBIN, 2011, p.

37).

A alegoria é um gesto interpretativo que preserva a verdade do sentido do

filme para o diretor, abolindo, ao mesmo tempo, o seu sentido primeiro e literal. A

interpretação alegórica apela à imaginação quando constrói a ligação entre

sentido (interpretação dada) e imagem, sem a preocupação de estabelecer uma

relação necessária ou uma verdade lógica nessa ligação. A alegoria, como

linguagem, diz mais do que palavras; ela busca descobrir o sentido escondido sob

as palavras, imagens etc.

Não pretendi fazer uma leitura do filme através da direção ou uma

educação dos sentidos pela articulação do autor, mas por um olhar singular sobre

o filme que, pelos detalhes, guarda aproximações com o alegorista barroco 15 (que

15
Na leitura de Benjamin (Origem do drama barroco alemão), as experiências de perdas sentidas,
especialmente, em relação às crises religiosas da Reforma e da Contra Reforma, levam o homem
96
busca provar que a estética barroca é um desdobramento inevitável do

Renascimento, quando tenta entender e identificar as suas formas para se chegar

a utilidade dos seus usos).

[...] O estudo da forma do drama barroco revela mais claramente


que qualquer outro a violência desse movimento dialético, no
interior dos abismos alegóricos. [...] a alegoria mostra ao
observador a facies hippocratica da história como protopaisagem
petrificada. A história em tudo o que nela desde o início é
prematuro, sofrido e malogrado, se exprime num rosto - não, numa
caveira. E porque não existe, nela, nenhuma liberdade simbólica
de expressão, nenhuma harmonia clássica da forma, em suma,
nada de humano, essa figura, de todas, a mais sujeita à natureza,
exprime, não somente a existência humana em geral, mas, de
modo altamente expressivo, e sob a forma de um enigma, a
história biográfica de um indivíduo. [...] Nisso consiste o cerne da
visão alegórica: a exposição barroca, mundana, da história como
história mundial do sofrimento, significativa apenas nos episódios
do declínio. Quanto maior a significação, tanto maior a sujeição à
morte, porque é a morte que grava mais profundamente a tortuosa
linha de demarcação entre a physis e a significação. Mas se a
natureza desde sempre esteve sujeita à morte, desde sempre ela
foi alegórica. A significação e a morte amadureceram juntas no
curso do desenvolvimento histórico, da mesma forma que
interagiam, como sementes, na condição pecaminosa da criatura,
anterior à Graça. A concepção da alegoria como· desenvolvimento
do mito, tal como ela funciona em Creuzer, revela-se em última
análise como moderada e mais moderna, à luz do mesmo ponto
de vista barroco. [...] O autor desaprova a relação entre o mito e a
alegoria, mas admite sua plausibilidade. Essa relação se baseia
numa teoria da lenda, tal como desenvolvida por Creuzer
(BENJAMIN, 1984, p. 188-189).

Ao fazer uma leitura alegórica, Benjamin propõe à analise crítica que

reconheça a ação corrosiva da história e do tempo cujo efeito consiste em que as

do século XVII a uma profunda melancolia. Esta crise desarticulou as bases sobre as quais se
assentava a própria vida cotidiana. O drama barroco alemão foi um novo modo de perceber o
mundo cheio de sofrimento, de história de ruínas e catástrofes. O olhar barroco permite entender
um mundo em fragmento e sem sentido. Esse é o mesmo olhar que pode ser lançado sobre o
mundo moderno para entendê-lo. Segundo Benjamin, o historiador materialista desempenharia
esse papel de lançar um olhar para o passado para resgatar os fragmentos esquecidos pela
historiografia tradicional e, assumir a história dos vencidos, uma narrativa descontínua,
fragmentada e fadada ao esquecimento. Esta reflexão resulta numa crítica a uma concepção do
tempo vazio e homogêneo (BENJAMIN, 1984).
97
mais belas obras envelhecem e se tornam alheias ao olhar humano. A alegoria

benjaminiana é uma teoria da história como lugar conjunto da significação e da

morte. “A interpretação alegórica, essa produção abundante de sentido, a partir da

ausência de um sentido último, expõe as ruínas de um edifício do qual não

sabemos se existiu, algum dia, inteiro; o esboço apagado e mutável desse palácio

frágil orienta o trabalho crítico” (GAGNEBIN, 2011, p. 46).

Na alegoria imagética, para Benjamin (1984), uma imagem pode ser

utilizada para significar alguma coisa que não está claramente explícita na mesma,

diferentemente da linguagem simbólica. Para Argan (2004), as alegorias não são

imagens reduzidas a conceitos e sim conceitos reduzidos a imagens.

Ao diferenciar a linguagem simbólica da linguagem alegórica, Benjamin

afirma que,

A distinção entre os dois modos deve ser procurada no caráter


momentâneo, que não existe na alegoria [...] ali (no símbolo) existe
uma totalidade momentânea; aqui, existe uma progressão, numa
seqüência de momentos. Daí porque a alegoria, mas não o
símbolo, compreende em si o mito... cuja essência se exprime
mais perfeitamente na progressão do poema épico." [...] Podemos
satisfazer-nos perfeitamente com a explicação que aceita o
primeiro como signo das idéias - autárquico, compacto, sempre
igual a si mesmo - e segunda como uma cópia dessas ideias - em
constante progressão, acompanhando o fluxo do tempo,
dramaticamente móvel, torrencial. Símbolo e alegoria estão entre
si como o grande, forte e silencioso mundo natural das montanhas
e das plantas está para a história humana, viva e em contínuo
desenvolvimento" [...] Esse trecho retifica muitos equívocos. Pois o
conflito entre uma teoria do símbolo que acentua na figura
simbólica sua dimensão natural – o mundo das montanhas e das
plantas - e a ênfase de Creuzer em seu aspecto momentâneo,
aponta para a verdadeira solução. [...] A medida temporal da
experiência simbólica é o instante místico, na qual o símbolo
recebe o sentido em seu interior oculto e por assim dizer,
verdejante. Por outro lado, a alegoria não está livre de uma
dialética correspondente, e a calma contemplativa, com que ela
mergulha no abismo que separa o Ser visual e a Significação,
98
nada tem da auto-suficiência desinteressada que caracteriza a
intenção significativa, e com a qual ela tem afinidades aparentes.
[...] A relação entre o símbolo e a alegoria pode ser compreendida,
de forma persuasiva e esquemática, à luz da decisiva categoria do
tempo, que esses pensadores da época romântica tiveram o
mérito de introduzir na esfera da semiótica. Ao passo que no
símbolo, com a transfiguração do declínio, o rosto
metamorfoséado da natureza se revela fugazmente à luz da
salvação, a alegoria mostra ao observador a facies hippocratica da
história como protopaisagem petrificada (1984, p. 187-188).

Ao reabilitar a estética da alegoria que foi rejeitada pela estética romântica

como sendo imperfeita, já que não tem a aparência totalizante do símbolo,

Benjamin (1984) reabilita a alegoria e, junto com ela, a temporalidade como

elemento constitutivo das obras de artes, quando ele valoriza a arte como forma

de expressão, por excelência, da temporalidade e da historicidade. O símbolo

representa o mediato e a instantaneidade ao transmitir uma ideia, enquanto na

alegoria haveria uma sucessão temporal que desenvolve o pensamento escondido

na imagem progressivamente permanece sempre em aberto.

Eu não ofereço, na minha análise do filme, nenhum fundamento seguro,

especialmente não concilio o teor do filme com as exigências de explicação lógica

e moral (do certo ou errado) ancorada no pensamento científico ou sociológico de

uma realidade social. Na verdade, nessa perspectiva, o sentido verdadeiro nunca

será alcançado, até porque não é esse o interesse do próprio diretor do filme. A

alegoria não precisa estar explicitamente expressa na linguagem, ela está lá e se

dirige aos olhos de quem observa, ela pode estar expressa nas artes em geral:

pintura, escultura, teatro, cinema.

A leitura do filme reivindicou a síntese temática: o filme em questão faz o

estabelecimento de tempo e memória através das imagens do que representa a

99
vida das coisas transitórias que passam no tempo. Ele abre pensamentos sobre o

tempo. Ele apresenta o tempo, ao nos fornecer memórias e nos aproximar do

mundo de memórias outras. O filme tem elementos alegóricos que anulam a falsa

continuidade da experiência e que permitem encontrar novas significações para o

tempo.

Ao aprofundar na estética do filme para apreender, entrecruzar temas que

emergem dele, observo uma estética do tempo e da memória, não como

apreensão do real, numa associação direta entre as narrativas do filme e os

sentidos produzidos pelo diretor na constituição do mesmo, mas num processo de

constituição do sentido que as imagens, as narrativas, o processo de produção e

edição do filme sugerem.

O diretor faz uma abordagem alegórica fabular do tempo, ao valorizar essa

idéia nas imagens, nas cenas, nas falas. São vários os aspectos que indicam esta

perspectiva da temporalidade: a duração dos planos, o enfoque no rosto, a

profundidade de campo que forma as imagens-tempo, o título do filme, as

narrativas dos personagens valorizando o papel do narrador (contando histórias

vividas e partilhando experiências), a apresentação de objetos do cotidiano dos

personagens que tem uma dimensão temporal, as imagens da tecelã que remete

ao processo de atualização do mito da tecelã. A insistência do cineasta em

mostrar cenas de um modo de vida em vias de desaparecer em contraponto com

a chegada do progresso e da modernidade.

A revelação de planos progressivamente ampliados, com


eventuais saltos de um plano a outro, numa sequencia nada
cronológica e não necessariamente encaixada ou repartida

100
segundo os conhecidos blocos de influencia que parecem compor
a bagagem deleuziana (PELBART, 1998, p. XXIII).

Esta descrição técnica de Pelbart sobre a leitura deleuzeana do cinema na

obra sobre imagem-tempo (DELEUZE, 2007) me aparece com insistência para

contribuir na leitura sobre a temporalidade no filme “O fim e o princípio”, de

Eduardo Coutinho.

Tanto Deleuze (2007) quanto Tarkovski (2010), com a sua obra “Esculpir o

tempo”, contribuem muito para desenvolver a reflexão sobre a construção da

estética temporal nos elementos apontados por mim, especialmente porque

Coutinho desenvolve de forma muito singular a experiência do tempo nesta obra

cinematográfica.

A imagem cinematográfica, então, consiste basicamente na


observação dos eventos da vida dentro do tempo, organizados em
conformidade com o padrão da própria vida e sem descurar das
suas leis temporais. As observações seletivas: só deixamos que
permaneça no filme aquilo que se justifica como essencial à
imagem. Não que a imagem cinematográfica possa ser dividida e
segmentada contra a sua natureza temporal; o tempo presente
não pode ser dela removido. A imagem torna-se verdadeiramente
cinematográfica quando (entre outras coisas) não apenas vive no
tempo, mas quando o tempo também está vivo em seu interior,
dentro mesmo de cada um dos fotogramas (TARKOVSKI, 2010, p.
77-78).

Segundo Tarkovski (2010), quando nasceu o cinema, nasceu com ele um

novo princípio estético: o homem descobre o modo de registrar uma impressão do

tempo. O cinema imprime o tempo na forma de evento concreto (um

acontecimento, o movimento de uma pessoa ou de objeto material, o objeto imóvel

ou estático - a imobilidade existe no curso real do tempo). A concepção de cinema

enquanto arte se passa pela ideia de que ele é o tempo, registrado em suas
101
formas e manifestações reais. O tempo, uma vez registrado, pode ser conservado

em caixas metálicas. Ele é reproduzido simultaneamente na tela e sua repetição

pode ser feita o quanto desejasse repeti-lo e retornar a ele. Para Tarkovski (2010),

o cinema é o novo princípio estético que surge e “esculpir o tempo” é a essência

do trabalho de um diretor.

O cineasta, a partir de um “bloco de tempo” constituído por uma


enorme e sólida quantidade de fatos vivos, corta e rejeita tudo
aquilo de que não necessita, deixando apenas o que deverá ser
um elemento do futuro filme, o que mostrará ser um componente
essencial da imagem cinematográfica. [...] O tempo em forma de
evento real (a crônica, o registro de fatos no tempo), isto é cinema,
cuja essência não é filmar, mas recriar a vida. A força real do
cinema, porém, reside no fato de ele se apropriar do tempo, junto
com aquela realidade material à qual ele está indissoluvelmente
ligado, e que nos cerca dia após dia e hora após hora
(TARKOVSKI, 2010, p. 72).

O filme “O fim e o princípio”, como todas as obras cinematográficas, oferece

um conjunto de possibilidades de leitura das imagens. O tempo que as imagens

me remetem, tanto no plano estético (cinematográfico), quanto no subjetivo, se

apresenta como imagens que aparecem para mim de forma contrária à tradicional

linha ou fluxo do tempo. As próprias imagens fílmicas se apresentam como

elemento alegórico do tempo no filme em questão. Nesse sentido, eu busco os

estudos sobre cinema, especialmente os de Deleuze.

A leitura do tempo no cinema de Tarkovski e a leitura da imagem tempo de

Deleuze caminham juntas na minha análise. A possibilidade de as imagens do

cinema estarem no presente pode ser uma afirmativa falsa, considerando que não

existe presente que não seja influenciado por um passado e por um futuro. O

presente coexiste com um passado e um futuro. Numa perspectiva deleuzeana, o

102
cinema realiza a apreensão do passado e do futuro, que coexistem com a imagem

presente. Essas possibilidades de leituras do tempo não são excludentes entre si

e ajudam a compreender o sentido apresentado no filme.

A imagem-tempo é uma imagem fílmica que explora o tempo de forma

direta e não só o movimento. O movimento, nestas cenas, possui como

característica principal o fato de ser óptico e sonoro, ao invés de sensório-motor.

Estas imagens apenas mostram. Elas não dependem de um encadeamento de

montagens. É um tempo do cinema que não é mais cronológico ou linear. É um

tempo como duração, em que o passado e o futuro convivem e não sucedem. A

câmera, através de suas funções travellings16, planos-sequência e profundidade

de campo, captam as relações mentais das imagens. O que permanece, através

da sucessão dos estados em mutação, está representado na duração desses

planos. Tudo o que muda está no tempo, mas o próprio tempo não muda.

Os elementos alegóricos são constitutivos dos relatos dos personagens

narradores, o que, por sua vez, não depende do trabalho criativo do diretor. O

tempo presente está nas suas histórias, considerando a perspectiva de que não

há presente que não seja influenciado por um passado e por um futuro. Então,

naturalmente, a alegoria também se faz presente na montagem do filme, através

da própria linguagem cinematográfica.

16
Travellings ópticos - Um recente progresso técnico veio oferecer aos diretores um meio de
expressão ao mesmo tempo prático e vigoroso: trata-se das objetivas com focal variável (zoom,
pancinor), que permitem fazer os chamados travellings ópticos. Esses travellings são puramente
virtuais, não havendo deslocamento da câmera, é lógico estudá-los do ponto de vista da
profundidade de campo. [...] dá liberdade infinita ao realizador possibilitando efeitos sensacionais,
absolutamente irrealizáveis de outro modo. [...] o diretor não está mais pregado ao solo nem
restrito às possibilidades de uma grua, podendo agora buscar quase instantaneamente num plano
geral aquele detalhe que deseja mostrar em primeiro plano na tela (MARTIN, 2011, p. 194-195).
103
O repertório pessoal e coletivo (mitológico e histórico) daqueles homens e

mulheres velhos se esconde nas ruínas e alegorias do passado que o filme de

Coutinho trata de desvelar17. Portanto, a imagem-tempo apresenta-se como uma

composição alegórica do tempo. É uma viagem ao passado através das

lembranças daqueles homens e mulheres, só que de volta ao presente. Os

registros de memórias são diferentes do simples processo de rememorar. Os

relatos, em geral, são uma mistura de memória e imaginação. Mas a questão que

analiso considera o filme como um todo e não simplesmente as histórias contadas

por narrador, ou somente as imagens, e sim a conexão de todos os elementos. O

filme, de certa forma, realiza a tarefa de apreender o passado e o futuro que

coexistem com a imagem presente.

A primeira alegoria que percebo no filme se dá justamente no tipo de

filmagem e no tipo de montagem feitos pelo cineasta. O diretor produz um tipo de

cinema que é próprio do período Pós-Segunda-Guerra Mundial. Um cinema onde

a mostragem substitui a montagem. Não importa como as imagens se encadeiam,

mas como elas mostram.

As descrições de um espaço estão sob a égide das funções de nosso

pensamento. Tem-se um emaranhado, um círculo, um labirinto do tempo, ao invés

de uma consciência do tempo. E a obra de Coutinho em questão, ao não

apresentar, aparentemente, com encadeamento lógico entre os 18 entrevistados

na montagem, quebra a estrutura de montagem linear e cronológica própria do

cinema clássico.

17
A obra de arte apresenta uma parte da história daqueles que são comumente esquecidos pela
historiografia tradicional.

104
Figura 3- 1

A imagem-tempo, concebida por Deleuze, é uma imagem muito difundida

no meio cinematográfico. Ela é um elemento alegórico do tempo presente no filme.

Na foto-imagem (Figura 3.1), a profundidade do plano está em evidência. É como

se a câmera flagrasse certa relação mental, ao invés de captar somente os

movimentos: a parede envelhecida da casa; o olhar perdido (ou não) do cavalo

para a câmera ou para o entrevistador; as rugas do rosto de Vigário ou as

manchas de sua camisa, que provavelmente não é nova.

105
Figura 3- 2

Esta foto-imagem (Figura 3.2), como outras, apresenta a árvore frondosa

que produz sombra sobre a cabeça de Zé de Souza e seu neto. A árvore

certamente cresceu e desenvolveu sobre um tempo para chegar a este tamanho.

O rosto envelhecido de Zé de Souza face ao rosto do neto (uma criança) no plano

contra-plongée, em que a câmera baixa sugere certa hierarquia na natureza,

captando a duração da existência: céu, horizonte, árvore, envelhecimento (o

homem velho) e juventude (a criança, o novo). Todos estes elementos são tecidos

do tempo, todos são interiores ao tempo, inclusive o ser humano, e não é o tempo

que está neles.

106
Para Deleuze (2007), - seguindo o raciocínio bergsoniano18, em que o

tempo é o todo, é criação, é mudança incessante, é o aberto, o que transforma e

não para de mudar de natureza a cada instante -, esse todo chamado tempo não é

um conjunto, pois o conjunto é fechado; o tempo é uma passagem infinita de um

conjunto a outro, o tempo significa o processo de transformação de um conjunto

no outro. O todo é relação. O todo das relações é o tempo, a duração. Então os

objetos e seres que aparecem nas imagens anteriores duram, enquanto são

tecidos no tempo.

Em Deleuze19, a obra de arte tem algo sempre em aberto. E esse algo em

aberto é o tempo. Em toda obra cinematográfica isso ocorre. Cada cineasta

constrói esse todo à sua maneira (a imagem desse todo, o tempo).

Para Deleuze (2007), o ser humano tem uma ação diante de tipos de

imagens que é um reflexo automático, mas tem outros tipos de imagens que ele

reage diante dela através de um retardamento temporal que o leva à percepção. A

percepção é o resultado da ação e reação com outras imagens do mundo. É no

intervalo entre a ação e a reação que ocorre a criação do novo. Esse processo

que acontece entre o receber e o agir se dá pela memória, pois é dela que

necessita-se para apreender o tempo que forma-o ou que tece-o. Para ele,

algumas imagens são capazes de acessar um tempo (um fundo memorial) e

externalizar ao mundo ações inéditas ou não comuns. Estas imagens (imagem-

tempo) têm o poder de virtualizar constituindo o real, mas com uma dimensão

voltada para o processo memorial, onde as imagens se relacionam de forma mais

18
DELEUZE (1999).
19
DELEUZE (2007).
107
livre. Nesse sentido, a relação entre a imagem virtual20 e a imagem atual21 é que

produz significações que vão além do que está visível. A imagem-tempo (ou

imagem lembrança) age e dilata a memória reconstituindo o objeto percebido. No

caso, o cinema atualiza a virtualidade. O presente e o passado se realizam aqui e

em outro lugar (na ficção e na realidade) quando o espectador se movimenta e se

orienta pelos vários níveis de realidade oferecidos pelo cineasta, atualizando o

que quiser.

A ficção é uma redescrição do real, logo, ela reescreve uma temporalidade.

A ficção é uma dimensão do mundo, pois mistura uma temporalidade vivida com o

tempo percebido (aspectos reais de modo imaginário), criando a possibilidade de

contar algo como se tivesse acontecido de fato.

Pela via do conceito de imagem-tempo, que se caracteriza não só pelo

movimento, mas pela exploração direta do tempo, onde movimento e montagem

passam a depender do tempo, a ação flutua no meio da situação, e não tem com

ela um encadeamento orgânico nas cenas. É o tempo apresentando-se em seu

estado puro, quando espaço e tempo são dilatados e comprimidos de forma

alternada pelos plongées e contra-plongées nas contrações, pelos travellings

oblíquos laterais na formação de lençóis22 e pela profundidade de campo que

explora o passado.

20
A imagem virtual se remete ao passado, ao mundo imaginário, onírico e subjetivo.
21
A imagem atual se refere ao presente real e objetivo.
22
Deleuze denomina lençóis do passado, a instância por onde se busca os signos na memória
para constituir o presente. Essa instância funda a imagem-tempo.
108
Figura 3- 3

A própria imagem, num mesmo plano, independente da montagem,

comporta a força do tempo. O tempo flui na imagem de uma forma que mostra a

pressão do tempo no plano. Como o tratamento dado para o cotidiano pelo

cineasta e as imagens ópticas e sonoras puras que daí extrai.

109
Figura 3- 4

Esta imagem de Lica é um exemplo (figuras 3.3, 3.4 e 3.5) do que Deleuze

chama de opsigno. Esta imagem constrói uma situação ótica pura. O opsigno é

uma contemplação do presente. Quando as expressões faciais de Lica são

filmadas, observo a impossibilidade da realização do diálogo, mas a imagem que a

câmera capta apresenta um significado mais profundo: o não movimento, o modo

como o cinema expressa o tempo diretamente. Para Deleuze (2006), a

personagem é incapaz de agir decisivamente para mudar suas circunstâncias, a

personagem se torna testemunha do transcorrer do tempo, da experiência quase

esmagadora do que é absorvido pelos sentidos. O observador é confrontado em

situações em que ele não pode responder decisivamente (situações banais ou

cotidianas ou situações extremas). Essas situações são muitas vezes intoleráveis

110
ou insuportáveis e vão além da capacidade de influência do observador (no caso,

o personagem é uma mulher muito velha e fraca fisicamente, incapaz até de se

colocar a disposição de Coutinho para conversar).

Nesta mesma condição se encontram o personagem Leocádio, quando

afirma para Rosa que está “sem pontuação para a conversa”, e Zequinha Amador,

que demonstra estar muito fraco e diz que está adoentado e sem condições de

conversar, “... tem que ser uma conversa polida, né?...”, mas acaba cedendo num

outro momento, após Coutinho conversar com a sua irmã Lice. Nesses casos, há

certa impotência motora dos personagens diante da possibilidade de realizar a

atitude reflexiva e participativa (entrevista/conversa) com o diretor. E são essas

situações decisivas para o surgimento de situações óticas puras. O que resta ao

personagem de Lica é testemunhar com o seu silencio passivo, como uma

observadora.

Estas imagens trazem sentidos novos e alteram o próprio movimento do

filme. Ao trazerem outros tempos, trazem outros passados e, consequentemente,

surgem outros sentidos. O passado é o sentido de uma linguagem e é também o

sentido de um signo. Então, estas imagens são como signos que trazem a estes

personagens outros significados (que vêm de outros passados) e possibilitam

novos sentidos.

Estas imagens são opsignos (signos óticos) e, ao mesmo tempo, são

também sonsignos (signos sonoros). O silêncio de Lica transforma o sentido do

filme e transforma em som de outrem. Sons e imagens mudam de sentido e se

reconstituem enquanto signos que operam. Não representam apenas o real, mas

o presentificam. A potência virtual se atualiza e possibilidades de sentidos se


111
abrem. Nessa percepção temporal, surge um apelo à projeção do espetador na

narrativa contrariando uma atitude de submissão. Assim, as sensações sensório-

motoras (representações indiretas do tempo) são substituídas por configurações

exclusivamente visuais e sonoras (representações diretas do tempo) ou opsignos

e sonsignos.

