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A METRÓPOLE DE SÃO PAULO NO

INÍCIO DO SÉCULO XXI


Eduardo Cesar Leão Marques
Metrópoles
Dossiê Justiça brasileira

RESUMO ABSTRACT

O artigo analisa as transformações re- This article analyses the recent transfor-
centes da metrópole de São Paulo em mations taking place in the metropolis of
termos sociais, demográficos, de segre- São Paulo in social and demographical
gação residencial e de acesso a serviços. aspects, regarding residential segregation
As transformações recentes sugerem and access to services. The recent chan-
melhoras em vários indicadores, mas ges suggest that several indicators have
também a permanência e a reconsti- improved, but also that inequalities have
tuição de desigualdades. A metrópole re-emerged and lingered. The metropolis
se mostra mais diversificada e crescen- has made itself more diversified and incre-
temente heterogênea, sendo cada vez asingly heterogeneous, which is why it is
mais necessário escaparmos de catego- more and more important not to fall into
rias dualistas de análise. dualistic categories of analysis.

Palavras-chave: transformações sociais; Keywords: social transformations; resi-


segregação residencial; conjuntura social; dential segregation; social situation; São
São Paulo. Paulo.

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23-32 • MARÇO/ABRIL/MAIO
JUNHO/JULHO/AGOSTO
2014
2014
E
ste artigo discute algumas das mais marcado por grandes desigualdades em termos
importantes transformações viven- de oportunidades, riqueza e condições de vida. A
ciadas pela metrópole paulistana literatura do período sustentou a presença de uma
ao longo das últimas duas décadas. estrutura centro-periferia com espaços cobertos
Dialoga com a literatura existente e de serviços e amenidades habitados por grupos
com evidências empíricas levanta- sociais ricos (no centro) opondo-se a vastas re-
das pelo Censo de 2010, mas baseia- giões precárias ocupadas de forma irregular por
-se em especial em análises publi- trabalhadores manuais, pobres e migrados recen-
cadas em livro organizado por mim temente. Embora leituras como a de Bonduki e
sobre o tema (Marques, 2014b). Rolnik (1982) partissem de uma visão nuançada
A cidade de São Paulo tem sido dessa estrutura, consolidou-se na literatura um
objeto de investigação privilegiada dualismo nos espaços da metrópole, vigente não
ao menos desde os anos 1970. Um apenas em São Paulo (Santos & Bronstein, 1978).
panorama mínimo das leituras sobre a cidade se Talvez essa interpretação pudesse ser precisa para
inicia com a denúncia do caráter excludente do os anos 1970, mas certamente não consegue dar
desenvolvimento vigente no regime militar por conta dos processos recentes, marcados por cen-
Camargo (1976) e Kowarick (1979), assim como tros e periferias no plural, nuances, lugares de
com as análises sobre os processos de “perife- transição e áreas mistas, mesmo que convivendo
rização” de Bonduki e Rolnik (1982) e Durham com regiões mais exclusivas. A presença de um
(1988). Mais recentemente, estudos de detalhe espaço plural e diversificado, embora ainda pro-
escrutinaram processos específicos, como a pro- fundamente desigual, é um dos elementos mais
dução de condomínios fechados (Caldeira, 2000), marcantes deste artigo.
as relações entre pobreza, desigualdades sociais e O artigo é organizado em três partes, além
segregação (Marques & Torres, 2005), as diversas desta introdução e da conclusão. Na próxima se-
formas de moradia precária (Kowarick, 2009), os ção, discuto as transformações econômicas e da
padrões de sociabilidade em situações de pobreza estrutura social ocorridas na metrópole. A segunda
(Marques, 2010), as múltiplas formas de regulação
da sociabilidade periférica, dado o crescimento da
violência (Feltran, 2010) ou o lugar da informali-
EDUARDO MARQUES é professor do
dade em suas relações e processos (Telles, 2010).
Departamento de Ciência Política da Universidade
Desde a década de 1950, São Paulo constitui- de São Paulo e pesquisador do Centro de Estudos da
-se como metrópole com um vasto tecido urbano Metrópole (CEM).

