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O eterno retorno: por que governos não conseguem prevenir desastres?

Marize Schons

Uma tragédia anunciada, apesar da surpresa generalizada do grande público com


as imagens do incêndio do Museu Nacional, os pesquisadores e técnicos conviviam
diariamente com o risco que comprometia o acervo e o prédio. O Museu não tinha
qualquer tipo de proteção contra incêndio ou gerenciamento de risco, e vivia há muitos
anos sofrendo com o descaso da administração da Universidade Federal do Rio de
Janeiro1.

Infelizmente o que ocorreu no Museu Nacional não foi exceção, tendo em vista
que a maioria dos museus no Brasil não possui sistemas de sprinklers (chuveiros
automáticos) e outros incêndios recentes também comprometeram o patrimônio cultural
do país, como foi o caso do Museu da Língua Portuguesa (que depois do incêndio em
2015 instalou o sistema de sprinklers) e do Museu da Imagem e Som que também terá o
sistema de prevenção de incêndio na sua nova sede2.

Entretanto, essas medidas só foram tomadas depois da tragédia. O que faz nos
perguntarmos: por que repetimos o erro de responder aos desastres e não preveni-los?
Uma interpretação recorrente é que, diferente de outros países, “não temos cultura de
prevenção”. Contudo, a hipótese que o brasileiro não tem apreço a prevenção devido
uma especificidade cultural3 traz um sentido ambíguo ao conceito de cultura, e acaba
por gerar uma radicalização desse conceito como algo completamente externo da ação
do indivíduo e das instituições. Por esse motivo, transcender as interpretações que
partem da premissa do “jeitinho brasileiro” nos obrigada a refletir sobre as dificuldades
estruturais de planejar na administração pública.

Nesse sentido, a teoria escolha pública, a partir da uma abordagem


individualista, acredita que governos agem de maneira imediatista porque nem sempre
conseguem se livrar de escolhas corporativistas de grupos ou indivíduos. A necessidade

1
Museu Nacional não tinha seguro contra incêndio nem para acervo
https://economia.estadao.com.br/blogs/coluna-do-broad/museu-nacional-nao-tinha-seguro-contra-
incendio-nem-para-acervo/
2
Sem estrutura antifogo e seguro, Museu Nacional perde 90% do acervo.
https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,incendio-destruiu-90-do-acervo-do-museu-nacional-
reconstrucao-custara-r15-milhoes,70002486225
3
TORRES, Marcelo Douglas de Figueiredo. Fundamentos de Administração Púbica Brasileira. Editora
FGV. São Paulo. 2012
de acomodar distintos interesses dificulta a coordenação de decisões baseadas no
planejamento e programas setoriais. Para conseguir estabilidade política, outras
estabilidades (fiscal, financeira, ambiental) são colocadas em segundo plano.

Apesar da difundida imagem de um Estado idealizado que implementa ações


orientadas para o futuro como uma política consciente de um “bom governo
planejador”, fundamentada a partir de instrumentos técnicos e com o orçamento
alinhado aos interesses da população, as escolhas de ações preventivas eficientes podem
ser rejeitadas em favor de outras escolhas imediatistas ineficientes4.

Como é o caso da UFRJ, responsável pela administração do Museu Nacional,


que escolheu gastar nenhum recurso com a segurança do Museu no ano de 20185
(mesmo conhecendo os riscos) o que levou a antiga casa de Dom João VI ser o sétimo
prédio da UFRJ atingido por incêndio desde 20116.

Ações de curto prazo tornam-se tentadoras em detrimento de ações de longo


prazo e, por vezes, distantes do horizonte do mandato político de anos limitados. Por
esse motivo, fazedores de políticas podem decidir investir recursos na construção de um
novo museu, que carrega uma visibilidade eleitoral muito maior, que alocar recursos
para manter os que já existem, como foi o caso do Museu da Amanhã que custou R$
230 milhões e foi inaugurado em dezembro de 20157.

Dessa forma, a politização excessiva da máquina governamental (que é


inevitável segundo a teoria da escolha pública) contribui para que a execução
orçamentária passe a ser não apenas um instrumento que condiciona a disciplina fiscal e
os recursos financeiros, mas um instrumento de negociação e de barganha política.