O opsigno permite sentir o tempo e o pensamento, tornando-os visíveis e

sonoros. Portanto, as ideias de opsigno, onde o espectador (aquele que vê)

substitui o protagonista (aquele que age), e de sonsigno (descrição auditiva com o

mesmo princípio do opsigno) referem-se à imagem-tempo Deleuziana.

Figura 3- 5

112
Essa imagem cinematográfica é reflexão, a própria imagem é pensamento,

é questionadora. Uma imagem-reflexão que leva ao pensamento da imagem. É

uma imagem que toma por objeto o pensamento e não relações simbólicas ou

sentimentos intelectuais. É a imagem-tempo de Deleuze. As imagens-tempo

aparecem também nas etapas em que os personagens, especialmente na

liberação do intertístico, são entregues à cotidianidade, através de movimentos

aberrantes (por exemplo, o carro de som fazendo propaganda política no espaço

da comunidade rural ou do espaço fílmico ou o pai de Rosa tocando o gado no

pasto usando a voz e o som do polaque pendurado no pescoço dos animais ou a

procissão das crianças e mulheres rezando e cantando). Os intertísticos

apresentados no filme de Coutinho são exemplos da passagem de uma

representação indireta do tempo a sua apresentação direta. É o tratamento dado

ao cotidiano pelo cineasta. São as imagens ópticas e sonoras puras que daí extrai.

Os planos fixos de Rosa em sua moto; do pai de Rosa tocando as vacas;

da procissão de mulheres e crianças rezando e cantando; do movimento da Kombi

da campanha política; da caminhada feita ao lado da cerca de madeira até à casa

de Rosa; das cenas das árvores ou do ambiente externo das casas quando a

equipe de Eduardo Coutinho e Rosa chegava para a filmagem na casa dos

personagens entrevistados; da cena final da refeição na casa de Rosa; são

exemplos de cenas do filme que trazem os movimentos que se tornam, eles

mesmos, exemplo de cotidianidade.

113
Figura 3- 6

Figura 3- 7

Figura 3- 8

114
Figura 3- 9

Figura 3- 10

115
Figura 3- 11

Figura 3- 12

Figura 3- 13
116
Figura 3- 14

Figura 3- 15

Também os objetos, considerados mortos (mesa, cadeira etc.),

enquadrados separadamente, estão dentro do fluxo temporal. Eles não podem

mais serem vistos sob o ponto de vista de uma ausência de tempo. [...] “Não seria

melhor aceitar, de uma vez por todas, a condição simples e essencial do cinema

117
como uma representação sucessiva de elementos visuais, e trabalhar a partir

desse ponto de partida?” (TARKOVSKI, 2010, p. 82).

Figura 3- 16

O recurso de filmagem muito usado nesse filme e que eu aponto como um

elemento alegórico é a profundidade de campo, cuja função é explorar a região do

passado (memória, lembrança, sonho), em que o plano de fundo, o plano médio e

o primeiro plano de uma tomada são simultaneamente focados. Ocorre um

processo de zona de nitidez da imagem, que parece reproduzir o campo de visão

do ser humano23.

23
Os elementos de cada plano são postos em interação através de uma linha imaginaria em
diagonal. Quando as técnicas de filmagem plongées e contra-plongées formam contrações e os
travellings oblíquos laterais formam lençóis, o espaço e o tempo são delatados e comprimidos
118
O interesse particular do procedimento é, portanto, evidente: mas
seu interesse estético não é menor. Ao longo de um travelling
óptico (suponhamos um travelling para frente), o expectador não
tem a impressão (ao contrário do que se passa num travelling
comum) de percorrer com a câmera um espaço sólido e
indeformável; ele tem a impressão de que o espaço se comprime
(por achatamento dos planos uns contra os outros), tornando-se
com isso mais denso: de fato, a variação da focal modifica a
posição relativa dos planos do espaço entre si. A focal variável
acumula, assim, as vantagens estéticas da focal curta (grande
profundidade, possibilitando primeiríssimos planos num campo
totalmente nítido) e as da focal longa (achatamento dos planos
distantes, dando à imagem uma intensidade gramática e plástica
absolutamente inigualável). Além disso, por sua capacidade de
agir rápida e abruptamente, o travelling óptico tem um considerável
valor de impacto psicológico (MARTIN, 2011, p. 195).

Portanto, a profundidade de campo é um recurso utilizado na produção da

imagem que faz a exploração das zonas virtuais do passado. É uma figura de

temporalização e de memoração. A interação dos planos define uma dimensão

chamada região do tempo, formada diretamente pela zona de nitidez da

profundidade de campo.

alternadamente. Esse recurso se abastece de fontes de memória, explorando zonas virtuais do


passado.
119
Figura 3- 17

Na profundidade de campo, a câmera também filma objetos que se

deslocam como se ela se deslocasse também. Ao interpretar o filme de Eduardo

Coutinho, eu considerei o aspecto estético da profundidade de campo. Esta é uma

noção que depende muito do trabalho de direção.

Para Martin (2011, p. 185), “a profundidade de campo é de extrema

importância, pois implica uma concepção de direção e até mesmo uma concepção

de cinema”,

A composição em profundidade de campo é construída em torno


do eixo de filmagem, num espaço longitudinal em que os
personagens evoluem livremente: o interesse particular desse tipo
de direção advém, sobretudo, do fato de o primeiro plano combinar
audaciosamente com o plano geral, acrescentando sua acuidade
de análise e sua capacidade de impacto psicológico à presença do
mundo e das coisas ao redor, através de enquadramentos de uma

120
rara intensidade estética e humana. Se houvesse necessidade de
justificar o prestígio da profundidade de campo, bastaria dizer que
ela corresponde à vocação dinâmica e exploradora do olhar
humano, que fixa e esquadrinha uma direção precisa (em virtude
da estreiteza de seu campo de nitidez) e em distancias muito
variadas (em virtude de seu poder de acomodação). No teatro, o
olhar percorre a cena para buscar seu centro de interesse: a
câmera, ao contrario, lança fachos de luz na profundidade do
mundo e das coisas (MARTIN, 2011, p. 186).

Segundo Martin (2011), essa utilização da profundidade de campo permite,

do ponto de vista dramático, efeitos interessantes, como, por exemplo: o

deslocamento de um móvel no eixo da câmera, dando uma impressão de

estagnação; a simultaneidade de várias ações; a entrada em primeiro plano no

campo de um personagem ou de um objeto, resultando numa viva surpresa para o

espectador; por fim, a presença de um personagem em primeiro plano, justificada

pelo fato de que a cena é vista, de certo modo, por seus olhos.

Para Martin (2011), portanto, existe duas direções esboçadas bastante

opostas na utilização da profundidade de campo: em primeiro lugar, a tendência a

enclausurar os personagens no cenário através de longos planos fixos, em que a

imobilidade da câmera valoriza o drama psicológico – e, em segundo, a tendência

a enfatizar o escalonamento dos planos de profundidade para fins dramáticos,

sem, com isso, suprimir a decupagem tradicional.

Nesse caso, evita-se o risco de imobilidade e monotonia, quando os

personagens se movem no espaço, criando uma espécie de decupagem virtual,

baseada, não nas mudanças de planos habituais, mas uma variação da distância

relativa dos personagens em relação à câmera. Portanto, uma mudança do plano

de perspectiva, eventualmente sublinhada por movimentos de câmera. Muitos

121
cineastas utilizam ao máximo a profundidade de campo e, sem coagir, tornam a

câmera totalmente imóvel e sem fazer uso de planos intermináveis.

Acho indispensável frisar que essa liberdade que a profundidade


de campo nos restitui é bastante utópica, pois a experiência
demonstra como acabamos de ver, que a maioria dos casos o
trabalho de direção com profundidade de campo nos impõe uma
decupagem virtual que opera no espaço ou mesmo no tempo da
cena, dominando nossa atenção. Aliás, tal liberdade, supondo-se
que existisse, estaria talvez em contradição com a noção de obra
de arte. Pois o que aparece na tela não é evidentemente a
realidade, a visão pessoal e subjetiva do diretor, portanto uma
realidade estética. Diante dessa segunda realidade, nossa
liberdade permanece, mas muda de plano: não nos cabe fazer
julgamentos de fato, e sim julgamentos de valor; o problema
consiste então em saber se essa segunda realidade existe
esteticamente: se a recusamos, significa que o diretor fracassou
em sua tentativa de nos impor sua visão de mundo (MARTIN,
2011, p. 194).

A profundidade de campo fez com que o espaço e o tempo constituíssem

um todo homogêneo e a sucessão da composição de um espaço é indiferente à

duração, estruturando, assim, um verdadeiro espaço-tempo na imagem

cinematográfica. Esse recurso é uma característica muito presente no cinema

coutiniano, especialmente no filme “O fim e o princípio”, considerando que a sua

função é exatamente a de explorar uma região do passado.

Os recursos da profundidade de campo são utilizados durante as filmagens

das pessoas contando histórias. As tomadas dos seus rostos pela câmera

apresentam esse elemento para dar às fotos-imagens a sensação de

tridimensionalidade. Quando certa região das fotos é desfocada, de propósito, é

possível induzir o cérebro do espectador a acreditar que há uma distância entre os

objetos, recriando em sua imaginação uma experiência multidimensional.

122
A impressão é de que a mão de Lica irá encostar-se à lente da câmera e

não se encontra no mesmo plano que o seu rosto. O rosto de Nênem Grande não

parece estar no mesmo plano que a rede. Assim como a mão de Antônia, mesmo

estando desfocada, parece estar em plano diferente do seu rosto. É nesse sentido

que o espectador tem a sensação de estar vendo imagem em várias dimensões.

O cérebro é induzido a pensar, a recriar, a imaginar o que está além do que é

visível.

A imagem-tempo não busca representações, ela apresenta algo. Ela é

capaz de construir significação por meio da descontinuidade. Os circuitos da

memória são acionados por estas imagens e, numa articulação com a montagem,

podem permitir ver além da imagem registrada pela câmera.

3.1 - Tecer o tempo e tecer a vida

“O tempo é o tecido da nossa vida” (Antônio Cândido, 1983).

Figura 3- 18
123
Figura 3- 19

Figura 3- 20

Figura 3- 21

124
Figura 3- 22

Figura 3- 23

Figura 3- 24
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Figura 3- 25

Figura 3- 26

Figura 3- 27
126
Figura 3- 28

Figura 3- 29

Arrisco-me a dizer que as cenas, representadas aqui por estas fotos-

imagens selecionadas a partir das cenas de Zefinha fiando, têm um sentido

alegórico a mais, pois, além de mostrar um modelo (o narrador sedentário que

conta histórias), ao mesmo tempo se apresenta como ferramenta ativa de ensino


127
(o narrador compartilha a experiência enquanto conta histórias ao ouvinte atento).

Estas imagens ganham importância no filme, porque se trata de um elemento

alegórico e podem indicar a apropriação e a releitura do mito da tecelã.

A presença da tecelã em todas as representações leva a uma análise da

figura mitológica grega, apresenta uma fabulação associada à fábula de Aracne,

ao mito de Penélope. O ato de fiar representa, na mitologia grega, um eterno

retorno pelo processo de tecer e desfazer o trabalho começado e interminável. A

simbologia da tecelã é muito utilizada para fazer a relação entre passado e

presente na literatura moderna. No caso do filme, Coutinho utiliza uma linguagem

mais atual, a linguagem cinematográfica.

Estas imagens apresentam-me a conjugação do verbo tecer em todos os

tempos verbais: Ela tece, elas tecem. Ela tecia, elas teciam. Ela teceu, elas

teceram. Ela tecera, elas teceram. Ela tecerá, elas tecerão. Ela teceria, elas

teceriam. Que ela teça, que elas teçam. Se ela tecesse, se elas tecessem.

Quando ela tecer, quando elas tecerem. Se ela tem tecido, Se elas têm tecido.

Quando ela tinha tecido, quando elas tinham tecido. Ela terá tecido, elas terão

tecido. Ela teria tecido, elas teriam tecido. Ela tenha tecido, elas tenham tecido. Se

ela tivesse tecido, se elas tivessem tecido. Quando ela tiver tecido, quando elas

tiverem tecido. Ela ter tecido, elas terem tecido. Que ela teça, que elas teçam.

Como está tecido em todos os dicionários de Língua Portuguesa Brasileiro, tecer é

o ato de fabricar tecido, entrelaçando fios, linhas, palha, vime etc. É fabricar algo

enredando ou entrelaçando partes, utilizando agulha ou tear. É produzir sua

habitação ou fazer críticas. É coordenar ou compor com atenção. É tramar um

plano. É colocar-se no meio. É criar na fantasia, na imaginação.


128
A tecelagem é uma tarefa simbolicamente feminina e destaca-se como

significado de “tempo de espera” em seus mais abrangentes significados.

Portanto, um tempo feminino, que é lento, relacionado com narrativas míticas que

retomam os mitos das fiandeiras: Aracne, Ariadne e Penélope, as parcas ou

moiras.

Nas histórias da mitologia, as mulheres passam os dias tecendo. Tecer era

tudo o que faziam e que queriam fazer. Tecendo elas traziam a sua solidão e

sentimentos em relação ao seu saber (o tecer) e o tempo e suas variantes (as

estações, dia e noite, quente e frio, horas, dias e anos) eram os elementos que

compunham os seus discursos.

Estas imagens-pensamento (ou imagens-tempo) conduzem a um estado de

distensão cada vez mais raro, segundo Benjamin (2012), o tédio que é o ponto

mais alto da distensão psíquica.

O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos – as


atividades intimamente associadas ao tédio – já se extinguiram
nas cidades, e também no campo estão em vias de extinção. Com
isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos
ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e
ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela
se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto houve a
história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais
profundamente se agrava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do
trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira
que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu
a rede em que está guardado o dom narrativo. E assim essa rede
se desfaz hoje em todas as pontas, depois de ter sido tecida, há
milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual
(BENJAMIM, 2012, p. 221).

Eduardo Coutinho, ao iniciar o processo de ouvir e contar histórias,

apresenta as imagens da Tecelã Zefinha. As cenas da mulher velha tecendo

129
apresenta a figura do narrador de Benjamin. O narrador passava sua experiência

para que os seus ouvintes a relacionassem o conteúdo da narrativa, fruto da

experiência vivida, e a aplicassem com sabedoria na comunidade. O ouvinte

atento, segundo Benjamim (2012), não só ouve as experiências narradas, mas

aprende com as experiências trocadas com os narradores. Nesse sentido, as

cenas da tecelagem cumprem a outra função do narrador, que além de narrar

histórias vividas, troca experiência com o seu ouvinte. “Se a arte de narrar rareou,

então a difusão da informação teve nesse acontecimento uma participação

decisiva” (BENJAMIN, 2012, p. 223). Nesse caso, o filme “O fim e o princípio”, de

Eduardo Coutinho, pode ser uma forma de realizar a tarefa do narrador de

Benjamin.

As cenas que retratam as imagens de Zefinha fiando se inserem no

conceito deleuziano de imagem-tempo. Elas me permitem pensar a mulher de

ontem, que veio de outrora, mas que está presente na contemporaneidade. Mulher

de agora, que apresenta um aprendizado tecido na vida, na experiência vivida.

São imagens de um saber e um labor artesanal, são imagens de gestos e de sons,

embora não se tenha nenhum ruído neste momento da filmagem. Essas imagens

registram um tear, um ir e vir de pontos, um ir e vir de tempo.

É a imagem de uma anciã sábia que compartilha sua sabedoria, sua lição

que perpassa gerações e muitos períodos de tempo. É o conhecimento marcando

a linha do tempo das gerações. Em seu corpo, em suas mãos, vê-se a lembrança

do passado, do antigo. É o corpo rememorando (o corpo apresenta o vivido),

através das marcas de muitas vivências, que podem ser de dor ou de prazer.

130
A imagem de Zefinha, assim como das outras mulheres personagens do

filme, é a imagem da mulher que cumpre a missão de qualquer ser humano, a

missão da vida (de existir), é uma imagem de mulher que fecha um círculo, que

tece uma teia, que também é um fio que entrelaça a vida em círculo. É uma

imagem que pode apresentar ser o fio condutor ou o elo que mantém a família

unida e fortificada.

A atividade de tecer ou fiar foi sempre inspiradora para as narrativas da

mitologia grega (As Moiras). Em muitas histórias mitológicas, o ato de tecer está

ligado ao poder de determinar o destino dos seres humanos, tecendo os fios de

sua existência. A imagem de Zefinha tecendo me remete a imagem das tecelãs do

destino, que desempenham o compromisso de elaborar, tecer e interromper o fio

da existência (o momento da morte). A mulher que tece ou pratica a função de fiar,

segundo a literatura mitológica, tem a função de deter e manipular o fuso e, ao

mesmo tempo, estimular o fio da vida a iniciar sua trajetória. O símbolo da Moira

se refere às etapas da existência: o início e o final da vida, o nascimento e a

morte, e o casamento (etapas da vida que Eduardo Coutinho utiliza como

parâmetro ou referencial na sua conversa com os personagens). É uma

simbologia ligada ao mistério do destino. Portanto, relaciono os personagens

destas mulheres velhas do filme às Moiras, as tecelãs do próprio destino.

As moiras são “a personificação do destino individual, da ‘parcela’


que toca a cada um neste mundo”. Cada ser humano teria a sua
moira, ou seja, seu destino de felicidades e de desgraças. No
entanto, desenvolveu-se a teoria da existência de uma única
Moira, que presidiria os destinos de todos os seres humanos
(BRANDÃO, 1997, p. 230).

131
As Moiras são identificadas com a ideia de vida e de morte, simbolizando o

destino humano, segundo suas funções: a fiandeira que segura o fuso e vai

puxando o fio da vida (Cloto), a que enrola o fio da vida e sorteia o nome de quem

vai morrer (Láquesis) e a que corta o fio da vida (Átropos). Elas fiavam o destino

alheio. As imagens da benzição, dos relatos do nascimento das crianças pela

parteira e do batismo são imagens presentes no filme e que, também, apresentam

ou relacionam com o mito das tecelãs. As mulheres, personagens do filme,

teceram seus próprios destinos, por serem mulheres de personalidades fortes e

que não sucumbiram às dificuldades. Essas mulheres nasceram na primeira

metade do século XX, portanto, já trilharam seu caminho em busca da felicidade

(que, segundo os filósofos clássicos, é o objetivo de todo o ser humano). Existe

algumas interpretações da metáfora da tecelagem como sendo o símbolo da

submissão feminina, mas é apenas uma das interpretações. A mulher, há muito,

vem conseguindo sair da condição de Penélope à Moira (veja, ao final do último

capítulo, o texto de Marina Colassanti, “A moça tecelã”).

Um dos olhares que lanço sobre esta obra é o da atualização do mito da

tecelã feita pelo cineasta nesse filme. O filme pode remeter ao imaginário do

espectador as fiandeiras lendárias pelas imagens. Imagino que o mito da tecelã

pode ter inspirado o diretor a criar os personagens no processo de montagem e

edição do filme.

O diretor pode ter se aproveitado de imagens comuns a todos os indivíduos

(imagens universais) relacionadas à memória da experiência da humanidade. Os

diversos mitos sobre as fiandeiras abordam as personagens como senhoras do

destino, como mulheres responsáveis pelo destino de todos os seres humanos.


132
Pelas narrativas das mulheres do filme, as mesmas foram responsáveis pelo

destino de seus filhos, pelas suas existências, incluindo o seu nascimento, a sua

sorte e a sua morte.

A prática de tecer vivencia o fazer dos tecidos, dos pontos e nós que

configuram uma tessitura. É um movimento de tecer o tempo: de partilhas, opções

de vida e possibilidades que se entrelaçam. As personagens do filme podem ser

comparadas a tecelãs. A tecelã é autora do tecido de sua vida, da sua história. E

numa certa altura da vida, percebem e expressam como cada nó foi forjado e,

também, como esses nós formaram outros nós e outros tecidos e outras redes.

O corpo, a mão unida ao fuso, o ato de fiar e o fio das imagens de Zefinha

tecendo podem representar símbolos rítmicos do vencimento da própria morte (a

longa duração de sua existência) e de tudo que vem depois. Eles representam

uma concepção cíclica do tempo, de domínio do tempo, de esperança de vencer e

de realização sobre ele, de poder envelhecer contemplando a sua obra.

Os mitos elaborados no passado podem permanecer vivos e atualizados na

modernidade, especialmente num filme que fala de um modo de viver em vias de

desaparecer. A tecelagem artesanal, a benzição para curar as doenças, o gado

com seus polaques dependurados no pescoço sendo conduzidos pelos seus sons

e o som da voz do homem, os objetos religiosos nas paredes das casas, os

acessórios para a montagem em cavalos, a procissão em que os mais jovens

cantavam e rezavam, juntamente com os depoimentos dos homens e mulheres

velhos, com sua capacidade de narrar histórias de experiências vividas, fazem

parte de uma memória coletiva que é raridade na sociedade urbana, dominada

pela indústria cultural.


133
Quadro 01 – Comparação entre “o mundo em vias de desaparecer” e “a

modernidade capitalista”

O mundo em vias de desaparecer A modernidade capitalista

- O cavalo de vigário como seu transporte - A motocicleta de Rosa;


diário; - A bicicleta das crianças;
- A carroça que transporta a água vendida pelo - A antena parabólica que
Sr. Nato; aparecem em boa parte das
- A benzição de Zefinha, Mariquinha, Vermelha casas dos personagens
e Neném Grande; (presença da televisão nas
- A atividade de parteira de Maria Borges; casas);
- A atividade tecelã de Zefinha, os bordados - a energia elétrica presente na
de Lice e os crochês de Maria Borges; zona rural (é possível observar
- A lamparina de Mariquinha acender o os potes de luz nos planos
cachimbo; gerais da comunidade rural;
- O instrumento de produzir fogo do Sr. Assis; - A fotografia digital de
- o fogão a lenha observado na maioria das Mariquinha fumando o
casas dos personagens; cachimbo (revelação
- a procissão realizada na terra de chão por instantânea/impressão).
mulheres e crianças do povoado rural;
- O almanaque do ano de 2004 (folhetim) que
era lido por Leocádio;
- O trabalho quase artesanal do pai de Rosa
para apartar o Gado no pasto.
Fonte: Elaboração própria.

As imagens também mostram o contraponto, a motocicleta de Rosa e a

antena parabólica podem ser símbolos da crise trazida pelo progresso da

sociedade capitalista, a presença da modernidade transformando os modos de

vida daquela comunidade rural. Esse filme apresenta uma resistência aos

procedimentos da sociedade capitalista e, talvez, Eduardo Coutinho, assim como

Walter Benjamim, queira falar através desse filme, dos restos, dos esquecidos,

dos velhos, de memórias outras. É como se o moderno batesse à porta do

arcaico, do velho.

134
Figura 3- 30

Figura 3- 31

135
Figura 3- 32

Figura 3- 33

136
Figura 3- 34

Figura 3- 35

Figura 3- 36
137
Figura 3- 37

Figura 3- 38

Figura 3- 39
138
Figura 3- 40

Figura 3- 41

A partir do próprio título do filme, que também é um elemento alegórico, o

diretor expressa consciência da tessitura estética do tempo e da atmosfera

emocional concretizadas na tela. Essa consciência estética do tempo está no tom

escurecido e na grandeza das árvores, na aspereza das paredes das casas, no

139
aspecto sujo dos objetos, na parede das casas e das cercas, no tom amarelado e

envelhecido dos papéis dos documentos.

