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Olhares jornalísticos1

DEPOIMENTO
Dulcilia Schroeder Buitoni
Professora titular aposentada de Jornalismo da ECA-USP. Professora permanente do Mestrado
Profissional em Jornalismo da ESPM.
E-mail: dbuitoni@uol.com.br

Resumo: Dulcilia Buitoni fez parte da pri- Abstract: Dulcilia Buitoni graduated in
meira turma de Jornalismo (1967-1970) the first Journalism class at ECA-USP
da Escola de Comunicações e Artes da (1967-1970). At the same time, she
USP. Na mesma época, formou-se em graduated at Law School, also at USP.
Direito também na USP. Concluiu a pós- She also has Masters and Doctorate
-graduação (mestrado e doutorado) em degrees in Literary Teory and Compared
Teoria Literária e Literatura Comparada Literature. In her trajectory, Dulcilia has
pela FFLCH-USP. Em sua trajetória, Dulcilia developed concepts of gender relations
foi desenvolvendo conceitos de relações applied to journalism and her research
de gênero aplicados ao jornalismo, e se on female publications are well known
destacou em pesquisas sobre publicações among the field. Her book Mulher de
femininas. Seu livro Mulher de papel papel [Paper woman] (1981) originated
(1981), fruto da tese de doutorado, analisa from her Doctorate Thesis analyzes the
a representação da mulher na imprensa representation of women in the Brazilian
feminina brasileira e teve uma segunda female press. She has been researching
edição ampliada em 2009. Desde seu Image Theory since she became a PhD
início como docente na pós-graduação Professor at ECA. At the end of 2016
da ECA, além de comunicação e relações she received the Adelmo Genro Filho
de gênero, vem pesquisando teorias da award as a recognition of her academic
imagem, especialmente fotojornalismo trajectory and contribuition to journalism.
e documentários. Aposentou-se como
Keywords: Dulcilia Buitoni; ECA-USP; fe-
professora titular de jornalismo da ECA/
male press; communication and gender
USP e esteve, até 2015, no Mestrado em
relations; journalistic image; testimony.
Comunicação da Faculdade Cásper Líbero.
Em 2017, torna-se professora permanente
do Mestrado Profissional em Jornalismo
da ESPM. No final de 2016, recebeu —
como reconhecimento pela sua trajetória
acadêmica e por sua contribuição para o
jornalismo — o prêmio Adelmo Genro Filho
(categoria sênior), concedido pela SBPJor.
Palavras-chave: Dulcilia Buitoni; ECA- 1. Este depoimento foi
-USP; imprensa feminina; comunicação e feito por ocasião do re-
relações de gênero; imagem jornalística; cebimento do prêmio
depoimento. Adelmo Genro Filho
2016, como pesquisa-
dora sênior, concedido
pela Associação Brasileira
de Pesquisadores em
Jornalismo (SBPJor), em
Há exatos 49 anos, estou envolvida com jornalismo e comunicação. Meus cerimônia do Encontro
olhares sempre tiveram foco jornalístico. Narrativa, cinema, mulher, fotografia, Nacional, realizado em
Palhoça, Santa Catarina,
crianças, imagens. em novembro de 2016.

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Fonte: arquivo pessoal.


Fui da narrativa para a mulher, para a imagem, para a criança, para a
educação, para imagem novamente — uma foi se articulando com outra —, uma
constelação de temas, um influindo no outro, sempre com um olhar jornalístico.
Começo com o embrião narrativo que, bem mais tarde, no século XXI, iria
se tornar um conceito aplicado à fotografia jornalística. Minha infância e juven-
tude foram vividas numa casa cheia de livros e revistas. De Machado de Assis
a Balzac, passando por toda a coleção de Julio Verne, a paixão pela narrativa
literária. E muitas revistas: O Cruzeiro, National Geographic, a feminina Parati,
da Argentina. Acompanhava as reportagens de O Cruzeiro, algumas verdadeiras
novelas, com fotos de Jean Manzon. Encantava-me ler em espanhol as matérias
da Parati. Mulher, fotografia, imagem iam povoando a imaginação.
No colégio de freiras, só de meninas, fui desenvolvendo o gosto pela escrita.
Ao terminar o curso Clássico, queria fazer Jornalismo, mas só havia a Cásper
Líbero e pensava em entrar numa universidade, com muitas áreas e muitos
alunos. Fiz então vestibular para Direito, entrei na São Francisco. Quando
terminava o primeiro ano, a ECA, então Escola de Comunicações Culturais,
abriu o vestibular.
O decreto de criação da nova escola foi assinado em 1966, pelo reitor Luiz
Antônio da Gama e Silva, que logo depois seria Ministro da Justiça do governo
militar e responsável pela redação do AI-5, em 1968. Meu caminho foi se fazen-
do entre essas duas faculdades cursadas ao mesmo tempo. Vivia dois mundos
opostos: Direito, a faculdade de pedagogia mais conservadora, e Comunicações,
a mais inovadora: precisava mudar de roupa quando ia da São Francisco para
a ECA. Porém, a São Francisco vivia um momento de grande efervescência
política, com seus alunos lutando contra a ditadura: a tomada da Faculdade
de Direito, em 1968, aumentou a temperatura do movimento universitário e
da política nacional. Também tomamos por alguns meses um dos prédios da
ECA, que funcionava na Cidade Universitária, em espaços adaptados.