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parte analisa as mudanças demográficas e nos pa- discutidos. Internacionalmente, enquanto alguns
drões de segregação residencial, e a terceira foca as sugeriram a presença de polarização ocupacional
alterações em termos de políticas públicas e acesso – com consequentes polarizações de renda, social
a serviços. e espacial –, outros autores preferiram sustentar
a ocorrência de profissionalização ocupacional.
Análises existentes sobre classes sociais na me-
TRANSFORMAÇÕES ECONÔMICAS E DA
trópole utilizando a classificação ocupacional
ESTRUTURA SOCIAL EGP, amplamente disseminada internacionalmente
(Marques, Barbosa & Prates, no prelo), indicam
Em primeiro lugar, cabe discutir as principais a existência de um lento, mas consistente padrão
transformações econômicas, da estrutura social e de transformações. Não há sinais de polarização,
do mercado de trabalho. Em geral, ocorreram in- pois, embora as categorias superiores profissionais
tensas mudanças produtivas e econômicas na me- tenham crescido e as classes de trabalho manual
trópole paulistana nas duas últimas décadas. Em tenham decrescido, as classes intermediárias tam-
termos econômicos, verificou-se um significativo bém aumentaram relativamente. Por outro lado, as
crescimento relativo no setor de serviços, em es- classes manuais, qualificadas e não qualificadas,
pecial nos serviços produtivos e no comércio. En- continuaram sendo predominantes, o que confir-
tretanto, isso não representou um esvaziamento da ma a hipótese anterior de superposição de funções
indústria, e a metrópole paulistana aparentemente econômicas – com o crescimento de atividades de
superpôs funções econômicas, concentrando ca- comando, mas a manutenção de substanciais ati-
pacidades de comando sem perder completamente vidades industriais de caráter fordista.
a produção industrial (Campolina Diniz & Cam- Como seria de esperar, todas essas mudan-
polina, 2007). A cidade, portanto, tornou-se mais ças impactaram as desigualdades de rendimento
terciária, mas sem ter deixado de ser secundária. no mercado de trabalho. Barbosa e Prates (no
As décadas de 1990 e 2000 apresentaram si- prelo) identificaram sinais de polarização social
nais trocados em termos de emprego e pobreza. entre ocupações nos anos 1990 com a reestrutura-
Nos anos 1990, após um momento concentrado ção produtiva, mas revertida na década seguinte,
de melhora com a estabilização econômica em quando a economia brasileira voltou a crescer. A
1994, o desemprego, a informalidade e a pobreza decomposição da desigualdade por essas dimen-
voltaram a crescer. Nos anos 2000 esses vetores sões sociais mostrou que a desigualdade se reduziu
se inverteram, com redução do desemprego e da entre classes e dentro delas, como efeito de gênero
pobreza e aumento da formalização dos postos de e da formalização do emprego. Por outro lado, as
trabalho. Prates e Barbosa (no prelo) sugerem que desigualdades aumentaram com relação à idade
o mercado de trabalho ficou mais receptivo para e aos níveis educacionais. O efeito da educação
trabalhadores de baixa qualificação nos anos 2000 é interessante, pois contribuiu para a redução das
do que na década anterior, levando inclusive ao desigualdades em nível nacional, mas não em São
crescimento dos rendimentos dos trabalhadores de Paulo, possivelmente pela elevação dos requisitos
baixa qualificação já empregados. O balanço geral dos novos empregos, dados os traços de profissio-
das duas décadas indica um saldo de redução da nalização já indicados. O saldo geral das duas dé-
pobreza e das desigualdades medidas pela renda, cadas, entretanto, foi de redução das desigualdades
assim como de diminuição do desemprego e de (Barbosa & Prates, no prelo).
crescimento dos postos formais de trabalho (Mar- Vale acrescentar que a escolaridade média
ques, Barbosa & Prates, no prelo). cresceu em todas as classes pelo maior acesso às
Muito já se discutiu o efeito de transformações políticas educacionais, especialmente para os mais
econômicas desse tipo sobre a estrutura social. jovens. Esses movimentos se fizeram acompanhar
Uma parte expressiva do debate nacional ao longo de forte entrada das mulheres no mercado de traba-
dos anos 1990 denunciou a presença de polariza- lho em quase todas as classes, mas em especial nas
ção social, o que se associava aos dualismos já ocupações profissionais, contribuindo para uma

