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Digitalização: Joyce

Revisão: Analice Fernandes

O CISNE
The Cygnet
Marianne Willman

Lady ou Bandoleira?

Vera, como dizia chamar-se, afirmava não ter outro nome. Mas essa
criatura, ao mesmo tempo maravilhosa e selvagem, que encarava Giles
Rathborne possuía uma beleza altiva que sugeria nobreza em seu
passado. Algo que tanto podia salva-lo da ruina... quanto mandá-lo para
a prisão!

Enigmático, Giles, lorde de Rathborne, pedia que ela o ajudasse. Vera


sabia apenas que ele já lhe roubara o coração. Mais do que isso, o
senhor do nobre castelo a despertara para uma paixão
avassaladora, igual ou superior a qualquer intriga que pudesse
encontrar na brilhante corte da rainha Elizabeth!

CAPITULO I

O estrépito dos cavalos, levemente amortecido pelo


espesso tapete de folhas que cobriam o solo, expediu
mensagens de perigo através da floresta. Assustados, os
bandos de pássaros desertaram dos galhos e fugiram em
revoada, uma nuvem cintilante contra o céu avermelhado.
Os homens que haviam causado tanto alvoroço não se
deram conta do ocorrido. Sir Giles de Rathborne, o líder da
comitiva e um dos mais ousados cavaleiros de toda a
cristandade, avançava a pleno galope, impelido por uma fúria
que não lhe dava tréguas. O bronzeado de sua tez acentuara-
se com o rubor que afluía a seu belo rosto e seus olhos negros
faiscavam.
— Mulher intolerável! — resmungou por entre os dentes.
Navegara pelos sete mares com Sir Francis Drake,
arriscando a vida uma centena de vezes no perigo das
tempestades para fazer frente à esquadra espanhola. Não
houvera obstáculos que não ousasse enfrentar pela glória da
Inglaterra e de Elizabeth, a sua rainha. Ela não ignorava até
que ponto sentia-se orgulhoso de servi-la e cumprir fielmente
seu compromisso. No entanto, não tivera escrúpulos em bani-
lo da corte, como se ele fosse um simples e rude campônio!
Seu choque fora profundo, ao ver esvanecida a esperança
de obter financiamento para uma expedição marítima ao
Oriente. Mas o que lhe causara maior pesar fora perder, além
da amizade da rainha, a oportunidade única de fazer-se à vela
com Hawkins, rumo às índias Ocidentais.
Ah, se Morse, seu meio-irmão, não tivesse morrido
prematuramente, pondo em movimento o absurdo mecanismo
que o tornaria herdeiro de Rathborne. A vida folgada e
rotineira dos campos ingleses não estava no seu sangue.
Achava-se mais à vontade na barca de comando,
contemplando o esplendor do mar, participando de uma vida
febril num mundo de aventuras.
Mas deixara-se apanhar desprevenido e agora não tinha
outra alternativa senão fazer frente à situação e encarar as
dificuldades e as consequências distantes de tal esforço.
Nesse horrível estado de nervos, Giles esporeou o cavalo
e internou-se profundamente pelas sombras das folhagens es-
pessas, o rico manto vermelho flutuando ao vento. Não havia
outro animal que pudesse competir com Califa, quando o freio
mordia-lhe os dentes. Em poucos segundos, o resto da
comitiva ficou para trás.
Francis Finch, seu camarada de armas e amigo de
primeira infância, gritou:
— Espere, Giles!... Antes que eu me perca nestes
malditos bosques!
Mas o corcel de Giles lançava-se a toda velocidade por
sob os majestosos carvalhos. Inutilmente, Francis exigiu mais
de seu baio.
— Um louco! Vai se matar! — proclamou em voz alta.
— Pois eu aposto que não — retrucou um exausto
veterano de barbas grisalhas. — Desde Rathborne até Ripley
Wold, não há ninguém que conheça como ele todas as
clareiras, todos os bosques e todos os vales.
Francis lançou-lhe um olhar exasperado, mas o outro
continuou, com a intimidade de um velho servidor:
— Sir Giles cavalga como um centauro. Jamais um animal
de quatro patas o arremessou por terra, nesta verde terra de
Deus!
Francis sofreou sua montaria.
— Nesse caso, para que arriscarmos o pescoço? Vamos
deixar que ele desfrute a sua fúria em santa paz
Os homens de armas receberam essa comunicação com
alívio. Após três anos ao mar, sentiam-se mais seguros no
convés ondulante de um navio do que em terra, perseguindo
corcéis em disparada.
Francis foi conduzindo a comitiva com mais cuidado e
precaução. Embora estivessem nas imediações do castelo de
Rathborne, contava fazer uma parada no O Homem Verde e ali
passar a noite. A cama era de plumas e a cerveja macia e
saborosa. Além disso, segundo Giles, as filhas do estalajadeiro
costumavam ser alegres e complacentes. Um ótimo pretexto
para uma libação na taverna de vigas de carvalho!
Mas Giles esquecera-se do acordo. Continuava irritadiço.
A rainha forçara a mão e havia dito coisas que jamais
poderiam ser retiradas. Agora, encontravam-se em franca
oposição. Via-a, em imaginação, à frente de seu alegre
séquito, olhando-o do extremo oposto da galeria com toda a
sua impertinência real.
— Parece que Sir Giles herdou do pai o gosto por
aventuras galantes. Nosso bravo marinheiro não hesita em
lançar mão de seus encantos para seduzir jovens donzelas —
dissera Elizabeth sarcasticamente, provocando os sorrisos
afetados e as risadinhas sufocadas das damas da corte.
A cólera fizera-lhe o sangue subir ao rosto. Mas fora uma
emoção passageira, dominada logo pelo sentimento de justiça.
Ofendera-a, embora sem intenção. Não devia ter provocado
seus ciúmes. Ela era uma mulher que merecia total lealdade e
não só pelo poder e prestígio que pudesse conferir a quem
distinguia com os seus favores. Ainda que não fosse uma gran-
de beleza, possuía o fabuloso charme da mãe, Ana Bolena,
aliado ao espírito, à sedução e à penetrante inteligência do
rude Henrique VIII. Tudo isso constituía um conjunto de
atrativos que nada ficava a dever aos das mais formosas
damas que a cercavam.
Extremamente altiva, ela prosseguira, com uma daquelas
cóleras brancas e frias que tinha herdado do pai:
— Melhor seria se empregasse o tempo cuidando de seus
domínios, Sir Giles, em vez de ficar pelos cantos, sussurrando
galanteios a nossas damas-de-honra!
Um brilho de revolta animou os olhos negros e orgulhosos
de Giles. Com mil demônios! Jamais pretendera tomar sobre si
a responsabilidade do solarengo Rathborne, com suas tristes
memórias! Não esquecera o passado. As recordações ainda
inundavam-lhe o cérebro, vívidas e opressivas!
Zangado e ainda tremendamente pesaroso, deixou que
Califa assumisse o comando, enquanto o bosque interrompia-
se num largo campo relvado. Mulheres!... Não se podia confiar
nelas. A traição de Letícia de Lattimore, tão chocante e cruel,
não era prova disso? Aquele golpe fora demasiadamente forte
para ele. Preterido por um velho rico... Nunca a perdoaria!
Nem permitiria que outra mulher qualquer interferisse em seus
planos. Quando se desincumbisse da responsabilidade de
vistoriar Rathborne. voltaria a cultivar a glória pessoal que
conquistara com seus feitos marítimos. O mar seria sua única
amante!
Sentindo-se subitamente mais forte de ânimo e mais
sensato, Giles de Rathborne enveredou pela estrada real, sem
imaginar o que o esperava no decorrer da tarde.

