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A onda de protestos que vem ocorrendo nas últimas semanas evidencia a justa

indignação do povo brasileiro com a corrupção e a ineficiência da


administração pública, um fenômeno histórico, que não vem de hoje nem é
privilégio da administração petista, embora pareça ter-se acirrado nos últimos
anos.

Tenho minhas dúvidas se proporcionalmente houve de fato um aumento na


escala do assalto aos cofres públicos, que sempre foi uma tradição na política
brasileira, na colônia como no país independente, no Império como na
República, na República Velha como no Estado Novo, nos governos civis como
nos governos militares. Acredito que, ao menos em parte, o foco sobre os
casos de corrupção no atual governo se deve à continuada liberdade de
imprensa, que permitiu o aperfeiçoamento do jornalismo investigativo e,
paradoxalmente, ao inegável crescimento da economia nos últimos anos.

O governo contabiliza sucessivos recordes na arrecadação dos impostos e é


inevitável que parte do dinheiro seja investida – a parte que sobra após pagar
as despesas de custeio (onde há um desperdício até hoje pouco abordado de
maneira sistemática pela imprensa) e os juros da dívida interna.

É claro que muitas vezes investe-se em obras ou programas de prioridade


discutível, mas há também dinheiro aplicado em coisas úteis. De qualquer
modo, são novos contratos, novas licitações, novas oportunidades para que os
desonestos se locupletem. Afinal, quando o paiol está cheio de milho, os ratos
fazem a festa... principalmente se não há um gato por perto.

Como afirmei acima, a corrupção é um fenômeno antigo e enraizado na política


brasileira. Para ficar num só exemplo, em 18/07/1969 nossa presidente Dilma
Rousseff participou1 do famoso assalto à casa da amante do ex-governador
paulista Ademar de Barros, cujo “slogan” informal de campanha era “Rouba,
mas faz”; parte do dinheiro obtido ilicitamente por Ademar estaria em um cofre
naquela residência.

A organização terrorista (ou “idealista” como querem alguns...) VAR-Palmares


conseguiu levar o tal cofre, que ao ser aberto revelou a quantia de
$2.160.000,00 (dois milhões e cento e sessenta mil dólares americanos),
usados para financiar o treinamento de militantes no exterior e a luta armada
no Brasil.

A quantia encontrada no cofre representaria hoje pouco mais de


2
$13.700.000,00 (treze milhões e setecentos mil dólares) . Se, de fato, esta

1 Conforme entrevista de seu ex-marido e companheiro na guerrilha, Carlos Araújo, ao jornal


Zero Hora de Porto Alegre, em 13/09/2009. A presidente nega sua participação.
2 Segundo o CPI Inflation Calculator do US Bureau of Labor Statistics

(http://www.bls.gov/data/inflation_calculator.htm)
quantia foi amealhada através de negociatas, podemos estar certos que já nas
décadas de 1950 – 1960 havia corruptos que nada ficam a dever aos do
presente.

Felizmente, a tolerância da população com a impunidade parece ter chegado


ao fim. E aparecem alguns juízes e promotores corajosos que se dispõe a agir
conforme os ditames de sua consciência e não de sua conveniência. Por
enquanto são exceções, tanto que o Ministro Joaquim Barbosa foi equiparado a
um semideus por ter feito aquilo que, em um país civilizado, é normal e
corriqueiro: analisou as evidências do processo, concluiu pela culpabilidade de
alguns dos acusados e aplicou a eles as penas previstas na lei. É uma tragédia
que, no Brasil isto seja um fato histórico. Em meu entender, constitui-se na
demonstração mais completa de nosso atraso como nação.

Mas tudo leva a crer que iniciamos finalmente uma jornada rumo à verdadeira
democracia. As manifestações populares já surtiram efeito; foi rejeitada a
infame PEC37 e caiu o vergonhoso voto secreto. Houve alguma baderna nas
passeatas, mas isto é fácil de resolver: basta que os governadores tenham a
coragem moral de reprimir os (poucos) baderneiros, usando a força na medida
necessária. Quem destrói bens públicos ou privados deve ser preso e
processado na forma da lei. É simples assim.

