Você está na página 1de 7

Tra ns/Fo r m l Ação , São Paulo

8 : 7 1 -7 7 , 1 98 5 .

o E S TRA N H O T E S T AME N TO D E U M V I G ÁR I O D E
P RO V Í N C I A : A S MEMÓRIA S D E J E A N ME S L I E R

M a r i a das G raças de Souza N A S C I M E N TO *

RES UMO: Em 1 762, Volta ire publica um pequeno livro intitulado Extraits des S e n t i m e n t s de J ean
Meslier . Trata-se de u m a espécie de resumo das M ém o i res d e J ea n M es l i e r , da� q uais· várias cópias ma­
nuscritas circulavam en tre a literatura clandestina da primeira metade do século. O in teresse de Voltaire
por estas M e m ó rias é compreensível. Nelas Meslier den uncia toda forma de religião como impostura e
falsidade, e a n u n cia uma filosofia de caráter materialista e ateísta. Qual o papel que Meslier, um obscu­
ro vigário de pro víncia, teria exercido na constituição da filosofia da luzes ?

UNI TER MOS: Despotismo religioso; m aterialismo clandestino; ateísmo; deísm o .

A s cartas escritas p o r V o l ta i r e a seus p r i n c i p a i s correspondentes d u rante o s p r i m e i ­


r o s m e s e s d o ano d e 1 7 62 f a l a m c o m freq üência d e u m l i v r o , " m u i t o raro " , " u m t e ­
souro " , d e a u t o r i a d e u m " s u i ç o " d e s c o n h ec i d o . A obra à q u a l V o l taire se refere, e
cuja leitura rec o m e n d a a seus a m i g o s , e n v i a n d o m e s m o um ex e m p l a r a a l g u n s d e l e s ,
i n t i tula-se Extraits des Sen timen ts d e Jean Meslier, p u b l i cada em fevereiro d o m e s m o
a n o . O r a , o " su i ç o " q u e escrevera o tal res u m o era o próprio V o l taire . O f a t o d e a t r i ­
b u i r as p r ó p r i a s o b ras a o u tros au tores c o n h e c i d o s o u i m a g i n á r i o s era c o m u m n a é p o ­
ca, e , entre seus c o n t e m p o r â n e o s , n i nguém d u v idava q u e o t e x t o v i n h a da o f i c i n a d e
Ferney . C o m o t o d a o b r a e s c r i t a ou patrocinada p e l o v e l h o filósofo, o l i v r o f o i várias
vezes reed itado n o s a n o s segu i n tes e a m p l a m e n t e l i d o n o s m e ios e r u d i tos europeu s .
Q ue m foi J ean M e s l i e r ? E m relação à carreira gloriosa d e V o l taire , s u a v i d a foi ab­
s o l u t a m e n te i n s i g n i fi c a n t e . Foram os acontec i m e n t o q u e se seguiram à s u a morte que
despertaram u m grande i n teresse . O r i g i n á r i o d e u m a fam í l i a pobre, M es l ier nasceu n a
vila d e M arzeny e m 1 67 8 . Cedo seus p a i s o e n v iaram ao s e m i n á r i o , d e s t i n a n d o - o à c a r ­
reira ecles iástica . D u rante seus e s t u d o s , nada o d i st i n g u i u especial m e n t e d e ou tros s e ­
m i n aristas . O r d enado padre, foi n o m eado p á r o c o da peq uena cidade d e E t r e p i g n y , n a
região francesa d a C h a m pagn e . L á perma neceu até s u a m o r t e , em 1 7 2 9 , tendo v i v i d o
da mesma m a n e i ra q u e seus colegas v i g á r i o s d o i n t e r i o r . Segundo o e s t a d o atual das
pesq u i s a s , e x i s tem apenas d o i s fatos a serem a s s i nalados na sua rotina ec l e s i á s t i c a : uma
v iagem a Paris, d u ra n t e a q ual ele teria t i d o o p o r t u n idade d e discutir c o m o u tros pa­
d res o tratado d e apologética d e H o u te v i l l e , e u m a desavença c o m o senhor d a região, a
respei t o das h o n ras q u e este ú l t i m o j u lgava merecer do v igári o . E n tre os poucos l i v r o s
q u e deixo u , fo ram e n c o n t rados a B í b l i a , os Ensaios de M o n ta i g n e e o tratado d e F e n e ­
lon sobre a e x i s t ê n c i a d e Deu s . A lém d o s l i v r o s , u m a c a r t a d i r i g i d a aos p á r o c o s d a v i z i ­
nhança, e u m a e s p é c i e d e testa m e n t o , d o q u a l e x a t a m e n t e V o l taire f a r á um e x t r a t o em

• Depart a m e n t o d e F i l osofia - Fac u l d a d e d e E d uca,ao, F i l o s o f i a , C i ê n c i a s S o c i a i s e d a D o c u m e n ta,ao - U N E S P -


1 7 . 5 00 - M a r í l i a - s P .