A alguma distância dali, uma das mais imponentes


mansões da Inglaterra aquecia-se ao sol, junto a seus campos
e prados verdejantes. Além da fachada em estilo Tudor, de
janelas escancaradas à tarde cálida e ventosa, os
remanescentes do antigo Castelo de Rathborne, abrigando em
suas sombras negras e destroçadas as ruínas de seus muros
batidos pelas intempéries, formavam contraste com a beleza e
a dignidade do cenário. Mas não deixavam de impressionar,
sobretudo quando surgiam em meio da obscuridade, pela
imponência de suas ameias. A intensa quietude pastoral em
que mergulhavam todos os ruídos da tarde, foi subitamente
rompida por gritos indignados, seguidos de um rosário de
imprecações.
— Patife! Que a peste o carregue!
— Agarrem o rapaz!
Um jovem esguio, num gibão acolchoado e calças axadre-
zadas de fabricação caseira, irrompeu da porta lateral da co-
zinha com um embornal de couro jogado sobre os ombros. Um
segundo depois, duas robustas mulheres saíram atrás dele,
vociferando e agitando no ar suas colheres de ferro.
Mas o jovem, arisco como lebre, escapuliu facilmente do
cerco das matronas e esgueirou-se por entre a fileira de olmos,
galgando a seguir o muro com surpreendente agilidade. Um
velho jardineiro saiu no seu encalço, mas não era tarefa para
as suas pernas. Vencido, limitou-se a atirar uma pedra na
direção do fugitivo, uma raposa esperta que lograva seus
perseguidores.
Os gritos das mulheres e os latidos dos cachorros
cessaram, quando o jovem, ainda sorrindo, emergiu das
sombras do pomar e ultrapassou a muralha de buxos que
delimitavam a floresta. O caminho era difícil, cortado por
regatos e atoleiros. Mas o desconhecido parecia conhecer as
passagens mais seguras e os pontos onde o terreno era mais
firme. Vez por outra, sua flexível figura aparecia por entre as
árvores, ondulando através do emaranhado de caniços,
azevinhos e amoreiras silvestres. Uma vez transposta a
clareira herbosa no centro da floresta, o pequeno ladrão
mergulhou novamente no meio das árvores. Uma alta sebe de
espinheiros erguia-se ali, de maneira tão cerrada que
interceptava os raios do sol poente. O jovem contornou-a e
então, esgueirando-se por uma abertura disfarçada numa
moita de roseiras bravas, penetrou em outra clareira,
circundada por carvalhos seculares.
Alguns homens achavam-se ali, guarnecendo um novo
lote de flechas com penas de galo silvestre. Instantaneamente
alertas, eles alcançaram suas facas e balestras. Mas logo
deixaram-nas cair. aliviados.
— Calma — disse um deles. — É Vera.
— Pelo céus! — exclamou o líder, um homem grisalho, de
meia-idade e físico de lutador. — Ela é mais silenciosa do que
uma borboleta!
Vera parou ao lado dele, os olhos azuis aquecendo-se
com o elogio.
— Você foi um bom mestre, Thad. Veja o que consegui.
— Ela abriu o embornal de couro e mostrou dois gordos capões
assados ao ponto e uma torta de frutas ainda quente do forno.
Apesar da longa abstinência de bons manjares, Thad
desaprovou com a cabeça.
— Como tem coragem de tirar o alimento da boca
daqueles a quem juramos proteger?
Vera retrucou com calor:
— Quê? Isto aqui devia ser a ceia do maldito
administrador!
— Menina! Não diga que esteve em Rathborne... Apesar
da expressão de fria e severa gravidade de Thad, os outros
olharam-na com admiração. E dentre todos, Garvin, o
subcomandante do grupo, e o jovem Hewe, cujos sentimentos
revelavam-se na maneira como a fitavam.
Vera sentiu-se invadida por um sentimento de orgulho e
satisfação.
— Estive apenas nas cozinhas. Não foi difícil. As duas
criadas de serviço confundiram-me com o novo ajudante e
puseram-me para trabalhar. Tomei lugar diante do fogo e co-
mecei a girar o espeto, onde quatro capões...
— Você não se atreveu!... — interrompeu-a Hewe, a res-
piração suspensa.
— Pois foi o que eu fiz! Os capões estavam prontos. Uma
das boas mulheres ordenou-me que o tirasse do fogo... e eu
obedeci. — Chamas travessas dançaram nos olhos de Vera. —
Depois tirei-os também da cozinha, junto com uma torta para
completar nosso jantar!
Houve uma risada geral, mas a expressão de Thad não se
alterou. Todos estavam ainda rindo, quando ele se virou para o
grupo, erguendo a mão para que fizessem silêncio. Então, com
um gesto brusco, segurou o queixo de Vera e obrigou-a a virar
o rosto. Havia uma mancha arroxeada em sua face esquerda.
— Que foi isso?
Vera fitou-o de olhos arregalados, mais de surpresa do
que de medo.
— Um dos jardineiros brindou-me com uma pedrada.
Esquivei-me tarde demais. — Ela esboçou um sorriso,
destinado a amaciá-lo. — Vamos, Thad. Admita que eu fugi
daquele convento em boa hora! Outro mês e teria esquecido
tudo o que você me ensinou.
— Não abuse da sorte, menina. Alguns centímetros mais
para cima e aquela pedrada a tornaria repasto para os corvos
ou uma idiota babosa.
— Você não teria dito isso, se fosse Ferris o autor da
façanha — resmungou Vera, antes de encher a boca com um
pedaço do capão.
Thad observava-a, uma grande preocupação crescendo-
lhe por dentro. Era incrível a mudança que se operara nela.
Vera desabrochara. Já era uma moça. O longo gibão
acolchoado que lhe escondia as formas e seu ar desenvolto e
quase másculo fariam um estranho tomá-la por um dos
rapazes. E esse era o problema. Ela não havia nascido para
aquele tipo de vida.
Quando se embrenhara na floresta, unindo-se a seus
companheiros proscritos, Vera era uma garotinha. Levara-a
consigo, certo de que o exílio seria de curta duração. Ela
aceitara e adaptara-se sem dificuldade à nova situação.
Livrara-se dos saiotes, substituindo-os alegremente pelas
calças e pelo gibão, e também das bonecas.
Fora uma decisão acertada, porque os pretendidos
poucos meses de refúgio na Floresta Rathborne
transformaram-se em anos. Durante todo aquele tempo, Vera
exercitara-se de manhã até a noite. Sua destreza
acompanhara a dos meninos de sua idade, seu raciocínio
rápido e poder de liderança contrabalançando o que lhe faltava
em vigor físico.
Aos treze anos, sabia manejar o arco e atingir um alvo
móvel com precisão. Além disso, subia nas árvores mais altas,
nadava nas correntezas mais rápidas e afrontava o perigo
vezes sem conta só para provar que era tão hábil e corajosa
quanto qualquer um do grupo. O propósito para o qual treinava
dominara-a por completo e transformara-se num modo de
vida. Pensava em si mesmo, como mulher, cada vez menos.
Isso o preocupara tanto, que acabara por enviá-la ao
convento, na esperança de que as boas irmãs conseguissem
lhe ensinar coisas mais apropriadas a seu sexo. Porque, a
despeito de tudo, Vera "era" mulher e merecia algo melhor do
que esse rude exílio na floresta.
Que seria dela, se algo lhe acontecesse? Atravessavam
tempos difíceis. As colheitas eram minguadas e a voraz
administração de Rathborne levava quase tudo o que os
camponeses conseguiam obter. Se o verão tardava a chegar ou
o inverno era inclemente, havia fome nas aldeias. Era uma
situação que beirava o intolerável!
Vera ergueu os olhos e ficou a observá-lo em silêncio.
Havia uma expressão estranha em seu rosto.
— Que cara é essa? Por que está tão calado?
Thad não respondeu diretamente.
— Quantos anos você tem, garota? Já passou dos
quinze?
Ela pensou em não responder. Sabia o que estava para