Se um filme é um modo de registrar a impressão do tempo, então o filme “O

fim e o princípio” pode apresentar uma expressão pura da estética do tempo, onde

nascimento, amor e morte se entrelaçam o tempo todo na trama da vida narrada

pelos personagens. Onde o fio da vida de cada narrativa é tecido através do

tempo por vivência pessoal, por símbolos e imagens que expressam sinais de

uma idade avançada. Onde corrosão, desgaste natural da matéria são sinais ou

marcas do tempo. Onde o conteúdo das histórias contadas, rememoradas, talvez,

tenha levado o diretor a dar o título que deu ao filme, ou quem sabe, deixou em

aberto a possibilidade dos seus espectadores imaginarem outro título. Quem sabe

esse: “O fim que traz um novo começo”.

A visualização do seu fim veio primeiro: esses homens e mulheres,

personagens velhos, estavam lá, desde os seus nascimentos na primeira metade

do século XX. O filme faz, no sentido inverso, pois, suas memórias são de tempos

anteriores a esses corpos marcados pela duração, um desemaranhado da ponta

inicial do novelo, que é onde começam as histórias contadas de cada

personagem.

O soneto de autoria de Zequinha Amador, que ele declama para Coutinho,

é outro elemento alegórico do tempo que aparece no filme. O título é “As

mulheres”.

Elas são flores do jardim da vida/ velhas moças, loiras ou


morenas/ casadas, viúva, noiva ou pervertida/ são os meus olhos
quais gentis falenas/ a idosa é como a flor emurchecida/ as moças,
140
rosas rubras, sempre amenas/ desabrochando a aurora
enrubescida/ perfumadas iguais as açucenas/ mulher, raio de luz,
felicidade/ menina, moça, ou no fim da idade/ hei de louva-la, seja
ela qualquer/ que elas se lembrem de levar/ no dia da minha
morte, à minha tumba fria/ um cravo, uma saudade, um mal me
quer (Autor: José Amador Ribeiro Dias, Araçás, São João do Rio
do Peixe, Paraíba, Brasil).

Nesse soneto, Zequinha faz uma ode às mulheres. E o que perpassa cada

verso é o processo de continuidade comandado pelo tempo e que deixa suas

marcas no corpo: a menina, a moça, a noiva, a casada, a viúva, a pervertida, a do

fim da idade, a velha, a idosa... O poeta, sujeito da poesia, enquanto observador

das mulheres no tempo, ele também expressa a sua passagem pelo tempo, e

chega ao tempo da sua única certeza de futuro: o dia da sua morte e o corpo

numa tumba fria.

141
4- FABULAÇÕES, MEMÓRIA E TEMPO

Neste capítulo, faço uma reflexão sobre outro elemento alegórico que

demarca a estética temporal no filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho: a

narração e suas temporalidades. Algumas teses e dissertações24 já

desenvolveram a temática da narrativa na questão da oralidade e sua relação com

a memória nesse mesmo filme, então não faz sentido eu ater-me a esta questão

aqui, tampouco é esse meu objetivo.

No filme, percebo as narrativas como uma expressão de tempo e memória

através de três inserções diferentes: pela fabulação, pelas histórias contadas com

as marcas do “ressentimento” (conteúdo da memória, que possui uma estreita

relação com a duração, o tempo) e pela presença de alguns objetos nas cenas

que chamam a atenção pelo seu significado cultural que insere a dimensão

temporal na composição de uma narrativa. Portanto, existe um tipo de relação

alegórica com o tempo na sua apresentação pela narrativa cinematográfica.

24
1- BEZERRA, Claudio Roberto de Araújo. Documentário e performance: modos de a
personagem marcar presença no cinema de Eduardo Coutinho. Campinas, SP, 2009. Tese de
Doutorado. Unicamp. Programa de Pós-Graduação em Multimeios (IA). Campinas, SP, 2009; 2-
COSTA, Bianca Elisa da. Dispositivos interacionais: um estudo sobre os documentários de
Eduardo Coutinho. São Leopoldo, RS, 2012. Dissertação de Mestrado. Universidade do Vale do
Rio dos Sinos. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação. São Leopoldo, RS,
2012; 3- MAGER, Juliana Muylaert. História, memória e testemunho: o método do
documentarista Eduardo Coutinho em Jogo de Cena (2007). Niterói, RJ, 2014. Dissertação de
Mestrado. Universidade Federal Fluminense. Programa de Pós-Graduação em História. Niterói, RJ,
2014; 4- OLIVEIRA FILHO, Fernando H. de Meneses. Eduardo Coutinho: jogo de Memória uma
análise do filme o fim e o princípio. Rio de Janeiro: PUC, 2008. Dissertação de Mestrado. PUC
Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social. Orientadora: Angeluccia
Bernardes Habert. Rio de Janeiro, março de 2008; 5- RODRIGUES, Laécio Ricardo de Aquino. A
primazia da palavra e o refúgio da memória: o cinema de Eduardo Coutinho. Campinas, SP,
2012. Tese de Doutorado. Unicamp. Programa de Pós-Graduação em Multimeios (IA). Campinas,
SP, 2012; 6- SCARELI, Giovana. Santo Forte: a entrevista no cinema de Eduardo Coutinho.
Campinas, SP, 2009. Tese de Doutorado. Unicamp. Programa de Pós-Graduação em Educação.
Orientadora: Cristina Bruzzo. Campinas, SP, 2009.
143
Os conteúdos dos relatos e as imagens enquadradas guardam ou

escondem algo alegorista, que atualiza a imagem, e um texto de consciência

biográfica e histórica do presente. Os relatos apresentam o tempo e a recordação.

Os significados das palavras se originam do presente, continuamente, embora

sejam moldados pelos significados do passado. Talvez, por isso muitos registros

das culturas orais das comunidades mais primitivas sejam feitas pela narrativa

oral, por sua capacidade de transmitir a experiência humana de forma mais

simples e duradoura.

Os relatos e lembranças que aparecem no filme “O fim e o princípio”

apresentam associações pessoais, além de trazer o imaginário coletivo e histórico

da sociedade ocidental, já que não é possível aos espectadores, ao assistirem ao

filme, despirem-se de preconceitos em relação a muitos conteúdos das falas dos

personagens.

A imagem condensa uma síntese do tempo ou de uma época e o relato dos

personagens é um reflexo de suas práticas cotidianas durante suas existências e

inteligências. Cada personagem entrevistado faz uma ressignificação de sua vida

ao narrar suas histórias. Por isso, o filme pode apresentar-se como um

mecanismo de memória. Ele não traz, explicitamente, um fio condutor que

chamaria de “a temática das entrevistas”, no entanto, Eduardo Coutinho

estabeleceu, no seu projeto do filme, que queria ouvir histórias de vida. Nesse

sentido, percebo que revelou sua preocupação em saber como cada entrevistado

fazia o enfrentamento com a questão da finitude da vida. Por isso, entendo porque

está sempre presente na fala do diretor, nas entrevistas, a pergunta sobre o medo

ou não da morte. É assim que o diretor se mostra para mim. Então, imagino uma
144
condução para a questão das recordações e os enquadramentos às imagens-

lembranças.

A história desses homens e mulheres velhos remonta-me a uma memória

coberta de impressões provenientes de repertórios pessoais e coletivos. Nesse

contexto, a ligação entre a arte e a vida se dá no processo de fabulação, que ora

apresento como sendo mais um elemento alegórico do tempo. É nas narrativas

dos personagens que ocorre o reencontro do elo entre a vida e a ficção. “O olhar

imaginário faz do real algo imaginário, ao mesmo tempo em que, por sua vez, se

torna real e torna a nos dar realidade” (DELEUZE, 2007, p. 18). As narrativas dos

personagens exercem uma função fabuladora que falsifica a memória, não tendo

uma característica de volta ou preservação do passado, mas com perspectiva de

futuro para criar novas imagens. A fabulação é a memória do futuro. Os

personagens em seus relatos de verdades ficcionais criam um mundo retratando

uma memória individual.

Os personagens do filme, ao responder às questões de Coutinho, fabulam

sobre o assunto da conversa. O aspecto fabular é uma característica da estética

artística do diretor: documentar a realidade presente no processo de filmar a

realidade e ficcionar o imaginário através do exercício de rememoração. A função

fabuladora possibilita o reencontro entre a vida e a ficção, onde ocorrem as

narrativas simulantes (capta o instante onde o personagem real se põe a

ficcionar). A oposição entre vida e ficção, realidade e imaginário, personagem real

e ficcional não está posta como sendo o procedimento de filmar de Coutinho, ele

procura diluir fronteiras, daí a possibilidade de investigar procedimentos alegóricos

no filme.
145
Eduardo Coutinho é um cineasta que ativa a função fabuladora, quando

busca as intensidades e os afetos, considerando que a fábula é caracterizada pelo

que é inacreditável. Ela explora a necessidade humana de contar histórias. Para

Bergson (1978), as fabulações surgem quando o cineasta promove o ato que

provoca o aparecimento de manifestações que não são atribuídas diretamente

pelo trabalho lógico do espírito, mas de uma virtualidade capaz de criar

“imaginários” resistentes à representação do real.

A fabulação é utilizada por Coutinho como um dispositivo de cinema

importante. Ela facilita ver o encontro entre a arte e a vida (a religação da arte com

a vida). Ele constrói na dimensão da imagem móvel e narrativas ilustrando a

oralidade em alegorias. A fábula e a fala, às vezes, se confundem. A fabulação

incentiva a língua e as pessoas veem como falam.

A temporalidade exige a mediação da narrativa, pois, só existe tempo

pensado, se narrado. A narrativa, nessa perspectiva, torna-se guardiã do tempo.

Se ela assegura a transmissão e conservação do passado, também tem a função

de manipular a sua duração, já que, durante o ato narrativo, o sujeito submete a

fruição do tempo à fala, jogando com a temporalidade, ou seja, articulam suas

experiências passadas, com intrigas e ações reais do presente, o que torna o

narrador um fabulador.

146
4.1- Chico Moisés: representando a representação da vida real – pura

fabulação

As narrativas do personagem Chico Moisés são um bom exemplo de

constituição alegórica do tempo no filme. Nelas, o personagem real se põe a

ficcionar o tempo todo. A função fabuladora não permite ver o passado, mas tem a

capacidade de falsear a memória, podendo substituir ou não as imagens-

lembranças reais, por fábulas.

Francisco Alves Batista, conhecido como Chico Moisés, tem 57 anos,

casou-se aos 25 anos e tem cinco filhos. Esteve na escola muito pouco, teve que

desistir para trabalhar na roça. O personagem Chico é o mais novo dos moradores

de Araçá entrevistado por Coutinho no filme. No entanto, as marcas em forma de

rugas no rosto passam a impressão de ter vivido muito mais que isso.

Chico Moisés é um dos personagens que me chama a atenção. Ele

aparece sendo entrevistado em dois momentos, no meio do filme e na parte final,

quando o cineasta volta à casa de Chico, para se despedir. É na despedida de

Chico que fica explícito que o personagem também chamou a atenção do

entrevistador.

147
Figura 4- 1

Figura 4- 2

Figura 4- 3
148
Figura 4- 4

O personagem Chico Moisés desempenha um papel e consegue de sua

plateia a atenção que ele pede. No caso, a plateia seria o entrevistador e/ou sua

equipe. Ele possui muita expressividade. Sua capacidade de dar impressão

envolve atividades significativas: a expressão que transmite (expressões dadas,

intencional) e a expressão de que emite (expressões emitidas, não intencionais)


25
. As expressões emitidas são teatral e contextual, de natureza não verbal

(expressões que o corpo oferece, através dos gestos).

Durante toda a sua fala, Chico expressa sua capacidade de dar impressão.

Chico Moisés: Ah! Mas será possível que peleja pra me pegar, e
nunca pega, e sempre eu vou continuando sempre... na mesma
linha.
Eduardo Coutinho: Por que será?
Chico Moisés: Eu sei. Porque o sabido é o senhor.
Eduardo Coutinho: Por quê?
Chico Moisés: Porque é.
Eduardo Coutinho: Por quê?

25
Leitura do personagem feita através da reflexão de “A representação do eu na vida cotidiana” de
GOFFMAN (1985).
149
Chico Moisés: Oh! Se eu fosse sabido, eu que andava...
filmando..., e faturando as pessoas. Né? Errei?
Eduardo Coutinho: Não. Mas eu vim procurar o senhor duas
vezes, porque o senhor é sabido também.
Chico Moisés: Eu sei... Acha que eu sou sabido?
Eduardo Coutinho: Acho.
Chico Moisés: Como? Só porque eu tô sendo filmado assim?
Porque...
Eduardo Coutinho: Não. Mesmo sem filmar, se conversasse com
o senhor, eu via que o senhor tinha umas ideias interessantes. O
senhor pensava..., o senhor...
Chico Moisés: Que pena! Né? E o que sei não disse. Só fiz
começar. [PAUSA] O senhor já entendeu tudo!

Chico, de alguma forma, pede ao entrevistador que acredite que o

personagem que está ali, no momento da entrevista, possui os atributos

aparentes, que o papel representado por ele tem consequências implicitamente

pretendidas por ele e que, de fato, as coisas são o que aparentam ser. Ele

aparece como um personagem que crê na sua impressão da realidade que tenta

passar àquelas pessoas, entre as quais ele se encontra.

Chico está preocupado com a impressão que julga causar no entrevistador,

pela sua ação corporal e sua forma de se expressar. Por exemplo, o seu gesto ao

querer mudar de posição diante da câmera, para ser filmado em outro ângulo. É

como se ele agisse dessa forma somente para dar determinada impressão

particular. Isso fica claro no final da entrevista, quando o cineasta admite ter ficado

muito impressionado pela expressão do personagem, embora seja possível que

não exista uma consciência por parte de Chico de criar a impressão

deliberadamente aos seus ouvintes.

Eduardo Coutinho: Oi Chico!


Chico Moisés: Estou aqui. Apareceu alguma coisa a mais de
estranho?
Eduardo Coutinho: O quê? Viemos despedir.
150
Chico Moisés: Já vai?
Eduardo Coutinho: Domingo. Daí pode ser que agente não se
veja. E eu gostei muito da conversa.
Chico Moisés: Ah! Eu tenho um prazer... E tão filmando...
Eduardo Coutinho: Como é que é?
Chico Moisés: E tão me filmando.
Eduardo Coutinho: Porque gostamos da sua conversa.
Chico Moisés: Gostaram?!
Eduardo Coutinho: É. Se não, não voltava.
Chico Moisés: E todo tempo que... Se achou que gostou...
Adonde tiver... Pode me chamar que eu to pronto. Também pra
dizer a mesma coisa.
Eduardo Coutinho: Que bom. Daqui a um ano, quando o filme
tiver pronto, agente volta aqui.
Chico Moisés: Ah não! Daqui a um ano, eu não garanto que to
vivo.
Eduardo Coutinho: Por quê?
Chico Moisés: Porque não.
Eduardo Coutinho: Por quê?
Chico Moisés: Por eu... Porque sinto.
Eduardo Coutinho: Pela saúde?
Chico Moisés: É.
Eduardo Coutinho: Tem que ter fé e se tratar!
Chico Moisés: Fé? Fé? Se fosse por fé eu já tava no caminho do
céu.
- Agora, desse lado é mio, né? Pra gente conversar, né?
Eduardo Coutinho: Por que você diz isso?
Chico Moisés: Porque eu dou uma mudança.
Eduardo Coutinho: O senhor preparou uma mudança. Hein!?
Chico Moisés: Ah sim!
Eduardo Coutinho: O senhor podia ser ator de cinema!
Chico Moisés: Não!
Eduardo Coutinho: O senhor mesmo fez a mudança! Eu nunca vi
isso!
Chico Moisés: Mas mesmo... Mas mesmo que eu fosse... Mas eu
nunca trabalhei. Eu nunca fiz isso. Pra que ora? É o senhor é
quem ta dizendo.
Eduardo Coutinho: O senhor que mudou! Que fez uma mudança!
Chico Moisés: Não. Mas eu fiz uma porque... porque eu to
cansado. Sabe?
Eduardo Coutinho: E fazer uma mudança descansa?
Chico Moisés: É. Ou fica bonito... ou feio.
Eduardo Coutinho: E tem um perfil... Agora tem outro. Não é
isso?
Chico Moisés: Isso.
Eduardo Coutinho: Um dos dois vai segurar.

Segundo Goffman (1985, 26 – 27), o personagem aparenta consciência em

estar representando e acredita na verdade da realidade que encena . E, é claro,

151
parece que o entrevistador e a equipe (seu público, no caso), passam a imagem

de, também, estarem convencidos pelo espetáculo que o ator encena.

Essa é uma leitura que também pode ser feita. O entrevistador pode estar

em dúvida sobre a realidade em questão. No entanto, a graça de prosseguir

acreditando no seu discurso é que torna o personagem singular e realça a beleza

da cena. O personagem, ao falar de si, deixa transparecer que não está

completamente centrado na sua história ou que está criando, na sua imaginação,

um fato para contar ao cineasta.

Eduardo Coutinho: E o que o senhor pedia que não era


atendido?
Chico Moisés: Ah, daí... Era muita coisa, né? E não veio
nenhuma!
Eduardo Coutinho: Ah, diz algumas coisas!
Chico Moisés: Sim, sim. Era mesmo saúde..., que não tem.
Eduardo Coutinho: O principal era saúde...
Chico Moisés: É o principal de tudo.
- Não é ruim uma condição assim?... Quente e frio! É uma pessoa
que é quente e frio.
Eduardo Coutinho: O senhor?
Chico Moisés: Sim. Desse jeito... É quente e frio. Uma hora tá
bem, outra hora tá bom, Outra hora ta agitado. Outra hora ta
quieto!... É... É isso aí que se chama quente e frio. Uma hora bem
agitado e a outra, relaxado.
Eduardo Coutinho: O senhor é assim?
Chico Moisés: É. Verdade.
Eduardo Coutinho: Agorinha mesmo o senhor ta quente ou frio?
Chico Moisés: Eu tou... tô relaxado. Eu tô aqui ó!... Mornão!
Eduardo Coutinho: nem quente, nem frio?
Chico Moisés: Não. É frio mesmo! Aí aprendi com Tomé. Foi aí
donde eu fiquei... Que também por aí eu exerci o mesmo. Fosse
do jeito que Tomé fez... São Tomé errou por uma parte.
Eduardo Coutinho: São Tomé?
Chico Moisés: Sim! Ele errou por uma parte. Porque andou mais
Deus, comeu com Deus e depois... Negou, né?
Eduardo Coutinho: São Tomé negou a Deus?
Chico Moisés: Sim! Aí... Dele dizer assim: só acredito se ver com
olhos e pegar com a mão. Se todos nós fosse assim..., não existia
pecado. Ninguém matava ninguém. Não existia maldade nenhuma.
Porque o mundo tá coberto de mentira hoje... Não tá?
Eduardo Coutinho: Tá!?

152
Chico Moisés: Eu acho que sim. Eu tenho até pena. Você me dá
alguma notícia por aí?
Eduardo Coutinho: O senhor sabe do mundo como a gente. O
que o senhor acha?
Chico Moisés: E quem é o mundo?
Eduardo Coutinho: Não sei.
Chico Moisés: Não somos nós? Não parece, né?
Eduardo Coutinho: O senhor se interessa pelo mundo assim?
Chico Moisés: Olha a sabedoria não vem só pela escrita. Só por
escrever. Isso já vem da mente. É dom! É! Gênio!
Eduardo Coutinho: Isso o que é?
Chico Moisés: É porque o gênio... Gênio é uma coisa interessante
e num tendo o gênio... É o quê? Como é que é? Cadê a forca do
olho? Cadê aquele reloginho pra funcionar? E tudo precisa, é o
gênio.
Eduardo Coutinho: Tudo?
Chico Moisés: Tudo. É que nem a circulação do sangue.
Eduardo Coutinho: Sem gênio,...
Chico Moisés: É. Tem que ter. É porque é que nem... Eu não
queria dizer mais. Porque senão eu vou longe.
Eduardo Coutinho: Vai longe! Vai!
Chico Moisés: Vou! Que eu quero dizer que... A pessoa sabe...
Mas, às vezes, não quer dar uma palavra que sabe de nada. Eu
faço isso. Às vezes perguntam... Não, nunca vi, não! Sei não! Ele
sabe? Sei nada... Um cara abestado. Digo. E lê? Eu digo: sei
nada. Tudo o que sabe não pode se dizer.

Chico deixa transparecer que parte da história que conta é fruto da sua

imaginação. Mas Eduardo Coutinho e sua equipe parecem acreditar na impressão

criada pela representação de Chico. O que não significa que Chico Moisés

quisesse iludir o cineasta por interesse pessoal. Mas ele pode querer enganar pelo

próprio bem do entrevistador. Esse bem seria conseguir realizar a entrevista. O

que acabaria sendo o bem comum da plateia

No caso da entrevista de Chico Moisés, nos dois momentos do filme em

que ele conversa com Coutinho, ele desempenha este papel. É como se ele

usasse uma máscara que significasse a representação que tem de si mesmo ou o

papel que objetiva viver.

153
Ao final da entrevista, o personagem resolve se distanciar da representação

que encenava. Ele se aceita, à medida que o entrevistador declara que gostou

dele, justamente por representar ser o que realmente é, ou não.

Se o tempo é um dos principais elementos constitutivos do cinema, então, a

interconexão entre tempo e narrativa se realiza, em toda a sua essência, no

cinema. As falas dos personagens, ao contar histórias de suas experiências

vividas, constroem narrativas que podem ser vistas como o princípio fabulador de

suas próprias histórias. O que conduz a narrativa do filme são os depoimentos dos

personagens e as imagens de presentificação do espaço/tempo que recriam o

espaço da tela. O cineasta Eduardo Coutinho, em “O fim e o princípio”, dá-nos

uma amostragem da essência: “aquilo que permanece” em relação ao tempo.

4.2- O relato dos ressentimentos: a memória das provas e sofrimentos

suportados – alegoria do sentimento de duração

A temática do ressentimento aparece nesta análise como elemento

alegórico do tempo pelas narrativas. Por meio de um complexo processo de

produção das sensibilidades, essa temática se relaciona, por sua vez, com a

história, a memória, a identidade, a alteridade e a temporalidade.

154
Figura 4- 5

Figura 4- 6

155
Figura 4- 7

Figura 4- 8

156
O ressentimento é o tema de reflexão apontado no processo de

rememoração da personagem de Tia Dôra. A memória das provas e sofrimentos

suportados por ela em sua fase de jovem mãe. É um processo de memória

individual. A experiência da humilhação e, igualmente, a experiência do medo, são

os primeiros causadores do ressentimento. A humilhação, proveniente não apenas

de uma inferioridade, mas do amor-próprio ferido, experiência da negação de si e

da autoestima que pode suscitar o desejo de vingança e conduzir ao ódio.

Eduardo Coutinho, no seu cinema peculiar26 e no seu processo de

entrevista, proporciona o ato de ouvir os ecos do ressentimento, dando-lhes direito

à expressão. O cineasta, de certa forma, retraça a história particular de alguns

homens e mulheres velhas do sertão nordestino, através de narrativas sobre os

usos do cotidiano que atravessaram suas vidas desde a juventude. As narrativas,

muitas vezes, tratam da memória dos ressentimentos, dos sofrimentos suportados

e não esquecidos.

