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ecologia y

Floresta
submarina
Recifes da foz do
Amazonas podem ser
maiores, mais
profundos e complexos
do que o previsto

Carlos Fioravanti

54  z  julho DE 2018


L
evantamentos submarinos indica- A área dos recifes pode ser seis vezes é bastante fragmentada e descontínua, co-
ram que os recifes na plataforma maior que os inicialmente estimados 9,5 mo outros recifes de bordas de plataforma
continental em frente à foz do rio mil quilômetros quadrados (km2), poden- continental”, diz o biólogo Rodrigo Mou-
Amazonas podem ser muito maio- do chegar a até 56 mil km2, de acordo com ra, professor da Universidade Federal do
res, mais profundos e ricos em espécies as expedições realizadas em janeiro e fe- Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador da
de organismos aquáticos do que o pre- vereiro de 2017 e abril e maio de 2018 com viagem com o Alucia e da Rede Abrolhos.
visto por meio das primeiras medições, o navio Esperanza, da organização não As duas equipes reconhecem que se tra-
realizadas em 2012 e em 2014 por sonar governamental Greenpeace, com pesqui- ta de uma área rica e complexa. “A diversi-
e dragas que varrem o fundo do leito ma- sadores das universidades da Paraíba, do dade de ambientes equivale à de florestas,
rinho. Os recifes estão a 110 quilômetros Pará, do Rio de Janeiro e de São Paulo. Se com uma grande quantidade de espécies
(km) da costa e se estendem do Amapá confirmada, a área poderá ser maior que a em uma área ampla”, observou o biólogo
até o Maranhão. Ali a água barrenta do do estado do Espírito Santo (46 mil km2). Ronaldo Francini Filho, professor da Uni-
Amazonas encontra a do Atlântico e a Em setembro de 2017, com o Alucia, versidade Federal da Paraíba e principal
maré sobe de 6 a 8 metros (m) por dia. do Instituto Oceanográfico Woods Hole, autor do artigo publicado em abril de 2018
Como o próprio Amazonas – o maior dos Estados Unidos, um grupo de pesqui- na revista científica Frontiers in Marine
rio do mundo, com margens de 50 km sadores da Rede Abrolhos (abrolhos.org) Science com os resultados das viagens com
de largura, que despeja no mar cerca de percorreu a região e verificou que a pro- o Esperanza. Segundo ele, “cada área está
200 toneladas de água e 14 toneladas de fundidade dos recifes pode chegar a 350 m, em diferentes estágios de desenvolvimen-
sedimentos por segundo –, os recifes quase três vezes mais que a inicialmente to”, ora mais jovens, ora mais maduras,
estão se revelando monumentais. estimada. “Confirmamos que a paisagem formando ou ocupando clareiras.

Esponjas-do-mar e
algas a 90 metros
de profundidade,
na área norte dos
recifes da Amazônia
Greenpeace

pESQUISA FAPESP 269  z  55


As formações se diferenciam na direção de acidez, da salinidade e da turbidez
norte-sul. Segundo Moura, os recifes do da água, como resultado do encontro
litoral do Amapá são mais antigos (cerca do rio com o oceano.
de 14 mil anos), pararam de crescer e são No fundo da plataforma em frente à
constituídos principalmente por molus- foz do maior rio do mundo estendem-se
cos e outros invertebrados, mas não por recifes e rodolitos com centenas de quilô-
corais. Os do Maranhão são mais jovens, O volume metros de extensão. Sobre essa superfície,
ainda estão em crescimento e são forma- grandes esponjas amarelas, vermelhas,
dos por corais e algas calcárias. O biólogo de nutrientes negras e brancas dominam a paisagem.
Gilberto Amado, pesquisador do Instituto “Por causa do volume de nutrientes, é
de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de
da foz do um ambiente ideal para esponjas, que são
Janeiro, com outros especialistas da Re- Amazonas é um organismos filtradores”, comenta Moura.
de Abrolhos, participou da viagem com Por enquanto, os pesquisadores identifi-
o Alucia e verificou que a estrutura e a ambiente ideal caram cerca de 70 espécies de peixes, in-
composição dos bancos de algas calcárias cluindo algumas raras no litoral brasileiro,
chamados rodolitos se torna mais comple- para as esponjas como o pargo, de até 1 m de comprimen-
xa no sentido norte-sul, como descrito em to, e o mero, que pode chegar a 3 m. Até
um artigo de julho de 2018 na Journal of
coloridas, agora, as expedições registraram também
South American Earth Sciences. que dominam cerca de 80 espécies de esponjas e 40 de
“A maioria dos recifes de corais é de corais, muitas delas semelhantes às en-
águas quentes, rasas e limpas, com muita a paisagem contradas nos recifes dos arquipélagos
luz e poucos nutrientes”, diz o oceanó- de Fernando de Noronha e de Abrolhos.
grafo Nils Asp, professor da Universi- Uma equipe da Universidade Federal
dade Federal do Pará, que participou de Pernambuco (UFPE), coordenada pe-
de uma das viagens com o Esperanza. la engenheira de pesca Sigrid Neumann
“Ali, na foz do Amazonas, é o contrário. Leitão, identificou comunidades comple-
Os sedimentos carregados pelo rio dei- xas de organismos que flutuam na água,
xam a água turva, mas trazem muitos o chamado zooplâncton. Os pesquisado-
nutrientes, compensando a escassez de res contabilizaram 197 espécies de zoo-
luz.” Outra peculiaridade é a variação plâncton, predominando os crustáceos

Variedades amazônicas
Esponjas coletadas ao largo da foz do rio pelas equipes da Rede Abrolhos