acontecer. Finalmente, relutante, acabou dizendo:
— Estou com quase dezessete anos, Thad.
Ele espantou-se. Por Deus, como os anos tinham passado
depressa!
— Sabe que está na idade de casar? Nunca pensou em
ter um lar de verdade?
— Céus, não! — protestou Vera, sustentando-lhe o olhar
com firmeza. — Por que deveria pensar nisso? Lavar, cozinhar,
costurar... isso não é vida para mim!
— Pois isso é tudo o que deve ter importância para uma
mulher.
Súbito, ela deu-se conta dos olhares furtivos que lhe
eram dirigidos. Enquanto duraram aqueles momentos,
percebeu que a descontraída camaradagem de outrora parecia
não mais existir. E tudo por causa de seu sexo, porque tivera a
infelicidade de nascer mulher! Só havia um jeito de fazê-los
compreender que tinham ainda muita coisa em comum.
Levantou-se de um salto e desafiou Hewe, o sobrinho de
Thad, para uma luta corpo-a-corpo. Ele fitou-a nos olhos, mal-
humorado.
— Não. Estou cansado dessas brincadeiras.
Ela ficou realmente aborrecida.
— Está com medo de perder? Vamos, Hewe! Costumáva-
mos lutar, antes que me internassem naquele maldito
convento!
O rosto e o pescoço de Hewe tornaram-se cor de púrpura.
— Isso foi antes que você se tornasse mulher. Agora não
seria a mesma coisa.
Vera voltou-se para um garoto de seus quinze anos.
— Então você, Ferris.
Mas ele cruzou os braços sobre o peito e encerrou-se
num mutismo intencional. Ela sentiu que um muro erguia-se a
seu redor, isolando-a de tudo o que lhe era mais caro. As
brincadeiras e os jogos da adolescência estavam proibidos, as
amizades tensas. Sentindo as lágrimas queimaram-lhe os
olhos, voltou-se rapidamente.
— Covardes! — atirou por cima do ombro e disparou em
direção à floresta sentindo-se uma intrusa. Eles protestavam,
clara e apaixonadamente, contra sua presença ali!
O sol baixava no horizonte, lançando uma luz fraca e
pálida que permanecia suspensa sobre os ramos. Entre os
troncos cresciam sarças e amoreiras. O emaranhado
aumentava a cada passo. Vera seguiu uma velha picada, ora
visível ora dissimulada pelas moitas espessas. Ao alcançar seu
lugar predileto, a margem musgosa de um rio sinuoso,
lançou-se de bruços no chão, dando vazão a um selvagem
desespero.
Passado um momento, enxugou raivosamente as
lágrimas. Não assumiria sua condição de mulher, não obstante
as mudanças que a natureza operasse em seu corpo. Assumi-
la significaria o fim de uma vida feliz ao lado de Thad e o
bando. Recostada ao tronco de uma árvore, pôs-se a
contemplar o rio sinuoso e suas margens desertas, sentindo
uma tristeza extraordinariamente doce. Foi um minuto de
profundo silêncio, logo interrompido por um murmúrio de
vozes. Eram Thad e Garvin.
— Eu fracassei. Quis ajudá-la, mas fracassei — dizia
Thad. — Dei-lhe muita liberdade. Jamais deveria ter deixado
que as coisas chegassem a esse ponto.
— Vera tem um temperamento difícil. Precisa de um
marido que a dome — retrucou Garvin. — Se continuar a
comportar-se sem recato, poderá nos trazer problemas. Hewe
está bastante atraído por ela e os outros homens do grupo
vivem com os olhos pregados no seu corpo.
Vera sentiu uma cólera surda. Como ousavam falar dela
dessa maneira? Explorá-la, como se ela fosse uma daquelas
mulheres de taverna que se prestavam para o passatempo de
uma noite?
Mas Garvin ainda não terminara.
— Se nossas pendências com Rathborne estivessem
resolvidas, eu a pediria em casamento. E quando voltássemos
às nossas antigas vidas, construiria um lindo chalé branco nas
terras que meu pai desbravou. Juro que a protegeria para
sempre!
— Com a minha bênção — suspirou Thad. — Mas as
pendências ainda não estão resolvidas. Até lá, que é que
vamos fazer? A não ser que tenhamos ouro para comprar
armas, jamais poderemos nos livrar desse administrador ávido
que se apoderou de nossas terras!
Houve um momento de silêncio, antes que Thad
acrescentasse:
— Quanto a Vera, se eu a levar de volta ao convento, ela
tornará fugir e nos alcançará antes que o dia termine.
"Pode estar certo disso!", ela ruminou silenciosamente.
Podia perceber, pelo suave crepitar das folhas que
forravam o chão, que os dois homens começavam a afastar-se
e pôs-se a escutar com os ouvidos bem aguçados. Garvin
explicava:
— ... perto de Salisbury. A granja é pequena, mas
produtiva. Meu cunhado é um bom homem. Tenho certeza de
que teria prazer em ajudar Vera. E ela, por sua vez, poderia
ser útil de mil maneiras: cozinhando, cuidando dos animais,
fiando.
Houve um novo silêncio. Thad devia estar considerando
as palavras do companheiro.
— Uma mulher no grupo é um perigo para todos —
insistiu Garvin. — Vera estaria bem com minha irmã. Iria
aprender tudo o que uma mulher precisa saber para ser uma
boa esposa.
— Seria a melhor solução para Iodos — concordou Thad.
— Falarei com Vera pela manhã.
Os dois se embrenharam na mata e Vera fitou sem ver as
sombras que se adensavam. Tremia de indignação. Trocavam
observações a seu respeito, traçavam planos sobre o seu
futuro sem ao menos consultá-la! Esforçara-se tanto para vir
do convento ao refúgio de Thad! Perambulara dias a fio pelas
matas, mendigara para conseguir algum alimento, dormira em
montes de feno ou em valas, ao longo do caminho. Finalmente,
faminta e exausta, mas com o coração transbordando de
alegria, chegara ao seu destino. E, em vez das demonstrações
alegres e carinhosas que esperava, deram-lhe a entender que
era uma intrusa naquele meio!
"Garvin, aquele tolo, e seus sonhos de uma casinha bran-
ca!"..., pensou, com o desprezo de alguém destinado a brilhar
no meio dos perigos. Seus próprios sonhos eram outros, cheios
de aventuras com a sua própria espada e sua forte lança. A
impressão era tão vívida que, quando um ramo seco estalou
atrás dela, virou a cabeça esperando ver um daqueles
cavaleiros errantes, que não tinham outras satisfações senão
as proporcionadas pelas armas.
Mas era uma forma escura que irrompia das sombras
cambiantes e arremessava-se sobre ela. Abraçou pelo pescoço
o companheiro das noites frias e tormentosas, sentindo o
áspero pelo do animal em seu rosto e achando conforto em sua
devoção.
— Você não vai me abandonar. Não é, Wolf?
O cão de caça deu-lhe uma lambida final e depois deitou-
se aos seus pés. Fitou-o, comovida. Ele nunca a trairia. Súbito,
viu-o empinar as orelhas. Um segundo depois, um leve assobio
cortava o ar. O cão olhou-a com ar de quem pede desculpas e
arremessou-se por entre as árvores.
Vera suspirou tristemente. Até Wolf a abandonava. Revol-
tada, diante de tantas dificuldades e obstáculos, foi tomada por
um impulso que a dominou por completo. Afastando-se de vez,
poderia pôr um fim àquela situação constrangedora. Mas para
onde ir?
A solidão, o silêncio melancólico e a leve brisa que vinha
do rio provocaram-lhe um arrepio. Um minuto depois já havia
se dominado e nada subsistia de sua revolta, salvo a convicção
de que devia ficar. Mas teria de fazer alguma coisa para provar
que pertencia à floresta, como os outros. Algo espetacular, tão
ousado que deixaria a todos boquiabertos. Algo tão significa-
tivo que ninguém pensaria mais em mandá-la embora. "O que,
meu Deus?"
A resposta a seu apelo foi instantânea e veio sob a forma
de um estrépito de muitos cavalos que se aproximavam
velozmente.
CAPITULO II