Eduardo Coutinho: Quando seu marido morreu, a Senhora


pensou em casar de novo? Ou...?
Tia Dôra: Não! Encontrei casamento, mas nunca quis não. Não.
Meu coração se trancou-se até o dia de juiz. Não sou pra
casamento. Casamento não me faltou. Eu fui quem nunca quis.
Deus me defenda! Um dia chegou um... bles... um abestaiado lá.
No terreiro... Eu tava no terreiro: Bom dia Dorinha! Bom dia! Meu
Deus! Eu vi aquele homem lá... um desbandeirado. Aí eu fui pra

26
Pensando no filme como um "texto", um discurso, é possível pensar o filme como "dialógicos
porque resultam do embate de muitas vozes sociais; podem, no entanto, produzir efeitos de
polifonia, quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar, ou de monofonia, quando o
diálogo é mascarado e uma voz, apenas, faz-se ouvir." (BARROS, 1994, p.6). A "voz" de Coutinho
se sobressai, enquanto filme, porque é ele quem detém todo material e edita, monta, produz da
forma como quer. No entanto, também é forte a "voz" dos personagens, porque não se sobrepõe a
elas uma outra "voz" especializada para explicar o que dizem, desqualificando suas histórias ou
teorias. Neste sentido, é possível pensar em polifonia[7], no trabalho de Eduardo Coutinho
(SCARELI, 2009). Disponível em: http://alb.com.br/arquivo-
morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/sem05/COLE_963.pdf, Acessado em 26 dez. de
2014.
157
casa. A casa assim... Entrei e saí pro terreiro. Entrei pra cá! Ele
entrou-se, sentou-se.
- Eu vim aqui Dorinha foi preguntar ocê se ocê quer casar cumigo.
- Eu, meu filho? Quero não.
- Por quê? Porque a senhora pensa que se eu casá com a
senhora, eu vou maltratar suas fias? Vou dar em suas fias? Vou
botar as suas fia na roça?
Eu disse: “Não é isso não. Eu não quero casar nem com você e
nem com ninguém. Sobre a casamento, eu amarrei meu cocó. Só
desmanchando no dia do juízo”.
Rosa: Deu trabalho pra criar os filhos depois que ficou viúva?
Tia Dôra: Deu. Fui pra roça. Que nunca eu num tinha pai. A minha
mãe era veinha. Viúva também. Meus irmão era uns casado e os
outros já tinha murrido. Eu num tinha pur quem chamar. Eu num
tinha filho homem, num tinha irmão, num tinha pai, nem marido.
Não me assujeitei a ... a morrer de fome mais minhas fia não!
Graças a Deus não! Fui foi pra roça trabaiá. Levava a mais nova
no “quarto”... uma bacia grande que era deu levá roupa pro rio pra
lavá... cheia com panela, prato, lata de café... Passava um dia todo
na roça... trabaiando. Elas dibaixo do pé de pau, juazeiro. E eu
trabaiando em roda, do pé de pau, a panela no fogo, cozinhando.
Quando era de ora de almoço... de almoçar... ia almoçar... Ia
trabaiá... E elas aí. Quando o juazeiro já tava longe du trabaio, eu
me mudava pro outro pé de pau. E assim fiquei, eu criei elas. Num
foi criada pro causa de ciúmes ou de nada... De dificuldade, que
desanimei. Eu criei elas como eu fui criada.
- Contam a vocês que eu abandonei elas? Graças a Deus não!

Segundo Strawson27, há ocasiões para ressentimento, como “aquelas

situações em que alguém é ofendido ou injuriado pela ação do outro”. Portanto,

ressentimento pode ser interpretado como a raiva ou a irritação perante uma

desfeita. Mas não se trata de uma raiva expressa em minutos por um indivíduo. A

raiva pode ter efeito prolongado, de longo tempo, mas sua duração não faz parte

de sua definição. A raiva é desencadeada por uma afronta pessoal à dignidade ou

à honra. É inteiramente pessoal e jamais dirigida a um grupo. Já o ressentimento

está associado ao conceito de tempo, a um sentimento de duração.

Gostaria de acrescentar à descrição de Strawson a ideia de que


ressentimento é geralmente um sentimento duradouro, não fugaz:

27
Apud Konstan, 2004, p. 61.
158
o ressentimento é cultivado e acalentado. Não se descreveria,
penso eu, uma breve explosão de raiva como ressentimento
(kONSTAN, 2004, p. 61).

É certo que o indivíduo não esquece os fatos dos quais foi ator ou vítima.

No entanto, quando se trata das lembranças dos ressentimentos, é bem provável

que aconteça. A tentação do esquecimento dos ressentimentos é também uma

estratégia de apaziguamento.

Figura 4- 9

159
Figura 4- 10

Figura 4- 11

160
Figura 4- 12

Figura 4- 13

161
Figura 4- 14

[Ressentimento é] uma atitude mental duradoura, causada pela


repressão sistemática de certas emoções e afetos que são
componentes normais da natureza humana. A repressão dessas
emoções leva a uma tendência constante de se permitir atribuir
valores incorretos e juízos de valor correspondentes. As emoções
e afetos primordialmente referidos são vingança, ódio, malicia
inveja, o impulso a diminuir e desprezar (SCHELER, 1998, p. 29,
apud KONSTAN, 2004, p. 62).

A questão do ressentimento em relação aos casamentos perpassa pela

memória de alguns personagens do sexo feminino entrevistados, com exceção de

Rita, ainda casada e aparentemente feliz, Antônia, recém-casada com Vigário, e

Maria Borges, que declara ter sido muito feliz no casamento. Dona Mariquinha,

que diz que o casamento foi horrível ficou viúva e não se casou mais.

Eduardo Coutinho: E a Senhora casou?


D. MARIQUINHA: Uma vez.
Eduardo Coutinho: Uma vez? E como é que foi o casamento?

162
D. MARIQUINHA: Faz 45 anos que sou viúva.
Eduardo Coutinho: Como é que foi o casamento?
D. MARIQUINHA: O casamento foi muito hurrível!
Eduardo Coutinho: Muito...?
D. MARIQUINHA: O casamento foi horríve. (fala alto e brava)
Eduardo Coutinho: Por quê?
D. MARIQUINHA: - Porque ele era um cachaceiro e judiava com
eu.
Eduardo Coutinho: E durou quanto tempo o casamento?
D. MARIQUINHA: Aí! ... Uns 17 anos.
Eduardo Coutinho: Judiava?
D. MARIQUINHA: Judiava muito. Aí ele bebeu uma cachaça e foi...
Passou navalha e mataram ele!... (pausa longa)
Eduardo Coutinho: E quantos filhos a senhora teve com ele?
D. MARIQUINHA: Hein?
Eduardo Coutinho: Quantos filhos...?
D. MARIQUINHA: Quatorze.
Eduardo Coutinho: Quantos vingaram?
D. MARIQUINHA: Hein?
Eduardo Coutinho: Quantos criaram?
D. MARIQUINHA: Dois. E... E foi felicidade não ter se criado.
Eduardo Coutinho: Por quê?
D. MARIQUINHA: Num foi muito bem... Um que eu tenho que eu
criei tá em Porto Velho, Em Rondônia, Amazônia... Nesse mundo.
Só vejo ele de cinco em cinco anos.

O filme traz imagens de mulheres fortes, que passaram por toda sorte de

dificuldades e sofrimentos, como ter que conviver com homens maus e

alcoólatras, ou criar os filhos sozinha, por ter enviuvado muito cedo. No caso

dessas mulheres velhas do sertão, elas sobreviveram aos sofrimentos e ao tempo.

São mulheres que aparentam “fortaleza”. Para elas, o casamento só podia

representar, naquele momento de suas vidas, a perpetuação das dificuldades.

Diferentemente da época em que eram solteiras, em que não tinham a experiência

vivida pelo casamento e que ainda eram esperançosas de um casamento feliz. E

também, como todas as moças e adolescentes da época (e hoje ainda), eram

fortemente influenciadas pelas instituições sociais a se casarem muito novas e

terem filhos.

163
No caso dos relatos de Tia Dôra, houve um deslocamento da representação

que a mesma teve em relação à situação de casamento. Este deslocamento pode

ir do ódio ao desprezo. Isso poderia explicar o desprezo que ela passou a ter pelo

casamento, segundo a sua narrativa de vida.

Pela narrativa, essas mulheres velhas, expressam que não conseguiram

romper, através do tempo, com os sentimentos de impotência, não conseguiram

se libertarem de suas ruminações rancorosas e se fazer mulheres livres, capazes

de se casarem de novo ou não. O que reforça, na sua autoestima e orgulho

pessoal, a difamação do casamento e certo ceticismo em relação ao casar-se de

novo. O ressentimento é exprimido como recalque do sofrimento de outrora.

“O ressentimento remete a um tempo repetitivo, gerador de fantasmas e

pensamentos hostis, vividos na impotência” (ANSART-DOURLEN, 2004 p. 351).

Ele surge da impossibilidade do sujeito de esquecer as injustiças sofridas. A

revivência contínua ou ruminação do sentimento se diferencia da pura lembrança

intelectual do sentimento e do contexto situacional de sua origem. O ato de

relembrar é um ressentimento. Nesse sentido, emancipar-se da memória

patológica do ressentimento, assim como o fato de conceder seu perdão, libera do

“fardo que o passado faz pesar sobre o futuro”, mas não implica o esquecimento

total (ZAWADZKI, 2004, p. 372).

A decisão dessas mulheres, de não se casarem novamente quando se

tornaram viúvas ainda jovens, pode ter sido motivada não apenas pela vontade de

defender os seus interesses unicamente pessoais ou materiais, mas por uma

vontade de afirmar sua identidade e por uma reação de orgulho. Uma reação

capaz de liberar estas mulheres do sentimento de impotência, do ressentimento


164
procedente do sentimento de serem tratadas como seres de natureza inferior,

quando, na verdade, se sentem fortes e resistentes.

As narrativas dessas mulheres apresentam-me imagens de um trabalho

feminino que preserva e mantém a vida e, quando remonto às imagens iniciais de

Zefinha tecendo ou do interesse de Coutinho pelos bordados de Lice, ponho-me a

pensar na ideia da atividade da tecelã como uma expressão espontânea dos

desejos, lembranças, brincadeiras e lamentações na vida das mulheres em

diversas culturas.

A imagem da narrativa dessas mulheres no filme “O fim e o princípio”

lembra o texto28 de Marina Colassanti, ”A moça tecelã”, com o qual encerro a

reflexão sobre a narrativa das mulheres, personagens fortes e sobreviventes no

tempo, do cineasta Eduardo Coutinho.

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite.
E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os
fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que
nunca acabava. Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça
colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo.
Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos
longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.
Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os
pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a
acalmar a natureza. Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os
grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias. Nada lhe
faltava.
Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava
na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que
entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.
Tecer era tudo o que fazia.
Tecer era tudo o que queria fazer.

28
Peço licença par citá-lo sem a devida adequação à norma da ABNT (NBR 10520).
165
Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela
primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado. Não esperou o dia
seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear
no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi
aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado.
Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando
bateram à porta. Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu
de pluma, e foi entrando em sua vida. Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça
pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade. E feliz foi,
durante algum tempo.
Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o
poder do tear, em nada mais pensou, a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
– Uma casa melhor é necessária – disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram
dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e
pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. – Para quê ter casa, se podemos ter
palácio? – perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra
com arremates em prata. Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos
e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo
para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e
entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu
tear o mais alto quarto da mais alta torre. – É para que ninguém saiba do tapete – ele
disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: – Faltam as estrebarias. E não se
esqueça dos cavalos! Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o
palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados.
Tecer era tudo o que fazia.
Tecer era tudo o que queria fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o
palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar
sozinha de novo. Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando
com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre,
sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e
jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os
cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins.
Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente
se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela. A noite acabava
quando o marido estranhando a cama dura acordou, e, espantado, olhou em volta. Não
teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus
pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o
peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi
passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do
horizonte.
(Texto extraído de: COLASSANTI, Marina. Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento.
Rio de Janeiro: Global Editora, 2000).
166
4.3- Dimensão temporal dos objetos como alegoria

Algumas imagens são marcantes em determinadas cenas do filme em

questão e permeiam os personagens na hora das entrevistas. Estas imagens dão

significado à narrativa. Elas estão ali presente, certamente, pela importância que o

cineasta dá a esses objetos nas filmagens e depois no processo de edição.

Talvez coubesse aqui fazer uma reflexão mais profunda sobre a teoria da

“cultura material”, mas como pode desviar o foco da leitura, limitei-me a trabalhar

apenas os significados desses objetos a partir de leituras e reflexões da obra dos

seguintes autores: REDE (1996), MENESES (1998), BORGES (2009) e BARBUY

(1995).

A dimensão cultural desses objetos no filme apresenta mais elementos

alegóricos explorados pelo cineasta ao editar o filme. Os objetos fazem parte do

espaço individual de cada personagem e transmite significados à narrativa.

Os retratos ou figuras de santos dependurados nas paredes das casas de

alguns entrevistados, são objetos religiosos que fazem parte do seu cotidiano.

Eles estão ali em suas casas, ao fundo das imagens do entrevistado, às vezes

desfocado no plano, ou em completa nitidez. Estas imagens apresentam a fé dos

personagens e certa submissão do mesmo à religião.

Na sociedade moderna, esses objetos já não constitui presença tão forte

nas casas dos indivíduos, como em uma sociedade em vias de desaparecimento

onde os mesmos eram muito valorizados. Os objetos conservam um passado, que

certamente os mais velhos objetivam conservar, e isso são perpassados em todas


167
as falas dos entrevistados. Talvez um exemplo dessa continuidade sejam as

procissões que as gerações mais novas praticam em Araçás. A procissão é uma

narrativa que certamente as gerações mais novas já herdaram ou aprenderam

com a experiência dos “narradores sedentários” benjaminianos.

Outro objeto que aparece de forma significativa em algumas cenas é o

cavalo do Vigário e, junto com ele todos os acessórios de montagem na parede da

sala. O cavalo foi e ainda é um meio de condução muito valorizado pela sociedade

que não vive a modernidade. Ele marca uma narrativa pela “distância”, mas

também pela “espera”. É um instrumento de uso masculino, mas o tempo de

espera se relaciona à mulher. Quando Coutinho vai se despedir ele encontra

Antônia a espera de Vigário que, segundo ela, não tem hora e nem dia pra chegar.

A carroça é outro objeto que aparece na cena de Nato comercializando

água. Ela também é significativa numa narrativa e apresenta “passagem”;

passagem do dia para a noite, das estações ou passagem para uma vida

próspera. Esse significado está relacionado com a própria vida rememorada por

Nato. A carroça, assim como o cavalo mostra o cotidiano de indivíduos do sexo

masculino.

O interesse de Coutinho pelos bordados de Lice e as cenas de Zefinha

fiando deixa claro a relação do tempo com a temática do “tecer”, como já falamos

no capítulo três. Nesse caso, o objeto central que aparece com mais

representatividade no filme é o “fuso”, que tem a mesma função da “roca”. A roca

é o objeto utilizado pela personagem mais velha do filme. Nas cenas de Zefinha

tecendo, ela aparece como um elemento de constituição alegórica do tempo no

filme. Ela representa por si só o fenômeno da duração e expressa o passado.


168
Quando um autor quer transmitir a ideia de continuidade, de transmissão de

sentidos para as gerações femininas, às vezes, faz uso da “roca”. Por isso, ela

pode ser considerada um objeto singular na narrativa. A sua função está

relacionada à produção de fio, da costura de roupas e representa o cotidiano do

trabalho, só que do trabalho feminino. As mulheres trabalham para prover a sua

prole. Elas assumem os filhos e a própria viuvez para cuidar da sua existência. As

gerações posteriores herdarão, além do objeto, a coragem e a resignação - traços

marcantes nas mulheres do filme. A “roca” é de outro tempo e representa a

continuidade.

Enfim, os objetos aqui refletidos têm a funcionalidade do tempo, do espaço

e de formas diferentes. Eles são transmitidos para as novas vidas. Segundo

Meneses (1998), o objeto que habita o meio do personagem transmite significados

à narrativa, pressupondo que o objeto vai além da sua materialidade. Portanto, os

objetos comunicam e contam histórias. Um objeto agrega diferentes sentidos. Na

medida em que muda os personagens, o contexto que estes viveram e o tempo

muda também o seu sentido.

169
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cinema de Eduardo Coutinho é caracterizado pela auto reflexividade,

descontinuidade e diversidade de materiais e técnicas. Uma tradição que afirma a

intervenção explícita na realização de um documentário, porque sabe que

qualquer realidade sofre uma alteração a partir do momento em que uma câmera

se coloca diante dela e que o esforço de filmá-la tal e qual é inteiramente em vão.

É um estilo próprio que surge da interação entre diretor com seu o seu

personagem.

Os elementos ficcionais, no documentário coutiniano, não aparecem

gratuitamente. Segundo Coutinho (apud BRAGANÇA, 2008, p. 76), “Você só

chega à verdade pelo imaginário, e nem é um problema de se chegar à verdade,

são versões da verdade”. Ele diz que, no real, as histórias podem ser mais ricas

do que a ficção pode inventar. Por isso, o mais importante é explorar a relação

entre os dois lados da câmera e contar histórias. Do relato de uma pessoa, muito

é inventado, mas ela se projeta na representação de um papel que não viveu mas

que foi construído pela sua memória. Nesse caso o real e o imaginário se unem no

processo fabular.

As filmagens são feitas em espaço delimitado, mas o plano geral pode dizer

muito sobre o Brasil. É um cinema que aposta nas possibilidades de narração dos

seus próprios personagens. As conversas retratam uma linguagem comum, do

cotidiano. O conteúdo de suas falas faz parte da experiência do cotidiano vivido.

171
Enquanto a câmera passeia pelas marcas dos rostos, as falas dos homens

e mulheres velhos vão se formulando em histórias e concepções de mundo. São

muitas as imaginações que podem perpassar ou não pela mente de qualquer

espectador e que, de alguma forma, fazem uma provocação ao desvelamento de

muitos conceitos que estão colocados como universais na perspectiva de uma

cultura acadêmica.

Nesse sentido, o filme de Coutinho desempenha papel importante, pois

apresenta, de alguma forma, a filosofia espontânea das multidões: o senso

comum. Ele verdadeiramente traduz em imagem algo vivo que se mistura com o

rural nordestino.

A câmera desempenha o papel de protagonista. Sua presença provoca um

comportamento inédito nas pessoas que estão sendo filmadas: de aceitar ou

rejeitar o processo de filmagem.

Talvez seja possível dizer que seu cinema se serve do mesmo


olho direto e simples do cinematógrafo, acrescido de uma
mobilidade que não existia nas câmeras do tempo dos Lumière, e
guiado pela decisão de fazer a cena girar a partir dele, em torno
dele. Age, assim, para realizar os filmes, principalmente no
conflito, harmonia, entendimento, desentendimento do instante em
que o olho da câmera se encontra com o da pessoa diante dele
(AVELLAR, 1994, s. p.).

A realidade que o cineasta (o homem com a câmera) vê e ouve é o homem

e a mulher velha e as suas histórias de vida (velhos nordestinos do sítio de

Araçás, São João do Rio do Peixe, Paraíba, Brasil). O filme “O fim e o principio” é

o encontro da câmera com a gente velha do sertão nordestino. Nos relatos dos

personagens, é possível observar a cultura de uma geração, talvez até um resto

172
de saberes inúteis à modernidade tecnológica. Mesmo sendo marginalizada,

carrega, de forma simbólica, a memória de uma cotidianidade que pode ser

convertida em espaço de criação muda e coletiva: a resistência à dificuldade pela

sobrevivência, numa realidade difícil, e ao envelhecimento.

Há uma consciência feminina no documentário, um conhecimento possuído

e transmitido. No filme, em geral, pelos relatos de suas práticas, as mulheres

desempenham papel importante na transmissão da memória popular. Portanto,

têm papel fundamental na constituição da consciência das gerações mais jovens.

Vista a partir da racionalidade ilustrada, essa cultura parece conformada.

No entanto, esta perspectiva não consegue entender o significado histórico

intrínseco no cenário (o sertão nordestino), nos personagens (os homens e as

mulheres velhos) e nos seus relatos. O referido filme desafia quem o assiste a

desvendar o seu sentido enigmático.

A partir do momento que assisti a esse filme, notei algo diferente, que me

chamou a atenção. Talvez as aulas sobre pesquisa e imagens oferecidas pela

disciplina “Pesquisa em Imagens”, ministrada pelo professor Milton Almeida, no

ano de 2010, as aulas de “Teoria Social e Pesquisa Educacional”, ministradas

pelas professoras Patrízia Piozzi e Débora Mazza, em que aprendi entender a

“pedagogia” de um texto literário ou filosófico, as aulas sobre “Cultura, Educação e

Imagem”, ministradas pelos professores Antonio Carlos Amorim e Cristina Bruzzo,

em que aprendi a interpretar um documentário e a entender a imagem-tempo

deleuziana – tudo isso me levou a perceber uma aparente ordem e desordem

estrutural no filme, proporcionando uma leitura de tempos e memorizações. Esse

olhar singular, que é de perceber o tempo numa perspectiva particular (subjetiva),


173
um tempo intocável e sem definições generalizantes, um tempo que não pode ser

apreendido por um conceito, mas que faz parte da existência humana, foi

significativo para eu desenvolver este estudo.

O trabalho não foi fácil, mas instigada pelo desafio que o professor Milton

Almeida me interpelou na entrevista de seleção desse Curso de Doutorado, a

saber, “Você estaria disposta a desenvolver uma pesquisa que ajude a você

mesma e não aos outros?”, eu disse sim. Ao finalizar esse estudo, estou apenas

recomeçando. Sinto que este estudo é apenas o fim (do Doutorado e tese) e o

princípio de estudos que foram motivados a partir desta experiência.

Quando iniciei esta análise, percebi que o que me instigava não estava

claro no filme. Segundo a premissa sempre lembrada pela minha orientadora de

que o filme me levaria aos teóricos, busquei o conceito de alegoria em Benjamin

para desvendar esse enigma pessoal. O próprio título do filme foi a motivação

inicial para desenvolver a leitura do tempo. É claro que os estudos de Deleuze

sobre cinema me arrebataram desde o início. A partir de então, fui conduzida a

uma leitura alegórica na análise estética do filme.

Mas como realizar uma interpretação alegórica? Para desenvolver esta

tarefa, tive que trilhar quatro caminhos teóricos difíceis (em si mesmos e em

relação uns com os outros): a linguagem cinematográfica, os estudos de cinema

de Deleuze, a alegoria em Benjamin e a estética do cineasta Eduardo Coutinho. A

linguagem cinematográfica foi a mais difícil, pois não tinha nenhuma formação

básica sobre a mesma.

174
Procurei identificar a relação estreita entre cinema, tempo e memória,

pensando a partir do conceito de imagem-tempo. Todas as imagens “atuais” –

imagens mentais, concretas, rurais, cinematográficas – produzem imagens

“virtuais”. As imagens atuais têm naturezas distintas, mas sua dimensão “virtual”

possui uma natureza comum (o “virtual” é potência pura), e independe da sua

materialidade de imagem “atual” correspondente. O “virtual” significa potência e

não se opõe ao real, tem realidade própria e latente, tanto na tela do cinema

(ambientes digitais), quanto no ambiente concreto (local captado pela câmera).

Eduardo Coutinho une imagem rural, imagem de memórias e narrativas, em

imagens cinematográficas. Ele traduz a noção de espaço rural em espaço

imagético em vias de desaparecer para o homem da cidade, muitas vezes, esse

espaço só pode existir como espaço digital, não como espaço concreto, comum

para o homem contemporâneo. Entretanto, da maneira como Coutinho o faz,

provoca a nossa imaginação para algo enigmático que está além do que é visto.

O diretor transforma tudo em imagem-tempo: motiva uma procura em cada

cena de algo que permita saber qual o seu sentido; torna indiscernível a diferença

entre fabulação e realidade concreta, quando uma espelha-se na outra. A

rememoração dos personagens e a imagem-tempo das cenas propõem um

paradoxo temporal, inserindo um presente dentro de outro, dilatando, assim, níveis

de rememoração como passados. Tudo isso faz do filme uma fabulação sobre o

tempo e rompe as fronteiras entre imaginário e concreto, isto é, entre o espaço-

tempo do cinema, e o espaço do sertão rural, quase arcaico.

As narrativas dos homens e mulheres velhos, a atualização do mito da

tecelã, as imagens dos corpos e a presença de objetos com significação cultural,


175
as fabulações e o ressentimento nos processos de rememoração, a figura do

“narrador” sedentário proposto por Benjamin e o seu processo de compartilhar

experiência ao contar histórias, os intertísticos e movimentos aberrantes são

pensados como imagem-tempo. Na dimensão “atual” eles estão diferentes, mas

são coexistentes na dimensão “virtual”. A interpretação desses componentes

resultou na constatação da presença do elemento alegórico do tempo, no filme.

O diretor, na edição, dá intensidades aos fragmentos da memória de cada

personagem - capta a intensidade e a progressão da história de vida, trazendo a

dimensão do tempo no cinema, considerando que o mesmo, inevitavelmente,

remonta este tempo, na edição. Coutinho adiciona elementos estéticos que dão a

sensação de uma progressão e intensidade nas narrativas e nas imagens.