71
N A S C I M E N T O , M . das G . de S . - ° estranho testamento de um vigário de província: as Memórias de J ean
Meslier. Trans/ F o r m / A ção , São Paulo, 8 : 7 1 -7 7 , 1 98 5 .

1 7 62 . O i n teresse d e V o l ta i r e p o r e s t e testamento é c o m p reensível . A s Mem órias d e


M es l i e r d e n u n c i a m t o d a f o r m a d e religião c o m o i m postura e falsidade, opõem a o s fa­
tos b í b l ic o s a razão n a t u r a l , c r i t i c a m a v i o l ê n c i a e a desigualdade sociais estabelecidas a
p a r t i r das representações d e D e u s , e, f i n a l m e n t e , a n u n c i a m u m a filosofia de caráter n i ­
t i d a m e n t e m a t e r i a l i s ta . Q u e m poderia esperar t a i s propósi tos da parte de u m pacato v i ­
g á r i o q u e d u ra n t e t o d a a s u a v i d a p regou a o b e d i ê n c i a à I g rej a , em seus sermões d e m o ­
n ic a i s ?
Sabe-se q u e d e s d e 1 7 3 0 várias c ó p i a s m a n u s cri tas circu lavam nos meios eruditos
através d o s c a n a i s d e l i teratura clandes t i n a . Apesar da i m portância das Mem órias de
M es l i e r n o debate filosófico d o século X V 1 1 I, elas foram praticamente esq uecidas du­
rante o século X I X . S ó m u i to rec e n t e m e n t e a c r í tica voltou a i n teressar-se pelo tex t o , a
p a r t i r da i d e n t i ficação , fei t a p o r A l bert S o b o u l , Roland Desné e J ean Depru n , na B i ­
b l ioteca N ac i o n a l d e P a r i s , d o s t r ê s m a n u s c r i t o s au tografados por M e s l i e r , e da p u b l i ­
cação d e u m a edição c o m p leta d e s u a s o b r a s , q u e i n c l u e m as Mem órias, uma Carta aos
v igários, e um texto c o n s t i t u í d o de notas d e l e i t u ra i n t i tulado A n ti-Fene/on ( 1 ) .
O d i sc u rso ateu e m a t e r i a l i s t a d o séc u l o das l uzes pertencente pri ncipalmente a u m
g r u p o d e p e n sadores d e m e i o u r b a n o , m a i s precisamente p a r i s i e n s e , g rupo q u e a trad i ­
ç ã o c r í t ic a c o s t u m a d e n o m i n a r a " co t e r i e " d o Barão de H o l bach , e q u e , a partir s o b re­
tudo d o s meados d o séc u l o , p r o d u z e p u b l i c a d i versas obras contra a rel i g i ão e m geral ,
c o n t r a a f i l o s o f i a d e í s t a , faze n d o p r o fissão declarada ou não de ateí s m o , através de es­
critos a n ô n i m o s o u s o b p s e u dô n i m o s . Todavia, desde o i n í c i o d o século eram d i fu n d i ­
d o s c l a n d e s t i n a m e n t e d i v e r s o s tex t o s , d e n tre os q u a i s o d e M e s l i e r , da me sm a natu reza
d a q u e l e s p r o d u z i d o s m a i s tarde pelo g r u p o d o Barão ( 3 ) . O ra , até o estado atual das
p e s q u i s a s , não h á i n d íc i o s que n o s p e r m i ta m saber se M es l i e r estaria a par d o m o v i ­
m e n t o d e d i fusão d e i d é i a s a n t i -c r i s tã s d o i n íc i o d o sécu l o . O p r ó p r i o V o l ta i r e p a rece
rec o n h ec e r o caráter s o l i t á r i o d a p r o d u ção d a s Mem ó rias, ao c h a m a r M e s l i e r d e " o
m a i s s i n g u la r fen ô m e n o q u e j á s e v i u d e n t r e o s meteoros funestos à religião c r i s t ã " ( 2 ,
p . 1 20 7 ) . O s u r g i m e n to d e u m a certa c r í t ic a d o s d o g m a s da religião c r i s tã no p r ó p r i o i n ­
t e r i o r d o s q u ad r o s d a I gr ej a p o r s i s ó n ã o c o n s t i t u i u m fato i n c o m u m no séc u l o X V 1 1 1 .
S u p re e n d e n t e é fato d e q u e M e s l i e r , i s o l a d o ao q u e parece das idéias a n t i -c r i s tãs q u e
f l o r e s c i a m n a c a p i t a l , ten h a v i n d o ao e n c o n t r o d e l a s através d e s t e testamento t ã o i n u s i ­
tad o . N ã o p r e t e n d e m o s i n v e s t i g a r a s c o n d ições d e prod ução ou as fontes d o p e n s a m e n ­
to d e M es l i e r p re s e n t e n a s Mem órias. N ó s n o s l i m i taremos a a p r e s e n t a r as p r i n c i p a i s
idéias c o n t i d a s n a s c h a m ad a s " p rova s " d e M es l i e r e i n d icar a l g u n s c a m i n h o s d e refle­
xões s u g e r i d o s p e l o tex to .
A s Mem ó rias dos pensamen tos e sen timen tos de Jean Meslier começam com u m a
acusação q u e é ao m e s m o t em p o u m a au to-acusação : o acusador t a m b é m s e situa a si
m e s m o e n t re os réu s . O v igár io inicia pedindo perdão a seus paroq uianos por ter, d u ­
r a n t e toda a s u a v i d a , p regado i d é i a s i n ú t e i s e falsa s . " T u d o o q u e e l e s ( o s padres) nos
contam com tanta gravidade . . . são no f u n d o apenas i l u sões e erros, m e n t i ra s , ficções,
i m po s t u r a s , i n v e n tadas p r i m ei r a m e n t e para f i n s e a r t i fí c i o s políticos, c o n t i n uadas por
sed u t o res e i m p o s t o r e s , e m seg u i d a rec e b i d a s e acredi tadas cegamente pelos povos ig­
norantes e g r o s s e i r o s , e d e p o i s , f i n a l m e n t e , m a n t idas pela autoridade dos grandes e so­
beranos d a terra" ( 1 , I, p. 20) . T rata-se, para M e s l i e r , não apenas d e provar q u e "os
m istérios d a religião são m i stérios d a i n i q ü idade " , mas também d e d e n u n c i a r a falsida­
d e d o próprio p r i n c í p i o d a religião, o u sej a , a idéia d e Deu s . O método q u e ele u t i l iza
faz l e m b r a r o d e Descartes - se p r o v a r m o s a fal sidade originária de uma religião, esta­
remos p r o v a n d o a fal s i d a d e d e todas elas . N a s u a d e m o n s tração , a religião cristã é co-