Vera precipitou-se para a beira da estrada. Havia um


ponto no alto de uma colina, de onde poderia descortinar a
paisagem circunjacente. Enquanto subia com dificuldade a
encosta pedregosa, evitando a estrada, refletiu que bastara
alguns meses apenas de permanência no convento para
colocá-la fora de forma. No final da subida, estava ofegante.
Protegendo os olhos com a mão em pala, perscrutou a
estrada que se estendia a perder de vista, em sua sombra
úmida. Uma nuvem de pó e a vibração transmitida pelo solo
indicavam que um grupo de cavaleiros avançava velozmente.
Quando o bando, formando um todo único com suas
montarias, contornou a curva, reconheceu instantaneamente o
estandarte rubro e azul ostentando o brasão de Rathborne.
O coração bateu-lhe mais rápido no peito. Isso significava
que o novo Lorde Rathborne vinha tomar posse de seus do-
mínios e, provavelmente, extrair tudo o que pudesse de uma
população já sujeita a toda espécie de opressão! Um assomo
de cólera dominou-a, expulsando o medo. enquanto uma ideia
começava a formar-se em sua mente.
Os cavaleiros já se aproximavam de uma ampla planície
arborizada, o líder à frente num magnífico corcel negro. O
instante em que se desviaram para seguir o curso do rio, antes
de mergulhar nos bosques escuros que rodeavam Rathborne,
Vera riu alto. Ali estava a oportunidade de provar o seu
valor. E ali estava o ouro de que Thad precisava!
O sol preparava-se para mergulhar no horizonte
longínquo. Não havia tempo a perder. Deslizou colina abaixo e
correu para a margem do rio. Hewe e Ferris tinham se despido
das roupas e banhavam-se nas águas frescas, enquanto
Norberto, agachado junto ao pântano, tentava apanhar
algumas rãs com um longo varapau.
Vera imitou o pio do melro, o sinal convencionado. Tinha
certeza de que podia contar com eles, o que pretendia fazer
era um ato de justiça. Antes, porém, de revelar os seus planos,
teria que expor as suas razões.
— Perdendo tempo com brincadeiras, rapazes? — gritou-
lhes, enquanto se aproximava.
Hewe ergueu bruscamente a cabeça.
— Não há mais nada a fazer, Vera.
Ferris afastou, com um gesto brusco, os cabelos que
teimavam em escorregar-lhe pela testa.
— Thad, Garvin e os outros foram à taverna e nos
deixaram para trás.
— Porque acham que vocês são ainda crianças! Por que
não provam que já são adultos?
— De que modo? — perguntaram os três, a uma só voz.
Vera sorriu. Já os tinha em suas mãos.
— Respondendo ao chamado da aventura, meus amigos.
Um grupo de cavaleiros se aproxima. Gente rica, a julgar pelo
vestuário e pelo brilho de ouro e prata de seus enfeites. — O
sorriso dela aprofundou-se. — Que tal aliviá-los do peso de
suas bolsas?
Hewe lançou-lhe um olhar de dúvida.
— Thad nos expulsaria do grupo, se nos apanhasse
roubando!
— Nossa situação é desesperadora. Tenho certeza de
que Thad não recusaria o ouro, que serviria para alimentar a
população faminta e comprar armas para sustentar a nossa
causa.
Os três entreolharam-se, indecisos, e Vera continuou, im-
paciente:
— Eu devia saber que vocês não teriam coragem de me
seguir! — Ela virou-se. — Farei tudo sozinha. Vocês não
passam de um bando de covardes!
Essas palavras despertaram os rapazes e levaram-nos a
se decidir. Era chegado o momento de provarem o seu valor
não so perante os adultos, mas perante os seus próprios olhos.
— Diga o que pretende fazer — intimou Hewe.
Após algumas perguntas e as prontas respostas de Vera,
os tres convenceram-se.
— Vamos surpreendê-los! — prometeu solenemente
Ferris, ainda ressentido por ter sido barrado na taverna.
— Assim espero — tornou Hewe. Ele vira os olhares
cobiçosos que Garvin lançara na direção de Vera. Séria bom
que ele soubesse que não era o único a aspirar à mão da filha
adotiva de Thad!
O ar estava luminoso com o esplendor do sol poente mas,
a leste, a luz difusa de um céu de opala já desvanecia a linha
do horizonte.
— Precisamos nos apressar — disse Vera e revelou, em
poucas palavras, a sua estratégia.
O crepúsculo ainda não descera sobre os campos, mas
nos recessos da floresta de Rathborne o trabalho da noite já
começara, envolvendo em sombras todas as formas visíveis.
Preocupado, Giles encurtou um pouco as rédeas, evitando
assim que Califa tropeçasse em algum ramo caído ou
deslizasse num trecho pantanoso da estrada.
Do alto de seu poleiro, Vera observava-o com atenção.
Uma criatura forte, larga de ombros, montada num fogoso
corcel negro que parecia feito sob medida para suportar sua
imponente figura.
Sua tensão aumentou, quando o cavaleiro aproximou-se
de seu esconderijo. Ele estava armado com uma espada e uma
adaga, mas duvidava que soubesse manejá-la com destreza.
Inclinou-se mais para examiná-lo. O rosto bronzeado pelo sol,
os olhos negros, grandes e expressivos, as finas roupas de
veludo bordadas com fios de ouro... Então esse era Giles de
Ratgborne! Iria depenar sua plumagem, antes que ele se desse
conta do que estava acontecendo! Virou-se para Ferris e
sussurrou:
— O corcel deve ser poupado. Obteremos uma boa quan-
tidade de moedas de ouro por ele, na feira de cavalos. Sufi-
cientes para passarmos bem até o Ano Novo.
Seu companheiro retrucou:
— Ladrões de cavalos são expostos à maldição pública e
depois enforcados.
— Só se forem capturados! — rebateu Vera, com um
sorriso de satisfação. Lorde Rathborne iria pagar caro por todo
o mal que causara.
Inconsciente do perigo que corria, Giles avançara
despreocupadamente. O cavalo mantinha-se no centro da
vereda, atento a todos os seus avisos. Súbito sentiu-o
tropeçar. Conteve-o com destreza e rapidez, quase empinando,
e procurou mantê-lo submisso.
— Calma, Califa. Calma!
Demorou alguns segundos, até que conseguisse retomar
o controle do animal, que relinchava selvagemente. Feito isto,
desmontou. Enquanto se inclinava para examinar-lhe as pernas
dianteiras, percebeu que o tropeção não fora acidental. Havia
ramos colocados de través sobre a estrada, cuidadosamente
ocultos sob uma camada de terra e folhas. Se não tivesse con-
tido Califa a tempo, teria voado por cima de sua cabeça. Era
um milagre que não tivesse quebrado o pescoço!
Hewe acompanhava-lhe os movimentos com os olhos.
Impaciente e querendo superar Ferris em audácia, saltou sobre
a trilha antes do tempo combinado. Então, erguendo o grande
cajado, avançou fazendo-o girar em torno da cabeça.
Vera sentiu ganas de matá-lo. Agora, sua pretensa vítima
tinha conhecimento da ameaça dissimulada na sombra!
Giles, por sua parte, levou a mão à espada, gritando:
— Salteadores! Á moi, Françoisl
Vera ergueu os olhos. Um segundo cavaleiro aparecia à
distancia. Mas devia desconhecer o caminho sinuoso que se
aprofundava na floresta, pois, à medida que as sombras se
adensavam a seu redor, ele diminuiu o passo de sua montaria.
Vera emitiu um leve suspiro de alívio. Depois, erguendo a
mao, deu o sinal combinado. Os dedos ágeis de Ferris
dessagarraram a tira de couro que prendia um grande ramo,
que foi cair com estrondo diante do líder do grupo.
— Por São Jorge! — gritou Giles, contendo Califa.
O ataque fora bem planejado. Uma figura rápida e ágil
despensou do meio das árvores e agarrou seu cavalo pelas
rédeas, Giles, que acabava de desembainhar a espada,
brandiu-a em torno de si com agressividade.
— Venham a mim, covardes!
Sua lâmina mortal cortou o espaço, a um palmo do
bandido. Um segundo precipitou-se em socorro do
companheiro, mas Giles, furioso, despediu-lhe um golpe tão
tremendo no ombro, que o bandido rodou instantaneamente ao
chão. Depois, erguendo a espada sobre a sua cabeça, intimou-
o a render-se. Tendo realizado essa dupla proeza, voltou-se
para o terceiro bandoleiro e desfechou-lhe um pontapé com tal
vigor, que o fez cair sem sentidos a seus pés. Havia ainda luz
suficiente para que ele visse o rosto de seus agressores.
Estavam contraídos pelo medo. Examinou-os com desdém. Não
passavam de um bando de garotos imberbes!
Francis Finch alcançou-o, empunhando a espada.
— O que temos aqui, Giles?
— Um bando de garotos querendo brincar de Robin Hood!
— informou-o o amigo, aborrecido.
— Que pretende fazer com eles?
Giles apoiou as mãos na cintura e tornou a olhar para os
aspirantes a salteadores. Sua ousadia divertia-o. Mas não
queria vê-los agindo em suas terras. Para tal, teria que
amedrontá-los com a visão do inferno.
— Estou em dúvida se jogá-los na masmorra de
Rathborne ou se enforcá-los nos galhos mais altos de um
desses carvalhos e acabar logo com isto!
Vera permanecia imóvel, mas sua mente trabalhava
febrilmente. Levara seus companheiros a uma louca aventura e
agora, cabia-lhe tirá-los da embrulhada.
— My lorde, faço um apelo aos seus bons sentimentos. A
culpa é minha., Estava cortando um ramo para fazer algumas
flechas e deixei-o cair sem querer. Meus amigos quiseram
apenas me proteger.
Giles tocou-lhe o peito com a ponta da espada.
— Cortando um ramo à noite? E em minhas terras?
Não havia resposta para isso e ela calou-se.
— Salteadores e mentirosos! Acho que vou enforcá-los e
poupar-me o trabalho de levá-los para Rathborne!
A situação de Vera e de seus companheiros era
verdadeiramente desconfortável, e ainda o seria mais se,
naquele instante, gritos não se fizessem ouvir por todos os
lados.
— Thad! — ela gritou, aliviada.
Giles rodou nos calcanhares. Um punhado de homens
rudes, com aspecto de bandoleiros, irrompiam do meio das
árvores. Estavam armados apenas de longos bastões e não
constituíam uma ameaça real para os dois homens a cavalo,
bem armados e versados na arte do torneio de cavalaria. E
com um sólido reforço na retaguarda.
Sorriu e saltou sobre a sela. Ao torcer as rédeas, viu
Francis ser atingido por uma bordoada. Rompendo numa
verdadeira saraivada de impropérios, avançou para cima do
