Você está na página 1de 6

CERRI, Luis F.

Os conceitos de consciência histórica e os desafios da Didática da


História. Revista de História Regional. Ponta Grossa, v. 6, n. 2, p. 93-112, 2001.

Em seu artigo, Cerri (2001) se propõe uma análise do conceito de “consciência


histórica” a partir de vários autores, fazendo um embate de um problema central ao
fenômeno que esse conceito designa: se a consciência histórica é uma construção
sociocultural particular a uma época ou se ela é imanente ao sujeito humano. A
questão sobre a relação entre identidade social e consciência histórica também é
analisada. E, a partir das implicações da escolha de uma das perspectivas do embate
anterior, o autor aborda algumas questões sobre a didática do ensino de História, que
perpassam a metodologia propriamente dita mas também a função social do ensino
dessa disciplina, além das relações entre os sujeitos produtores do conhecimento
historiográfico, o modo como este conhecimento chega à escola e como se irradia à
população em geral.

O filósofo alemão Hans-Georg Gadamer e o historiador francês Philippe Ariès


são os dois principais autores que Cerri traz à discussão entre aqueles que defendem
um conceito de consciência histórica como algo construído e particular a uma época
e sociedade; a época Moderna e as sociedades ocidentais “complexas” seriam o
ponto de inflexão espaço-temporal onde esse fenômeno poderia ser mais nitidamente
observado. Para Gadamer, a consciência histórica é a consciência da historicidade e
relatividade das formas de apreensão e significação da realidade, algo que os
modernos teriam conquistado. Para Ariès, não utilizando-se necessariamente do
termo consciência histórica, mas de “tomada de consciência da história” − esta seria
um processo que culmina com os agentes históricos se apercebendo das
determinações que a história impõe naquilo que eles vêm a se tornar, mas igualmente
apercebem-se de que possuem algum nível de liberdade capaz de contraposição a
essas determinações, ou seja, os indivíduos passam a se ver como sujeitos nos
acontecimentos e processos históricos. O questionamento que Cerri coloca sobre
essas perspectivas é que, se assim o é a consciência histórica, existiriam incontáveis
indivíduos com uma “consciência histórica alienada”, mesmo que integrantes das
sociedades complexas, o que facilmente pode tomar uma conotação de inferioridade.

Os dois principais autores que Cerri traz e que defendem um conceito de


consciência histórica como algo imanente ao ser humano são o historiador alemão
Jörn Rüsen e a filósofa búlgara Agnes Heller. Para esta, a consciência histórica é
constituinte do estar-no-mundo dos homens, independentemente das diferenciações
sociais e da localização espaciotemporal. É composta de vários estágios, indo do
momento da produção de normas sociais ao momento em que os homens concebem
sua existência e produções de todo tipo como históricas, ao momento do
reconhecimento das limitações do progresso. Para essa autora, a consciência
histórica é um fenômeno que responde à necessidade, ou consequência do estar-no-
mundo, de significação, a partir do presente, do mundo e dos próprios homens em
sua historicidade. Para Rüsen, porque o agir humano é atravessado pela
intencionalidade, e só assim ele age, impõe-se uma necessidade de interpretação
constante. Esse agir é sedimentado por um passado que é reiteradamente
interpretado à lume do presente e das projeções sobre o futuro. Por consequência,
estritamente, para esse autor a consciência histórica é composta, de um lado, pelo
conjunto de operações mentais e, por outro, pelo conjunto de referenciais através dos
quais os homens significam o mundo e a si mesmos, podendo orientar-se
intencionalmente. São as perspectivas desses dois autores que Cerri toma para a sua
leitura do problema da consciência histórica.

Uma das questões subsequentes à análise do conceito de consciência histórica


é seu papel na construção da “identidade social”. A definição de Cerri para esta é:
“conjunto de ideias [...] que tornam possível uma delimitação básica para o
pensamento humano: nós e eles, pertencente ou não pertencente ao grupo” (p. 101).
Esse conjunto, o qual os indivíduos tomam como referencial, sempre é fruto de uma
coletividade que os antecede. Para a impreterível produção e manutenção da coesão
dessa coletividade são produzidos significados sobre sua existência nos três sentidos
da percepção temporal; e ainda que tais significados possam ser produzidos a partir
de diferentes referenciais, é por conta dessa possibilidade que existem diferenciadas
consciências históricas e uma diversa composição das práticas e discursos
necessários aos indivíduos para herdá-las, a sua necessidade é universal e crucial à
continuidade da coletividade ou sociedade.