Fala-se agora na reforma política à toque de caixa. Tudo tem que estar pronto
e aprovado até outubro. É possível fazer, pois os políticos vêm discutindo o
assunto (na realidade empurrando com a barriga) há uns dez anos e já estão
preparados para chegar a uma decisão. Não decidiam porque a última coisa
que desejam é serem cobrados por esses que eles veem como “uma gentinha
à toa que só serve para pagar nossas mordomias e falcatruas”. Coloquei o final
da frase entre aspas por provocação; nenhum político foi maluco a ponto de
dizer isto. Mas alguém duvida que muitos de nossos parlamentares pensam
assim?

O ponto crucial para que se faça uma reforma política efetiva, que dure uma
geração e não apenas uma eleição é explicar muito bem ao povo o que
está sendo debatido. Tenho visto na internet várias propostas bem
intencionadas mas sem lógica, demonstrando que falta muita informação para
votar num plebiscito sobre o assunto.

Apenas como exemplo, eis uma das propostas que estão circulando e alguns
comentários sobre as sugestões apresentadas.
PROPOSTAS DE REFORMA POLÍTICA

1) FIM DE TODOS OS CARGOS DE CONFIANÇA REMUNERADOS;


Comentário: Uma ideia absurda. Um presidente, ou governador, ou
ministro precisa de auxiliares que mereçam sua confiança pessoal e
estejam alinhados com seus objetivos. Estas pessoas devem ser
remuneradas, caso contrário somente milionários poderiam ser
convidados para tais cargos. O que é necessário é reduzir muito, mas
muito mesmo, o número de cargos de confiança. No final de 2011
havia cerca de 25000 cargos de confiança só no governo federal, o que
era praticamente o triplo do número existente nos Estados Unidos.

2) REDUÇÃO DOS MINISTÉRIOS DE 40 PARA 20, QUE AINDA É


MUITO;
Comentário: A questão não é tanto o número de ministérios, mas a
eficiência da administração pública. Por que 20 e não 15 ou 25? Se
houver 10 ministérios mantendo a mesma estrutura perdulária,
ineficiente e corrupta que, infelizmente, caracteriza muitos órgãos
públicos, não haverá melhoria alguma.

3) REDUÇÃO DOS SENADORES DE 81 PARA 41;


Comentário: Só se passarmos a ter 40 estados mais o Distrito
Federal... O número de senadores tem que ser o mesmo para todas as
unidades da federação; como são 27 unidades federativas, o Senado
tem que ter n x 27 (27, 54 , 81, ...) senadores. A função do Senado é
justamente garantir a mesma representatividade para todos os estados,
evitando que os maiores sempre se imponham aos menores.

4) REDUÇÃO DOS DEPUTADOS FEDERAIS DE 513 PARA 257;


Comentário: A proposta é absurda. Ao contrário do que deve acontecer
no Senado, a representação de cada estado na Câmara deveria ser
exatamente proporcional à sua população (ou eleitorado). Supondo que
cada estado tivesse no mínimo 1 representante, a distorção que já
existe hoje na representatividade dos deputados ficaria ainda pior!. O
problema é o peso desigual dos estados, considerando a população.
Com a composição atual, um deputado de Roraima representa 53000
cidadãos e seu voto tem o mesmo peso do voto de um deputado de
São Paulo, que representa 570000. Isto porque a Constituição
estabelece um mínimo de 8 e um máximo de 70 deputados por estado,
de modo que as regiões Norte e Nordeste tem, proporcionalmente,
muito mais deputados do que as demais regiões. Se fosse mantido o
número atual de 513 deputados, mas respeitando a população relativa
dos estados (que é a lógica que deveria vigorar na Câmara) Roraima
teria 1 deputado (hoje tem 8) e São Paulo 110 (hoje tem 70). A Câmara
tem que ter no mínimo 437 deputados para que todos os estados
tenham representação e o critério de mesma representatividade seja
respeitado; neste caso, Roraima teria um deputado e São Paulo 93.

5) DEPUTADOS ESTADUAIS E VEREADORES, TAMBÉM CORTAR


PELA METADE;
Comentário: Provavelmente em conflito com a proposta 6, pois o voto
distrital tem como objetivo aproximar o eleitor de seus representantes, e
diminuir o número de representantes pode fazer com que os distritos se
tornem muito grandes, esvaziando o propósito da reforma. Agora,
quanto aos vereadores, não deveriam receber nenhum salário em
cidades com menos de, digamos, 100.000 ou 200.000 habitantes. O
Brasil tem nada menos que 5570 municípios, dos quais cerca de140
tem mais de 200.000 e cerca de 300 tem mais de 100.000 habitantes.
Na imensa maioria das pequenas cidades espalhadas pelo Brasil, o
vereador aparece uma ou duas horas por semana numa reunião onde
se discutem nomes de rua e embolsa todo mês vários milhares de
reais de salário. Um imenso desperdício!