72
N A S C I M E N T O , M . das G . de S . - O estranh o testamento de um vigário de província: as Memórias de J ean
Meslier. T rans/ Form / A ç ã o , São Paulo, 8 : 7 1 -7 7 , 1 98 5 .

locada no m e s m o n í vel q u e todas as o u t ras . " E fetivamente, d i z M es l i e r , e l a n ã o é m e ­


n o s fa lsa q u e nen h u m a o u t r a , e eu poderia m e s m o dizer q ue em certo sentido ela é tal­
vez ainda m a i s falsa e mais vã d o q u e as outras" ( 1 , I, p. 4 1 ) .
Após esta espécie de p refácio no q u al revela seus p r o p ó s i t o � , e x p l i c a n d o ao m e s m o
t e m p o aos l e i t o r e s , seus paro q u i a n o s , q u e era sem p re com um p r o f u n d o mal estar e
com u m a grande r e p u g n â n c i a q u e s u b i a ao p ú l p i to para l h e s fazer sermões m e n t i ro s o s ,
Meslier p a s s a e n t ão ao q u e . ele cha m a d e " p rova s " . A p r i meira pretende d e m o n strar
q u e todas as religiões são i n venções h u m an a s . F i l iando-se à antiga i n terp retação mate­
rialista d a s m i to l o g i a s , c o n s i d era os deuses pagãos como fruto da i m a g i n ação d o s h o ­
m e n s , q u e costumavam c o n s i derar os i m peradores e c h e fes c o m o deuses, ou
tran sformá-los em deuses após a sua morte. A paixão do povo pelos prod í g i o s , aliada
aos artifícios das autoridades fizeram c o m que estas i l u sões d u rassem . Portanto, as re­
ligiões a n t i ga s são falsa s . M as também o são todas as o u t ras . Todos os chefes rel i g i o ­
sos, i n c l u s i v e J es u s C r i s t o e M ao m é , i n v e n taram cada q u a l o s e u m o d e l o d i v i n o . N e ­
n h u m a religião f o i o u é capaz d e p r o d u z i r p r o v a s claras e c o n v i ncentes d e s u a i n s t i t u i ­
ç ã o d i v i n a . O q u e e l a s apresentam c o m o p r o v a s ? P rod í g i o s , m i lagres e a i d é i a d e reve­
lação . O r a , estes elementos estão p resentes em todas as r e l i g i ões . S e u m a delas é fal s a ,
todas o s e r ã o tam bém , na m e d i d a em q u e t o d a s , sendo d i ferentes e e x c l u s i v a s , re i v i n d i ­
c a m a m e s m a espécie d e f u n d a m ento . A s s i m , o D e u s d e A b rãao, d e I sac e d e J acó não
é mais verdadeiro d o que os deuses dos gregos e r o m an o s .
Toda r e l i g i ão exige a fé . M a s o q u e é exatamente a f é ? É e s t e o obj eto d a seg u n d a
prova d e M es l i e r . E m p r i m e i ro l u ga r , a f é é c e g a , sem f u n d a m e n tos c l a r o s e segu ros .
Ter fé é crer sem rac i o c i n a r , sem b u scar p r o v a s . É p o r i s to q u e a c r e n ç a r e l i g i o s a é u m a
i l usão . U ma acei tação d e p r i n c i p i o s q u e d i s p e n s a p r o v a s e excl u i a razão sem p re será
m o t i v o d e d i s p u tas . Por esta razão é q u e a rel i g i ão s e m p re d i v i d i u os h o m e n s , p r o v o ­