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A presença constante da arte nas aulas, nos seminários e eventos fazia da


ECA uma experiência pedagógica dinâmica e envolvente: a interdisciplinaridade
aparecia como condição necessária para os estudos de Comunicação.
As turmas dos diferentes cursos — Cinema, Teatro, Rádio e TV, Jornalismo,
Publicidade, Relações Públicas, Biblioteconomia — tinham aulas em conjunto.
A ECA nascera sob o signo do cinema, do teatro, do jornalismo e de estudos
de linguagem. Diferentes áreas interagiam e se encantavam com aulas de Lupe
Cotrim, Paulo Emílio Sales Gomes, Sábato Magaldi. Eduardo Peñuela dava aulas
de Literatura Hispano-americana e nos fazia vibrar com cada parágrafo de A
Morte de Artemio Cruz, de Carlos Fuentes. Eu já vinha de uma grande paixão
pela literatura e Peñuela só fez aumentar meu amor pela narrativa. Professores
de Linguística e de Teoria da Comunicação nos levavam a ver filmes inéditos
em sessões especiais para nossa escola. Esta jovem se viu de repente com mais
dois colegas sentada em uma mesa de cantina, entrevistando o grande cineasta
italiano de Roma, Cidade Aberta, Roberto Rossellini, que viera para um simpósio
realizado pela nova faculdade.
Em 1970, último ano dos dois cursos, estagiei por três meses no jornal
Notícias Populares, do Grupo Folha e percebi definitivamente que eu não combi-
nava com sensacionalismo. No segundo semestre, houve uma seleção na ECA e
fui estagiar na Editora Abril, trilhando o caminho da reportagem. Comecei na
revista Intervalo, sobre televisão, que era dirigida pelo jornalista Milton Coelho
da Graça, de forte posicionamento político, também diretor da revista Realidade.
Suas reuniões de pauta eram verdadeiros workshops sobre jornalismo.
Mesmo com grande entusiasmo pelo trabalho de repórter, queria conti­nuar a
estudar e pesquisar. Ao terminar a ECA, fui aceita para a pós em Letras na USP,
área de concentração em Teoria Literária e Literatura Comparada, orientada por
João Alexandre Barbosa, orientação que se transformaria em grande amizade
acadêmica e pessoal. Tinha aulas com Antonio Candido, Boris Schnaiderman,
Walnice Galvão. O projeto de pesquisa sobre “O que seria o conto brasileiro
para participantes de um concurso nacional de Literatura” transformou-se na
análise da narrativa de fotonovela. Já então era funcionária da Editora Abril
e me impressionava a tiragem de 400 mil exemplares quinzenais da revista
Capricho, mais vendida da Abril depois de Pato Donald e Mickey, muito mais
que Veja e Cláudia. Queria saber por que aquela narrativa fazia tanto sucesso.
E João Alexandre, estudioso de João Cabral e Mallarmé, teve a generosidade
de aceitar a mudança de tema. O mergulho na mulher começava via narrativa.
O curso de Editoração iniciava-se na ECA em 1972 e houve uma seleção
para novos professores; José Marques de Melo era o chefe do Departamento
de Jornalismo e Editoração. Comecei a dar aula de Jornalismo Especializado
nesse mesmo ano. Ao mesmo tempo, eu era a jovem repórter de televisão, a
estudante de pós-graduação e a professora iniciante que dava aulas para uma
maioria de alunos muito mais velhos. As turmas contavam com muitos jornalistas
profissionais, ao lado de alguns jovens estudantes, que se tornaram conhecidos