Ao tratar dos problemas na parte da didática do ensino de história, Cerri recorre


a informações produzidas pelo projeto Youth and History (Juventude e História). A
partir do resultado das pesquisas desse projeto, o autor conclui: é limitada a influência
dos discursos manifestos na disciplina história pelo professor sobre os discursos que
os alunos produzem sobre os eventos e processos históricos, isso porque a escola
não é o único determinante na formação da consciência histórica do aluno; é limitada
a submissão do professor ao currículo ao oficial, logo sobre o seu fazer e o resultado
deste. E mais, as mudanças sobre as formas de ensinar e aprender não seriam
suficientes para contornar esses problemas, uma vez que a questão do ensino de
história entra numa dimensão que está para além dos seus contemporâneos – a
função do ensino de história estaria relacionada a processos de formação identitária
e manutenção da sociedade que se encontram na longa duração. Assim encarada a
função social do ensino de história e os diferentes usos que se faz dela, das pessoas
comuns aos especialistas, o autor acredita que diminuiria a angústia dos professores
gerada a partir da tensão entre a imaginação de um ensino de história ideal e as
limitações concretas que o ensino de história assume quando encarnado na realidade
histórica das instituições escolares.

Por fim Cerri aborda a relação entre saber histórico e saber escolar. O que
deve-se considerar primeiramente é que existem diversos saberes históricos,
consequência própria da diversidade de formas que a consciência histórica pode
assumir; desse modo, aqueles tipos seriam apenas dois entre muitos, ainda que
quando se trate do saber histórico acadêmico este tenha-se tornado o referencial mais
atravessado por poder. Há diferenças qualitativas entre o saber histórico produzido na
academia e o saber histórico manifestado na escola, diferenças que passam pelas
“finalidades, fontes de informação, procedimentos de trabalho e resultados” (p.108); é
por conta disso, Cerri citando Rüsen, que se faz necessária uma disciplina para o
aperfeiçoamento do ensino de história, sua didática. Cerri também acredita valiosas
as contribuições de Klaus Bergmann sobre o papel da didática do ensino de história.
Esta comporia uma subdisciplina interna à História como campo disciplinar, e estaria
preocupada com a “formação, conteúdo e efeitos da consciência histórica”
(BERGMANN apud CERRI, p. 109). Assim tomada, a didática da história não se
reduziria à metodologia de ensino, mas também seria pesquisa, que se realiza no seio
da realidade social e assumiria uma postura propositiva na hora do ensino; isso
acabaria por contribuir para o retorno social dos investimentos feitos na História, uma
vez que os pesquisadores, através mesmo da pesquisa de professores, estariam mais
alertados sobre as “demandas de sentido” que a dinâmica histórica produz em dado
momento.

***

Uma pergunta que sempre faço-me durante a leitura de qualquer que seja o
texto: em qual mundo a visão desse autor faria sentido sem que fosse solapada por
outras formas de enxergar as coisas, o mundo e os homens? Apesar da diferença
entre o conceito de consciência histórica em Ariès e Gadamer, construção, e em
Rüsen e Agnes, imanente, na sociedade ela acaba por impor-se prática e eticamente
como proposições que levem à transformação social; para os dois primeiros essa
transformação estaria no sentido de possibilitar o desenvolvimento da consciência
histórica aos que não a possuem; nos outros dois, por reconhecerem a multiplicidade
do saber histórico, logo de diferenciadas consciências históricas, a transformação se
daria por proposições que sejam consensuais, não um resgate dos alienados como
soaria nos primeiros, mas a definição consensual e intencional dos desdobramentos
do saber histórico dominante ou que se assumirá dominante (pergunto-me,
consensual e intencional quanto a quem? Pois no seio social, precipuamente nos
espaços públicos oficiais, a hegemonia do saber histórico acadêmico assume uma
postura clara de violência simbólica, nos termos de Pierre Bourdieu, até mesmo
prática quanto aos outros saberes e os sujeitos que os produzem).