cou l u t a s s a n g r e n t a s , perseguições e v i o l ê n c i a s .
N a s p rovas q u e se seguem , terceira e q u a r t a , M es l i e r faz a c r í t i c a do A n t i g o e d e
N o v o Testam e n t o , rec u s a n d o a s i n terp retações m í s t i c a s e alegóricas d a E s c r i t u r a . Para
ele, s o m e n t e a l o u c u r a d o s homens p o d e a t r i b u i r a um D e u s a i n s t i t u i ç ão d e sac r i f í c i o s
e fazê-los acred i t a r e m p r o fecias q u e n u nca se realizara m . N a s m a r g e n s d e suas p á g i n a s
de c r í t i c a b í b l i c a M e s l i e r e s c r e v e , p o r v á r i a s v e z e s a e x p ressão " p u e r i l l a s u n t haec et va­
na et r i s u digna" .
A q u i n t a p r o v a trata da d e m o n s t ração da fal s i d ad e da d o u t r i n a e da m o r a l c r i s t ã s _
O p r i m e i r o erro d o u t r i n á r i o d o c r i s t i a n i s m o é o d o g m a d a T r i n d a d e . O segu n d o d i z r e s ­
p e i t o à i d é i a d a e n c a rnação d i v i n a . A l i n guagem d e M es l i e r ao se referi r a J es u s C r i s t o ,
supostamente D e u s fei t o h o m e m , é d e u m a v i o l ê n c i a i n esperad a . S e g u n d o as palavras
do v i g á r i o , J es u s não p a s s o u d e u m l o u c o , u m fan á t i c o , u m v i s i o n á r i o _ S u a pregação
foi a m b í g u a , e n g a n a d o r a , extravaga n te . " E l e não passou d e um homem d e nada, u m
h o m e m v i l e desprezí v e l , s e m e s p í r i t o , s e m t a l e n t o , sem c i ê n c i a _ . . " ( I , I , p . 4 1 4) . N ão
se trata a p e n a s , para M es l i e r , de d e s t r u i r a id éia da d i v i n dade de J es u s C r i s t o , m a s d e ,
p a r a a l é m d i s t o , d e s m i s t i ficar a s u a pregação , q u e f o i a p e n a s f r u t o d e u m a i m a g i nação
desregrad a , e c o m a qual o gênero h u m a n o não tem nada a aprender . O terceiro erro d a
d o u t r i n a c r i s tã se r e fere ao sacramento d a E u c a r i s t i a . Tal d o g m a d á o r i g e m a u m c u l t o
tão p r i m i t i v o q u a n t o o c u l t o d e d i c a d o a o s deu ses d e barro e d e madeira d o s pagãos _ A
adoração de u m d e u s " feito de m as s a de farinha" n ã o deixa de ser u m a f o r m a de idola­
tria. A estes três erros, o s c r i stãos acrescen ta m o u t r o s , como o d a c riação e d o pecado
original . Ainda nesta prova, M es l ier assinala os três erros f u n d a m e n ta i s d a m o r a l c r i s ­
tã, q u e c o n s i stem , e m p r i m e i ro l u g a r , n a a f i r m ação d e q u e a v i r t u d e c o n s i ste n o a m o r

73
'
N A S C I M E NTO, M . d a s G . de S . - O estranho testamento de um vigário de província: as Memórias de J ean
Meslier. Trans/ F o r m / A ç ã o , São P a u l o , 8 : 7 1 -7 7 , 1 98 5 .