líder do bando. Califa respondeu com presteza ao seu
comando. Essa era uma dança que o valente animal conhecia
bem. Avançar e esquivar-se.
O bandido volteou no ar o bastão de abrunheiro, com o
intuito de atingi-lo no ombro. Giles esquivou-se e investiu
contra ele, cortando ao meio, com um só golpe de sua espada,
o pesado bordão. Em seguida, impeliu o cavalo contra um
segundo assaltante e vibrou a espada em torno de si, o que fez
recuar os que estavam mais próximos sem lhes dar tempo de
atacar. Os bandidos, vendo-se finalmente em risco de serem
subjugados, meteram-se mata adentro.
Vera, aproveitando-se da confusão geral, correu atrás do
cavalo de Lorde Rathborne, gritando e agitando um ramo, com
o fito de assustar o animal. Não iria permitir que nenhum de
seus companheiros fosse esmagado por aqueles cascos formi-
dáveis. Praguejando, seu cavaleiro encurtou as rédeas e o
negro corcel ergueu-se sobre as patas traseiras. A destreza
com que ele fizera o animal passar da fogosa excitação à
imobilidade encheu-a de admiração. Mas não perdeu tempo.
Lançando olhares por cima do ombro, correu para o abrigo dos
carvalhos.
— Preferem ocultar-se em suas tocas, ladrões e
covardes! — atirou-lhes Giles com desdém.
Mal as palavras lhe haviam saído da boca, Califa empinou
as orelhas abruptamente. A flecha direta ao coração de Giles
passou assobiando e foi cravar-se num tronco onde ficou a
tremular, tal a força do arremesso.
Francis lançou-se no encalço do esquivo arqueiro. Cego
de fúria, Giles desembaraçou-se dos estribos do cavalo num
segundo e seguiu-o. Foi inútil. O homem desaparecera no
interior da floresta sem deixar traços e os outros tinham se
desvanecido nas sombras do crepúsculo.
Giles retornou à vereda a ponto de explodir. Como
ousavam? Aquelas terras pertenciam a Rathborne!
— Com mil demônios! — imprecou. — Bastam cinco ou
seis deles para fazer mais estragos do que um bando de lobos.
Irão pagar muito caro por suas façanhas!
Os olhos de Francis cintilaram, bem-humorados.
— Pois eu acho que esses vilões nos proporcionaram
uma ótima diversão!
Giles limpou a lâmina da espada, antes de responder:
— Queria encontrá-los frente a frente, no campo de
batalha. Essas façanhas de estrada não são do meu agrado.
Francis riu.
— Você lutaria contra o próprio demônio pela
oportunidade de arrancar-lhe o rabo! Vamos, admita que esse
breve entrevero aqueceu seu sangue!
Giles deu de ombros. Para ele, o episódio fora tão
excitante quanto um combate simulado. E pensar que essa
seria toda a diversão que teria em Rathborne, por algum
tempo!...
"Não fui feito para esse tipo de vida", pensou
cansadamente, enquanto ordenava a seus homens, que
haviam acabado de chegar, que reiniciassem a marcha.
Levou Califa ao passo, atento a qualquer sinal que
pudesse indicar perigo. Estavam quase alcançando a
encruzilhada, onde a estrada desviava-se mais uma vez para
os bosques, quando percebeu, à sua frente, um movimento no
meio dos ramos. Enquanto as últimas luzes do dia se
desvaneciam, seus olhos experimentados puderam distinguir a
figura ali escondida.
— Este é um lugar sagrado — observou em voz alta. — E
antigo, muito arnigo. Os druidas faziam aqui as suas devoções.
— Por minha fé! — exclamou Francis, persignando-se, en-
quanto o resto da comitiva agrupava-se em torno deles.
Houve um instante de silêncio, perturbado apenas pelo
sussurro das árvores, tão contínuo que tornava o silêncio ainda
mais profundo e impenetrável.
— Estava pensando em abater esta floresta — continuou
Giles, rompendo a atmosfera de encanto.
Francis virou-se na sela, espantado com a súbita
mudança de atitude que se operara no amigo.
— Pelos céus, Giles, por quê? Há caça abundante nestas
matas, suficiente para prover sua mesa!
— De fato. Estes bosques já existiam, quando
Guilherme, o Conquistador, fez-se ao mar da Normandia.
Veados, faisões, javalis abundam nesta região, e nos prados
que a circundam sobra a caça de pena. — Os olhos escuros de
Giles estreitavam-se. — Mas estes bosques dão também abrigo
a bandidos vorazes, que não conseguem manter-se senão à
custa de roubos e assaltos! Francis distinguiu uma nota curiosa
na voz do companheiro e ficou subitamente alerta. Algo estava
para acontecer.
Giles passou a mão enluvada sobre a cicatriz que se
alongava sobre seu maxilar, e o grande cabochão de rubi em
seu dedo médio reluziu como uma chama.
— Talvez eu faça disto aqui um pasto para ovelhas.
Nestes tempos, faz-se fortuna com a boa lã inglesa.
Subitamente, ele ergueu-se nos estribos e, lançando mão
da espada, brandiu-a no ar, sobre a sua cabeça, alcançando os
galhos mais baixos. Ouviu-se um grito sufocado e logo em
seguida uma forma esguia caiu do ramo principal da árvore,
como uma avezinha implume de seu ninho.
— Eu esperava ver cair bolotas do carvalho — murmurou
Giles sedosamente — não um pequeno malfeitor. Um malfeitor
estranhamente familiar, por sinal!
O rapaz que jazia sobre uma pilha de folhas secas, trêmulo e
ofegante, tinha o rosto sujo e os cabelos desgrenhados. Giles
saltou do cavalo e cutucou-o com a ponta da espada.
— Levante-se, meu jovem salteador.
Vera empurrou os cabelos para trás e olhou-o com o
temor de um animal acuado. Por todos os santos, o homem
era duro como uma rocha! Exatamente como imaginava que
seria o odiado senhor de Rathborne.
A ponta da espada espetou-a novamente.
— Que foi? Perdeu as forças? Vamos, levante-se!
Vera compreendeu que não tinha nada a ganhar irritando
ainda mais aquele bruto. Armando-se de uma expressão
aduladora, murmurou humildemente:
— Não sou um malfeitor, meu senhor, mas um simples
aldeão à procura de ovos de pássaros.
— Ora, pare com isso! — resmungou Giles. — Fingir-se
de tolo não vai adiantar nada. Você é meu prisioneiro!
Francis surpreendeu-se. Aquele adolescente magro não
oferecia nenhuma ameaça real. Até onde seu velho amigo
estava querendo chegar?
— Prisioneiro!... — Vera engoliu em seco. — Não fiz nada,
my lorde.
— Isto cabe a mim decidir. E agora siga-me. A passo!
Um tremor espalhou-se pelas pernas de Vera. Ali estava
uma complicação que não previra. Olhou furtivamente para o
seu captor.
Às sombras que se espessavam, ele parecia cruel e belo
como o demônio.
— Para onde... Para onde pretende me levar, my lord! —
perguntou, num fio de voz.
Giles arreganhou os dentes, num sorriso de lobo.
— Para Rathborne! Para onde mais?
— Que... que pretende fazer comigo?
— Jogá-lo aos porcos, se for de meu agrado. Ou talvez na
masmorra e deixá-lo lá para sempre.
Súbito, Vera sentiu-se aterrorizada. Um suor frio
inundou-lhe o corpo. Os condenados à prisão de Rathborne
eram silenciados para sempre! Teria que procurar uma saída
que a salvasse da degradação e do infortúnio, mesmo
arriscando-se a levar uma cutelada pelas costas. Um final
rápido era infinitamente preferível à lenta agonia das correntes
de ferro e da escuridão de uma masmorra.
Os calafrios passaram lentamente. O terror cessou e a
razão apoderou-se dela. Mediu furtivamente a distância que
havia entre a ponta da espada de Lorde Rathborne, agora
abaixada, e o esconderijo mais próximo. Era uma esperança
pouco alentadora, mas tinha que aproveitar a oportunidade.
Tomou impulso e deu um salto. Mas caiu de mau jeito,
com um choque que lhe abalou todos os ossos. Foi somente ao
tentar mover as pernas, que percebeu que as folhas secas
escondiam a toca de um animal. Gemeu baixinho, enquanto
uma dor aguda espalhava-se por seu tornozelo. Que
fatalidade! Se não fosse por isso, teria alcançado facilmente a
floresta.
Giles ouviu sua respiração acelerada e fitou-lhe
atentamente o rosto. O rapaz não mentia. Seu rosto estava
mortalmente pálido.
— Fique quieto — ordenou e ajoelhou-se para examinar-
lhe os tornozelos.
Vera mordeu os lábios para conter a dor e encolheu-se
toda, pensando no irônico da situação em que se metera. Bem
que o homem havia dito trêmulo que pagariam caro!
— Nada quebrado — anunciou seu captor, por fim,
tirando um lenço do bolso e enrolando-o em torno do tornozelo
machucado.
O alívio foi imediato. Aos poucos, a dor foi substituída por
um latejar suportável e Vera reanimou-se. Talvez houvesse
uma segunda chance...
Giles endireitou-se e estendeu-lhe a mão.
— Levante-se, semente de malfeitor! Vamos para
Rathborne.
Ela levantou-se com dificuldade, afivelando uma
expressão chorosa.
— Eu lhe juro, my lord. Não posso dar um só passo!
Francis condoeu-se.
— Parece que o rapaz está sofrendo de verdade, Giles.
Seu amigo deu de ombros, ligeiramente exasperado.
— Não vê que ele está fingindo? Escapará na primeira
oportunidade, aproveitando-se de um descuido qualquer.
Vera deu um passo e depois deixou-se cair ao chão com
um gemido convincente.
— Meu pé... está quebrado. O que lhe digo é a pura
verdade, my lord.
— Nesse caso, meu esperto rapaz, seguirá a cavalo. Mas
à minha moda!
Giles virou-se para um de seus homens e ordenou:
— Amarre as mãos desse malfeitor e coloque-o na sela, à
minha frente.
Vera praguejou silenciosamente. A pé teria conseguido
escapar. Agora, havia poucas esperanças de fuga.
Giles acompanhava os arranjos com atenção. Instantes
depois, satisfeito, saltou para a garupa de Califa e obrigou seu
cativo a escarranchar-se no cavalo, quase inclinado sobre a
crina.
— Firme-se — recomendou-lhe.
Então, com um toque de espora, levou seu nobre cavalo
para um pequeno galope que não tardou a acelerar-se, quando
atingiram o campo aberto. A tal velocidade, não havia perigo
que o rapaz tentasse saltar.
Uma vez em Rathborne, iria arrancar-lhe uma confissão
completa sobre aquele bando de proscritos que infestavam
suas florestas e o despojavam de seus haveres. Precisava
saber se a quadrilha era composta de um número ainda maior
de homens e se eles mantinham guarda regular nas
imediações de seu campo de ação.