O filme como motivador do pensamento, para mim, ensina e leva a pensar.

Talvez uma forma de afirmar a potência da arte como forma de pensar o mundo e

reinventar outras relações e sensibilidades com o outro.

A arte revela a eternidade, não no sentido de uma ausência de


tempo, mas como um tempo original absoluto, complicado, tempo
das essências, que não tem, diferentemente de Platão, a
estabilidade e a identidade garantidas. É esse o “tempo
redescoberto” através dos signos da arte, “tempo primordial, que
se opõe ao tempo desdobrado e desenvolvido, isto é, ao tempo
sucessivo que passa, ao tempo em geral que se perde”
(PELBART, 1998, p. 11).

Uma obra de arte pode constituir e reconstituir o começo de um mundo, um

princípio de individuação que dá origem a um indivíduo, a um mundo específico,

ou seja, para Pelbart (1998), a essência da arte nos revela um tempo original,

idêntico à eternidade. Para Deleuze (2007), os neoplatônicos já defendiam que

176
eternidade não é o prolongamento da existência sem limites, mas o estado

complicado do próprio tempo.

E essa prática é capaz de proporcionar um olhar diferente, talvez uma

experiência dialética sobre o seu eu, sobre o seu saber. E aí a memória opera um

processo de conhecimento. Nesse sentido, as narrativas atuam no futuro de quem

as ouve no presente (quem entrevista e faz o filme é também o expectador do

filme), mas, principalmente, de quem as falas, já que, com certeza, aprendeu

muito com esse ato de rememorar.

As imagens e narrativas dos homens e mulheres velhos do sertão,

pensadas numa perspectiva da estética, é que coloquei em evidência, pois

acredito que o filme possibilita uma educação política e visual, tornando-se um

elemento que pode provocar nos expectadores a possibilidade de construir novos

pensamentos, resultantes do processo cognitivo inevitável desencadeado por esta

perspectiva.

Acredito que esta análise parte de uma imaginação estética que delineia as

potencialidades que libertam a imaginação que produz e cria. A arte transcende as

determinações espaços-temporais e vence o próprio tempo e até a morte.

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Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho. Brasil, 1984.

O fio da memória, de Eduardo Coutinho. Brasil, 1991.

Santo forte, de Eduardo Coutinho. Brasil, 1999.

187
ANEXOS

TRANSCRIÇÕES DAS FALAS DOS PERSONAGENS NAS


ENTREVISTAS DO FILME “O FIM E O PRINCIPIO” (Eduardo Coutinho, 2005)

1) DONA MARIQUINHA (13:0029)

[Rosa bate palmas]

ROSA: Mariquinha! ... Ou!... Ou! Como é que tá? A benção Mariquinha?

D. MARIQUINHA: Deus abençoe!

ROSA: A senhora tá doente?

D. MARIQUINHA: Tô! Faz é dias que eu tô doente!

ROSA: Eu queria conversar com a senhora um pouquinho?

D. MARIQUINHA: Hummm.

ROSA: A senhora pode conversar?

D. MARIQUINHA: Posso! Eu posso demais!

Eduardo Coutinho: A Senhora tá bem?

D. MARIQUINHA: Como vai o Senhor?

Eduardo Coutinho: A Senhora tá boa?

ROSA: Olha Mariquinha! Esse aqui é o Seu Eduardo Coutinho. Esse


pessoal que trabalha com ele. É o Jaque e o Bruno. E tem umas meninas ali e uns
rapazes e que, também trabalham com ele. Ele trabalha com cinema. E daí, eles
vieram fazer um filme aqui no Araçás... Conhecendo um pouco da história do povo

29
A entrevista começa aos 13 minutos de filme.

189
do sertão. E agente veio na casa da Senhora porque a Senhora é uma figura
importante na comunidade.

D. MARIQUINHA: É mesmo minha filha. Uma obra dessa... Uma velha


caduca como eu!

ROSA: A Senhora senta aqui?

D. MARIQUINHA: Eu sento aqui minha filha... Porque eu estou doente, né?


Aí eu boto cadeira aí.

D. MARIQUINHA: O meu nome é Maria Ambrosina Danta. Mas o povo


chama eu Mariquinha.

Eduardo Coutinho: Ah é! A senhora gosta mais quando chama Mariquinha


ou quando chama o nome verdadeiro?

D. MARIQUINHA: Éh! Mas Deus agradece... É Maria! Apelido não vale


nada

Eduardo Coutinho: Ah é?

D. MARIQUINHA: Se rezar num peça pelo apelido... Não serviu aquela


reza.

Eduardo Coutinho: E a Senhora? Reza de tudo? Espinhela caída...

D. MARIQUINHA: - Peito aberto, dor de cabeça, dor de dente, unhado,


quebrante, vento caído, triação... mal vermeio, tuma sangue de palavra. Espinhela
caída é o cabra rezar aqui ó... Cuma trouxa de cinza... e alevanta os braços aqui
três vezes.... E puxa aqui nas oreia... (bate palma).

Eduardo Coutinho: E as reza? Qual é as palavras?

D. MARIQUINHA: Não! Não digo não! Ninguém!... Ninguém ensina não,


que..., que não serve.

Eduardo Coutinho: Ah! Sempre deu certo?

D. MARIQUINHA: Deu! Toda vida! E tudo isso só vem pra minha casa.

Eduardo Coutinho: A Senhora cobra?

190
D. MARIQUINHA: Heim?

Eduardo Coutinho: A Senhora cobra dinheiro?

D. MARIQUINHA: - Nunca recebi nada. Que reza não se vende. Vende?!


(com dúvida, pergunta ao redor hum!!!)

ROSA: Heim Mariquinha! A Senhora gostava né? De tomá umas


quentinha?

D. MARIQUINHA: Muita!

ROSA: Era bom! Né?

D. MARIQUINHA: Mas é bom ainda.

Eduardo Coutinho: A Senhora ainda bebe?

D. MARIQUINHA: Bebo.

Eduardo Coutinho: Como é que é? Como é?

D. MARIQUINHA: No dia que eu... No dia que eu quero beber eu bebo...

ROSA: Ela gosta de umas biritadas.

D. MARIQUINHA: Por que é que eu deixo de beber? ... Só quando eu


quiser!

ROSA: É! É verdade!

D. MARIQUINHA: Não peço a ninguém. O dinheiro é meu.

Eduardo Coutinho: E a Senhora casou?

D. MARIQUINHA: Uma vez.

Eduardo Coutinho: Uma vez? E como é que foi o casamento?

D. MARIQUINHA: Faz 45 anos que sou viúva.

Eduardo Coutinho: Como é que foi o casamento?

D. MARIQUINHA: O casamento foi muito hurrível!

Eduardo Coutinho: Muito...?

D. MARIQUINHA: O casamento foi horríve. (fala alto e brava)


191
Eduardo Coutinho: Por quê?

D. MARIQUINHA: - Porque ele era um cachaceiro e judiava com eu.

Eduardo Coutinho: E durou quanto tempo o casamento?

D. MARIQUINHA: Aí! ... Uns 17 anos.

Eduardo Coutinho: Judiava?

D. MARIQUINHA: Judiava muito. Aí ele bebeu uma cachaça e foi... Passou


navalha e mataram ele!... (pausa longa)

Eduardo Coutinho: E quantos filhos a senhora teve com ele?

D. MARIQUINHA: Hein?

Eduardo Coutinho: Quantos filhos...?

D. MARIQUINHA: quatorze.

Eduardo Coutinho: Quantos vingaram?

D. MARIQUINHA: Hein?

Eduardo Coutinho: Quantos criaram?

D. MARIQUINHA: Dois, e... E foi felicidade não ter se criado.

Eduardo Coutinho: Por quê?

D. MARIQUINHA: Num foi muito bem... Um que eu tenho que eu criei tá em


Porto Velho, Em Rondônia, Amazônia... Nesse mundo. Só vejo ele de 5 em 5
anos.

Eduardo Coutinho: Ele lembra da Senhora?

D. MARIQUINHA: Se lembra!

Eduardo Coutinho: Escreve?

ROSA: telefona!

Eduardo Coutinho: Telefona?

D. MARIQUINHA: É.

Eduardo Coutinho: A Senhora sente falta dele?


192
D. MARIQUINHA: Saudade muita.

Eduardo Coutinho: Está muito longe, né?

D. MARIQUINHA: Mas tá bom.

Eduardo Coutinho: E o outro filho?

D. MARIQUINHA: A outra mora ali, naquela casa ali.

- Nós quando nasce, Jesus escreve nossos dias, de nois viver... E a hora
de nóis morrer.

Eduardo Coutinho: Desde que nasce?

D. MARIQUINHA: Sim senhor!

Eduardo Coutinho: Então... A Senhora não se preocupa com a morte.


Preocupa? Pensa nisso?

D. MARIQUINHA: Eu tenho muito medo, o senhor não tem não?

Eduardo Coutinho: Tenho!

D. MARIQUINHA: Ave Maria! É o jeito. Néh? Hum! (respira fundo e sorri


muito) nóis num tem o que fazer né meu filho? Quando chegar a hora Adeus!

- É como essas luz... Nós tudo alegre aqui, botando isso e aquilo e... (Uma
palma)... Fica no escuro. Aí acende esse lampião e não clareia não, uma luzinha
que... Ave Maria! Não presta não. Aí quando chega é uma alegria.

- Sim senhor! Esse homem é tão sério (aponta para Eduardo Coutinho).
Donde ele é? Heim? (muitas risadas a todos)

Eduardo Coutinho: Do Rio.

D. MARIQUINHA: Heim?

Eduardo Coutinho: Do Rio de Janeiro.

D. MARIQUINHA: - É. Do Rio de Janeiro? (continua rindo) ah! Do Rio de


Janeiro?

- Por que eu nunca vi o Senhor. Em Antenor!?

Eduardo Coutinho: Mas... A Senhora gosta de gente séria ou não?


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D. MARIQUINHA: Hein?

Eduardo Coutinho: A Senhora gosta de gente séria ou não?

D. MARIQUINHA: Eu não gosto de gente muito séria não assim como o


senhor... é tão bonzim. Jeito de conversar fofoqueiro! (muitas risadas) mais véio...!
Véio gosta de prosa! (ri muito). Oh meu Deus!!!

2) ASSIS (20:00)

Rosa: Opa!

Assis: Chega prá cá!

- Opa! Entrar minha filha!

Rosa: A bença!

Assis: Deus te abençoe como vai?

Rosa: O senhor ta bom?

Assis: Vamo entrar! Eu vou melhor num to muito bom nada minha filha véi
né.

Eduardo Coutinho: O senhor ta bom?

Assis: Opa doutor como vai? Vamo entrar pra dentro senta menino busca
umas cadeira pros meninos. Vai buscar uma cadeira, vai Larissa!

Larissa: Uai! Eu num posso, num posso sair não, a menina ela, ela chora.

Assis: Sente menino pra cá, pobreza não pega em vocês não. Menina vá
vocês façam um café pra esse povo! Tem café e açúcar, num fique espiando pra
mim não. Eu quero o cabra saber se tem de comer ou café pra gente beber.

Larissa: Já vai passar já.

Assis: já? Opa!

Eduardo Coutinho: Muito obrigado.

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[pausa]

Assis: A vida é um parafuso, só quem destroçe é Jesus. No dia que


chegar, né?..

Eduardo Coutinho: Como que é isso? Explica de novo.

Assis: Senhor?

Eduardo Coutinho: Explica de novo isso.

Assis: Eu digo: a nossa vida é um parafuso que só quem destroçe é Jesus,


no dia que chegar a hora, né?

Eduardo Coutinho: Isso é uma fé mesmo né?

Assis: Mais ou menos.

Eduardo Coutinho: Eh! Porque mais ou menos?

Assis: Eu digo porque o senhor vê. Que a gente desde pequeno que eu
zombei com a vida pra criar os filhos. Eu já tô véio, mas eu já vi coisa boa, e
tombém já vi ruim, né? E hoje já to no fim da vida, acabado. Entrei agora pra 80.
Fui criado sem mãe, sem pai. Sofri muito. Nunca apanhei, mas também nunca dei,
nunca ninguém deu neu, até hoje, nunca senti. Nunca briguei com a mulher,
nunca dei nela. Graças a Deus até hoje. Ela ainda tem uma coisinha de carne que
trouxe da casa dos pais.

Eduardo Coutinho: O que, que quer dizer isso, uma coisinha?

Assis: Não sei! Não porque eu gostava de zelar ela quando eu era gente.
Hoje não! Já tô veio, acabado.

Eduardo Coutinho: Gostava de zelar ela?

Assis: É. Gostava, né? Era minha esposa, né? O que ganhava. Eu num
bebia. Quando eu era solteiro, eu bebi muito, mas depois que casei, abandonei de
cachaça, num dá resultado.

Eduardo Coutinho: Antes de casar o senhor farreou muito?

Assis: Bebia, eu farreava é. Num vou mentir não.

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Eduardo Coutinho: Namorar! Namorou muito?

Assis: Mais... ! Namorei

Eduardo Coutinho: O senhor devia ser homem bonito. O senhor é bonito


ainda.

Assis: [risos] Ave Maria!

Eduardo Coutinho: Há quanto tempo o senhor tá casado?

Assis: Eu casei... Que ano foi menina que eu me casei? Não 57, casei em
57, 57, no dia 25 de dezembro de 57. 58 estava de teste, com seca fui trabalhar.
Que a vida é um sacrifício.

Eduardo Coutinho: Pegou a emergência da seca?

Assis: Peguei todinha!

Eduardo Coutinho: Sofria muito na seca?

Assis: Mas homi! Pra vê... Mas homi, e muito e muito! Tá vendo, que eu
quebrei esses dedos, olha! Tá vendo, o animal caia com a carga, eu tinha que
levantar o saco e num me lembra que tinha quebrado. Pra ganhar o pão pra dá de
comer para os meus filhos, né? Quando eu vim reparar aqui já tinha sarado, tinha
emendado os ossos. Eu não ligo, eu não dou valor à riqueza. Que eu tenho um
sobrinho meu aqui em Marizope que é rico, pra mim é um esmoléu. Dou valor a
um pobre como eu, porque ele não olha pra mim. O recurso é dele lá e da família
dele. Não é meu. Agora, o pobre eu vou buscar ele lá na terra quente, inté agora
pra botar aqui dentro de casa e da água e comê pra nós comê.

3) RITA e ZECA (24:40)

Eduardo Coutinho: E como é que foi a infância? Trabalhou muito na


lavoura? Como é que era?

Rita: Desde a idade de cinco ano, fui jogada nas roça trabalhando. Deixei
agora por que já tô véia, curta das vista e não é pussive. Mas eu achava bom,
196
achava bom, quando eu vejo até hoje, quando eu vejo caí chuva eu digo: “ai meu
Deus, ah meu Deus se Jesus renovasse minha idade pra eu trabalhar na roca!” É
tão bom! Ai, depois eu resolvi a casar. Rapazinho novinho, mais novo do que eu,
eu com 26 anos e ele com 18. Casamos graças a Deus, graças a Deus! Toda hora
eu digo: tá muito bom até hoje. Aonde eu moro, apareça quem é que diz Rita mais
Zequinha... É Rosa! Nunca Rita mais Zequinha “profiaram”, tão de inimigo um com
outro, felizmente eu não quero, eu... Mas antes eu quero morrer do que passar
meio dia de intriga com ele.

Eduardo Coutinho: Nunca teve intriga com ela?

Rita: Não, não, não, não! Não precisa.

Eduardo Coutinho: Quantos anos de casado?

Rita: Estamos com mais de 40.

[Zequinha chega nesse momento]

Rosa: Tudo bem?

Eduardo Coutinho: Como vai o senhor tudo bem?

Rosa: O Zequinha! Tô aqui de novo!

Zeca: Tudo bom, Rosa?

Rosa: Tudo bem.

Eduardo Coutinho: E o casamento deu certo? Que que é isso?

Zeca: Ela vai interar 70 em outubro, eu não sei a quando de outubro.

Rita: Dia 19.

Zeca: E eu vou interar 63 no dia 2 de outubro.

Eduardo Coutinho: E tudo deu certo? Casamento?

Rita: Fala homi!

Zeca: Cuma é?

Eduardo Coutinho: O casamento deu certo?

Zeca: Deu certo.


197
Rita: Ele é morto...

Eduardo Coutinho: Diferença de idade não tem problema, né?

Zeca: Eu sou meio morto.

Eduardo Coutinho: A diferença de idade não tem problema, né?

Rita: Não

Zeca: Não tem não! Tem não. Deu certo, deu certo, viu. Sempre achei que
ela, ela combinava com eu, né? É ai deu certo. Proque mais velho uma coisinha,
num tem nada não. Eu também já tô ficando veio, né?

- Esse terrenozinho foi comprado sabe a quem? O pai de Rosa.

Eduardo Coutinho: O pai de Rosa?

Zeca: Sim.

Rita: sim.

Eduardo Coutinho: Geraldo?

Zeca: Geraldo Timótio.

Eduardo Coutinho: Geraldo Timótio

Zeca: Me vendeu essas duas tarefinhas. Era um esquadrozinho de terra


que fazia assim. Aí, eu era de morado, ele foi me vendeu. Nóis ainda nem
passemo a escritura, não. Ele me vendeu, eu paguei. Aí, ele disse: “quando quiser
passar a escritura vamos”. Eu digo: “não, deixa está, deixa está aí”. Nunca
passemo nem escritura. Tá lá, sem passar escritura. Um dia, se der certo, nós
passa, né?

Eduardo Coutinho: Tudo na palavra, né?

Zeca: É, só na palavra.

Eduardo Coutinho: Me diga uma coisa, vocês tão moço ainda, mas hoje
vocês pensam em negócio de velhice, morrer ou não, nem pensa nisso?

Rita: Nós, o quê?

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Eduardo Coutinho: Pensa, às vezes, em envelhecer, morrer, essas coisas,
ou não pensa nisso?

Rita: Não. Aquilo que a gente tem certeza é.

Zeca: É. Mas eu penso um pouco.

Rita: No quê?

Zeca: Em morrer, eu penso.

Rita: mas, ninguém dá jeito.

Zeca: Não, num da jeito, mas eu penso.

Rita: O importante, o que, eu digo é isso: será feito a hora que Deus quiser.

Zeca: É. Eu sei que é a hora que Deus quiser, mas eu penso em morrer.

Rita: Se for de pensar fica pior, fica muito pior se for pensar.

Zeca: Não! Tudo no mundo a gente tem que pensar, a gente tem que
pensar um pouco.

Rita: E assim a gente entrega a Deus e nossa Senhora.

LEOCADIO (28:30)

[Rosa bate na porta]

Rosa: Leocádio, Leocádio! Não está

[Rosa da a volta pela lateral da casa]

Rosa: Acho que a porta da janela tá aberta. Se ele não tiver aqui pode ser
que ele esteja lá na vermelha.

Eduardo Coutinho: Onde é?

Rosa: Aqui na casa vizinha. Tá aberta, ele tá aqui. Leocádio!

Eduardo Coutinho: Vai até a janela. Num pode?

Rosa: Ele tá deitado.


199
Eduardo Coutinho: Se ele tiver dormindo, deixa,

Rosa: Lecádio! O senhor quer conversar com a gente hoje? Aquele pessoal
tá aqui.

Leocádio: Tô sem pontuação pra nada hoje.

Eduardo Coutinho: O senhor prefere que a gente volte outro dia?

Leocadio: hum?

Eduardo Coutinho: Podemos voltar outro dia, tá bom.

Leocádio: Deixa pra outro dia. O senhor me dispensa pra outro dia?

Eduardo Coutinho: Qual hora é melhor para o senhor?

Leocádio: Porque hoje eu tô sem pontuação pra nada, né? Aqui é um


armazém, um depósito, quase que uma cova dos leões. Já ouviu falar da cova e
dos leões?

- Que era cova dos leões..., era”?

Eduardo Coutinho: Daniel...

Leocádio: Aonde botava, botaram o profeta Daniel, mas ele foi esperdiçado
pelos leões. Aí o rei Dario disse: “Daniel o que foi? Que houve? Que os leões não
te engoliu”? Ele disse: “Meu rei, meu senhor, a minha vida é eterna”, será assim.

Eduardo Coutinho: O senhor estudou, então?

Leocádio: A bíblia eu lia. Era o que gostava de ler. Era os jornais nos
tempo, no tempo da guerra, na época da guerra e a bíblia sagrada. Mas outra
coisa não, assim, um romance bonito.

Eduardo Coutinho: Romance bonito, romance de folheto?

Leocádio: De Leonardo Gomes de Barros

Eduardo Coutinho: O senhor conhece Cacau de fogo?

Leocádio: Conheço.

Eduardo Coutinho: João Grilo, Camões?

200
Leocádio: Camões, eu tinha até um livro “santo Camões” e o soldado de
chumbo. Só era de poesia, um livro tão bonito, mas.

Eduardo Coutinho: E o senhor casou?

Leocádio: Não. Só gosto, gostava de ser solto, livre e solto. E pra onde eu
quisesse ir, ninguém dizia não. No tempo da minha infância, papai dizia assim,
papai não interrompia eu ir pra canto nenhum, ele não interrompia, mas se ele
dissesse assim: “se me ouvisse, lá não ia”! Pronto! Eu já tinha acabado com a
viagem.

- Isso é que é gente! Quantas pessoas são? Que trabalha?

Eduardo Coutinho: Umas sete, assim...

Leocádio: Sete?

Eduardo Coutinho: Tudo do Rio de Janeiro. Dez.

Leocádio: Quer dizer que o senhor é o chefe da caravela, das caravelas,


né?

Eduardo Coutinho: Alguns dizem, mas não sei.

Leocádio: O senhor é como Pedro Álvares Cabral quando descobriu o


Brasil.

Leocádio: Essa as informação. Era dessa aí, e tinha delas que dava
informação. Umas boas informações.

Eduardo Coutinho: O senhor lia muito isso, né?

Leocádio: ahm?

Eduardo Coutinho: O senhor lia muito isso?

Leocádio: Li. Todos os anos eu tinha que comprar

Eduardo Coutinho: E o senhor lê ainda o almanaque?

Leocádio: Não. Não lê mais não, não lê mais não. Hoje num tô vendo
nada, tô vendo essas letra maior, mais só o.

201
Eduardo Coutinho: Essa coisa de distância da lua, como é que o senhor
descobriu isso?

Leocádio: 87 mil léguas da à informação... Daqui pra lua.

Eduardo Coutinho: Quer dizer que a terra pra lua tem...?

Leocádio: 87 mil léguas. Essa informação era dada pelo almanaque deles,
né?

Eduardo Coutinho: E é verdade? Deve ser né?

Leocádio: Deve ser. Eu não! Isso daí eu não sei. Ah, é tanta palavra escrita
em vão.

Eduardo Coutinho: O que quer dizer isso?

Leocádio: O que quer dizer, palavra escrita em vão, é escrita só, igual
perdida, né?

Eduardo Coutinho: O senhor acha que tem palavra comum e palavra


certa, ou não?

Leocádio: As palavra comum e palavra certa.

Eduardo Coutinho: O que é uma e o que é outra?

Leocádio: Porque a palavra certa é aquela certa mesmo, e palavra em vão,


é aquela palavra sem futuro.

Eduardo Coutinho: Quer dizer palavra certa é palavra que tá no dicionário,


que roda o mundo. E isso?

Leocádio: A do dicionário é certa.

Eduardo Coutinho: E o senhor gosta mais de falar palavra certa ou


comum?

Leocádio: A gente num pode falar palavra certa porque a gente não
conversa pra todo mundo ouvir que sabe o que é palavra certa. Então o jeito...

Eduardo Coutinho: Aqui ninguém sabe não?

Leocádio: uhm?

202
Eduardo Coutinho: Aqui ninguém sabe não?

Leocádio: Não é todo mundo, que o senhor sabe que se alguns conhece,
outros não conhece, né?