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e talentosos jornalistas, como Gisela Swetlana Ortriwano, Ciro Marcondes, Paulo


Markun, Dilea Frate, Lillian Witte Fibe.
Anos 1970, anos de chumbo, em que os diretores da ECA eram docentes
de outras unidades, porque não havia professores titulares da escola. Havia um
clima de resistência e de enfrentamento político, e a ECA, a mais nova faculdade
da USP, era bastante vigiada. Professores não tiveram contratos renovados devido
às suas posições ideológicas. O grupo de jovens que iniciava a carreira docente
juntou-se a profissionais consagrados e intelectuais, principalmente de Cinema,
Teatro e Jornalismo, para construir um novo campo universitário, o campo da
Comunicação.
Esse começo, em plena ditadura, não foi fácil. Tive a felicidade de co-
nhecer Vladimir Herzog em 1975 — pena que cerca de um mês antes de sua
morte —, apresentado pela minha querida amiga e ex-aluna, Gisela Ortriwano.
Era hora do almoço, Herzog acabava de dar aula; simpatizei de imediato com
ele, imaginando que poderia trabalhar em conjunto com esse novo colega,
jornalista admirado que estava trazendo inovações no telejornalismo da TV
Cultura. Infelizmente essa possibilidade não se realizou.
Mesmo com as perseguições, demissões e prisões de professores, ainda nos
restava ânimo para resistir, cada um a seu modo. A importância do campo da
comunicação nas relações sociais e a vontade de produzir informação que ajudasse
no caminho da democracia nos estimulavam a continuar. Havia ainda a paixão
pela construção do conhecimento num espaço que convidava à interdisciplinaridade,
num espaço em que comunicações e artes podiam interagir.
Esses anos marcaram para sempre minha trajetória, me formaram como
docente e pesquisadora e reforçaram a convicção que vinha desde os tempos
de aluna, de que artes e comunicações devem trabalhar em conjunto. Em vez
de régua e compasso, a USP me deu letras e imagens para lutar por narrativas
transformadoras.
A década de 1970 foi vivida entre preparação de aulas, pesquisas de mestrado
sobre a fotonovela, reportagens com Milton Nascimento, Roberto Carlos, Gal
Costa, Eva Wilma, reuniões com políticos da oposição, participação em semanas
de Jornalismo, semanas de Editoração, nascimento de dois filhos, movimento
para Audálio Dantas ser eleito presidente do Sindicato dos Jornalistas, trabalho
como redatora e editora em revistas femininas, análise da imagem da mulher
na imprensa feminina brasileira para o doutorado.
Como eu tive dificuldade em encontrar bibliografia sobre imprensa femi-
nina quando pesquisava sobre fotonovela — a dissertação O quadrado amoroso
foi defendida em 1977 —, resolvi continuar nesse assunto que me fascinava.
Novamente sob orientação de João Alexandre Barbosa, fui atrás das primeiras
manifestações da imprensa feminina brasileira para chegar até o final dos anos
1970, com uma coleção das imagens predominantes em cada década. Defendi
a tese Mulher de papel: a representação da mulher na imprensa feminina brasileira
em 1980. Foi publicada em livro, em 1981, quando comecei a dar aula na pós-
-graduação da ECA. Em 2009, publiquei uma segunda edição, revista e ampliada,