Vera, apesar de seu estado de espírito, experimentava


uma sensação de bem-estar, ao sentir alongar-se debaixo de si
o corpo do corcel, grande e poderoso como seu dono, todo
músculos e nervos sob os elegantes arreios de prata.
Ofuscada por aquelas sensações, não percebeu que o cre-
púsculo fora substituído pela noite. Milhares de estrelas já pon-
tilhavam o céu escuro e que sombras espessas turbilhonavam,
inclinavam-se e afastavam-se à sua passagem.
Voltando à realidade de chofre, foi tomada por uma sensação
de terror como nunca experimentara antes. E deitada quase
sobre o pescoço do cavalo, desejou nunca ter posto os olhos
em Giles de Rathborne!

CAPITULO III

A lua ergueu-se por cima das árvores, cintilante como um


navio de prata antiga, e iluminou os campos. Giles olhou em
torno e sua inquietação cresceu. Seus vastos domínios, outrora
cobertos de ricos bosques, terras de semeadura e férteis
pastagens, apresentavam um aspecto desolador. Era como se
a paisagem tivesse sido ferida de morte. Já alarmado, encurtou
as rédeas. Perdera-se na escuridão, certamente. Ali devia estar
O Homem Verde! Esquadrinhou os arredores, à procura do
grupo de casas de fachadas pontiagudas que se erguiam em
Chipping Hill desde tempos imemoráveis. Não havia nada ali, a
não ser uma alameda de árvores farfalhantes e uma negra
silhueta do que parecia uma chaminé emergindo da confusa
massa de sombras. Sentiu um súbito arrepio.
— Espere aqui, Finch — disse, desmontando. Avançou
lentamente e desta vez notou os escombros. Não se enganara.
As ruínas pertenciam ao que fora O Homem Verde. Vigas
carbonizadas, paredes ruídas, montes de pedra atulhavam o
antigo pavimento de pedra. Não eram ruínas antigas. O cheiro
acre de madeira queimada ainda pairava no ar, como se fosse
cinza caída do céu.
Voltou sobre os seus passos e. antes de montar,
perguntou ao seu cativo:
— Sabe o que aconteceu aqui?
— Ordens de seu administrador, para que não fosse
deixada pedra sobre pedra — disse Vera secamente. — Seus
sequazes executaram bem as ordens.
— Insolente! Isto aqui é obra de bandidos, não de um
homem como John Tapper. Conhece-o desde criança. Ele é um
homem justo!
Vera encolheu os ombros.
— Pergunte a qualquer pessoa na aldeia. Se puder
persuadi-los a vencer o medo que sentem do senhor.
— O que você diz é um absurdo! Ninguém, aqui, tem mo-
tivos para me temer. A não ser os que infringem a lei!
— Que lei? A lei de Lorde Rathborne? — ela indagou com
desprezo.
Giles virou-se para Francis, exasperado.
— Parece que recolhi um mentiroso. Ou um louco!
A marcha foi reiniciada uma vez mais. Instantes depois,
Giles obrigava seu cavalo a estacar. Rathborne erguia-se,
majestoso, a sua frente. Parecia esplêndido, à luz do luar, uma
jóia engastada no meio de um vasto parque. E o rio uma fita
de prata pontilhada de diamantes.
Sentiu-se de novo reanimado. Esperava ou temia algo tão
melancólico, que o espetáculo com que deparava constituía
agradável surpresa. Mas, enquanto atravessava a ponte de pe-
dra, a ilusão criada pelo halo da lua e pela distância dissipou-
se. A proximidade expunha o penoso estado em que se encon-
trava a outrora nobre moradia. A ampla fachada parecia
coberta pelo esquecimento. Os beirais e as sacadas estavam
brancas com os dejetos dos pássaros. As inúmeras chaminés
necessitavam de calafetagem e a que servia à velha capela
parecia a ponto de desabar.
Giles foi invadido por um assomo de cólera incontrolável.
Naquela negligência adivinhava-se a alma do antigo dono,
indolente, inábil em conservar seu tesouro. Que estivera
fazendo seu meio-irmão, para que Rathborne chegasse àquele
ponto?
— Por São Dunstan! Este lugar sofreu danos talvez
irreparáveis sob a direção de Morse! — exclamou.
Mal conhecera seu irmão mais velho. Na realidade, mal
conhecera seu próprio pai. Era rebento de uma união infeliz, o
único descendente de duas criaturas absolutamente
incompativeis.
Quando nascera, tanto Morse quanto seu pai estavam
longe, lutando contra os franceses pela posse de Calais.
Quando os dois finalmente retornaram, a amante de John de
Rathborne, de caráter leviano e pérfida, pressionara-o para
que se casasse com ela. O doido, consumido por uma paixão
vergonhosa, acusara então sua legítima esposa de adultério e
estigmatizara Giles, declarando-o bastardo.
Tempos depois, John de Rathborne reconhecera, em
público, o filho que renegara e deserdara. A essa altura,
porém, o dano já era irremediável. Para ambos.
Quanto a Morse, a separação fora completa. E, desde
então, vivendo como estranhos, seu meio-irmão nada
representara e nenhuma significação tivera para ele.
— Há muito o que fazer por aqui — suspirou, arrancando-
se de suas dolorosas divagações.
Francis contemplava a nobre morada de tantas famílias
ilustres sem esconder a sua decepção.
— Por Deus, Giles! Você tinha me garantido uma cama
confortável e uma ótima ceia. Parece que não vamos encontrar
nem uma nem outra coisa, entre essas paredes em ruínas —
ele comentou, expressando em voz branda o seu pesar.
— Em nossas viagens, passamos a noite em lugares
piores do que este — retrucou Giles, ressentido.
Apesar da censura do companheiro, Francis, aguçado pela
curiosidade, olhou-o furtivamente. Mas absteve-se de fazer ou-
tro comentário. Giles, em geral alegre e bem-humorado no
meio de seu grupo, qualquer que fosse a situação em que se
encontrasse, era capaz de explodir, quando contrariado. E, na-
quele momento, seus olhos fuzilantes sob as negras sobrance-
lhas não prometiam nada de bom.
A mesma e contínua inquietação dominava Giles,
enquanto avançavam lentamente sob os olmos copados que
orlavam a alameda, juncada de ervas daninhas e parcialmente
barrada por ramos caídos. Ao alcançarem o pátio, ele entregou
Califa ao cavalariço, que chegara correndo, e pôs-se a
examinar a fachada sombria, dotada de argolas de bronze,
onde outrora se enfiavam archotes de resina, nas noites de
festa.
Após alguns minutos de muda contemplação, abriu a
maciça porta de carvalho e introduziu seu hóspede e seu cativo
no grande hall de entrada, vazio e desguarnecido.
Havia por toda a parte uma quantidade inexplicável de pó
e um inconfundível cheiro de bolor. Teias de aranha pendiam
das vigas entalhadas, os vidros das janelas estavam
escurecidos pela fuligem e pombos pousavam no balcão da
galeria dos músicos, como se ali fosse seu poleiro permanente.
— Na última vez em que aqui estive, Rathborne era ainda
a mais bela mansão da Inglaterra — murmurou Giles, amar-
gurado. Depois, em voz alta, chamou: — Há alguém em casa?
Uma porta abriu-se no andar superior. Quase em seguida, uma
frágil mulher de cabelos brancos e aspecto cortês, surgiu no
alto da escadaria. Giles respirou com vago alívio, como se isso,
de certo modo, melhorasse a situação. Irma Wyndom era uma
velha prima que governava a casa havia muitos anos. A não
ser por algumas rugas a mais no rosto bondoso, sua aparência
era a mesma.
— Bons olhos a vejam, prima!
Lady Irma parou no meio da escada e levou aos mãos ao
peito, com um tímido arfar de surpresa. Giles riu brevemente e
foi apoiar-se ao corrimão.
— Não se assuste, prima. Não sou um fantasma.
— Oh, Giles!... Eu sabia que um dia você voltaria para
casa! — Irma desceu mais alguns degraus. — Se tivesse me
avisado de sua chegada, eu teria lhe preparado um festim.
Desse modo, vai ter que se contentar com o pouco que há na
casa.
— Mandei-lhe uma mensagem por um de meus homens,
prima!
— Não chegou em Rathborne. Quem sabe defrontou-se
com problemas na floresta.
Giles olhou para Vera com os cenhos carregados.
— Isso é bem possível — murmurou, entre dentes.
Depois, voltou-se para Lady Irma e, com a maior
delicadeza, disse:
— Talvez minha boa prima possa achar na despensa
alguma coisa para saciar nossa fome. Foi uma longa jornada.
— A despensa sob o celeiro está repleta de enormes
pedaços de manteiga e queijo, presuntos defumados, enfiadas
de salsichas e outras iguarias — intrometeu-se Vera com
ousadia.
— Vi com meus próprios olhos, seu administrador retirar
de lá uma peça inteira de toicinho defumado.
Irma corou profundamente.
— É verdade, my lord. Há uma enorme provisão de bons
manjares, na câmara fria. Mas a chave está com seu
administrador, que se encontra ausente.
Giles permaneceu um momento em silêncio, e foi ele
então que mudou de cor. Havia uma estranha dignidade na
resposta da velha senhora.
— Alguém vá até a despensa e arrebente a fechadura —
ordenou a seu capitão.
Lady Irma acabou de descer as escadas e tomou-lhe as
mãos nas suas, apertando-as com força, como para animá-lo.
— Estou feliz com a sua volta.
Giles mostrou o hall com um gesto circular.
— Que aconteceu aqui, prima?
— Depois que seu pai morreu, Morse, que Deus o tenha,
assumiu a direção da propriedade. — Irma enxugou uma lá-
grima. — Se ele não tivesse sucumbido às febres, teria
devolvido a Rathborne a seu antigo esplendor.
Giles pareceu assentir, mas conservou-se ainda em
silêncio. Diante disso, ela prosseguiu:
