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O Navio Negreiro – Castro Alves

I
'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço Canta Veneza dormente,
Brinca o luar — dourada borboleta; — Terra de amor e traição,
E as vagas após ele correm... cansam Ou do golfo no regaço
Como turba de infantes inquieta. Relembra os versos de Tasso,
'Stamos em pleno mar... Do firmamento Junto às lavas do vulcão!
Os astros saltam como espumas de ouro... O Inglês — marinheiro frio,
O mar em troca acende as ardentias, Que ao nascer no mar se achou,
— Constelações do líquido tesouro... (Porque a Inglaterra é um navio,
'Stamos em pleno mar... Dois infinitos Que Deus na Mancha ancorou),
Ali se estreitam num abraço insano, Rijo entoa pátrias glórias,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes... Lembrando, orgulhoso, histórias
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?... De Nelson e de Aboukir.. .
'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas O Francês — predestinado —
Ao quente arfar das virações marinhas, Canta os louros do passado
Veleiro brigue corre à flor dos mares, E os loureiros do porvir!
Como roçam na vaga as andorinhas... Os marinheiros Helenos,
Donde vem? onde vai? Das naus errantes Que a vaga jônia criou,
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço? Belos piratas morenos
Neste saara os corcéis o pó levantam, Do mar que Ulisses cortou,
Galopam, voam, mas não deixam traço. Homens que Fídias talhara,
Bem feliz quem ali pode nest'hora Vão cantando em noite clara
Sentir deste painel a majestade! Versos que Homero gemeu ...
Embaixo — o mar em cima — o firmamento... Nautas de todas as plagas,
E no mar e no céu — a imensidade! Vós sabeis achar nas vagas
Oh! que doce harmonia traz-me a brisa! As melodias do céu! ...
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente III
Pelas vagas sem fim boiando à toa! Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Homens do mar! ó rudes marinheiros, Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Tostados pelo sol dos quatro mundos! Como o teu mergulhar no brigue voador!
Crianças que a procela acalentara Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
No berço destes pélagos profundos! É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Esperai! esperai! deixai que eu beba Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que
Esta selvagem, livre poesia horror!
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia... IV
Por que foges assim, barco ligeiro? Era um sonho dantesco... o tombadilho
Por que foges do pávido poeta? Que das luzernas avermelha o brilho.
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira Em sangue a se banhar.
Que semelha no mar — doudo cometa! Tinir de ferros... estalar de açoite...
Albatroz! Albatroz! águia do oceano, Legiões de homens negros como a noite,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas, Horrendos a dançar...
Sacode as penas, Leviathan do espaço, Negras mulheres, suspendendo às tetas
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas. Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
II Outras moças, mas nuas e espantadas,
Que importa do nauta o berço, No turbilhão de espectros arrastadas,
Donde é filho, qual seu lar? Em ânsia e mágoa vãs!
Ama a cadência do verso E ri-se a orquestra irônica, estridente...
Que lhe ensina o velho mar! E da ronda fantástica a serpente
Cantai! que a morte é divina! Faz doudas espirais ...
Resvala o brigue à bolina Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Como golfinho veloz. Ouvem-se gritos... o chicote estala.
Presa ao mastro da mezena E voam mais e mais...
Saudosa bandeira acena Presa nos elos de uma só cadeia,
As vagas que deixa após. A multidão faminta cambaleia,
Do Espanhol as cantilenas E chora e dança ali!
Requebradas de langor, Um de raiva delira, outro enlouquece,
Lembram as moças morenas, Outro, que martírios embrutece,
As andaluzas em flor! Cantando, geme e ri!
Da Itália o filho indolente No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar, Desertos... desertos só...
Diz do fumo entre os densos nevoeiros: E a fome, o cansaço, a sede...
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Ai! quanto infeliz que cede,
Fazei-os mais dançar!..." E cai p'ra não mais s'erguer!...
E ri-se a orquestra irônica, estridente. . . Vaga um lugar na cadeia,
E da ronda fantástica a serpente Mas o chacal sobre a areia
Faz doudas espirais... Acha um corpo que roer.
Qual um sonho dantesco as sombras voam!... Ontem a Serra Leoa,
Gritos, ais, maldições, preces ressoam! A guerra, a caça ao leão,
E ri-se Satanás!... O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
V Hoje... o porão negro, fundo,
Senhor Deus dos desgraçados! Infecto, apertado, imundo,
Dizei-me vós, Senhor Deus! Tendo a peste por jaguar...
Se é loucura... se é verdade E o sono sempre cortado
Tanto horror perante os céus?! Pelo arranco de um finado,
Ó mar, por que não apagas E o baque de um corpo ao mar...
Co'a esponja de tuas vagas Ontem plena liberdade,
De teu manto este borrão?... A vontade por poder...
Astros! noites! tempestades! Hoje... cúm'lo de maldade,
Rolai das imensidades! Nem são livres p'ra morrer. .
Varrei os mares, tufão! Prende-os a mesma corrente
Quem são estes desgraçados — Férrea, lúgubre serpente —
Que não encontram em vós Nas roscas da escravidão.
Mais que o rir calmo da turba E assim zombando da morte,
Que excita a fúria do algoz? Dança a lúgubre coorte
Quem são? Se a estrela se cala, Ao som do açoute... Irrisão!...
Se a vaga à pressa resvala Senhor Deus dos desgraçados!
Como um cúmplice fugaz, Dizei-me vós, Senhor Deus,
Perante a noite confusa... Se eu deliro... ou se é verdade
Dize-o tu, severa Musa, Tanto horror perante os céus?!...
Musa libérrima, audaz!... Ó mar, por que não apagas
São os filhos do deserto, Co'a esponja de tuas vagas
Onde a terra esposa a luz. Do teu manto este borrão?
Onde vive em campo aberto Astros! noites! tempestades!
A tribo dos homens nus... Rolai das imensidades!
São os guerreiros ousados Varrei os mares, tufão! ...
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão. VI
Ontem simples, fortes, bravos. Existe um povo que a bandeira empresta
Hoje míseros escravos, P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
Sem luz, sem ar, sem razão. . . E deixa-a transformar-se nessa festa
São mulheres desgraçadas, Em manto impuro de bacante fria!...
Como Agar o foi também. Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que sedentas, alquebradas, Que impudente na gávea tripudia?
De longe... bem longe vêm... Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Trazendo com tíbios passos, Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...
Filhos e algemas nos braços, Auriverde pendão de minha terra,
N'alma — lágrimas e fel... Que a brisa do Brasil beija e balança,
Como Agar sofrendo tanto, Estandarte que a luz do sol encerra
Que nem o leite de pranto E as promessas divinas da esperança...
Têm que dar para Ismael. Tu que, da liberdade após a guerra,
Lá nas areias infindas, Foste hasteado dos heróis na lança
Das palmeiras no país, Antes te houvessem roto na batalha,
Nasceram crianças lindas, Que servires a um povo de mortalha!...
Viveram moças gentis... Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Passa um dia a caravana, Extingue nesta hora o brigue imundo
Quando a virgem na cabana O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Cisma da noite nos véus ... Como um íris no pélago profundo!
... Adeus, ó choça do monte, Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
... Adeus, palmeiras da fonte!... Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
... Adeus, amores... adeus!... Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Depois, o areal extenso... Colombo! fecha a porta dos teus mares!
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso

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