ao s o f r i m e n t o , e m segu n d o l u g a r , na c o n d enação d a s paixões naturais d o h o m e m co­


m o v í c i o s , e , p o r ú l t i m o , o que é mais g r a v e , n a acei tação e m e s m o na recomendação
d e práticas que destroem a j u s t i ç a e a igualdade n a t u rai s . A moral c r i s t ã é c o n t rária à
n a t u reza .
A I grej a c r i s t ã s e m p r e a u t o r izou e p raticou a b u s o s , i nj u st i ç a s , violências . Os ho­
m e n s são iguais p o r n a t u reza e o c r i s t i a n i s m o leg i t i m o u a desigualdade d e cond ições .
Em seu p r ó p r i o seio a I grej a s u s te n t a um clero ocioso, o p u l e n t o , cujas atividades não
têm n en h u m a s e r v e n t ia a não ser a d e esmagar e a r r u i n a r o s povo s . É na sexta prova
que M e s l i e r d e s e n v o l v e este veio social d e suas Mem órias. Ele propõe a s u b s t i t u ição da
sociedade estabelecida a partir d o s p r i n c í p i o s o p ressores da religião c r i s tã p o r u m a o u ­
tra, f u n d a d a n a p r o p riedade c o l e t i v a d o s b en s . É a p ro p riedade q u e está n a b a s e d e t o ­
da t i ran i a , e esta é s e m p r e s u s t e n tada pela c u m p l i c idade q ue se estabeleceu entre os s o ­
beranos e o clero .
S u c i n ta m e n t e p o d e m o s d izer q u e as c i n c o p r i m e i ras p rovas são c o n s t i t u í d a s pela
crítica da reli g i ã o , e que a sexta i n troduz as propostas sociais q u e decorrem necessaria­
m e n te d e s t a c r í t i c a . As duas ú l t i m a s provas, s é t i m a e oitava, podem ser c o n s i d eradas
como a parte mais f i l o s ó fi c a d a s Mem ó rias. N a sét i m a , que se compõe d e argumentos
c o n t r a a e x i s t ê n c i a d e D e u s , o p r i n c i pal alvq d a s c r í ticas são as d e m o n s trações d a e xis­
tência d e D e u s d e Fenel o n . U m a vez nega d a a existência d e u m ser divin o e a idéia da
c riação d o m u n d o , resta que "o s e r , o u a m atéria, q u e são u m a e m e sma c o i s a , só pode
p o ss u i r s u a existência e seu m o v i m en t o p o r s i mesmo" ( 1 , 1 1 , p. 2 3 7 ) . É esta proposição
f u n d a m e n t a l d o m a terial i s m o d e M es l i e r , que ele opõe às proposições d e todos aqueles
q u e d e n o m i n a " d eícolas " e " c ri s t ícolas " . A s partes d a matéria, j u n tando-se, u n in d o ­
se d iv e r s a m e n t e u m as à s o u t r a s , c o m p õ e m p o r s i m e s m as t o d o s os corpos . " O ser ma­
terial é o ú n i c o e verdadeiro s e r " ( 1 , 1 1 , p. 4 3 0 ) .
E l i m i n ad a a d u al i da d e D e u s / m u n d o , resta e l i m i nar também a d u a l i d ad e corpo/al­
ma. Meslier faz c o n s i s t i r s u a o i tava e ú l t i m a prova n a refu tação da tese da existência e
da i m or t a l i d a d e da a l m a . P a r a e l e , recorrer à id éia de u m a alma e s p i r i tual para explicar
o h o m e m é tão i n ú t i l quanto recorrer à id éia d e D e u s para explicar o m u n d o . " N ós sen­
timos, d i z Meslier, i n te r i o r m e n te e exteriormente p o r n ó s m e s m o s , q u e som os apenas
matéria, e que nossos p e n s a m e n t o s mais e s p i r i t u a i s são apenas matéria em nosso cére­
b r o , e que eles dependem d a c o n s t i t u ição material deste cérebro . " ( 1 , 1 1 I, p. 1 1 8 - 1 1 9) .
A q u i l o q u e c h a m a m o s d e a l m a é c o n s t i t u í d o p o r u m a espécie d e matéria m a i s m a l eável
e mais s u t i l . A alma não é p o r t a n t o nem e s p i r i tual nem i m ortal . A o c o n t r á r i o , ela é d e
n a t u reza e s t r i t a m e n t e f í s i c a , c o m o os o u t ro s corpos d a natu reza .
M e s l i e r encerra s u a s Mem órias com um apelo q u e ressoa fam i liarménte aos o u v i d o s
d o séc u l o X X : " U n i - v o s , p o i s , p o v o s , se s o i s s á b i o s , u n i -v o s todos . . . para vos l i bertar
d e todas a s m i sérias c o m u n s " ( I , 1 1 1 , p. 1 47 ) .
O c o n t e ú d o d a s Mem órias é real m e n t e audacioso . D e u m lado, o s apologistas c r i s ­
t ã o s d o s é c u l o X I I I não e n c o n t raram g r a n d e s d i ficuldades p a r a refutá-las, d o p o n t o de
v i s t a teórico, n a m e d i d a e m que o texto d e M e s l i e r é muito m a i s sed u to r d o que rigoro­
so. M a s , d e outro lado, d o ponto d e v i sta social e p o l í t i c o , as Mem órias possuem um
caráter rev o l u c i o n á r i o que não será e n c o n t rado n o s textos da "coterie" h o l b a c h i a n a .
P a r a M e s l i e r , p o r trás d a s s i g n i ficações s o b renaturais d a h i s t ó r i a , é p reciso b u scar a
m i s t i ficação p o l í t i c a . A i m p o s t u r a p r o v i d e n c i a l i s ta en tretém a t i r a n i a m o n á r q u ica e
clerical . A o r d e m da n a t u reza só revela o m o v i m en t o da m a téri a . O ser necessário não
se c o n f u n d e c o m o ser p e r fe i to . M e s l i e r recusa a noção d e u m a " sagesse" d i v i n a q u e
c o n d u z i r i a o m u n d o . R e c u s a t a m b é m a j u s t i ficação d o m a l , negando seu efeito p u r i fi -