Esse é o desdobramento social da questão da consciência histórica, que nos


impele olhar para a sociedade do alto e ver, no mínimo tentar, quais rumos as coisas
tomarão. Mas esse desdobramento, ao menos de forma ideal, pode ser claramente
visto nos discursos, de forma proporcional ao seu tom propositivo. A questão que eu
coloco, e que me é mais importante segundo o tipo de subjetividade e formas de
pensar que cultivo, é: escolhemos o papel social de professores, mas o indivíduo que
desempenha esse papel é muito mais do que ele, logo uma projeção do papel do
professor que passa a ser inteiramente absorvido num projeto de sociedade exige
compromisso total do professor com esse projeto (os discursos, valores,
comportamentos). Ao trazer essa problemática para a dimensão existencial, onde se
impõe as questões de como o sujeito experiencia sua própria existência no mundo,
também reacendo o velho embate entre agência e estrutura, ou entre uma perspectiva
que dilui o sujeito na sociedade e outra que ver a possibilidade do sujeito se insurgir
contra ela. Neste momento, tanto dessa discussão no seio do programa residência
pedagógica quanto no artigo do Cerri, esta é uma dimensão que tem sido ignorada;
talvez pela dimensão do sujeito que se quer ai mobilizar seja unicamente a própria
dimensão social, a parte em que o sujeito se encontra com a sociedade e onde é
definido o modo que irá operar os seus papéis sociais, tornando-se um sujeito o mais
funcional possível.
Essas são questões no âmbito da experienciação da realidade social a partir
dos discursos escolhidos para significa-la, mas há questões mais teóricas que caberia
aqui trazer, a exemplo das considerações sobre o que é “consciência” que estão
sendo desenvolvidas nas neurociências, e que pouco tem se servido os historiadores;
talvez pela implicações que se imporiam ao campo disciplinar da história, uma vez
que haveria uma reconceituação memória, consciência histórica, também sobre
questões que dizem respeito aos limites da percepção e outras; mas também seria
uma contribuição de mão dupla, uma vez que muitos estudos nas neurociências
parecem desencarnados de uma historicidade para além da evolução, fenômeno de
longuíssima duração. Quanto à consciência histórica, principalmente com Rüsen e
Agnes, dizer que ela é imanente é só parte da explicação, no máximo poder-se-ia
dizer, no momento, que a consciência histórica é um processo ou função que podemos
observar no comportamento humano, mas ainda não temos conhecimento sobre a
forma ou estruturas que permite a existência desse fenômeno; a neurociência aposta
no cérebro, mas os avanços na resolução desse problema andam a passos
curtíssimos. Ao não saber quais formas ou estruturas permitem algo como a
“consciência histórica”, o espaço de especulação se torna bastante flexível.

No que Cerri traz de Rüsen e Agnes em seu artigo, a consciência histórica seria
consequência de se estar num mundo histórico e do próprio sujeito humano ser
histórico e por conseguir projetar-se nos três sentidos do tempo, o que instauraria uma
necessidade de significação constante do estar-no-mundo, uma vez que uma das
consequência da consciência é a intencionalidade e o agir humano sempre seria
atravessado por algum grau desta. Com isso temos historicidade, consciência
histórica e significação, os três interagem e são constantes na existência humana
independentemente do espaço-tempo. Há algo que se deixou passar nas
considerações sobre historicidade e que me parece permitir habilitar também o
conceito de consciência histórica enquanto construção sem se cair na implicância de
considerar outros indivíduos ou sociedade alienados: aceitamos, atualmente e em
bom número, que tudo na existência humana sofre da história, ou melhor, do princípio
de historicidade, assim o é e foi em todas as épocas que o ser humano esteve. Por
outro lado, se tudo na existência humana sofre de historicidade, na prática, aquilo que
vem à consciência histórica como sendo histórico nem sempre é o mesmo. Em
diferente épocas há coisas que se admite ou não históricos, assim como Gadamer
parece-me que só recentemente tudo o que existe passou a ser tomado como
atravessado pela historicidade. Rüsen traduz isso como a “forma” histórica que algo
geral, a consciência histórica, toma. Ainda assim, não soa-me incorreto falar de
“tomada de consciência” da historicidade de algumas coisas ou abertura da forma da
consciência histórica para coisas que antes não se davam a ela, assim não sendo
consideradas históricas ou parte da consciência histórica; parece-me que são a essas
coisas que, de forma muito mais restrita do que acredito ser, Rüsen chama “tradição”.

Você também pode gostar