A segunda limitação dos governos em implementar a prevenção dos desastres


consiste no fato de que a administração pública não consegue mensurar rapidamente ou
com precisão o quanto de um bem público é necessário. Apesar de existir uma demanda
por uma administração técnica que oriente as ações de governos planejadores,
4
MITCHELL, W. e SIMMONS, R. Para Além da Política. Instituto Liberal. Rio de Janeiro, 2003.
5
Gasto com segurança no Museu Nacional foi a zero neste ano. https://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-
de-janeiro,gasto-com-seguranca-no-museu-nacional-foi-a-zero-neste-ano,70002486738
6
Museu Nacional foi sétimo prédio da UFRJ atingido por incêndio desde 2011.
https://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,museu-nacional-foi-setimo-incendio-em-predio-
ligado-a-ufrj-desde-2011,70002486121
7
Destruição de museu era 'tragédia anunciada', dizem pesquisadores.
https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,destruicao-de-museu-era-tragedia-anunciada-dizem-
pesquisadores,70002485220
identificar a necessidade de ação política pode ser um processo complexo.

E nesse sentido, o tempo pode contribuir para um ciclo de descontinuidade das


políticas de prevenção. Isto é, a prevenção pode ser muito evidente logo depois de uma
calamidade, porém, ações preventivas eficientes podem ter como efeito a sensação de
esquecimento da sua própria necessidade ao longo do tempo e perder espaço na agenda
política.

Após o triste desastre de Teresópolis no Rio de Janeiro em 2012, o legislativo


desenvolveu um novo Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil orientado para a
prevenção dos desastres, porém poucas transformações foram de fato promovidas nos
munícipios que são deficientes de recursos. Investiram na Secretaria Nacional de Defesa
Civil para a criação de um banco de dados sobre desastres de todo o país, mas ainda está
inacabado.

Ainda no governo Dilma Rousseff, projetos do PAC Prevenção8 foram


cancelados. Inauguraram o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres
Naturais, mesmo já existindo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE),
responsável por toda a previsão do tempo no país e que, em 2010, tinha comprado o
Tupã, um supercomputador de 50 milhões de dólares. Desde 2017, o INPE pode parar a
qualquer momento por falta de verba para a substituição do seu principal computador
que deveria ser trocado a cada quatro anos9.

No caso do Museu Nacional, o governo federal está insistindo nos mesmos


erros. A genuína comoção exige atitudes dos responsáveis e mudanças quanto a forma
como é feita a gestão do patrimônio cultural no Brasil. A resposta do governo foi criar a
ABRAM (Agência Brasileira de Museus) que substituirá a já existente IBRAM
(Instituto Brasileiro de Museus)10 para gerir a reconstrução do Museu.

Os repasses até poderão ser significativos no começo – 200 milhões iniciais,


mais que o dobro do orçamento do órgão anterior – e, aparentemente, a gestão terá

8
Governo anuncia lançamento do PAC Prevenção. https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,governo-
anuncia-lancamento-do-pac-prevencao,879111
9
Previsão do tempo pode parar sem aviso prévio https://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,previsao-
do-tempo-pode-parar-sem-aviso-previo,70002097292
10
Governo cria a Agência Brasileira de Museus, que fará a reconstrução do Museu Nacional.
https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,governo-criara-a-agencia-brasileira-de-museus-e-estuda-
retirar-da-ufrj-gestao-do-mu,70002495757
mudado tendo em vista que a agência também poderá administrar a receita arrecadada
dos próprios museus e captar recursos da Lei Rouanet. Porém o ciclo de esquecimento é
provável, os recursos são finitos e a capacidade do cidadão de obter informação e
transparência de uma instituição é limitada. A renovada ABRAM vai reviver os
fantasmas e deficiências da antiga IBRAM e se o órgão federal centralizado em Brasília
conseguir ser eficiente na gestão, será eficiente na gestão de alguns museus e não de
todos os 27 museus que será responsável.

Portanto, a prevenção é uma política efetiva, porém o processo de tomada de


decisão é bastante limitado em razão de fatores estruturais da administração pública.
Após o ocorrido, a expectativa é que o incêndio do Museu produza mudanças quanto as
práticas de prevenção ao patrimônio cultural, todavia é preciso ser cético quanto as
canetadas bem intencionadas, mas desconectadas da nossa realidade política e
orçamentária. Do contrário, teremos mais uma norma para ser esquecida até a próxima
calamidade voltar a acontecer.

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