- Quando Jesus fez o mundo que deixou muito empregou-se só uma


palavra só, por exemplo; uma janela era nome janela mesmo, se uma janela, num
era janela, meia porta, um outra coisa, né? Hoje o que tem é muitos nomes. Bem!
Aí bem ficou só empregava-se uma palavra só, quando Jesus fez o mundo ai bem,
ai vindo um plano nisso como diz a história, do oriente para os homens, fazer uma
alta torre que fosse até as nuvens para poder confundir todas as palavras pra
humanidade, pois é e assim fizeram a alta torre na cidade de babé, e assim,
confundir todas as palavras, todos os idiomas, todos os indícios, todos os
dicionários, pela torre de babe. Assim diz a história. Se for mentira, é de quem
escreveu.

5) VIGÁRIO e ANTÔNIA (35:40)

Rosa: Aqui é a casa do seu Leocádio e ali, ao lado, é a casa da dona


Vermelha. E aqui a gente pode perceber a casa de Vigário, primo da minha mãe.
Vamos chegando lá.

- Vem chegando heim mulher!

Terezinha: Passou lá hoje? Foi lá na escola hoje?

Rosa: Qualquer dia desses a gente da uma passadinha lá!

Terezinha: Então já vou chegando, por que já ta na hora, né?

Eduardo Coutinho: Essa é?

Rosa: É Terezinha. Ela é tia de Careca. É irmã da mãe de Careca.

Rosa: Oh de casa!

Vigario: Opa.

Rosa: A bença Vigário!


203
Vigário: Deus te abençoa.

Rosa: Ta bom?

Vigário: Bom, né?

Rosa: Tem umas visitas diferentes hoje. O senhor não gosta de receber
visita?

Vigário: Gosto sempre. Ninguém quer tá só, né?

Eduardo Coutinho: O nome do senhor é Vigário mesmo ou não?

Vigário: É Geraldo, mas o povo conhece por Vigário.

Eduardo Coutinho: Por quê?

Vigário: É porque minha mãe falava que eu era pra estudar pra padre, mas
ela morreu, ai fiquei com 5 anos, não conheci quase nada ela. Aí pro mode ela me
chamar desde pequeno, aí o povo ficaram chamando, ficaram chamando. Quando
chama um Geraldo eu olho se não tem outro né, pra responder.

Eduardo Coutinho: Por que todo mundo fala Vigário?

Vigário: É Vigário, Vigário. Aí ficou esse nome!

Eduardo Coutinho: O senhor nasceu onde? Em Araçás?

Vigário: Foi. Nasci nessa casa aqui mesmo.

Eduardo Coutinho: Nessa casa mesmo?

Vigário: Sim senhor, em 49.

Eduardo Coutinho: O senhor trabalha até hoje na lavoura?

Vigário: Lavoura.

Eduardo Coutinho: Planta o que?

Vigário: Uma criaçãozinha. Milho, feijão. Muitos aí plantam algodão, mas


eu num planto algodão não.

Eduardo Coutinho: E cria o quê? Gado?

204
Vigário: Um gadinho, uns animalzinhos, daqui pra li. Ainda, nesse setor
aqui anda a cavalo eu! Eu acho que nessas casas aí o senhor não viu nenhuma
cela pendurada. É difícil, né? Eu ainda ando a cavalo. Aqui tudo é moto, é carro,
bicicleta.

Eduardo Coutinho: Uma vida bruta, só trabalho?

Vigário: Todo tempo trabalhando, nunca saí daqui.

Eduardo Coutinho: E como é que pôde namorar, casar?

Vigário: Numa barruada ai né.

Eduardo Coutinho: O que é barruada?

Vigário: Peitei com uma moça e ela disse que queria. Aí ninguém namorou
não. Foi chegar casar. Essa outra doida veio do Rio Grande tá com uns 3 ou 4
meses. Eu perguntei se ela queria cozinhar um feijão. Ela disse: “Eu fico”. Aí ficou.

Eduardo Coutinho: Assim?

Vigário: Foi, foi.

Eduardo Coutinho: Depois ela conta isso também?

Vigário: É. Ela pode num aumentar, mas é possível contar o mesmo tanto.

Eduardo Coutinho: Me diga aí essas duas? Foi boa as duas vezes, foi
bom?

Vigário: Foi. Passei 29 anos mais uma foi bom demais. Foi ruim quando ela
morreu.

Eduardo Coutinho: E o senhor teve filho?

Vigário: Não senhor. A primeira quando eu casei já era de idade. Não


houve não.

Eduardo Coutinho: O senhor tem falta de não ter tido filho ou não? Ou não
liga?

Vigário: Rapaz! Eu às vezes imagino, mas vejo quem tem também é


desentendido com os fios. Os fios não ajuda. Ainda ontem mesmo saí aí, um boca

205
quente, ou foi um pai ou foi um filho que matou um ao outro, aí a de viver nessa
rebolada é quase melhor sem nada né, Nunca tive raiva.

Eduardo Coutinho: nunca.

Vigário: Não sei o que é raiva, tem gente que tem raiva, tem num sei o que,
eu num sei que é raiva não.

Eduardo Coutinho: Num fica lamentando o passado?

Vigário: Não. Nem me mardiso. Porque tinha um velho ali. O pai dessa
veinha, ele dizia que onde tava o bem tava o mal, diz que os dois anda junto.
Quando o cabra tivesse no mal, o bem tava perto. Ele tinha esse dizer. Era
maneira certa. E ai ele... Eu acredito que é, né? Diz que os dois anda junto.

Eduardo Coutinho: Tem santo em casa ou não?

Vigário: Tem. Tem um santo ali, tem uns ali pra dentro. E porque uns, traça
comeu.

Eduardo Coutinho: Mas o senhor não faz devoção pra São Francisco,
assim não?

Vigário: Não. Nunca tem devoção com nenhum não. Eu creio em todinho,
né? Agora, que nem diz o padre Lévi, “só vale o da terra se o Deus o do céu
quiser” né? Zeca Amador, acho que o senhor passou lá, ele conta um caso que
um cabra vinha caindo de um pé de pau e fez uma promessa pro São Francisco
que no caminho topou um São Francisco, aí disse: “é São Francisco das Chaga
ou São Francisco de Assis?” aí o cabra disse: “é São Francisco das Chaga!” O
que falou com ele foi, com ele foi São Francisco de Assis. Aí deixou ele passar. E
ele cai e morreu da queda.

Eduardo Coutinho: E ela pode vim cá falar também ou não?

Vigário: Pode. Oh tonha!

Antonia: Ou?

Vigário: O senhor quer falar com você.

Eduardo Coutinho: Ela pode sentar aqui do lado.

206
- Mas ela ta se tratando heim!

Vigário: Não. Ela sei não, né? Vai mandar fazer o ano, o plantamento
anda!

Antonia: Peraí que eu já saio!

Vigário: Não. Num é pra hoje não.

Antonia: Só amanhã! É pra amanhã tenha paciência que ela sai.

Antonia: Queria que eu saísse, eu já saí.

Eduardo Coutinho: Pode Dona Antonia, pode passar por alí.

Vigário: Venha por ali! Mas quase num vem.

Eduardo Coutinho: Senta aqui do lado dele.

- Agora conta pra nós. A senhora tava ali há 10 minutos, daí a gente falou a
senhora ahn! Trocou o vestido também! Trocou o vestido também?

Vigário: Ele tá falando com você, rapaz!

Antonia: O que?

Vigário: Pronto.

Antonia: Eu vim a passeio aqui com uma cunhada minha e aqui fiquei.

Eduardo Coutinho: De que jeito?

Antonia: Fiquei mais ele.

Eduardo Coutinho: Ficou mais ele?

Antonia: Ontem interou quantos meses ontem? Foi quanto? Dia primeiro?

Vigário: A gente interou dia primeiro de maio

Antonia: Ele ia trás deu, atrás deu.

Eduardo Coutinho: Ele ia pra trás da senhora?

Antonia: Era! Espia nego nojento!

Eduardo Coutinho: E daí! E a senhora? Ele foi atrás da senhora e a


senhora?
207
Antonia: Ele foi quem foi atrás de eu. Num vim atrás dele não. Ele foi quem
foi atrás deu.

Eduardo Coutinho: E a senhora?

Antonia: Ai eu quis. Me apaixonei por ele. Me mostraram muito viúvo aqui,


mas num me apaixonei por eles não. Só me apaixonei por ele.

Eduardo Coutinho: E a senhora era viúva também ou não?

Antonia: Era.

Eduardo Coutinho: Era?

Antonia: Era.

Eduardo Coutinho: Mas o senhor gosta muito do lenço branco?

Vigário: Ah eu gosto. É um burrinho bom de se andar. Eu chego, solto ele


num canto. Ele não vai se embora. Às vezes me embriago, ele vem, trás eu em
casa ninguém, toma a redia dele.

Eduardo Coutinho: Ah! O senhor tá embriagado e vem no burro, vem


tranquilo?

Vigário: Aí os cabra fica pensando: mas rapaz aquele burro naquele dia
não derrubou você? Trouxe você?

Eduardo Coutinho: Quando ele ficar mais velho assim do jeito que não
usa, o senhor vai fazer o que? Vai conservar ele?

Vigário: Deixar morrer dentro da roça, num dá mais negócio.

Eduardo Coutinho: Mas o senhor num abandona não?

Vigário: Não. Nunca abandonei aqui um bicho. Quando num presta mais
pro negócio, morre de velho dentro da roça, né? Não solto, nem nada.

6) MARIA BORGES (40:40)

208
Maria Borges: Eu era... Graças a Deus... Eu era muito cobiçada pra
negócio de namoro. Eu não fartava não... Todo rapaz às vezes chegava, se
encostava, pra palestra comigo. Dava uma palestrinha. Depois saía. Eu não
queria...

Eduardo Coutinho: E quando encontrou o marido?

Maria Borges: Aí quando... Aí quando... Eu tava noiva com um... Aí chegou


o outro. Aí nós pegamos a conversar, fui e acabei o casamento. Aí fiquei com o
outro. Eu tinha mais a amizade do outro quando eu...

Eduardo Coutinho: Sr. João... Ficou com um rompeu com o outro. Tinha
os dois?

Maria Borges: Foi. Foi!

Eduardo Coutinho: E valeu a pena?

Maria Borges: Valeu à pena! Ele era pobre, mas era uma pessoa muito
bom pra mim. Nunca... Nunca bateu em mim! Nunca nóis andemo arengando, nóis
era muito bem unido. Muito bem casado, era... Isso é o que era. Senti muita farta
dele, quando ele morreu viu!

Eduardo Coutinho: Como é que a Senhora se meteu em ser parteira?

Maria Borges: Começou assim... Uma vez uma mulher adoeceu. Aí vieram
me chamar, eu não tinha nem essa atenção. Aí... Vieram me chamar, aí eu fui
quando cheguei lá... a criança nasceu, né? Aí ajeitei eu já tinha visto com eu
mesmo.

Eduardo Coutinho: A Senhora ganhava bem para fazer o parto ou não?

Maria Borges: Era o que eles pudessem me dar. Eu não tinha preço
marcado, não. Tinha uns... Tinha uns que pagavam bem mesmo... Recompensava
bem e os outros eram pobrezinhos... Não tinham nem com que enrolar a criança o
que eu ia fazer? Quem sabe?... Deus é quem me dava. Pronto!... Dispensava.
Deus é quem me dava! Porque teve muitos... Muitos mesmos. Muitos que não
tinham nem... As mulheres não tinham nem um paninho pra enrolar as crianças.

209
Nenhuma roupinha. Nem nada eram pobrezinhas. Se chegar um aqui e dissesse
assim... Olha é já já! Olha se eu não vou! Vou!

Eduardo Coutinho: Vai lá?

Maria Borges: Ou! Jesus me ajuda... Deus me ajuda, eu vou! Chego lá! O
ano passado eu já fui. O ano passado chegaram aqui... Uma mulher tava de saída
pra ir pra rua aí... Não dava mais tempo em ganhar um neném na rua vieram me
chamar cheguei lá... Foi ligerim. Pronto! Mas estou satisfeita! Que venci a batalha!
Hoje tô bem! Não to mais quebrar a cabeça com filho, casaram tudo. Vivo sim!
Tem uns netim aqui bem pertim.. E se to com eles aqui... Quando eu quero tar
aqui na cadeira eu tô, quando eu quero, boto o travesseiro ali no chão. A casa não
é... Só é atijolada, me deito... drumo é sono!! No chão, viu? Aí... Me levanto pra
alim assim... Faço um cafezinho e vu tumá aí... Vou fazer minha jantinha, de noite
chega... À noite vou me deitar e dormir. Tem uma televisão.

Eduardo Coutinho: Tem uma televisão?

Maria Borges: - Tem! Assisto uma novelinha.

Eduardo Coutinho: Gosta de novela?

Maria Borges: Eu gosto de uma novelinha! Eu despareço tanto, quando tá


a televisão ligada.

Eduardo Coutinho: A Senhora tem medo de morrer? Ou não pensa nisso?

Maria Borges: Eu não tenho medo de morrer não. Tenho não sinhô! É no
dia que Deus quizer... No dia que Jesus determinar e disser assim: chegou minha
hora! Tô pronta! Eu posso me arreceitar com o doutor e ele disser assim: você não
tem jeito, você vai morrer amanhã! Eu não vou pensar não, vou imaginar não! Eu
vou rezar pra Deus e esperar a morte chegar.

7) ZEQUINHA AMADOR (47:20)

Rosa: Oh de casa!
210
Eduardo Coutinho: Rosa vê se ele vem até a porta.

Rosa: E ai tudo bom? A benção.

Zequinha Amador: Deus abençoa! Vamo entrar!

Rosa: Vamo entrar, né? Tudo em paz?

Zequinha Amador: Tudo em paz.

Eduardo Coutinho: O senhor ta bom?

- Coutinho...

Zequinha Amador: Bom demais.

Eduardo Coutinho: Como vai o senhor? Bom?

Rosa: Vamo sentar! Pode sentar aqui.

Eduardo Coutinho: pode ser

Zequinha Amador: O que vocês veio fazer aqui? O que é?

Eduardo Coutinho: Ela que sabe, explica pra ele.

Rosa: Esse é um pessoal do Rio de Janeiro que... Ele é seu Coutinho,


Eduardo Coutinho esse pessoal aqui é o Jaque, ali é o Bruno e tem umas meninas
aqui e uns rapazes aqui. Aqui a Cris que faz parte da equipe.

Cris: Bom dia.

Zequinha Amador: Bom dia

Rosa: E eles trabalham com cinema. É uma conversa, normal do cotidiano.

Zequinha Amador: Eu estou adoentado e não to podendo tá conversando,


muito não.

Rosa: Mas aí o senhor num pode, assim, conversar com a gente?

Zequinha Amador: Não. Só se, na outra metade, vem depois.

Rosa: Tá adoentado ainda?

Zequinha Amador: Sim. To adoentado ainda.

211
- É. Deve ser uma coisa polida. É se é uma coisa polida. Uma coisa mais ou
menos... Não dá. Por exemplo: Do plano que vocês têm. Não é um plano? Esse
negócio de cinegrafia, né? Filmaram um negocio assim, de cineasta, né? Vocês
são cineastas? São?

Eduardo Coutinho: É. Mais ou menos. A gente trabalha com cinema né?

8) LICE (49:10)

Rosa: A benção! Tá doente?

Lice: Tá doente!

Rosa: Eu também to.

Eduardo Coutinho: Vamos conversar? A senhora senta ali onde tava, não
precisa fazer nada. A senhora fica ali.

Rosa: É. A senhora quer conversar?

Lice: Dizer o que?

Eduardo Coutinho: Como é que foi a infância, lavoura essas coisas

Rosa: Trabalho, a vivência com a família.

Eduardo Coutinho: Trabalho, religião, as reza, tudo, tudo.

- Os seus pais moraram nessa casa também?

Lice: Morava.

Eduardo Coutinho: Essa casa tem quantos? 100 anos por ai?

Lice: Eu acho que é da idade do descobrimento do Brasil, sei não. Quando


papai comprou ela, já era casa já construída, num sabe, aí ele comprou, quando
foi pra se casar, levantou mais algum vão, alguma parede aí.

Eduardo Coutinho: Quantos irmãos são?

Lice: Éramos cinco, mas agora somos só três: ele e duas irmãs. Morreu já
uma irmã casada e um irmão.
212
Eduardo Coutinho: A senhora casou ou não?

Lice: Não. Somos os três solteiros

Eduardo Coutinho: A senhora tem vontade de casar ou num tem?

Lice: Não. Acabou-se, né? Porque...

Eduardo Coutinho: Mas quando era, quando era jovem assim namorou?

Lice: Não. Eu ainda estive noiva, ainda. Mas não deu certo. Acabou-se.
Mas graças a Deus, apenas a falta dos pais, porque a gente sempre, sem os pais,
mas a vida é assim mesmo.

Eduardo Coutinho: Mas sempre moraram juntos?

Lice: heim?

Eduardo Coutinho: Sempre moraram juntos os três irmãos?

Lice: Sempre.

Eduardo Coutinho: Num briga não?

Lice: Não. Ainda fiz curso de letras fiz de advogado direito, ainda botei um
escritoriozinho, mas num deu certo.

Eduardo Coutinho: Diga se, seu irmão foi vereador?

Lice: Foi, foi. Não, meu irmão foi vice-prefeito, agora papai foi vereador e
um tio meu prefeito, senhor Alexandre.

Eduardo Coutinho: A senhora assim ahn, gosta de bordar ou costurar


essas coisas assim?

Lice: Eu bordo costuro faço crochê, pinto

Eduardo Coutinho: Pinta também? Pinta o quê? Quadro?

Lice: Não. Pinto fazenda.

Eduardo Coutinho: Fazenda? A senhora faz isso pra passar o tempo? Por
que gosta ou?

213
Lice: É por que eu gosto, passa tempo. Pra mim mesmo, pra ganhar
dinheiro aqui mesmo, num vejo futuro, num tem futuro, por que às vezes a pessoa
pensa que a gente faz aquilo num dia, vai pedi um preço, ai num é, né?

Eduardo Coutinho: Tem alguma coisa aqui que a senhora fez pra mostrar
pra nós, aqui nessa sala?

Lice: Tem esse bordado ali fui eu que fiz

Eduardo Coutinho: A senhora pode pegar, por favor?

Lice: Tem esse aqui.

- Deixa vê se tem mais alguma coisa por aqui.

9) LICA (52:00)

Rosa: Heim! Ela é minha madrinha.

Eduardo Coutinho: Ela é tua madrinha?

Rosa: É!

- A senhora num é minha madrinha?

Lica: Sou.

Rosa: Quer bem a eu?

Lica: Quero.

Rosa: Ela... Quando a senhora vê uma pessoa bonita o que, que a senhora
diz?

- Tão bonitinha parece com eu!

Lica: Ana Luzia não veio?

Rosa: Vei não.

Lica: Mas num sabe se tá na rua, num tá?

Rosa: Tá lá em dona Aurília. Mas durante...


214
Lica: Mas vocês viajam quando? Vai demorar ainda?

Eduardo Coutinho: Vamos demorar ainda quase duas semanas.

- Vamos ver se a gente passa na escola pra...

Lica: Dedé tá bom?

Rosa: Tá. Tá lá em casa. Tá todos dois... Estão todos os dois lá em casa:


madrinha vó e Dedé.

- Tá morando lá.

Eduardo Coutinho: Ela enxerga bem?

Lice: Ela tá com a vista meia turva assim, mas ainda da pra enxergar
alguma coisa.

Rosa: Tem saudade de Dedé?

Lica: Tenho.

Eduardo Coutinho: Tem?

Rosa: Tem saudade de Dedé?

Eduardo Coutinho: Por quê? Ela conheceu melhor por quê?

Rosa: Porque ele conhece Dedé. Cresceram juntos, num foi?

Eduardo Coutinho: ah é?

Rosa: É. Quando a senhora era pequena que conheceu madrinha vó. Dedé
como que era? Era bom madrinha Lica?

Lica: Era.

Rosa: Fazia o quê?

Lica: Ia pra casa dela.

Lice: O que ela disse?

Rosa: Ia pra casa dela

Lice: Sim.

Lica: Ela costura na maquina já?


215
Rosa: Não costura mais não.

Lica: Você costura?

Rosa: Não. Ela não costura mais não.

Lica: Você não costura não?

Rosa: Eu costuro. É aqui a colar. É difícil.

Lica: Máquina bonitinha, perfeita.

Rosa: É, né?

Lica: Novinha.

10) ZEQUINHA AMADOR (54:16)

Eduardo Coutinho: O senhor chegou a mostrar, publicou ou recitou?

Zequinha Amador: Não. Eu... Tá aqui ó. Publiquei não.

Eduardo Coutinho: Não?

Zequinha Amador: Publiquei não. E recitei... Tirei esse troféu aqui. No


primeiro festival de poesia em São João do Rio do Peixe. Parece que tinha assim
setenta e poucos anos. Aí, tirei primeiro lugar.

Eduardo Coutinho: Primeiro lugar?

Zequinha Amador: Aí, recebi um troféu aqui.

Zequinha Amador: “As mulheres” são títulos do soneto. “Elas são flores do
jardim da vida/ velhas moças, loiras ou morenas/ casadas, viúva, noiva ou
pervertida/ são os meus olhos quais gentis falenas/ a idosa é como a flor
emurchecida/ as moças, rosas rubras, sempre amenas/ desabrochando a aurora
enrubescida/ perfumadas iguais as açucenas/ mulher, raio de luz, felicidade/
menina, moça, ou no fim da idade/ hei de louva-la, seja ela qualquer/ que elas se
lembrem de levar/ no dia da minha morte, à minha tumba fria/ um cravo, uma

216
saudade, um mal me quer”. Autor: José Amador Ribeiro Dias, Araçás, São João
do Rio do Peixe, Paraíba, Brasil.

11) TIA DORA (57:22)

Eduardo Coutinho: Como é que a Senhora namorou, casou? Como foi


isso?

Tia Dôra: Em 33. Eu casei no dia 20 de dezembro 34.

Eduardo Coutinho: Foi bom o casamento?

Tia Dôra: Graças ao Criador Divino foi. Só tive sossego e gosto na minha
vida, enquanto ele foi vivo. Que era muito trabalhador. Era... Era... Era trabalhador
e sério. De toda a importância.

Eduardo Coutinho: Tratava bem a Senhora?

Tia Dôra: Graças a Deus. Graças a Deus. Graças a Deus. Nunca... nunca
me deixou uma malquerência desse tamanho. E nem eu tamém deixei. Fiquei com
elas pra mim.

Eduardo Coutinho: Quantos filhos a Senhora têve?

Tia Dôra: Quatro. O primeiro era homem. Morreu da atacação das presas.
Teve... nascendo as presas... mas, era um rapazão mesmo. Todo mundo se
admirava dele, daquele menino. Era gordo e grande como o mundo.

Eduardo Coutinho: O que quer dizer atacação das presas?

- O que quer dizer atacação das presas?

Tia Dôra: Eu não entendo...Eu não entendi.

Rosa: O que é que a Senhora diz... Atacação das presas é o quê?

Tia Dôra: Quando as presas nasceu. Que nasce os dentes da... do anjo...
da criança. O derradeiro que nasce é as prezas. As prezas é que é mortal nas
crianças. É sim senhor! Nasceu... no ataque das... no nascimento das prezas deu

217
uma febre que não houve recurso para se baixar, não... Eu fazia que... que ele
mamava. Nada disso ele queria não, ele morreu com todo o couro... Quase perdo
o juízo. Quase perdo o juízo. Passava o dia todim... A casa aqui... eu passava o
dia era aqui debaixo dos pés de juazeiro que tinha... e espinheira... eu não podia
entrar dentro de casa não... Quase perdi o juízo. Depois dele foi que Jesus me
deu três fia mulher.

Eduardo Coutinho: Quando seu marido morreu, a Senhora pensou em


casar de novo? Ou...?