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pequena, mas clara, redução das desigualdades de associação entre dinâmica demográfica e as ca-
gênero. O mesmo não se verificou com relação à racterísticas sociais de cada espaço da metrópole.
cor da pele, mantendo-se intocadas as desigualda- Nos anos 1980 e 1990, áreas mais ricas apresenta-
des raciais na década (Marques, Barbosa & Prates, vam decréscimo populacional absoluto, enquanto
no prelo). áreas pobres apresentavam taxas de crescimento
elevadas. Em termos espaciais, isso resultava em
DEMOGRAFIA E SEGREGAÇÃO decréscimo das áreas centrais da metrópole e em
continuidade da expansão das periféricas. Nos
Muito se tem discutido sobre as transforma- anos 2000, essa associação não mais se verificou,
ções dos padrões de crescimento demográfico sendo o crescimento mais claramente associado
em São Paulo, tanto com relação à rede urbana a processos localizados de produção do espaço.
brasileira, quanto em termos intrametropolitanos. Nestes, porções centrais da metrópole continuaram
No que se refere à primeira dimensão, apesar da perdendo população, enquanto outras voltaram a
disseminação da metropolização para o interior do crescer a taxas reduzidas e outras ainda cresceram
país, a maior parte das metrópoles continua cres- a taxas mais elevadas. Esse processo, entretanto,
cendo (Cunha, no prelo). No caso de São Paulo, as não foi generalizado, sendo apressado afirmar ge-
taxas recentes de crescimento demográfico foram nericamente o retorno do crescimento ao centro
superiores ao crescimento vegetativo (Cunha, no da metrópole. Por outro lado, algumas periferias
prelo), embora pequenas e decrescentes (Baeninger, continuaram crescendo muito, enquanto outras
2012), alcançando-se, nos anos 2000, a taxa média se mantiveram estáveis. Nesse caso, as áreas que
mais baixa desde o início do século XX, próxima mais cresceram continuaram a receber migrantes
de 1% ao ano. Essa queda deveu-se a um arrefeci- recentes, confirmando que a continuidade da
mento da migração, mas também à continuidade “periferização” coexiste com a consolidação de
da intensa queda da fecundidade já verificada nas parcelas das periferias.
últimas décadas, fenômeno também indiretamen- As transformações da década também tiveram
te associado à diversificação dos arranjos familia- efeitos sobre a segregação residencial, uma das
res e ao crescente envelhecimento da população dimensões constitutivas mais fortes da metrópole
(Baeninger, 2012). paulistana. A estrutura de segregação manteve-se
A migração para São Paulo caiu continuamente bastante elevada e relativamente estável (Marques,
desde a década de 1980, embora a região continue no prelo). Em termos gerais, continua em vigência
apresentando atratividade, tanto de outros estados uma genérica oposição entre centrais mais ricas e
quanto do interior. Esse fluxo foi acompanhado habitadas por categorias superiores e áreas exte-
por intensa migração para o interior do estado e riores habitadas pela população mais pobre e de
para municípios periféricos da região, sendo os classes manuais. Entretanto, essa estrutura oculta
municípios maiores e mais expressivos – São Pau- várias dimensões importantes observáveis apenas
lo, Guarulhos, Osasco e os do ABC – importan- nos detalhes.
tes doadores de migrantes. Esses fluxos incluem Enquanto a região habitada pelas elites é quase
a superposição de vários processos, incluindo o completamente exclusiva, as áreas periféricas são
deslocamento de grupos de alta renda para condo- bastante heterogêneas socialmente. Os grupos mais
mínios fechados em áreas periféricas, mas também segregados são exatamente as classes superiores.
a recepção de migrações de outros estados e da Além disso, há um claro padrão de “evitação” entre
própria metrópole por municípios de menor porte classes sociais na segregação, especialmente para
(Cunha, no prelo). a elite, sendo os graus de segregação ordenados
O crescimento médio da metrópole, entretanto, para cada grupo com relação aos demais, e cres-
oculta processos muito significativos, como já des- centes à medida que descemos (ou subimos) na es-
tacado para décadas anteriores por Torres (2005). trutura social. Na década ocorreu um crescimento
Marques e Requena (no prelo) mostraram que na da presença das classes profissionais em todos
década de 2000 reduziu-se substancialmente a os espaços, mesmo nas periferias, embora maior