Clathria nicoleae Oceanapia bartschi Callyspongia vaginalis Monanchora


arbuscula, aderida
a rodolitos

5 cm
5 cm

5 cm
2 cm
Fernando Moraes / Rede Abrolhos

10 cm 5 cm
15 cm
Agelas clathrodes Geodia neptuni
Aplysina fulva

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me e rica, está sendo estudada somente
agora porque, até a metade da década
Recifes em crescimento de 1970, os cientistas tinham como certo
que o volume de areia e lama despejada
imagem Earth Observatory / NASA, com informações de Cordeiro et al.  infográfico ana paula campos

Estimativas recentes sugerem que a área poderia pelo rio no mar impediria a penetração
ser até seis vezes maior que a prevista de luz e a formação de qualquer tipo de
ambiente. Aos poucos, as evidências di-
n mapeamento de 2012 e 2014 luíram o pressuposto.
n área complementar estimada Há informações escassas sobre a foz
no mapeamento de 2016
do Amazonas desde os anos 1950. Na dé-
cada de 1960, o oceanógrafo John Milli-
Amapá man, de Woods Hole, e o geólogo Henyo
Barreto, da Petrobras, identificaram uma
estrutura rochosa rica em carbonatos na
região. Em 1977, dois biólogos do Museu
de História Natural dos Estados Unidos,
Rio Amazonas
Parcel de Manuel Luís
Bruce Collette e Klaus Rützler, apresen-
taram uma lista de 45 espécies de peixes
pará e 35 de esponjas típicas de recifes, cole-
tados ao largo da boca do rio.
Em julho de 1998, Moura, Francini e
o biólogo Ivan Sazima, da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), segui-
maranhão ram além do parcel de Manuel Luís, no
Maranhão, até então o banco de corais
mais ao norte do Brasil, entraram em
fonte francini filho, R. et al. FRONtiers in marine Science. 2018 águas ainda mais setentrionais da costa
brasileira e encontraram seis espécies
de corais que não haviam sido relata-
milimétricos parecidos com insetos, os EScarpas no fundo da foz das nessa parte do litoral. “Os pescado-
copépodes, com 92 espécies. Como de- No assoalho marinho, há escarpas, se- res falavam que ao norte do parcel havia
talhado em um artigo de março de 2018 melhantes a falésias, com quilômetros muito recife”, lembra Francini. A pesca
na Frontier in Microbiology pelo grupo de de extensão e até 70 m de altura. “Acre- de pargo e da lagosta na região também
Pernambuco, a densidade variou de 2,6 ditava-se que nessa parte da plataforma indicava que o fundo deveria ser sólido;
milhões de indivíduos por metro cúbico continental a areia e a lama, acumuladas não apenas lama, mas as dificuldades
(m3) nas áreas mais próximas da foz a ao longo de 10 milhões de anos, já teriam logísticas e financeiras dificultaram a
107 indivíduos por m3 nas mais distan- coberto todo o fundo”, diz Asp. Segun- organização de expedições. Até que em
tes, em razão do volume de sedimentos. do ele, os degraus poderiam ser conse- 2012 uma equipe coordenada por Mou-
Nos recifes vivem duas espécies de pei- quência da erosão causada pela água do ra, da UFRJ, percorreu a área a bordo do
xes azulados conhecidos como donzela mar há 18 mil anos, quando o nível do navio Atlantis, do Woods Hole.
(Chromis spp.) e comuns no mar do Cari- oceano estava cerca de 120 m abaixo do A inquietação convive com o deslum-
be, a cerca de 2 mil km de distância. Essa atual. As escarpas, portanto, marcariam bramento das descobertas porque a foz
e outras indicações reforçam a hipótese o limite do nível do Atlântico no último do Amazonas tem sido visada para a ex-
de que os recifes poderiam funcionar co- período glacial, quando grandes áreas ploração de petróleo e gás natural. Em
mo um corredor – e não como uma bar- do planeta estavam cobertas por gelo, 2013, em uma licitação internacional, o
reira, como também se cogitava – entre o ou expressariam mudanças no curso do governo federal ofereceu 125 áreas, das
mar do norte da América do Sul e o litoral rio Amazonas, cuja água poderia ter es- quais 39 foram adquiridas por empresas
ao sul do Maranhão. “Desde a década de cavado as rochas. Ou ainda, como uma nacionais e multinacionais. No final de
1970 se pensava que peixes e outros or- terceira hipótese, os degraus resultariam maio, ao voltar da segunda expedição à
ganismos poderiam passar de pouco em do peso dos sedimentos. Nesse caso, teria foz do Amazonas, Francini enviou um
pouco pelo fundo da foz e poderia haver ocorrido uma espécie de efeito gangor- ofício à Procuradoria Geral da União,
intercâmbio genético entre organismos ra: o rebaixamento de trechos da foz do com fotos submarinas dos recifes, requi-
do Caribe e do litoral ao sul da foz do Amazonas teria levantado outras áreas, sitando o bloqueio do pedido de licencia-
Amazonas”, diz o biólogo Sergio Floeter, como o leste da ilha de Marajó. mento ambiental feito por uma empresa
professor da Universidade Federal de “Os recifes do Amazonas são um am- petrolífera interessada em explorar uma
Santa Catarina (UFSC) e coordenador da biente único, que ainda está sendo des- área da região. n
Rede Nacional de Pesquisa em Biodiver- coberto. Ninguém imaginava que pudes-
sidade Marinha (Sisbiota-Mar). “Agora se ser tão grande”, diz a bióloga Helena Os artigos científicos mencionados estão listados na
temos mais evidências dessa conexão.” Spiritus, do Greenpeace. Essa área, enor- versão on-line desta reportagem.

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