Tia Dôra: Não! Encontrei casamento, mas nunca quis não. Não. Meu
coração se trancou-se até o dia de juiz. Não sou pra casamento. Casamento não
me faltou. Eu fui quem nunca quis. Deus me defenda! Um dia chegou um... bles...
um abestaiado lá. No terreiro... Eu tava no terreiro: Bom dia Dorinha! Bom dia!
Meu Deus! Eu vi aquele homem lá... um desbandeirado. Aí eu fui pra casa. A casa
assim... Entrei e saí pro terreiro. Entrei pra cá! Ele entrou-se, sentou-se.

- Eu vim aqui Dorinha foi preguntar ocê se ocê quer casar cumigo.

- Eu, meu filho? Quero não.

- Por quê? Porque a senhora pensa que se eu casá com a senhora, eu vou
maltratar suas fias? Vou dar em suas fias? Vou botar as suas fia na roça?

Eu disse: “Não é isso não. Eu não quero casar nem com você e nem com
ninguém. Sobre a casamento, eu amarrei meu cocó. Só desmanchando no dia do
juízo”.

Rosa: Deu trabalho pra criar os filhos depois que ficou viúva?

Tia Dôra: Deu. Fui pra roça. Que nunca eu num tinha pai. A minha mãe era
veinha. Viúva também. Meus irmão era uns casado e os outros já tinha murrido.
Eu num tinha pur quem chamar. Eu num tinha filho homem, num tinha irmão, num
tinha pai, nem marido. Não me assujeitei a ... a morrer de fome mais minhas fia
não! Graças a Deus não! Fui foi pra roça trabaiá. Levava a mais nova no
“quarto”... uma bacia grande que era deu levá roupa pro rio pra lavá... cheia com
panela, prato, lata de café... Passava um dia todo na roça... trabaiando. Elas
dibaixo do pé de pau, juazeiro. E eu trabaiando em roda, do pé de pau, a panela
218
no fogo, cozinhando. Quando era de ora de almoço... de almoçar... ia almoçar... Ia
trabaiá... E elas aí. Quando o juazeiro já tava longe du trabaio, eu me mudava pro
outro pé de pau. E assim fiquei, eu criei elas. Num foi criada pro causa de ciúmes
ou de nada... De dificuldade, que desanimei. Eu criei elas como eu fui criada.

- Contam a vocês que eu abandonei elas? Graças a Deus não!

12) DONA VERMELHA (1:02:20)

Eduardo Coutinho: Dona vermelha!

Dona Vermelha: Senhor!

Eduardo Coutinho: Hoje a gente teve com uma parente da senhora, com a
tia Dôra.

Dona Vermelha: Madrinha Dôra, tia minha e irmã de mamãe. É tia minha e
irmã de mamãe.

Eduardo Coutinho: A senhora se dá com ela?

Dona Vermelha: Ave, Ave Maria! A tia que eu tenho. Ave Maria é tia
comadre.

Eduardo Coutinho: Tia e comadre?

Dona Vermelha: E madrinha. É uma parte grande que eu tenho mas a


Dôra. Já tá velha, num tá? Faz muito tempo que eu vi madrinha Dôra. Fui criada
na roça trabalhando só, nunca fiz foi brocar nem roçar, mas catava feijão, catava
algodão, limpava, ave Maria. Achava tão bom! Acendia o cachimbo, enchia o
cachimbo de fumo, ia trabalhar na enxada. Ave Maria! A vida era outra. Eu lido
com a falta de sono, quer dizer desde eu solteira eu tinha essa falta de sono e
agora, agora é pior, num dá. Galo canta fora de hora, canta de hora e eu sem
sono. Só assentada, quando num aguentava, levantava, sentava na rede,
fumando e tomando café. Tem noite quando eu vou pegar no sono já é de
madrugada.

219
Eduardo Coutinho: E como é que a senhora faz pra fazer comida?

Dona Vermelha: É os meninos que faz, num é eu não?

Eduardo Coutinho: Seus filhos, né?

Dona Vermelha: É. Meus filhos. Ah! Se num tivesse aqueles dois filhos, eu
já, num sei não! Mas acho que eu já tinha morrido.

Rosa: A senhora não queria que eles casasse?

Dona Vermelha: Eu num quero que eles case não, porque enquanto eu for
viva, eles tá aqui mais eu.

Rosa: Se viesse uma moça morar mais a senhora, ajudasse a senhora a


arrumar a casa, a senhora queria?

Dona Vermelha: Minha filha, dizer dos antigos: “Mais vale só do que mal
acompanhado”. É.

13) NATO (1:04:36)

Eduardo Coutinho: Seu nato!

Nato: Sinhôr?

Eduardo Coutinho: Que história que é essa de água ai?

Nato: Não, é porque a água precisa ..., olha o homem vai pra um banco de
colégio. Ele aprende muita coisa, mas as coisa matuta se aprende no campo.
Entendeu! Que vai convivendo vai vendo, vai ficando prático, vai conhecendo.
Eu... a água é o seguinte, a água o senhor passa, tem uma ave, indica onde tem
água, uma arvore. À noite, seis horas o senhor passeia em qualquer arto ou baixo,
se o cê onde tem água se for inteligente, se prestar a atenção, conviver, vindo
aqui o cabra cavar poço, poço amazônico, poço artesiano, acompanhar aqui as
fonte d água, a passagem da água. Entendeu?

Eduardo Coutinho: O senhor, mas todo mundo não?

220
Nato: É ai que eu to dizendo.

Eduardo Coutinho: O senhor sente?

Nato: Eu sinto.

Eduardo Coutinho: O que, que é bate o cheiro o que, que é?

Nato: Não. É que sobe aquele calor, sinto aquele calor, aquela atmosfera
subindo.

- Ou bem lido ou bem corrido.

Eduardo Coutinho: E o senhor é bem corrido?

Nato: Graças a Deus.

Eduardo Coutinho: É bem lido também ou não?

Nato: Não. Não. Mas assino meu nome assinando bonito que é melhor.
Outro dia eu tava assinando um cheque avulso lá no banco. Eu digo meu amigo,
eu me casei foi preciso sentar o dedo. Quer coisa ruim a gente pegar um dedo pra
sentar em cima de um papel... Nunca é aprumado, como você mesmo chegar,
despontar a vontade de sentar aí mesmo. Aí, com isso eu me envergonhei e
aprendi uma coisinha... Pouquinha.

Eduardo Coutinho: Quando é que o senhor casou?

Nato: Em 68, dia 6 de agosto de 68.

Eduardo Coutinho: namorou? Casou logo?

Nato: Heim?

Eduardo Coutinho: Namorou, casou.

Nato: Não. Eu já casei antes do padre correr voto. É. E num queria casar
não, porque num tinha condição. Imagina a gente fazer uma feira? Só era o que
eu imaginava.

Eduardo Coutinho: E os pais dela?

Nato: Mandou buscar, meu pai mandou procurar foi buscar no Ceara disse
é pra ir buscar e é pra casar.

221
Eduardo Coutinho: Vocês fugiram?

Nato: Fugi. Não, eu só, que eu não queria casar. Tinha muita namorada e
num queria casar por que condição de, como é que eu ia fazer uma feira, eu tinha
imaginava como era casar era fazer uma feira pra sustentar a casa.

Eduardo Coutinho: Daí fugiu?

Nato: Fugi.

Eduardo Coutinho: E ela?

Nato: Não. Ela ficou aí e alargou, botou a boca no trombone aí, ó, naquele
tempo era ordem: é pra buscar.

Eduardo Coutinho: Como é que foi? Buscaram como?

Nato: Buscar, trazer, meu pai dizia assim.

Eduardo Coutinho: A força?

Nato: A força. Meu pai dizia assim: “se um filho mexer com uma nega ele
casa!”.

Eduardo Coutinho: E o casamento, foi bom?

Nato: Foi! O casamento... Estamos vivos até hoje, trabalhando. Fizemos


um patrimônio que é riqueza pra gente que num tinha. Nem ela tinha nada, nem
eu. Entendeu? Porque é muito... Olha! Aquela história de herdar e receber pronto,
é muito ruim. Vou dizer ao senhor por que. Quer saber por quê? Porque se
acostuma a não querer trabalhar e morre sem nada. Porque vai comer o que tem,
pensando que não se acaba e termina duro. Tá certo? É pode ficar... Olhe, pense
bem e veja! Trabalhar pensando que não morre e rezar sabendo que morre e
trabalhar sem precisão... Porque aí, você sabe que tem as coisas. Você trabalha
com precisão cê num tem nada, cê só tem alguma coisa se trabalhar sem
precisão. Tá certo? Trabalhar pensando que não, porque, se ocê... Eu sei que
morro, mas eu quero trabalhar. Eu quero trabalhar... Eu sei que morro. Vocês num
tão na luta de vocês? Sabe que vai morrer, então não podia nem ter deslocado, lá
de onde tá vocês. Fica La no canto, se já vou morrer, então não vou. Num vou pra
canto nenhum! Mas, no entanto, ninguém nunca pensa que vai morrer. Só a
222
contínua só de adquirir e fazer aumentar. Num é isso? Ou num é? Porque quando
o senhor tem dez vaca vai querer mais dez, pra fazer vinte.

Eduardo Coutinho: O senhor é assim?

Nato: Eu sou. É todo mundo é assim. Quem trabalha pra ter as coisa é
assim, todo mundo.

Eduardo Coutinho: Não pára, quer sempre mais?

Nato: Não. Se você possui um carro pequeno, se der compra um caminhão


pra botar em linha. Cum pouco, quer um trator pra roçar a fazenda pra preparar.
Cum pouco tem uma vacaria, quer um empregado pra cuidar de uma coisa ou
outra, pensando que num morre. Cê ta pensando que num morre? Mas morre. É
bom que reze sabendo que morre.

Eduardo Coutinho: Mas pode? Ganha, quer mais, quer mais.

Nato: Exato. A medida do ter, nunca enche.

Eduardo Coutinho: Mas num dá pra descansar uma hora?

Nato: Não! Num da não, da não. É. Oia! O ter é uma preocupação grande.
O ter é uma preocupação grande. E se tiver ganância é o pior. Porque aí, esquece
de rezar. Aí o satâníco tá arrodiando, empurrando só pra frever. Mas quando se
reza...

Eduardo Coutinho: O senhor reza?

Nato: Rezo.

Eduardo Coutinho: O senhor trabalha desde cedo é um homem


inteligente.

Nato: ah eu!

Eduardo Coutinho: O senhor tá bem de vida, hoje?

Nato: Tô. Graças a Deus! Tenho casa na cidade. Tenho propriedade. Num
tenho nada hipotecado, num devo nada a ninguém. Tenho joia, tenho um troço...
Como e bebo. Como o que eu quero. Uso o que eu gosto. O quê que eu quero
mais?
223
Eduardo Coutinho: Quando cê tá...

Nato: Eu queria num morrer, mas sei que vou morrer.

Eduardo Coutinho: O senhor, qual a pessoa que o senhor confia mais?

Nato: É em mamãe, em mamãe. Porque mamãe me deu de mamá, me deu


papa, me trocava de frauda e aquele negocio todo. Ainda hoje tem aquela, porque
eu sinto. Eu sinto que minha mãe me quer bem.

Eduardo Coutinho: Posso perguntar outra coisa?

Nato: Pode. Se eu souber, eu lhe digo.

Eduardo Coutinho: O senhor disse que a única pessoa que o senhor


confia é sua mãe.

Nato: É mamãe.

Eduardo Coutinho: E sua mulher?

Nato: Não... É... Mas primeiro lugar é mãe, porque a mulher sempre... Olha!
Toda mulher é mulher, mas bom é mãe. Mãe num trai filho. Quantas dá... Eu
tenho aqui um filho. Olha aqui essa coisa mimosa! A mãe traiu o meu filho. Traiu o
meu filho.

Eduardo Coutinho: Como é que é?

Nato: A mãe traiu meu filho. Oh essa daí, essa menina é minha neta.

Eduardo Coutinho: A sua nora traiu seu filho?

Nato: Traiu. Um paraíso divino, cidadão que até casa em Brasília tem.

Eduardo Coutinho: O que quer dizer traiu?

Nato: É botou chifre. Chifrou. É. Por isso que eu digo é a razão de eu dizer
olha ai, sempre eu digo: só confie em mamãe.

14) NENÉM GRANDE (1:10:15)

Eduardo Coutinho: Tô com medo de queimar...


224
- A senhora prefere cigarro assim ou pitar?

Neném Grande: Eu num fumo muito não, eu fumo um, dois cigarros ou
três.

Eduardo Coutinho: É! Cachimbo não?

Neném Grande: Quando eu trabalhava eu fumava, deixei.

Eduardo Coutinho: Heim?

Neném Grande: Eu fumava muito, mas deixei fumo alguns cigarrinhos.

Eduardo Coutinho: Mas cachimbo não?

Neném Grande: Fumava no cachimbo, mas deixei. Eu desde de 14 anos


que eu fumo.

Eduardo Coutinho: trabalhava na lavoura ou trabalhava...?

Neném Grande: Trabaiava.

Eduardo Coutinho: Negócio!

Neném Grande: Catava, limpava, catava algodão, fazia todo serviço, eu


fazia todo serviço.

Eduardo Coutinho: O dia todo? Fazia tudo?

Neném Grande: Era mesmo que um homem.

Eduardo Coutinho: Até mocinha foi assim?

Neném Grande: Mocinha, mininota, moçona. Fiquei velha ai, com pouco
vim deixar de fazer as coisas. Já tava com mais de oitenta, oitenta e tantos.

Eduardo Coutinho: A senhora casou ou não?

Neném Grande: Não. Nunca casei, nunca quis casar. Nunca quis saber de
homem, nunca.

Eduardo Coutinho: E a senhora tá morando aqui com quem?

Neném Grande: Tô morando com essa menina que eu criei, com Bastiana.

Eduardo Coutinho: Bastiana?

225
Neném Grande: É que eu criei. É sobrinha minha e filha de criação.
Quando Bastiana casou-se, aí teve quatro filhos de sete meses. Os três filho que
nasceu, primeiro nascia e morria logo. Mas era assim no dito. Ai nasceu um, esse
levaram, batizaram. Aí eu fiz uma promessa, me apeguei em São Francisco. Se
eles nascesse e, aí passasse o batismo, todos era de chamar... Ela botou tudo de
Francisco. Teve 18 filhos.

Eduardo Coutinho: Todos chamavam Francisco?

Neném Grande: Tudo era Francisco, tudo, tudo.

Eduardo Coutinho: Tinha um apelido pra chamar?

Neném Grande: Tudo, tudo era de apelido

Eduardo Coutinho: Mas a senhora pedia só que desse pra batizar?

Neném Grande: Mas eu num pedia pra se criar não, pedi pra só o batismo.
Se batizar... Por que o povo tem um dizer. É o povo que diz, nós num sabe do
céu: “os anjinho é no escuro todo dia pede pro mundo se acabe”. O povo é quem
diz, o povo é quem anda a dizer, o povo dana a dizer.

Eduardo Coutinho: Eles os anjinhos?

Neném Grande: Os anjinho pagão.

Eduardo Coutinho: Pede pro mundo se acabar?

Neném Grande: Todos os dias diz que eles pedem.

Eduardo Coutinho: Agora eu queria perguntar uma coisa pra senhora do


anjo Serafim. O quê que é exatamente?

Neném Grande: Não. Esse anjo Serafim são esses meninos que nasce e
se, e num come nada no mundo, esses que é do anjo Serafim.

Eduardo Coutinho: Quer dizer nasce assim?

Neném Grande: É que nasce, morre e num comeu nada num bebeu, nem
comeu nada.

Eduardo Coutinho: Num comeu, nem bebeu nada.

226
Neném Grande: Esse que é os anjo Serafim. É desses que num come.

Eduardo Coutinho: Eu não me lembro se foi dona Maria Borges ou dona


Mariquinha que falou, que quando é assim o pagão, enterra no cruzeiro assim, e
que as vezes ouve choro deles. É verdade isso?

Neném Grande: Sim. O povo diz que é. Uns disse se chora com sete dias
ou com sete meses ou com sete anos. Se chora, é pra pessoa ir batizar, conta o
povo. Eu nunca, nunca vi. Acho que é, se chora. Ali no cruzeiro, de Maria Borges,
tem muito menino enterrado. É. Quando o mundo se acabou na outra era, se
acabou com água. São, são, São Noé. Não. É São Noé, São Noé trabalhou cem
anos numa barquinha pra quando o mundo se acabar... O mundo se acabou com
água, disse quando fosse se acabar, se acabar com fogo.

Eduardo Coutinho: A próxima vez é fogo?

Neném Grande: É. Nossa era que nós estamos se o mudo se acaba com
fogo, mas que num fica mais ninguém.

Eduardo Coutinho: Mas num sabe?

Neném Grande: Aí. Mas o senhor num tem, num crê em Deus pai? Que
Deus desce a terra pra ajudar os vivos e os mortos? Os mortos já morreram e os
vivos: é nós que morremos, é quem morrer naquele dia.

Eduardo Coutinho: É julgamento final?

Neném Grande: Tem o julgamento, quem crê em Deus pai, tem que desce
a terra, pra julgar os vivos e os mortos.

Eduardo Coutinho: Mas quando vai ser esse fim de mundo, ninguém num
sabe?

Neném Grande: Agora inclusive, diz que foi aqueles que morreram aquele
dia, e os morto foi aqueles que já morreram. Aí se salva tudo. O povo diz: feliz
quem alcançar até o mundo se acabar.

Eduardo Coutinho: Todos se salvam?

Neném Grande: Eles. Salva todo mundo num fica ninguém perdido não.

227
Eduardo Coutinho: Mas os que estão no inferno também se salvam?

Neném Grande: O povo salva tudo num fica ninguém Deus salva tudo.

15) ZÉ DE SOUZA (1:14:35)

Eduardo Coutinho: Bom dia!

Rosa: E ai?

Zé de Souza: Deus te abençoe!

Rosa: Tudo bom?

Zé de Souza: Tá tudo bom!

Eduardo Coutinho: O senhor não ouve bem? E ela trouxe mais coisas...

Zé de Souza: Não. Ouvindo, num to não ouvindo nada não.

Caderneta- Zé de Souza: Estamos fazendo um filme

Caderneta- Zé de Souza: Como ficou surdo? Como se sente assim?

Zé de Souza: Homi, é o jeito, o cabra não ouvir... Mas graças a Deus,


minha vista tá ruim, mas eu ainda leio uma besteirinha. Tô sabendo das coisas,
né? Fico tão satisfeito quando um camarada vem escrever pra mim, que eu sei de
uma coisa, que falando, pode dizer ai, que não estou ouvindo.

Caderneta- Zé de Souza: Mas tarde, mas casamento foi bom?

Zé de Souza: O meu foi, graças a Deus! Hoje, choro, porque tá


completando dois anos que a minha faleceu.

Caderneta- Zé de Souza: O senhor se sente muito só?

Zé de Souza: É. Num é bom não. Nem aqui a tarde, bota uma cadeira por
acolá, procurar as menina às vezes sai 12 horas, vem chegar ao escurecer, vai
pra casa dumas irmã que tem por acolá e eu passo a tarde todinha sentado,
olhando quem passa e, às vezes, conhecido, e eu não conheço. Porque minha
vista é pouca, num dá, passa, mas eu não sei quem é. E muitos passam pra lá e
228
pra cá, e eu passo a tarde todinha até escurecer. Aí ela entra, acaba de ajeitar o
de comer, ai vem me cutucar, já o escurecer, pra eu ir jantar.

Caderneta- Zé de Souza: Quer dizer mais alguma?

Zé de Souza: Não. Já disse muito. Sei de poucas também e mesmo, o


cabra que diz tudo que sabe fica besta, num fica? E assim... Quero dizer que foi
boa a palestra pra mim, né?

Peão: Embora?

Zé de Souza: Vamos!

- Vai pra lá, vai?

Peão: Embora, borá almoçar.

16) CHICO MOISÉS (1:19:18)

Eduardo Coutinho: o senhor ta com quantos anos?

Chico Moisés: 57.

Eduardo Coutinho: E trabalha na lavoura? É a sua terra ou a terra é


alugada?

Chico Moisés: É... De todo jeito. É na minha terra mesmo. É na terra dos
outros.

Eduardo Coutinho: E na infância? Foi difícil ou...?

Chico Moisés: Não. Nunca foi bom.

Eduardo Coutinho: Não?

Chico Moisés: Não.

Eduardo Coutinho: Como? Explica!

Chico Moisés: Porque num foi bom. Num tive tempo pra nada. Só
trabalhar.

229
Eduardo Coutinho: Só trabalhar?

Chico Moisés: Só trabalhar e continuando sempre. E trabalhar na


agricultura sempre é muito pesado. Sem a ajuda de nada e nem de ninguém. Só
os braços.

Eduardo Coutinho: Não pôde estudar nada?

Chico Moisés: Estudei um pouco. Mas também depois, meu pai não quis
mais que fosse estudar..., só pra trabalhar na roça. Aí eu também... Eu tive raiva
não quis mais o estudo.

Eduardo Coutinho: E garoto... Casou logo ou não?

Chico Moisés: Com 25 anos.

Eduardo Coutinho: Como é que foi?

Chico Moisés: É... Preocupante e ruim.

Eduardo Coutinho: Por quê?

Chico Moisés: Por causa de doença e... Era terrível mesmo. Por essa
perrêa mesmo.

Eduardo Coutinho: E o senhor está casado a quanto tempo?

Chico Moisés: Olha... Eu casei com 25 anos, to com 57.

Eduardo Coutinho: Quantos filhos teve?

Chico Moisés: A muié?

Eduardo Coutinho: Quantos filhos o senhor teve?

Chico Moisés: (gargalhadas)

Eduardo Coutinho: Por que o senhor falou a mulher?

Chico Moisés: Porque foi ela quem teve.

Eduardo Coutinho: O senhor não tem nada com isso?

Chico Moisés: Não... Isso é... Tenho.

Eduardo Coutinho: Quantos têm?

230
Chico Moisés: Cinco.

Eduardo Coutinho: O senhor tem algum sonho?

Chico Moisés: Em que... Significado de sonho?

Eduardo Coutinho: Boa pergunta! Uma coisa que o senhor deseja ainda
na vida, pro senhor, pra família.

Chico Moisés: É aí é donde eu não acredito. Que se fosse assim..., pela


idade, desde pequeno que eu fazia até 1ª à 6ª..., eu era direto mesmo. Era só
rezando direto e pedindo. Aí não veio. Eu digo. Ah! Não veio não! Então eu disse:
eu parei aqui mesmo. É que eu já fiz a minha parte. A quem eu pedi? Venha, se
faz, venha de uma vez. Ou não é assim?

Eduardo Coutinho: É... Capaz de ser, né?

Chico Moisés: Ou pode não ser né?

Eduardo Coutinho: E o que o senhor pedia que não era atendido?

Chico Moisés: Ah, daí... Era muita coisa, né? E não veio nenhuma!

Eduardo Coutinho: Ah, diz algumas coisas!

Chico Moisés: Sim, sim. Era mesmo saúde..., que não tem.

Eduardo Coutinho: O principal era saúde...

Chico Moisés: É o principal de tudo.

- Não é ruim uma condição assim?... Quente e frio! É uma pessoa que é
quente e frio.

Eduardo Coutinho: O senhor?

Chico Moisés: Sim. Desse jeito... É quente e frio. Uma hora tá bem, outra
hora tá bom, Outra hora ta agitado. Outra hora ta quieto!... É... É isso aí que se
chama quente e frio. Uma hora bem agitado e a outra, relachado.

Eduardo Coutinho: O senhor é assim?

Chico Moisés: É. Verdade.

Eduardo Coutinho: Agorinha mesmo o senhor ta quente ou frio?


231
Chico Moisés: Eu tou.. tô relaxado. Eu tô aqui ó!... Mornão!

Eduardo Coutinho: nem quente, nem frio?

Chico Moisés: Não. É frio mesmo! Aí aprendi com Tomé. Foi aí donde eu
fiquei... Que também por aí eu exerci o mesmo. Fosse do jeito que Tomé fez...
São Tomé errou por uma parte.

Eduardo Coutinho: São Tomé?

Chico Moisés: Sim! Ele errou por uma parte. Porque andou mais Deus,
comeu com Deus e depois... Negou, né?