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nas áreas elitizadas. Ao mesmo tempo, as classes ção entre a estrutura social no espaço e a estrutura
manuais tenderam a se reduzir também em todos de equipamentos e serviços públicos. As últimas
os espaços, mas dessa vez com maior ênfase nas décadas continuaram trazendo melhora em termos
áreas periféricas. O centro histórico, por outro lado, médios dos indicadores de condições urbanas, em-
se tornou mais popular. Ao longo da década, portanto, bora de forma mais lenta dependendo do serviço,
ocorreram dois processos considerados classicamente como no caso do esgotamento sanitário, ainda mui-
pela literatura como opostos: as áreas centrais de eli- to distante da universalização – cerca de 85% de
te tornaram-se mais exclusivas, e as áreas periféricas cobertura, mas incluindo um conjunto expressivo
pobres e médias ficaram mais heterogêneas. Isso pode de ligações nas redes de drenagem (Requena, Ra-
parcialmente ser creditado ao crescimento de condo- lize & Sarue, no prelo).
mínios fechados em áreas periféricas, em especial da A observação de indicadores de condições
região oeste da metrópole, mas mesmo esse tipo de urbanas em São Paulo em 2010, se, por um lado,
ocupação apresenta razoável heterogeneidade, com confirma a melhora das médias, por outro sugere
a presença de padrões médio-alto, alto e muito alto, a permanência de intensas desigualdades intrame-
cercados de habitantes com características pobres e tropolitanas em termos de oferta. Essas desigual-
baixa infraestrutura (Requena, Hoyler & Saraiva, no dades se encontram ainda fortemente associadas
prelo). O padrão de “evitação” entre classes, por fim, a condições socioeconômicas dos moradores
também se tornou mais nítido ao longo da década, mas (Requena, Ralize & Sarue, no prelo). Enquanto os
a maior heterogeneidade nas periferias é incompatível grupos de elite habitam apenas locais de condições
com a ideia de polarização espacial, assim como com ótimas e boas, a heterogeneidade cresce à medida
as representações duais da metrópole. que se caminha para grupos de classe média e de
Contrariamente a uma parte substancial dos trabalho manual. Essas desigualdades apresentam
debates, França (no prelo) acrescentou a esse qua- uma feição territorial, com a permanência de uma
dro de segregação por classe as cores da dimensão região central muito bem assistida e habitada por
racial. O autor mostrou de forma muito eloquente a grupos de elites e a consolidação de espaços de
presença de elevada segregação também por raça, elite em áreas periféricas em regiões ainda não tão
que se combina com classe na constituição da segre- bem servidas. Ao mesmo tempo, espaços de gru-
gação residencial na metrópole paulistana. Essa não pos médios e pobres apresentam condições hete-
aparece nos índices de dissimilaridade entre bran- rogêneas, embora cada vez mais precárias quando
cos e negros, mas, quando se analisa classe e raça se caminha para baixo na estrutura social.
conjuntamente, encontra-se elevada segregação nos Outro tema clássico diz respeito à precariedade
grupos de elite (brancos e negros) e muito menor urbana. No momento de mais intensa metropoli-
nos grupos mais populares e manuais (brancos ou zação, nos anos 1960 e 1970, os loteamentos clan-
negros). Além disso, há claro padrão de “evitação” destinos e irregulares eram predominantes, mas
por cor da pele e classe de forma combinada: dados gradativamente as favelas se integraram ao tecido
de dissimilaridade mostram que brancos ricos têm urbano paulistano a partir dos anos 1980. Estudos
menor segregação de brancos médios, de negros baseados diretamente em dados censitários, como
ricos e só depois de brancos pobres. De uma for- Saraiva (no prelo), sugerem que a população fave-
ma geral, por fim, os patamares de segregação são lada cresceu pouco na década, menos inclusive que
muito mais elevados a partir dos negros, separando o conjunto da metrópole – 0,44% ao ano no mu-
uma elite branca e rica, relativamente próxima de nicípio de São Paulo (Saraiva, no prelo) –, embora
brancos de classe média, do restante da população. com aumento de densidade. Além disso, as condi-
ções sociais nas favelas paulistanas continuaram
ACESSO A SERVIÇOS E POLÍTICAS melhorando na última década, embora esse tipo
de moradia precária continue sendo marcado por
Um tema clássico no estudo das metrópoles intensa heterogeneidade em termos de conteúdos
brasileiras é a cumulatividade das desigualdades sociais e condições de infraestrutura. O trabalho
sociais com a precariedade urbana, ou a superposi- da autora, entretanto, sugere uma redução dessa