74
NASC I M E N T O , M . das G . de S . - O estranho testamento de um vigário de província: as Memórias de J ean
M eslier. Trans/Form/ A ç ã o , São Paulo, 8 : 7 1 -7 7 , 1 98 5 .

cad o r , e a i l u são compen satória d e u m a fel icidade futura . O s p o v o s s ã o chamados a se


tornarem a s u a p r ó p r i a p r o v i d ê n c i a . A verdadeira redenção é a l i b e rtação d a escrav i ­
d ã o , da i d o l a t r i a , d a s u p e r s t i ç ã o , da t i r a ni a . É preciso l i bertar o h o m e m d e u m a c u l pa ­
b i l idade opressora . "É p re c i s o t i ra r os p o v o s d o e n g a n o , e l ibertá-los d a d o m i nação t i ­
rânica dos r i c o s , d o s n o bres e d o s g r a n d e s d a t e r r a , a s s i m c o m o d o s e r r o s e d a s vãs s u ­
perstições d a s religiões " ( l , I I l , p . 1 8 ) . A l i bertação d o e r r o é t a m b é m a l i bertação da
opressão e m geral . O p roj eto revolucionário d e Meslier toma s e n t i d o n a perspectiva d a
emancipação d e t o d o s os povos . P ara ele, doravante, " é tempo d e p ô r f i m à tiran i a "
O , I I l , p . 1 9 3) . O s p o v o s t ê m necessidade d e u m a l i b e r tação real , m a i s real d o q u e
aquela q u e foi o ferec i d a p o r J e s u s C r i s t o . O verdad eiro pecado o r i g i n a l é a p o b reza, e a
ú n i c a redenção possível é a l i bertação da s i tuação de m iséria em q u e os povos se e n c o n ­
tram . O r a , a l i b ertação d a m iséria ocorrerá com a l i b e r tação d o engano e d a i g n o r â n c i a
na q u a l a r e l i g i ã o m a n tém os povo s .
A l e i t u ra d a s Mem órias d e M e s l i e r , ao m e s m o tempo t ã o próx i m a d o s ideais d o i l u ­
m i n i s m o e t ã o d istante deles pelas c o n d i ç õ e s d e s u a p ro d u ç ã o , n o s i n d u z à colocação d e
certas q uestões s o b r e a p róp ria h i stória d o material i s m o . A p r i m ei r a d e l a s d i z respeito
à e s t r u t u ra i n te r n a d o texto e suas relações c o m o d i scurso religioso ao qual a s
Memórias p r e t e n d e m se o p o r . A o a n a l i s a r m o s o d i sc u r s o d e M es l i e r , temos a i m pres­
são de estarmos d ia n te de u m d i scu r s o religioso às avessa s . T o m e m o s , por exe m p l o , a
sua concepção de povo . I n i c i a l m e n t e , o conceito aparece no i n terior da oposição " po ­
vo/grandes da terra " , q u e s i t u a a n o ç ã o n u m a d u a l idade d e t e r m o s a n tagô n i co s . D e
o u t r o l a d o , o conceito é s e m p r e associado a o u t r o s q u e evocam opressão, m i sé r i a , i g ­
norânci a . O p o v o , seg u n d o M e s l i e r , " ge m e , d i a r i a m e n te , s o b o j ugo i n s u portável d a t i ­
rania e das vãs superstições " ( l , I I l , p . 1 8 7 ) . Tal c o m o o p o v o d e M o i s é s , e l e aguarda o
momento da l i b e r tação . Todavia, a l i b ertação não será c o n q u i stada se não houver c h e ­
fes , guias q u e possam convencer os povos d a c o n d ição d e suj eição n a q u a l v i v e m , e q u e
ignoram . A q ue m cabe esta tarefa d e l i bertador? " C a b e , d i z M e s l i e r , aos s á b i o s a tare­
fa de dar aos outros as regras e as i n s truções d a verdadeira sabed o r i a , que deve i g u a l ­
mente a fastar todos o s erros e todas as s u perstições, a s s i m c o m o d e todos o s v í c i o s e
maldades, e a de e n s i n a r aos h o m e n s a fazer bom uso de todas as coisas " ( 1 , 1 / 1 , p .
1 90) . C uriosamente , M eslier acredita q u e é exatamente dentre o s h o m e n s d o clero q u e
se d e v e procurar e s t e s s á b i o s . N ão d e n t r e os r i c o s e n o b r e s , n e m d e n t r e os prelados e
b i s p o s , m a s d e n tre os padres c o m o aqueles aos q u a i s se d i r i ge em s u a carta, e q u e , co­
mo ele mesmo, presenciam e m s u a v i d a d iária a m i serável c o n d ição d o s povos . " Se n d o
necessário, d i z M e s l i e r , aos v i g á r i o s aos q u a i s se d i rige e m s u a carta, q u e e m todas as
rep ú b licas e e m todas a s c o m u n idades b e m regrada s , h aj a pessoas sábias e esclarec idas
para instruir os o u t ros nas ciências n a t u r a i s e n o s b o n s costu m e s , sereis m u i to próprios
para esse trabalho . . . " ( l , II I, p. 1 92 ) . E o a u t o r não h e s i t a e m reprod u z i r i m a g e n s
b : blicas ao dizer q u e o s padres, c o m o pessoas i n s t r u í d a s , têm o dever d e p roteger o s po­
vos d o erro e d a i n i q ü id a d e , c o m o o pastor p rotege as s u a s ovelhas ( l , 1 1 / , p. 1 94) .
Foi sobretudo ao refle t i r m o s sobre esses aspectos do d i sc u r s o do vigário q u e j u lga­
mos encontrar nele traços típicos d o d i scurso r e l i g i o s o , e m p regados e v i d e n t e m e n te co­
mo n u m espel h o . O p r i m e i r o deles reside n a c o n s i deração d e que h á uma verdade a ser
revelada, o seg u n d o n a a f i r m ação d e que há alguns escol h i d o s aos quais foi c o nced i d o
perceber tal v e r d a d e , e q u e a p a r t i r d a í têm c o m o m i ssão t r a n s m i t i - l a aos o u t r o s . M as
há outros com ponen tes religiosos neste d is c u r s o a n t i - re l i g i o s o . P o r exem p l o , M e s l i e r
usa c i tações b í b l icas para d e m o n s trar s e u s a r g u m e n t o s . O E v a n g e l h o d e S ão M at e u s
a f i r m a q u e " se u m c e g o c o n d u z outro cego , os d o i s c a i r ã o n o a b i sm o " . E s ta f r a s e d o