Eduardo Coutinho: São Tomé negou a Deus?

Chico Moisés: Sim! Aí... Dele dizer assim: só acredito se ver com olhos e
pegar com a mão. Se todos nós fosse assim..., não existia pecado. Ninguém
matava ninguém. Não existia maldade nenhuma. Porque o mundo tá coberto de
mentira hoje... Não tá?

Eduardo Coutinho: Tá!?

Chico Moisés: Eu acho que sim. Eu tenho até pena. Você me dá alguma
notícia por aí?

Eduardo Coutinho: O senhor sabe do mundo como a gente. O que o


senhor acha?

Chico Moisés: E quem é o mundo?

Eduardo Coutinho: Não sei.

Chico Moisés: Não somos nós? Não parece, né?

Eduardo Coutinho: O senhor se interessa pelo mundo assim?

Chico Moisés: Olha a sabedoria não vem só pela escrita. Só por escrever.
Isso já vem da mente. É dom! É! Gênio!

Eduardo Coutinho: Isso o que é?

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Chico Moisés: É porque o gênio... Gênio é uma coisa interessante e num
tendo o gênio... É o quê? Como é que é? Cadê a forca do olho? Cadê aquele
reloginho pra funcionar? E tudo precisa, é o gênio.

Eduardo Coutinho: Tudo?

Chico Moisés: Tudo. É que nem a circulação do sangue.

Eduardo Coutinho: Sem gênio,...

Chico Moisés: É. Tem que ter. É porque é que nem... Eu não queria dizer
mais. Porque senão eu vou longe.

Eduardo Coutinho: Vai longe! Vai!

Chico Moisés: Vou! Que eu quero dizer que... A pessoa sabe... Mas, às
vezes, não quer dar uma palavra que sabe de nada. Eu faço isso. Às vezes
perguntam... Não, nunca vi, não! Sei não! Ele sabe? Sei nada... Um cara
abestado. Digo. E lê? Eu digo: sei nada. Tudo o que sabe não pode se dizer.

Eduardo Coutinho: O segredo?

Chico Moisés: É! Tudo é segredo. Agente tem muito segredo na vida. Não
tem? Olha! Parece uma brincadeira... Eu já fui no inferno... duas vezes. Mas em
sonho. Não vou dizer que foi pessoal não. Porque se tivesse sido pessoal, não
achava ruim não. Porque ainda contava mió, né?

Eduardo Coutinho: Como é que foi o sonho?

Chico Moisés: Olha! Não é bom lá não.

Eduardo Coutinho: Como é que foi o sonho?

Chico Moisés: O sonho não é bom não. Porque eu ia pra lá, e era por
dentro... de pau, pedra, toco, era espinho... Chega lá, quando pensa que não.
Chegava lá, quando entrava, cê via o chão, aquele cimento assim, mas sem... da
cor de cinza, né? Daquele jeito quando pisa, vem até o joelho... É fogo puro!

Eduardo Coutinho: Fogo puro?

Chico Moisés: E vê laborando lá dentro. Não... Eu demorei pouco. Eu


demorei no sonho também pouco.
233
Eduardo Coutinho: Mas o senhor não viu o diabo lá não?

Chico Moisés: Ah sim! Vi, vi, vi. Vi só um.

Eduardo Coutinho: Como é que é?

Chico Moisés: bom... Ele não era muito bonito não.

Eduardo Coutinho: Chifre? Ele tinha chifre?

Chico Moisés: Não. Não tinha não. Esse devia ser o chefe, né?

Eduardo Coutinho: Mas queimou tudo?

Chico Moisés: É. Deve ser o chefe. Porque é veio. Né? De certo caiu o
chifre dele. Ficou velho demais.

Eduardo Coutinho: O senhor tava lá sozinho? Ou viu outros lá?

Chico Moisés: Sozinho! Eu tava sozinho. Eu tive só logo na entrada.


Assim. Né?

Eduardo Coutinho: E o senhor gritava ou não?

Chico Moisés: Não. Mas não me quizeram não. Eu fui expulso de lá. Não
quizeram não.

Eduardo Coutinho: Quem expulsou?

Chico Moisés: Quem expulsou? O senhor queria saber? Só foi isso aqui ó!
E chamar por Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. E quem quizer!!? Livra do
inferno.

Eduardo Coutinho: Seu Chico! Foi boa a conversa!

Chico Moisés: Isso porque eu queria nenhuma palavra. Né? Não quero
falar não. Não era?

Eduardo Coutinho: O senhor começou assim..., né?

Chico Moisés: Eu pensei que sim. Eu acho que foi. Aí... E se eu chegasse
e eu começasse a conversar? E ia rolar o dia e a noite. E não. Mas uma coisa que
eu digo também: só disse o que aconteceu. O que não aconteceu, eu não disse
não. Agora... Entenda se quiser! Leve em conta se quiser! Aqui foi do mesmo jeito

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da palavra de Tomé: Viu com os olhos e pegou com a mão. Pronto! E o resto não
importa. Felicidade pra você! Posso?

Eduardo Coutinho: Muito obrigado!

Chico Moisés: Oh! Fiquei feliz agora.

Eduardo Coutinho: Ficou?

Chico Moisés: Falar com uma pessoa sabida! Hum!

Eduardo Coutinho: O senhor é que falou mais, como eu que sou o


sabido!?

17) NATO DESPEDIDA (1:29:20)

Nato: Água sem ser poluída, água de capricho, tratada!

Eduardo Coutinho: Garantida?

Nato: Garantida! Que isso?

Eduardo Coutinho: É água de mina?

Nato: De mina, cavada a braço.

Eduardo Coutinho: E quem achou essa água?

Nato: Foi eu, eu mesmo em 93, no ano de uma seca, quando o povo corre
tudo pra ir pra cidade atrás de emergência, pedir esmola, porque o sertanejo se
acostuma com esmola. Eu quase num paro porque é vu vu, que nem uma
lançadeira. Eu acho que quando eu cair, eu só queria que Jesus me matasse de
uma vez: páh puf! Pra num dá trabalho a ninguém, por que eu sou exigente, eu
sou agoniado, eu quero a coisa no tempo, na hora.

Eduardo Coutinho: O senhor tá fazendo isso agora?

Nato: Agora.

Eduardo Coutinho: Mas onde foi buscar água?

Nato: La no meu bachinho.


235
Eduardo Coutinho: Essa água...

Nato: Mas vocês já gosta né? Tem que ver aqui é sal pra gado. Aqui é sal
pro gado. Aqui é semente de jerimum, pra plantar. Aqui é uma lembrança da
minha mãe, uma saia que eu achei numa casa dela que caiu. Guardei isso aqui, a
lembrança, como se fosse ouro oh! Dez dias. Eu digo: mamãe, isso daqui é a
lembrança da senhora que eu vou guardar, vou guardar se for os ouro, eu guardei
direitinho, que ela me deu uns ourinho, mas aqui eu guardei como lembrança, que
ela precisa você ver. Agora aqui, pra você ver o retrato do candidato tá aqui.

Eduardo Coutinho: Daqui um ano a gente volta.

Nato: Vem mesmo.

Eduardo Coutinho: Com o filme pronto, o senhor vai tá forte aí?

Nato: Se eu não morrer, eu tô vivo e digo a vocês, que eu prometo: vocês


comer um carneiro aqui. Digo a vocês com consciência.

Eduardo Coutinho: Olhe!

Nato: Viu.

Eduardo Coutinho: Vou lhe cobrar heim!

Nato: Pode ficar certo! Se eu tiver vivo, e se morrer reze um padre nosso,
porque disse que merece rezar quem morre. Vai tomar uísque agora?

18) ASSIS DESPEDIDA (1:31:25)

Assis: É fora ou dentro de casa?

Eduardo Coutinho: Dentro.

Assis: Olha aqui a casa! Fazer um café menina, pros meninos.

Menina: Já tem café!

Assis: Já tem? Ô palavra bonita, palavra linda, café e de comer quando eu


chegar num canto e num falar de comer e nem café, ta sem eu.

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Eduardo Coutinho: Dá pra abrir a porta?

Assis: Dá. Mas homi!

Eduardo Coutinho: Isso chama boinho?

Assis: É o boio, um boinho de tirar fogo. Pra trás era isso, num tinha
fósforo nem isqueiro, nada.

Eduardo Coutinho: Num vai me queimar, não?

Assis: Num vai queimar não.

Eduardo Coutinho: Isso é então aqui o senhor bate?

Assis: É olha a hora que quiser apagar é só tampar

Eduardo Coutinho: Mas usava pra acender fogo ou só pra fumar? Pra
tudo?

Assis: Pra fumar e fazer fogo.

Eduardo Coutinho: E o senhor guarda isso ainda como lembrança ou usa?

Assis: Mas homi! É uma lembrança grande pra meus netinho. Quando eu
chegar morrer diz: “o vô boinho”, é uma sacolinha guardado já sabe, aonde eu
vou. Eu levei isso um dia pro banco, pro banco lá arranjei cartaz, o gerente do
banco fico comigo oh.

Equipe: Tchau! Ih! Espera ai, para tudo! Filma isso! Deixa, deixa vamos ver
o quê que ele vai falar.

Eduardo Coutinho: Muito Obrigado!

Assis: Igualmente.

Eduardo Coutinho: Podia ficar que tava em boas mãos.

Assis: Aqui já deixaram foi dinheiro de comprar propriedade. Com três dias
o cabra veio e achou o dinheiro.

Eduardo Coutinho: Eu sei.

Assis: Graças a Deus!

Eduardo Coutinho: Brigadao seu Assis!


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Assis: Desejo felicidades pra vocês. Deixa saudade da gente, deixa
saudade, saudade.

Eduardo Coutinho: Nós também.

Assis: Mas a gente num pode... O quê que há de fazer?

Eduardo Coutinho: Daqui um ano, heim!

Assis: Se Jesus quiser! Venha pegar um almoço aqui em casa, no barraco


do velho.

Eduardo Coutinho: Pode ficar a vontade.

Assis: Se Jesus quiser! Felicidade grande meu povo! Felicidade pra vocês
grande, grande, grande, uma grande felicidade!

19) ANTONIA E VIGARIO DESPEDIDA (1:33:42)

Antonia: Oi!

Eduardo Coutinho: Como é que vai?

Antonia: tô bem.

Rosa: Tá ariando os pés?

Antonia: É.

Rosa: É? Tudo bom?

Antonia: Tudo bom.

Eduardo Coutinho: Tudo bem?

Rosa: Cadê vigário?

Antonia: Foi lá no serrote tragar o gado

Eduardo Coutinho: Ih!

Rosa: Foi? Ta longe!

Eduardo Coutinho: Vamos esperar ele chegar, né?


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Antonia: Ah espere.

Eduardo Coutinho: Antes de sair o sol ele vem?

Rosa: Será que antes do sol se for ele vem Tonha?

Antonia: Ele chega já, já. Ele foi, mas já tá vindo.

Rosa: Opa foi se arrumar! A senhora gosta de se arrumar, não gosta?

Antonia: Eu gosto.

Rosa: Gosta. E Vigário foi olhar o quê, o gado?

Antonia: O gado lá no serrote, tá bem perto de chegar, faz tempo que ele
foi. Ele tá bem pertinho de chegar.

Rosa: Foi só?

Antonia: Foi só.

Rosa: Ele agora ta bem, né?

Antonia: Ta. Graças a Deus, é um amor.

Rosa: É?

Antonia: É.

Rosa: E quando ele tá meio agitado, como é que é?

Antonia: Nã, nã num brigo com ele não.

Rosa: Ele sai e num tem hora pra chegar, né?

Antonia: É? Eu anoiteço e amanheço aqui sozinha. E ele no mundo. Eu


num tenho medo de ficar aqui só não. Ele ontem foi pra rua, chegou meio
queimado, mas ai, deitou e saiu. Eu chamei ele pra dentro, botei o que comer e
pus ele pra se deitar.

Rosa: Mas chega calmo num te diz nada não?

Antonia: Não diz nada com eu não maltrata eu num maltrata nada.

Rosa: Mas a senhora também não se irrita não?

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Antonia: Eu não. Eu não. Eu já sabia que ele bebia no dia que eu me
apaixonei por ele. Ele tava bêbado. Ai pronto.

Vigário: Olá! E ai tudo bem?

Rosa: tudo bom.

Vigário: E ai seu Leocádio?

Vigário: Nosso senhor deu sessenta pro burro, de idade. Ele disse que
não, pra apanhar e pegar peso só bastava trinta, o resto dos trinta, ele deixava pro
homem.

Eduardo Coutinho: Quem pediu o burro ou nosso senhor que disse?

Vigário: Ele deu ao burro essa idade, o burro agradeceu, só quis trinta, né?
Se for pra pegar peso, apanhar só bastava trinta anos. O cachorro era trinta
também, mas ele disse que pra roer osso e levar pancada, quatorze já tava bom
demais. Só quis quatorze.

Eduardo Coutinho: O burro e o cachorro passaram pro homem?

Vigário: A idade deles disse que podia dá ao homem, o resto num queria
não.

Eduardo Coutinho: Por isso que o homem vive mais?

Vigário: Tem homem que dura até cento e tanto, né?

Eduardo Coutinho: E foi vantagem pro homem isso?

Vigário: Acredito que não, né? Porque se for sofrendo é muito ano, né?

20) LEOCÁDIO DESPEDIDA (1:36:42)

Eduardo Coutinho: Seu Leocádio!

Leocádio: Positivo.

Eduardo Coutinho: Como é que vai o senhor?

Leocádio: Tudo bem.


240
Eduardo Coutinho: Onde é que o senhor mora mesmo, é ali?

Leocádio: Sou que nem o vento, uma folha seca.

Eduardo Coutinho: Como é que é o senhor é? Como?

Leocádio: Hum?

Eduardo Coutinho: O senhor é como o vento?

Leocádio: Eu sou como o vento. Oh meu Jesus do céu! O senhor crê em


Deus?

Eduardo Coutinho: Eu? É complicado isso, né?

Leocádio: Crê na natureza, né? Porque quem crê na natureza crê em


Deus.

Eduardo Coutinho: É. Mais ou menos

Leocádio: O senhor acha que acreditar em Deus é ilusão?

Eduardo Coutinho: Não num acho. Eu num sei. É difícil saber essas
coisas.

Leocádio: Existira Deus no céu?

Eduardo Coutinho: Como é que é?

Leocádio: Existe Deus no céu?

Eduardo Coutinho: Se existe?

Leocádio: Existe.

Eduardo Coutinho: Acho que seria bom né? Mas não sei né? Queria
saber.

Leocádio: O senhor acha que vai alguém pro céu?

Eduardo Coutinho: Também queria saber.

Leocádio: Como?

Eduardo Coutinho: Também queria saber.

Leocádio: Num vai não.


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Eduardo Coutinho: Mas num sei. Num vai não?

Leocádio: Pro céu?

Eduardo Coutinho: Ah é.

Leocádio: Para o reino de Deus num vai ninguém não.

Eduardo Coutinho: Como? Vai pra onde?

Leocádio: O reino de Deus é pra Jesus e os apóstolos e alguns santos.


Alguns santos e mais ninguém. Uns que tem algum lugar bom lá, no jardim do
paraíso, pra aqueles que merecer, e o mais, aquele que não ganha a vida eterna,
o que ganha a vida eterna, ganha algum lugarzinho bom. E aquele que num ganha
a vida eterna, vai dormir eternamente. O osso e a carne viram pó em terra, até não
existir nada. E só ha de acordar um dia quando ele chamar. Quando o filho do
homem chamar.

Eduardo Coutinho: Quando o filho do homem chamar acorda?

Leocádio: Ha de acordar quando ele chamar e se num chamar nunca,


nunca acorda. Ai chama-se a morte eterna.

Eduardo Coutinho: Purgatório existe?

Leocádio: Existe! Purgatório e qualquer num canto, qualquer num canto.

- Mas reza pra Deus... Purgatório... Mas reza, reza é quase uma poesia.

Eduardo Coutinho: É quase uma poesia...?

Leocádio: É quase uma poesia. Reza! É quase uma poesia.

Eduardo Coutinho: Reza?

Leocádio: Reza.

21) DONA MARIQUINHA DESPEDIDA (1:39:15)

Eduardo Coutinho: Vamo lá pra sala dona Mariquinha.

Mariquinha: Vamo, vamo.


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Eduardo Coutinho: Sentar, né?

Mariquinha: É vamos conversar.

- Nunca pensei de ver um retrato de um cachimbo.

Eduardo Coutinho: Nunca! Nunca viu um retrato tirado de um cachimbo?

Mariquinha: Não.Vejo na, na eu vejo na televisão, os véio com cachimbo


na mão.

Eduardo Coutinho: Mas a senhora mesmo nunca se viu?

Mariquinha: Não! Eu tô vendo esse.

Eduardo Coutinho: Num tá bonita?

Mariquinha: Tá joia e carinha.

Eduardo Coutinho: E no dia da aposentadoria, se a senhora aparecer


bem, aposentadoria é um dia bom pra senhora?

Mariquinha: É bom.

Eduardo Coutinho: Tem crédito, né? O quê que quer dizer isso? Ahm?
Conta! E a birita? É a cachaça ou não? Ahm? Vai dormir seis da manhã ou não?

Mariquinha: É. Bebo uma lapada. Bom muito, muito. Eu bebo muito aí vai
se minha feira, e paga quem eu devo e venho embora.

Eduardo Coutinho: Ai come e bebe bem?

Mariquinha: Ai chegar, em casa que eu bebo.

Eduardo Coutinho: E come também?

Mariquinha: Ai pode ficar no fogo, ai vou comer, vou armar a minha rede, e
vou dormir. Pronto! Que foi que houve? Nadinha, num devo.

Eduardo Coutinho: Aí pode dormir bem tarde?

Mariquinha: Mas homi.

Eduardo Coutinho: O pessoal de Araçás gosta da senhora?

Mariquinha: De eu. Pouca gente.

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Eduardo Coutinho: Num gosta?

Mariquinha: É. Porque também sou nojenta.

Eduardo Coutinho: O que quer dizer nojenta?

Mariquinha: Porque eu num gosto de adular.

Eduardo Coutinho: Nojenta é que adula, é isso?

Mariquinha: É. É gente adulador que é chaleira.

Eduardo Coutinho: Chaleira.

Mariquinha: Eu num gosto de adular ninguém. Goste de eu quem gostar.

- Agora, eu só não gosto de brigar.

Eduardo Coutinho: Dona Mariquinha!

Mariquinha: Oi!

Eduardo Coutinho: A senhora sabe que a gente veio se despedir, né?

Mariquinha: Foi.

Eduardo Coutinho: Porque domingo é o ultimo dia. A gente vai na casa da


Rosa. Então hoje é praticamente o ultimo dia, tá bom?

Mariquinha: Tá bom!

Eduardo Coutinho: Eu espero que a senhora tenha boa sorte. Daqui um


ano se a gente voltar espero encontrar a senhora viva e forte, pra mostrar o filme,
tá bom?

Mariquinha: Tá bom! Homi, é isso mesmo. Deus queira que nós ainda se
veja.

Eduardo Coutinho: Isso.

Mariquinha: Né não?

22) CHICO MOISÉS DESPEDIDA (1:42:03)

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Rosa: Tua mãe tá aqui? Tá?

Eduardo Coutinho: Chico!

Rosa: Lá vem ele!

Eduardo Coutinho: Oi Chico!

Chico Moisés: Estou aqui. Apareceu alguma coisa a mais de estranho?

Eduardo Coutinho: O quê? Viemos despedir.

Chico Moisés: Já vai?

Eduardo Coutinho: Domingo. Daí pode ser que agente não se veja. E eu
gostei muito da conversa.

Chico Moisés: Ah! Eu tenho um prazer... E tão filmando...

Eduardo Coutinho: Como é que é?

Chico Moisés: E tão me filmando.

Eduardo Coutinho: Porque gostamos da sua conversa.

Chico Moisés: Gostaram?!

Eduardo Coutinho: É. Se não, não voltava.

Chico Moisés: E todo tempo que... Se achou que gostou... Adonde tiver...
pode me chamar que eu to pronto. Também pra dizer a mesma coisa.

Eduardo Coutinho: Que bom. Daqui há um ano, quando o filme tiver


pronto, agente volta aqui.

Chico Moisés: Ah não! Daqui há um ano, eu não garanto que to vivo.

Eduardo Coutinho: Por quê?

Chico Moisés: Porque não.

Eduardo Coutinho: Por quê?

Chico Moisés: Por eu... Porque sinto.

Eduardo Coutinho: Pela saúde?

Chico Moisés: É.
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Eduardo Coutinho: Tem que ter fé e se tratar!

Chico Moisés: Fé? Fé? Se fosse por fé eu já tava no caminho do céu.

- Agora, desse lado é mio, né? Pra gente conversar, né?

Eduardo Coutinho: Por que você diz isso?

Chico Moisés: Porque eu dou uma mudança.

Eduardo Coutinho: O senhor preparou uma mudança. Hein!?

Chico Moisés: Ah sim!

Eduardo Coutinho: O senhor podia ser ator de cinema!

Chico Moisés: Não!

Eduardo Coutinho: O senhor mesmo fez a mudança! Eu nunca vi isso!

Chico Moisés: Mas mesmo... Mas mesmo que eu fosse... Mas eu nunca
trabalhei. Eu nunca fiz isso. Pra que ora? É o senhor é quem ta dizendo.

Eduardo Coutinho: O senhor que mudou! Que fez uma mudança!

Chico Moisés: Não. Mas eu fiz uma porque... porque eu to cansado. Sabe?

Eduardo Coutinho: E fazer uma mudança descansa?

Chico Moisés: É. Ou fica bonito... Ou feio.

Eduardo Coutinho: E tem um perfil... Agora tem outro. Não é isso?

Chico Moisés: Isso.

Eduardo Coutinho: Um dos dois vai segurar.

Chico Moisés: Ah! Mas será possível que peleja pra me pegar, e nunca
pega, e sempre eu vou continuando sempre... Na mesma linha.

Eduardo Coutinho: Por que será?

Chico Moisés: Eu sei. Porque o sabido é o senhor.

Eduardo Coutinho: Por quê?

Chico Moisés: Porque é.

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Eduardo Coutinho: Por quê?

Chico Moisés: Oh! Se eu fosse sabido, eu que andava... filmando..., e


faturando as pessoas. Né? Errei?

Eduardo Coutinho: Não. Mas eu vim procurar o senhor duas vezes,


porque o senhor é sabido também.

Chico Moisés: Eu sei... Acha que eu sou sabido?

Eduardo Coutinho: Acho.

Chico Moisés: Como? Só porque eu tô sendo filmado assim? Porque...

Eduardo Coutinho: Não. Mesmo sem filmar, se conversasse com o


senhor, eu via que o senhor tinha umas idéias interessantes. O senhor pensava...,
o senhor...

Chico Moisés: Que pena! Né? E o que sei não disse. Só fiz começar.
[PAUSA] O senhor já entendeu tudo!

Eduardo Coutinho: Entendi?

Chico Moisés: Entendeu! Quem foi o primeiro chegou aqui? Não foi o
senhor?

Eduardo Coutinho: Foi.

Chico Moisés: Então!?

- Mas é bom, falar com uma pessoa sabida hein! Ele fica só... E se fosse...
E se fosse não... É mais que investigador, locutor, sabedoria, cientista e tudo. O
senhor é! Mas tudo é sabedoria que tem aqui. Tudo é sabedoria!

Eduardo Coutinho: Tudo?

Chico Moisés: E tudo inteligente. Mas pegou esse matuto velho aqui...,
conversando esse tipo de coisa... Mas não sei se eu sei. Penso que sei. Será que
sei?

Eduardo Coutinho: Boa pergunta né?

Chico Moisés: É.

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Eduardo Coutinho: Certeza não tem mais... Né?

Chico Moisés: Não. A certeza é o que eu disse: vê com os olhos e pega


com a mão. E aqui eu to vendo. Só não pego com a mão, porque eu não quero
tocar. Mas eu to vendo.

Eduardo Coutinho: Pode tocar!

Chico Moisés: Ora! Mas... Não é Deus!?

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