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heterogeneidade, apesar da permanência de faixa de renda mais baixa, mas principalmente à
um conjunto de favelas com condições bastan- segunda faixa do atual programa federal. Portanto,
te precárias. quando comparado com o seu equivalente anterior,
Resultados similares foram obtidos por estudo o programa tem empreendimentos menos perifé-
utilizando outra estratégia metodológica (CEM/ ricos, embora ainda assim relativamente distantes
Emplasa, 2014). O estudo aplicou, a dados do de centralidades.
Censo de 2010 de metrópoles paulistas, meto- A produção habitacional do mercado imobiliá-
dologia desenvolvida pelo Centro de Estudos da rio, por outro lado, foi orientada tradicionalmente
Metrópole – CEM para o Ministério das Cidades para rendas alta e média-alta, mas, embora essa
(CEM/Ministério das Cidades, 2008). A estima- produção ainda seja predominante, ao menos uma
tiva gerou pela primeira vez números compará- parte recente dela via mercado se aproximou da
veis entre censos, visto que foram ajustados pela produção pública. A produção por incorporação
mesma metodologia. apresentou um claro ciclo de três fases desde
Segundo esse estudo, a proporção de moradores meados dos anos 1980, cada uma com caracte-
em assentamentos precários na região metropolitana rísticas distintas em termos espaciais, dos tipos de
de São Paulo teria se reduzido de 15% para 14,5% empreendimentos, preços e características (Hoyler,
entre 2000 e 2010. O tamanho absoluto da população no prelo). Enquanto as duas primeiras estiveram
desses núcleos teria aumentado de 2,6 milhões para quase completamente devotadas à produção para
2,8 milhões de habitantes, sendo a redução propor- renda alta em espaços elitizados, a última (de 2005
cional resultado de crescimento mais reduzido nesses a 2013) inclui também mercado popular mais di-
assentamentos do que no conjunto da metrópole. A versificado e com localização mais abrangente ter-
melhora das condições sociais médias dos assenta- ritorialmente e menos centralizada. Essa produção
mentos também foi confirmada pelo estudo. tem causado impactos localizados importantes em
A contraparte da precariedade habitacional diz periferias consolidadas (Requena, Hoyler & Sa-
respeito à produção habitacional formal, pública e raiva, no prelo) contribuindo para a já destacada
privada. Nos últimos anos, essas têm se aproxima- heterogeneidade desses espaços.
do significativamente, com o aumento da presença Outra dimensão muito importante da ação pú-
privada na implementação dos programas públicos blica na metrópole diz respeito à mobilidade ur-
e com a criação de um mercado popular privado. bana. As informações sobre deslocamentos (das
Com relação aos primeiros, a produção habitacio- pesquisas “Origem e Destino” da Companhia do
nal pública recente se restringiu basicamente ao Metrô) indicam um padrão bastante consolidado e
programa Minha Casa Minha Vida, que produziu estável, com cerca de um terço dos deslocamentos
cerca de 130 mil unidades na região (Marques & acontecendo a pé, onde os modais rodoviários têm
Rodrigues, 2013). As análises existentes sugerem ampla predominância e o transporte sobre trilhos
que o impacto sobre o déficit habitacional foi maior tem participação muito pequena, inferior a 9%
nas faixas de renda mais elevadas do que nas mais (Requena, no prelo). O ônibus é o mais importan-
baixas, onde se localiza a maior parte das carên- te dentre os transportes públicos, com um quarto
cias. A espacialização da produção para cada uma dos deslocamentos, proporção relativamente simi-
das faixas, entretanto, embora indique um padrão lar ao uso do automóvel. Considerando-se que um
periférico, sugere cautela nas avaliações quando usuário de automóvel ocupa em média 21 vezes o
comparada com a produção pública anterior, ao espaço viário de um usuário de ônibus (Requena,
menos em São Paulo. A produção para a faixa de no prelo), está explicado grande parte do proble-
renda mais baixa apresentou padrão de localização ma viário da metrópole. Vale dizer que os dados
similar ao das políticas prévias, mas a localização indicam que grupos de maior renda e escolaridade
para as faixas mais altas tem padrão claramente habitantes de áreas centrais andam menos a pé e
menos periférico do que os conjuntos existentes. utilizam automóveis muito mais frequentemente,
O elemento importante a observar é que a produ- enquanto o uso dos ônibus é mais disseminado
ção habitacional anterior no Brasil não atendia à socialmente. O tempo de deslocamento, por fim,