75
N A S C I M E N T O , M . das G . de S . - ° estranho testamento de um vigário de província: as Memórias de J ean
M e s l i e r . Trans/ F o r m l A ç ã o , São P a u l o , 8 : 7 1 -7 7 , 1 98 5 .

E v a n g e l h o é h a b i l m en t e u t i l izada p o r M es l i e r n o i n terior d e s u a argumen tação con tra o


conceito de fé . T e r fé é crer cega m e n te . A s s i m , q uem se o r i e n ta pela fé não pode d i r i g i r
n i n g u é m ( 1 , 1 1 1 , p . 1 8 5 ) . P roced i m e n t o s d e s t a n a t u reza s ã o a b u n d a n tes n o decorrer d a s
Mem órias.
H á a i n d a um o u t r o traço e x t r e m a m e n te c u r i o s o q u a n t o à q uestão das relações das
Mem órias com o u n i v e r s o r e l i g i o s o que o texto quer exorcizar . A o criar a sua utopia
c o m u n i t á r i a , as fontes d e M es l i e r são, d e u m l a d o , a com u n idade cristã primitiva e , de
outro, a c o m u n i d a d e m o nacal tal c o m o existia ainda em mosteiros da prov í n c i a . O que
o atrai nessas d uas c o m u n i d a d e s é a maneira d e v i v e r em com u m , que, segu ndo ele, é a
m e l h o r e a m a i s c o n v e n i e n t e para os h o m e n s . P u r i ficada da m e n t i ra q u e lhes serve d e
f u n d a m e n t o , a c o m u n id a d e c r i s t ã p r i m i t i v a e as c o m u n idades m o n a c a i s devem serv i r
d e m o d e l o para a c o n s t rução d a s c o m u n id ades h u m an as e m geral . Trata-se d e m a n ter a
for m a , i nv e r t e n d o o c o n t e ú d o do fundamen t o . Para os cristãos, o f un dam e n to é D e u s ,
u m f a l s o f u n d a m e n t o , seg u n d o M e s l i e r . O v e r d a d e i r o f u n d a m e n t o p a r a ele é a matéria,
" o grande todo " , " ú n ic o e verdadeiro ser " . M a s a natu reza da relação q u e se estabele­
ce com o f u n d a m e n to é r e l i g i o s a , absol u t a .
Para f i n a l i z a r , u m a re flexão s o b r e as relações d o d i sc u rso d e M es l i e r com o d i s c u r ­
so material i s ta d a s l.u zes . A d i v u lgação das Mem órias não se f e z a p a r t i r dos o r i g i n a i s ,
m a s a t r a v é s d e c o m p i lações . N a i ge o n p u b lico u t e x t o s esco l h idos d o orig i nal . H o lbach,
e m 1 7 7 2 , p u b l ic o u u m a c o m p i lação denominada L e bon sens puisé dans l a nature, suivi
du testamen t de Jean Meslier, e , mais t a r d i a m e n t e , e m 1 7 8 9 , S y l v a i n M a rec hal escreveu
um Catéch isme du curé Meslier. A caracterí s tica p r i n cipal dessas p u b l icações é a d e ter
c o n s e r v a d o o ateí s m o m a n i festo d a s Mem órias, deixando p o rém d e lado toda a crítica
socia l . Mas o grande veículo d e d i v u lgação d e M e s l i e r foi o Extrait de V o l ta i re . O r a ,
s a b e - s e q u e o t e x t o p u b l ic a d o p o r V o l ta i r e c o n s t i t u i u - se c o m o u m t r a b a l h o red utor q u e