6) VOTO DISTRITAL MISTO, ACABAR COM AS LEGENDAS QUE


ARRASTAM CANDIDATOS COM POUCA VOTAÇÃO;
Comentário: Por que não o voto distrital puro? Ou por lista partidária?
Que argumentos já convencem que o sistema de voto distrital misto é
o melhor?

7) TODOS OS CARGOS PÚBLICOS E POLÍTICOS COM CONCURSO


PÚBLICO E CRITÉRIO DE ESCOLHA TOTALMENTE TÉCNICO E
NÃO POLÍTICO;
Comentário: É impraticável, conforme comentado no item 1. Além disto,
ser aprovado em um concurso público rigoroso demonstra que a
pessoa é, com grande probabilidade, inteligente e estudiosa. Mas não
garante de forma alguma que seja honesta. O que estimula as pessoas
a serem honestas é uma boa formação moral (que não conta pontos
em nenhum concurso...), existência de controles financeiros
sofisticados e a punição certa e rigorosa dos que forem
comprovadamente culpados de fraudes.

8) REFORMA TRIBUTÁRIA, PARA QUE NÓS BRASILEIROS SAIBAMOS


QUANTO PAGAMOS E QUANTO RECEBEMOS PELO QUE
PAGAMOS;
Comentário: Sem dúvida uma reforma tributária é urgente e necessária.
Trata-se porém de assunto extremamente complexo, cuja discussão
não avança. Não faz parte da reforma política em si, mas se os
deputados e senadores forem cobrados pela população pode ser que
ande.

9) CADEIA PARA OS POLÍTICOS JÁ CONDENADOS E, INVESTIGAÇÃO


E PUNIÇÃO PARA OS QUE AINDA NÃO FORAM, PELO MINISTÉRIO
PÚBLICO;
Comentário: Não é reforma política, é simplesmente cumprir a lei.
Veja o Código Penal, na parte que trata dos crimes contra a
administração pública: peculato – 2 a 12 anos de reclusão e multa;
concussão – 2 a 8 anos de reclusão e multa; corrupção passiva – 2 a
12 anos de reclusão e multa; tráfico de influência – 2 a 5 anos de
reclusão e multa; e por aí vai. Contei 30 delitos tipificados nesta parte
do Código, vale dizer, tudo que eles (corruptos e corruptores) fazem já
é considerado crime...
No Brasil todas as constituições, desde a de 1824, estabelecem que
todos são iguais perante a lei. Mas nós todos sabemos que o que vale
mesmo é o princípio "Para os amigos tudo, para os indiferentes nada,
para os inimigos a Lei". Ou seja, para os amigos do "rei" de ocasião, os
poderosos do momento, as leis valem para os outros, não para eles. E
o poder no Brasil tem uma incrível capacidade de corromper, pois a
impunidade é a regra.

O princípio que citei acima tem raízes profundas em nossa maneira de


ver o mundo; para nós brasileiros é quase impossível conceber a
igualdade de todos perante a lei. Esta nossa característica está na base
do famoso “jeitinho”, do “você sabe com quem está falando?”, do
“pistolão”, da propina que se oferece ou é solicitada pelo guarda de
trânsito, do consumo e tráfico de maconha em lugares públicos com a
complacência das autoridades, e assim por diante, num crescendo de
desprezo pelas leis que contamina de alto a baixo toda a sociedade e,
naturalmente, todas as esferas do poder – inclusive o Judiciário - em
todos os níveis, e passa de geração a geração.

Se aceitarmos que cultura é "o conjunto de regras não escritas que


regem as relações sociais; é a programação coletiva da mente que
distingue os membros de um grupo ou categoria de pessoas de outros"
3 fica evidente que não há soluções fáceis para nossos problemas.

O Brasil só se tornará verdadeiramente uma grande nação quando a


cultura dos brasileiros aceitar como norma de convívio social o império
da lei.

3 Hofestede, Gert et al. Cultures and Organizations. 3rd ed., New York, NY: McGrawHill, 2010

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