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com a inclusão das décadas de 1980 e 1990; completava-se assim o século XX.
Minhas primeiras disciplinas de pós-graduação foram sobre imprensa feminina;
minha primeira orientanda se formou em 1985: Silvia Galant, que trabalhou
sobre o “Suplemento Feminino” do jornal O Estado de S. Paulo.
Gênero era uma parte importante de minha atividade na USP. Em 1985,
Eva Blay, da Sociologia, reuniu as pesquisadoras que trabalhavam com o tema
da mulher, num núcleo pioneiro na USP, o NEMGE — Núcleo de Estudos so-
bre Mulher e Relações de Gênero. Fiz parte do grupo fundador que contava
com: Carmen Barroso, Lia Fukui, Ruth Cardoso, Rosa Ester Rossini, Mirian
Moreira Leite. Até hoje o núcleo existe; promove seminários, faz publicações
e teve momentos de grande participação nas questões de gênero da universi-
dade. No final dos anos 1990, coordenei o GP de Comunicação e Mulher da
Intercom e promovi a mudança de seu nome para Comunicação e Relações
de Gênero; desse modo, pesquisas sobre outras relações de gênero podiam ser
apresentadas nos congressos.
Os anos 1980 marcaram a minha grande dedicação à pós-graduação e ao interesse
cada vez maior pela imagem. Já então procurava associar imagens fotográficas e
documentário. Mergulhei nas teorias cinematográficas: o livro de meu colega
da primeira turma da ECA, Ismail Xavier — A experiência do cinema — era, e
ainda é, um manancial. A fenomenologia de Gaston Bachelard me deu cami-
nhos de reflexão sobre o fazer jornalístico.
Essa pesquisa, que resultaria na tese de livre-docência em 1986, também fez
com que eu criasse disciplinas de pós sobre imagem; muitos alunos de Cinema
vinham fazer minhas matérias. Nessa época, eu era credenciada como orienta-
dora nos dois cursos de pós da ECA: Comunicações e Artes. Minha orientanda
Vera Simonetti fez sua dissertação em audiovisual com slides acompanhados por
uma colagem de depoimentos de senhoras idosas e alguma trilha musical; o
texto era uma espécie de caderno de campo. Outra orientanda, artista plás-
tica, apresentou sua dissertação em forma de álbum de desenhos, com textos
escritos à mão, em letra cursiva. A tese de livre-docência Texto-documentário:
espaço e sentidos introduziu o conceito de texto documentário e o tema criança em
minha trajetória acadêmica. Dividia-se em duas partes: discussão teórica sobre
as relações entre o real e o jornalismo e um livro-reportagem, que documen-
tava em texto e imagem a pedagogia de educação infantil da escola Te-arte,
criada por Thereza Pagani. Sua escola é um espaço onde as crianças aprendem
brincando com muita arte, música e cultura popular brasileira. Não há divisão
em classes por faixas etárias; todas brincam juntas. A parte teórica foi publi-
cada em artigos e o texto-documentário foi publicado em 1988 pela editora
Brasiliense: Quintal Mágico: a educação-arte na pré-escola. A educação infantil é
um tema muito querido para mim. Em 2006, foi publicada pela editora Ágora
uma segunda edição, ampliada com depoimentos e novas visitas à escola: De
volta ao quintal mágico: a educação infantil na Te-arte, com prefácio do educador
José Pacheco, criador da Escola da Ponte em Portugal. Sou uma militante
desse tipo educação infantil; o livro foi uma das inspirações do documentário

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longa-metragem Sementes do nosso quintal (2012), dirigido por uma ex-aluna da


Te-arte, Fernanda Heinz Figueiredo.
Em 1991, tornei-me, por concurso público, professora titular do Departa-
mento de Jornalismo e Editoração, sendo que fui a primeira docente mulher
a ser titular de Jornalismo na ECA.
Minha primeira grande vivência internacional aconteceu em 1993: passei um
mês na Universidade Autônoma de Barcelona (UAB), ministrando um seminário
de pós-graduação sobre narrativa jornalística. Já havia participado de alguns
congressos no exterior, mas essa experiência iria marcar definitivamente minhas
atividades acadêmicas. Além do convívio com os professores de jornalismo e
algumas especialistas em gênero, conversei muito com Jesús Martín-Barbero,
que estava lá pela Cátedra Unesco. Algumas docentes que eu conheci na época
tornaram-se grandes amigas e parceiras intelectuais, como Teresa Velázquéz e
Rosa Franquet. Com a aposentadoria do professor José Marques de Melo, que
coordenava o convênio, fui indicada coordenadora pelo novo diretor, Eduardo
Peñuela. Dois professores da UAB vinham em setembro, e dois professores vi-
nham da ECA em fevereiro. Fazer os trâmites de encaminhamento e receber os
professores de Barcelona me aproximaram ainda mais das pesquisas da UAB.
Em 2000, fui novamente selecionada pela UAB para ministrar um seminário
sobre visualidades jornalísticas. Nesse mesmo ano, veio em setembro o professor
Josep M. Català, grande pesquisador de imagens que estava escrevendo seu tra-
tado de 700 páginas sobre a Imagen compleja, a ser lançado em 2005. Colaborei
com ele na pesquisa de quadros brasileiros. Essa interação veio crescendo ao
longo dos anos; ele se tornou minha principal fonte de estudo sobre imagens
e documentário. Por minha indicação um livro seu foi traduzido e publicado
pela editora Summus.
Mesmo aposentada na USP, continuei a trabalhar voluntariamente na Pós-
-Graduação da ECA. Queria continuar a pesquisar e a orientar. Em 2006, fui
convidada pela Faculdade Cásper Líbero para fazer parte do projeto de Pós-
-Graduação Stricto Sensu em Comunicação, que seria enviado a Capes; eram
necessários docentes que já tivessem orientado doutorado. O projeto foi apro-
vado e o curso iniciado em agosto. Foram nove anos e nove meses de grande
produção e participação na consolidação desse programa. Minha imersão em
jornalismo digital e webdocumentário foi intensificada. Nesse período, orientei
26 mestrados, sendo 15 sobre imagem.
As pesquisas sobre fotografia, que vinham desde os anos 1980, exigiam um
trabalho de reunião; assim, foi tomando forma o livro Fotografia e Jornalismo: a
informação pela imagem, publicado em 2011 pela Saraiva. Nele, exponho a minha
crença de como a fotografia jornalística pode trazer conhecimento. As novas
tecnologias amplificaram os poderes da visão. Novas formas de captação, de
arquivamento, de publicação e de compartilhamento mudaram nossa relação
com essas reproduções visuais. No entanto, o jornalismo contemporâneo não
utiliza as possibilidades que os processos digitais oferecem; o fotojornalismo
dos meios impressos no século passado era muito mais poderoso.