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Dossiê Metrópoles

também apresenta claras diferenças sociais, sendo CONCLUSÃO


o modal ônibus o que apresenta tempos de viagem
mais elevados. O conjunto desses elementos permi- As transformações das últimas décadas torna-
te caracterizar a presença de fortes desigualdades ram a metrópole paulista mais diversificada e hete-
sociais na mobilidade da metrópole paulistana. rogênea em termos produtivos, sociais e espaciais.
Por fim, seria impossível fechar este artigo Em diversas dimensões, a metrópole tem também
sem discutir ao menos de forma rápida a violência se tornado menos desigual em termos de renda,
urbana. Esta multifacetada questão representa um inserção no mercado de trabalho e condições de
dos maiores problemas vivenciados na metrópole, vida, mesmo em seus espaços precários. Os pro-
mas envolve ao menos três grandes dimensões: a cessos de produção de cada um de seus espaços (e
violência como gramática das relações cotidianas o plural é cada vez mais importante) são crescen-
(incluindo doméstica), as percepções sobre a vio- temente definidores de seus respectivos padrões de
lência, e os riscos diferenciais de sofrer violência crescimento, condições sociais, formas de produ-
associados a atividades criminais. Todas essas di- ção habitacional e precariedade urbana.
mensões têm importância e consequências para a Em outras dimensões, entretanto, os padrões
cidade, como mostram os efeitos do medo sobre de desigualdade continuam fortes e presentes.
a disseminação dos condomínios fechados e da Certas áreas precárias pouco melhoraram, o
segurança privada (Caldeira, 2000). padrão de universalização dos serviços é par-
No que diz respeito aos indicadores de crimina- cial e seletivo (espacial e socialmente), o esto-
lidade, ocorreu intenso crescimento dos homicídios que de precariedade habitacional é ainda muito
no final dos anos 1990, com pico da taxa de homi- elevado e os padrões estáveis de mobilidade
cídios de 56,4 por 100 mil habitantes em 2001, mas urbana e de violência urbana são marcados por
posterior redução paulatina até 2008, quando a taxa fortes desigualdades sociais. Sob o ponto de
chegou a 14,9 por 100 mil, mantendo-se estável a vista de seus espaços, a metrópole continua for-
partir de então (Peres et al., 2011; Nery, 2012). A dis- temente segregada em termos de raça e classe,
tribuição espacial das taxas, entretanto, permaneceu em uma estrutura claramente hierárquica. Mas
praticamente inalterada, indicando estabilidade nas a cidade vivencia simultaneamente processos
desigualdades sociais da distribuição da violência usualmente considerados como dissociados, se
letal. Essa queda foi acompanhada do crescimento não antagônicos: popularização de seu centro
de delitos, como o tráfico de entorpecentes, assim histórico e áreas de elite cada vez mais exclu-
como do aumento substancial da população carce- sivas, mas regiões intermediárias e periféricas
rária e dos indicadores de violência policial. Além cada vez mais misturadas socialmente.
disso, as últimas décadas assistiram à expansão do Esses processos sugerem ser necessário esca-
crime organizado na metrópole, com a constituição par cada vez mais de interpretações duais, abrindo
do Primeiro Comando da Capital – PCC, inicial- espaço para diversos tipos de espaços (e grupos
mente no sistema prisional e depois nos bairros sociais) intermediários na metrópole. Isso não
periféricos. Pesquisas etnográficas recentes têm significa o completo desaparecimento de uma
demonstrado a presença dessa organização crimi- estrutura grosseiramente radial e concêntrica em
nosa na regulação da sociabilidade nas periferias suas dimensões mais gerais, e muito menos das
paulistanas, com importantes consequências sobre desigualdades socioespaciais que caracterizam
as relações (e a violência) cotidianas (Feltran, 2014). São Paulo tão fortemente, mas a sua recompo-
As questões da violência e do crime organizado, sição em padrões mais complexos e contínuos.
portanto, tornaram-se presenças constantes na vida O sumário desses elementos talvez pudesse ser
da metrópole, para além dos patamares dos indica- enunciado como apontando para maior hete-
dores e com fortes desigualdades em relação aos rogeneidade, acompanhada de menores, mas
grupos sociais envolvidos. reconfiguradas, desigualdades.

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32 REVISTA USP • SÃO PAULO • N. 102 • P. 23-32 • JUNHO/JULHO/AGOSTO 2014

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