— Após a morte de Morse e você desaparecido, julgado
morto, o administrador tomou a si a direção da propriedade. —
Lady Irma fez uma pausa. — O que tem acontecido desde
então é suficiente para deixar a todos arrepiados. Fiz o que
pude para evitar que a casa caísse em ruínas. Mas como pode
uma mulher sozinha...
E a pobre mulher rompeu em pranto.
— Acalme-se, prima. — Giles envolveu-a com ternura
pelos ombros. — Sei que a culpa não é sua.
Depois, quando ela se acalmou, ele apresentou-lhe
Francis Finch.
— Meu amigo e companheiro de armas.
Lady Irma enrubesceu até a raiz dos cabelos e sorriu
timidamente.
— E quem é esse jovem?
Giles suspirou. Esquecera-se, quase, da existência do
cativo.
— Este infeliz? — Ele riu sem realmente achar muita
graça. — Meu novo pajem... talvez. Leve-o para que as criadas
lhe dêem um bom banho.
Vera animou-se. Podia ser sua última oportunidade de
fuga. Se falhasse, seu segredo seria descoberto. E que seria
dela então? O homem não era para brincadeiras!
Lady Irma fez-lhe um sinal e ela dispôs-se a segui-la de
olhos baixos. Mas Sir Giles alcançou-a na porta e bloqueou-lhe
a passagem.
— Compreenda, meu pequeno salteador, que não sou tão
idiota quanto imagina. Tenha cuidado! — ele disse, em tom
ameaçador. Depois, Para Lady Irma: — Prima, quando este
pequeno meliante estiver apresentável, leve-o diretamente ao
meu quarto.
Vera praguejou entre dentes. Lorde Rathborne era um
adversário formidável. Percebera suas intenções antes mesmo
que elas se formassem em sua mente!
Lady Irma, de sua parte, parecia satisfeita com o rumo
que as coisas tomavam.
— Seu quarto está em ordem, my lord. Deixei-o
preparado para a sua volta ao lar.
— Obrigado. Há ainda outra coisa.
— Sim, my lord.
— Alimente o rapaz. Ele deve estar faminto.
A questão praticamente terminara ali. Mais descontraído,
Giles guiou seu hóspede ao longo do vestíbulo, até o grande
salão de recepções e seu famoso teto suspenso. O luar
penetrava pelas altas janelas de vitrais, ostentando o escudo
de armas de Rathborne, e formava um desenho de linhas
entrecruzadas no chão de mármore.
— Estaremos mais confortáveis aqui, quando eu acender
o fogo.
Giles ajoelhou-se diante da ampla lareira de pedra e pôs-
se a trabalhar. A primeira chama brilhou e cresceu. Alimentou-
a e, instantes depois, outras se elevaram, lançando fagulhas
no ar.
Reanimado, ergueu-se e lançou um olhar em torno. Seu
coração tornou a oprimir-se, numa dor como ele jamais
sentira. Ali, também, a decadência e o abandono haviam
deixado sua marca. O teto deixava apenas entrever suas
figuras de gesso adormecidas sob a poeira, e as tapeçarias
góticas que subiam por cima dos armários caíam, em muitos
pontos, aos pedaços. As imponentes cadeiras e a longa mesa
que devia estar no centro do salão haviam desaparecido, como
também o guarda-louça real que pertencera a sua mãe.
Giles alcançou a porta com duas passadas e gritou por
um criado. Um homem, visivelmente nervoso, apareceu da
cozinha.
— My Lord!
— Por que o salão está nesse estado?
O homem pôs-se a tremer.
— É quase impossível cuidar de uma casa tão grande com
tão poucos criados, senhor — ele respondeu humildemente.
— Por que não contrataram outros?
— Lady Irma bem que tentou. Mas seu administrador
achou que era um gasto inútil e ordenou que o salão fosse
fechado.
O rosto endurecido e bronzeado de Giles tomou uma
expressão inquietante.
— Pode ir.
Quando o criado desapareceu nas sombras do corredor,
ele olhou para Francis e balançou a cabeça, desanimado.
— Por São Jorge! O administrador vai ter que responder
por isso!
Depois, ainda encolerizado, guiou Francis até a escadaria.
— Vamos subir, Francis. Acredito que o quarto principal
esteja em ordem. Pertencia a Morse e, antes dele, a meu pai.
— Talvez seja melhor que você vá sozinho — observou
Francis.
— Tem receio de que eu caia em prantos? Sossegue. Eu
não amava John de Rathborne. Nem ele a mim. Eu lhe
lembrava a esposa que ele repudiou, quando se encantou pela
jovem prostituta que o levou à loucura.
— Que foi feito dessa jovem?
— Fugiu com um rico mercador, enquanto meu pai jazia
em seu leito de morte. — Giles parou diante de uma porta
fechada. — É aqui, Francis.
Entraram. O aposento, grande e imponente, tinha a
aparência de um santuário. A ampla cama de cerimônia, as
ricas cortinas de linho, os altos espelhos refletindo o fogo
aceso, tudo isso impressionava, parecendo excessivo.
Giles, que esperava algo tão triste quanto o resto da
casa, ficou agradavelmente surpreso. Movendo-se à vontade
entre os objetos familiares, parou diante da cômoda de pau-
rosa, onde reluzia uma pequena taça de alabastro. Tomou-a
entre as mãos.
— Era de minha mãe. Uma criatura tão meiga!
Francis aproximou-se.
— Você já não está muito contrariado, não é, meu amigo?
— Que quer que lhe diga? É uma estranha volta ao lar.
Isso não estava nos meus planos. — Giles sentou-se com as
pernas esticadas e caiu num longo silêncio. — Estou faminto e
espero não ir para cama de estômago vazio — disse por fim.
Mal as palavras lhe haviam saído da boca, a porta ábriu-se.
Uma criada que chegava com a cerveja. Giles serviu ele
próprio a bebida.
— Uma libação — disse sorrindo a Francis e ergueu a
taça. — A amizade.
— A amizade — respondeu Francis Finch. — E não se
preocupe. Tudo terminará bem.
Giles olhou-o com ar de dúvida, antes de experimentar a
cerveja saborosa.
— Acredita realmente nisso?
Seu companheiro teve um sorriso quase imperceptível.
— A vida de proprietário de terras não é para você, Giles.
Você nasceu para a aventura.
— A morte prematura de Morse deu outro rumo à minha
vida. — Giles lançou um profundo suspiro. — Vamos falar de
coisas mais agradáveis. A propósito... Quem é a adorável
criatura que o impressionou tanto na corte? Estou curioso para
saber...
Gritos agudos e vozes acaloradas, vindos do saguão,
interromperam subitamente a conversa. Giles ergueu-se de um
salto e saiu correndo, seguido de Francis, para descobrir a
causa da confusão. No corredor, Lady Irma agitava as mãos e
gritava como uma possessa. Do lado, onde estavam reunidos
os homens de Giles, elevava-se um vozerio áspero e
dissonante.
— É preciso que alguém a impeça! — gritou alguém.
Giles tornou a olhar para Lady Irma e reconheceu que havia
algo de incomum em sua agitação.
— Que foi que aconteceu?
Irma apontou um dedo trêmulo para a galeria.
— Veja!
Giles imprecou. Uma criadinha de cabelos loiros estava
prestes a lançar-se do balcão dos menestréis, situado a cerca
de cinco metros do pavimento de pedra do hall. Alcançou-a
entre imprecações e, num gesto rápido e ágil, conseguiu
agarrá-la no exato instante em que ela se soltava no espaço.
A moça debateu-se selvagemente, cravando-lhe as unhas
pontiagudas nos braços.
— Deixe-me!
— Fique quieto, pequeno demônio, ou seu corpo irá
esmagar-se nas lajes do hall! Francis, ajude-me! — gritou,
mantendo-se fora de seus pontapés.
Ela ainda se debatia, quando os dois homens puxaram-na
por cima da balaustrada. Estava desesperada, os olhos úmidos,
a ponto de chorar.
— Deixem-me! Deixem-me!
Certo de que a criatura estava no auge de uma crise
nervosa, Giles esbofeteou-a uma, duas, três vezes para trazê-
la de volta à razão.
— Oh! — fez Vera, completamente fora de si e revidou,
dando-lhe uma violenta bofetada.
A fúria do ataque colheu Giles de surpresa. Deixou-a ir e
ela aproveitou para escorregar-lhe das mãos e enfiar-se pela
primeira porta que viu. Mas, antes que pudesse passar o
ferrolho, ele agarrou-a pela cintura, disposto até a usar de
violência para subjugá-la.
— Você não vai fugir de mim, pequena fera!
Giles lançou-a brutalmente contra a parede e não tardou
a perceber que a rebelde afinal capitulava. Examinou-a com
curiosidade. Ela estava ereta diante dele, os cabelos finos e
brilhantes como fios de ouro caindo-lhe pelos ombros, a boca
cerrada numa linha obstinada. Não conserva outro sinal do
desesperado gesto senão o rosto afogueado pelo esforço. E
fitava-o firme, numa atitude de desafio, os olhos azuis
fagulhando de desdém.
"Uma linda criadinha estranhamente fogosa", pensou.
Não estava habituado a intrometer-se em assuntos
domésticos, mas achou que era seu dever acabar cofn aquela
explosão. Olhou para sua prima, que entrara silenciosamente
no quarto, e depois para a agressiva criatura, pronta para a
luta.
— Basta com essa loucura! — rugiu. — Quero apenas que
me digam o motivo dessa confusão.
Seu tom era duro, não admitia contestação. Lady Irma
tremeu.
— My lord_ ela disse, agitada. — Fiz apenas o que
mandou. Banhei, alimentei e vesti com roupas limpas a
criatura que trouxe consigo. Mas...
Giles interrompeu-a, impaciente.
— E o que isso tem a ver com a cena deplorável que
acabamos de assistir?
Lady Irma apontou um dedo acusador para Vera.
— My lord, é "dela" que estou falando!
— Quê? — disse Giles, contemplando-a com estupor. A
velha lady continuou, implacável:
— Como o senhor vê, aquela criatura desgrenhada não
era um rapaz. E agora? Que quer que eu faça com... ela?