a l t e r o u s e r i a m e n t e o t ext o o r i g i n al . O extrato d e 1 7 62 c o n serva tudo o q u e se refere à
c r í t i c a do c r i s t ia n i s m o , m a s e l i m i n a as provas q u e tratam das conseqüências sociais do
d e s p o t i s m o rel i g i o s o , d a fal s i d a d e das d e m o n strações da existência d e Deus 'e da falsi­
d a d e d a s d e m o n s trações d a e x i s t ê n c i a d e uma a l m a e s p i r i t u a l , e , finalmente, c o n t ra to­
d a f i d e l i d a d e a o texto o r i g i n a l , i n c l u i uma p rece final n a q ual M eslier pede a Deus (ao
d e V o l ta i r e , c e r ta m e n t e ) , que rec o n d u za os h o m e n s aos c a m i n h o s da r e l i g ião natural,
t ra n s fo r m a n d o M es l i e r num d e í s t a v o l tairean o . S e o i l u m i n i s m o c o n h eceu M e s l i e r a
p a r t i r d o res u m o d e V o l ta i r e , resta saber q ual o l ug ar q u e o verdadeiro M es l i e r teria
ocupado n a f i l o s o f i a das l uzes . S e r á que o M e s l ier o r i g i n a l i n teressaria apenas a n ó s ,
c r í t i c o s a t u a i s , q u e e n t r a m o s t a r d i a m e n t e e m cena, e não aos r e a i s atores da filosofia
das l uzes, q ue , p o r s u a v e z , e s t a r i a m s e m p r e lidando com o M es l i e r d e V o l taire?

76
N A S C I M E N T O , M . das G . de S . - O estranho testamento de um vigário de província: as Memórias de J ea n
M e s l i e r . Trans/Fo r m l Ação , São P a u l o , 8 : 7 1 -7 7 , 1 98 5 .

N A SC I M E N TO , M . d a s G . d e S . - L ' étrange testament d ' u n c u ré d e p r o v i n c e : L e s M é m o i res de J e a n


M e s l i e r . Trans/Forml A ç ã o , São P a u l o , 8 : 7 1 -7 7 , 1 98 5 .

RES UMÉ: E n / 762, Voltaire publie un pe/i/ livre in/i/ulé Extraits d e s sen timents de J ean Meslier . /I
s 'agi/ d 'um abregé des M ém o i res de J ean Meslier qui circulaien/ comme lilléra/ure clandes/ine dans la
premiére moi/ié du X VII/e. siéc/e, sous forme de copies man uscri/es. L 'in/erê/ de Vol/aire pour ces
Mémoires es/ compréhensible. Elles dén oncen l loule religion com me imposlure el fausselé el annoncen l
une ph ilosophie malérialisle e/ alhéis/e. Quel rôle ce/ obscur vicaire de pro vince aura exercé dans la
cons/ilu lion de la philosophie des lumiéres?

UNITERMES: Malérialisme c/andes/in; alhéisme, déisme; despo lisme religieux.

REFERENCIAS B I B L IOGRÁFICAS

I . M E S L l E R , J . - Oeu vres. E d i ç ã o a p resen tada 3 . W A D E , J . O . - The c/andes/ine organisalion


por Jean Dep r u n , R o l a n d Desné e A l bert So­ and diffusion of lhe ph ilosophic ideas in
bou l . P a r i s , A n t h ropos, 1 970. 3 v . France from / 700- / 750. P r i n c e t o n , P r i nceton
2 . V O L TA I R E , J. M. A. de - Exlrails des sen li­ U n i v . P ress, 1 93 8 .
menls de Jean Meslier, Mélanges. P a r i s , G a l ­
limard, 1 965 .

77

Você também pode gostar