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Nessa época, coordenei o GT de Fotografia da Intercom de 2009 a 2012,


sucedendo a Fernando de Tacca, da Unicamp, seu criador. Dois conceitos
foram formulados. O de embrião narrativo, para a fotografia estática, envolve
uma ideia de sequência: a modificação temporal está implícita. Embrião nar-
rativo é toda forma ou gesto congelados no tempo que permitam imaginar o
passado ou o futuro imediato daquela ação. O jornalismo tem uma natureza
intrinsecamente narrativa: uma foto que apresenta uma narratividade latente
estará mais apta a fazer interface com o texto. O outro conceito, de imagem
transitiva, aplica-se a imagens num contexto digital, quase sempre em instância
de movimento. A imagem transitiva tem a capacidade de ser passagem para
outras imagens; ela insinua outros significados, diferentes classes de imagens
ou de narrativas. Alguns webdocumentários do jornal argentino Clarín uti-
lizavam imagens transitivas, bem como o que hoje está sendo chamado de
documentário expandido.
Embrião narrativo e imagem transitiva conversam muito com o conceito de
imagem complexa de Josep M. Català. Para ele, a imagem complexa combina
o interno e o externo, o fixo e o móvel, o espaço e o tempo, o subjetivo e o
objetivo. A imagem complexa não é mimética nem ilustrativa, é uma imagem
interativa que pretende resolver a dualidade entre arte e ciência. A imagem
não pode ser simplesmente ilustração de conhecimento expressado mediante a
linguagem verbal; precisa ser cogestora do conhecimento, implicando estética
e poética.
A obra de Català foi uma das principais referências do grupo de pesquisa
de Comunicação e Cultura Visual do CNPq, por mim criado em 2006, junto
ao mestrado em Comunicação da Cásper Líbero; e funcionou até o final de
2015. O grupo de pesquisa promoveu seminários, publicou livros e trouxe Ca-
talà em duas oportunidades, em 2011 e 2012. Català ministrou aulas e palestras
na Cásper Líbero e também na PUC-SP e na ECA-USP. O conceito de imagem
complexa tem grande operacionalidade para a pesquisa de imagens impressas e
principalmente para as imagens digitais e foi referência essencial para muitos
dos meus orientandos.
Quero citar meus queridos interlocutores: Miriam Moreira Leite, João Ale-
xandre Barbosa, Ecléa Bosi, Eduardo Peñuela, Lucia Santaella, Thereza Pagani,
Sonia Luyten, Claudio Novaes Coelho, Fernando de Tacca, Ana Mae Barbosa,
Josep M. Català. Também quero me desculpar por falar tanto em visualidades
e usar só o verbal neste depoimento.

***

Acredito no jornalismo como forma de conhecimento. Acredito no texto


verbal e acredito no texto visual. Tempo e espaço foram alterados substancial-
mente nas últimas décadas. Para o jornalismo acompanhar a velocidade e a
multiplicidade de comunicadores há que trabalhar texto e imagem. Estamos
vivendo na cultura da tela e da tela móvel, em que os contrários coabitam:

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passado, presente e futuro estão misturados. Talvez estejamos enfrentando uma


crise de memória. Luto por embriões narrativos, por imagens transitivas. Talvez
a imagem complexa e o jornalismo ainda possam continuar desenhando linhas
do tempo. Talvez ainda possam fazer narrativas transformadoras.

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