CAPITULO IV

Giles estava perplexo. Não entendia a mudança que se


operara no jovem prisioneiro. Agora é que não faço realmente
a menor idéia de quem é você.
Envolveu num olhar avaliador a indômita criadinha de
olhos violetas e convenceu-se de que o rapaz sujo e
esfarrapado que trouxera da floresta desaparecera
completamente. Foi o maior choque de sua vida.
— Custo a crer em meus próprios olhos!
Francis não conteve, também, uma exclamação de
surpresa.
— É difícil acreditar que alguém possa ter-se enganado ao
ponto de tomar esta mocinha de aparência delicada por um
rapaz selvagem. Especialmente um homem com sua vasta
experiência! — ele observou, com um brilho de malícia nos
olhos cinzentos.
Giles teve que concordar.
— Parece que estou sem prática. Nos últimos três anos, a
bordo do Cervo Dourado, tive apenas as sereias como
companhia feminina.
— Na corte, você vivia cercado por mulheres — lembrou-
o Francis. — Todas se oferecendo a você, todas disputando as
suas atenções.
— Mulheres lindas, por sinal. — Giles virou-se para a re-
belde, que o fitava sem dizer palavra, e contemplou-lhe o ros-
tinho atrevido. — Ao passo que esta criatura...
Vera reagiu furiosamente, diante do insolente
comentário.
— Está zombando de mim, senhor? Pois tu lhe darei algo
que o fará lembrar-se de mim para sempre!
Giles ficou rindo de sua fúria. Uma ferinha raivosa, mas
impotente. Não demorou em perceber o seu engano. Num abrir
e piscar de olhos, ela armou-se de um punhal que escondera
no bolso da saia e atirou-se sobre ele. Habituado a arrostar e a
dominar qualquer situação perigosa, evitou o golpe com braço
firme, arremessando o punhal para longe.
Enquanto a lâmina cortava o ar, indo a cravar-se no
painel da porta, agarrou-a pelos pulsos e jogou-a sobre a
cama.
— Chega de encrencas! Quero-a presa na masmorra! —
trovejou e ergueu o braço, como se fosse espancá-la.
— Bata em mim, vamos! — exclamou Vera, ofegando-lhe
ao lado.
Giles deixou cair o braço e riu.
— Por Deus, você me tira do sério!
— Cuidado! — avisou-o Francis. — Ela pode ter outra
arma.
Giles apalpou-a de alto a baixo, sem cerimônia. Ao
constatar que ela nada usava por baixo do vestido, tornou a
rir.
— Aqui, não há o que esconder.
— Graças a Deus! — exclamou fervorosamente Lady
Irma.
Giles olhou de soslaio para o rosto miúdo e preocupado
de sua velha prima e suspirou.
— Francis, leve Lady Irma a seu quarto. Quero enfrentar
esta fera sozinho.
— É o que eu também faria, se estivesse em seu lugar —
disse Finch alegremente. — Ela é mais graciosa do que parecia
à primeira vista!
Quando ele saiu. levando a velha senhora pelo braço,
Giles fez um sinal a seu capitão.
— Saia, mas monte guarda diante da porta.
Vera sentiu um arrepio pelo corpo que não era de frio,
mas de uma espécie de pressentimento nada agradável. Seu
captor examinava-a dos pés à cabeça, como se a despisse
mentalmente. Imaginou o que estava para acontecer e deu um
passo para trás.
De repente, com um sorriso insinuante, ele caminhou em
sua direção, silencioso e ameaçador como uma pantera.
— Agora, maclam, vamos fazer um acerto de contas. Foi
muita imprudência de sua parte atacar-me duas vezes num só
dia — disse, continuando a avançar.
O coração batendo-lhe furiosamente no peito, Vera
recuou até a janela.
— Não se atreva a me tocar! — gritou.
— Fique onde está — ele avisou calmamente. — Daí,
ninguém poderá saltar sem perder a vida.
— Tanto melhor! — ela explodiu, desesperada.
Mas antes que pudesse dar um passo, ele a segurou pelos
pulsos e, num movimento inesperado, jogou-se sobre ela,
prendendo-a com o próprio corpo.
— Solte-me! — ordenou, debatendo-se inutilmente.
Giles ficou surpreso, ao sentir sob si formas tão
arredondadas, tão femininas. Olhou o rosto entregue à luz do
castiçal. Havia alguma coisa distintamente familiar em suas
feições. Tomou-o entre as mãos e examinou-o, intrigado. Já
não a vira antes, em sua única visita a Morse, por ocasião da
morte do pai?
— Quem é você? — perguntou. — Como se chama?
Vera nada pôde dizer durante alguns segundos, embora
sentisse, enquanto continuavam a olhar-se, que não poderia
fugir àquele escrutínio.
— Sou Vera, apenas. Não tenho outro nome — disse
afinal, dando de ombros com indiferença.
Giles continuava a fitá-la. Ela era meio selvagem, mas
sua pele era fina e macia, e sua voz suave e estranhamente
educada, mesmo em suas explosões mais rudes.
— De onde é você?
Vera respondeu com cautela:
— Não sou de lugar algum, my lord. Vivo na floresta
desde que meus pais morreram. Deixe-me ir, por favor! O que
pode querer de uma criatura simples como eu?
Giles era vivo demais para cair no engodo.
— Já que não tem família nem lar, cabe a mim oferecer-
lhe um lugar para morar.
Vera tentou escapar, mas dedos de aço fecharam-se em
torno de seus braços, obrigando-a a permanecer quieta e
imóvel.
— Você vai ficar em Rathborne.
— Para quê? — ela perguntou, alarmada — Que poderia
fazer aqui?
Ele baixou a voz, sugestivamente.
— Você é uma mocinha graciosa. Tenho certeza de que
posso encontrar uma ocupação interessante para você.
Um calafrio percorreu a espinha de Vera. "Ocupação
interessante"... Tinha uma boa ideia do que isso significava!
— Por favor, senhor! Deixe-me ir. Thad vai ficar
preocupado se... — Vera mordeu os lábios, percebendo, tarde
demais, que caíra na armadilha.
Giles sorriu triunfalmente.
— Então é Thad o nome do salteador sanguinário que
vive em minhas terras!
Um soluço quebrou-se na garganta de Vera enquanto ela
dizia:
— Thad não é salteador, my lord. Thad é um simples
lenhador que fez da floresta o seu lar e que paga tributos a
Rathborne.
Ele deixou-a ir, pensativo.
— Você gosta muito de Thad?
Ela fez que sim.
— A ponto de salvar-lhe a vida?
— Faria qualquer coisa por ele, meu senhor.
Giles olhou-a com desconfiança e ironia. Sua lealdade
para com o bandido era elogiável. Talvez pudesse usá-la em
proveito próprio.
— Então, venha cá. Talvez possamos chegar a um
acordo.
Vera sabia que era inútil rebelar-se. Estava inteiramente
à mercê daquele homem. Quando chegou bem perto, ele
tornou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-a na boca, de leve.
Diante de sua resistência, murmurou baixinho:
— Está com medo de mim, pequena Vera?
— Não... não, my lord.
Giles pousou-lhe a mão sobre o seio. O coração batia-lhe
selvagemente no peito. "Uma linda criatura, graciosa e com-
bativa", pensou, envolvendo-a pela cintura e apertando-a
contra si.
Vera sentiu a musculatura daquele peito forte, o leve
fluxo e refluxo da respiração dele contra seus cabelos e uma
excitação febril aqueceu seu sangue, roubando-lhe a
capacidade para resistir.
— O colchão é de penas — ele sussurrou-lhe ao ouvido.
— Quer experimentá-lo comigo, Vera?
A resposta dela foi um murmúrio apenas audível.
— Sim... my lord.
Giles mergulhou os dedos na seda dourada de seus curtos
cabelos e empurrou-lhe a cabeça para trás. Sua boca era um
botão de rosa, pronta para os beijos. Um impulso suave e ao
mesmo tempo arrebatador o dominou por completo, sufocando
a voz da consciência. Beijou-lhe o pescoço branco e macio,
onde uma veia pulsava selvagemente, e percebeu seu esforço
para não gritar de pavor.
— Doce mentirosa. Você seria capaz de me apunhalar
enquanto eu estivesse dormindo — disse-lhe com brandura.
Depois endireitou-se e soltou-a bruscamente. — Pode ficar
despreocupada, pequena Vera, que não vou molestá-la. Não
costumo usar a força para ter uma mulher.
Ela respirou fundo, de puro alívio. Estava salva... por en-
quanto. Mas seu alívio foi de curta duração. Súbito, ouviu-o
estalar os dedos, como se apenas naquele instante tivesse se
lembrado de alguma coisa.
— A propósito... Meus homens capturaram um de seus
amigos da floresta. Um sujeito falante. Parece que ele se
ofereceu para dizer tudo o que sabe. Amanhã, ao anoitecer,
todo o bando estará em minhas mãos.
Vera baixou os olhos para esconder o brilho de desdém
que havia neles.
— Deve ser Hewe! — disse, aflita. — Pronto para vender
a alma ao diabo, quando se trata de salvar a própria pele!
Giles ficou dividido entre o triunfo, ao ver com que
facilidade dobrara seu espírito combativo, e um leve
sentimento de culpa. Estranho porque, no passado, nunca
tivera escrúpulos de consciência. Era um aventureiro por
profissão e fazia por ignorar tais fraquezas.
— Sim, o homem chama-se Hewe. Concordou em
cooperar e sugeriu que você faça a mesma coisa.
Mas ela o surpreendeu, rindo-lhe na cara.
— Achou mesmo que me enganaria com suas mentiras?
— O rosto dela afogueou-se. — Hewe preferiria a morte, do
que render-se a um inimigo jurado!
O rosto de Giles de Rathborne era uma máscara
irreconhecível de fúria descontrolada. Vera tremeu e tentou
escapar, mas ele segurou-a com mão de ferro e, sem palavras,
arrastou-a à força para a escada e ao largo de imensos
corredores. Enquanto atravessavam o pequeno pátio em
marcha rápida, rumo à antiga torre de menagem, ela
esmoreceu.
Correntes e algemas de ferro, ossos carcomidos... A mas-
morra de Rathborne, segundo se dizia, era habitada pelos fan-
tasmas dos antigos cativos. A noite, era possível ouvir o rumor
leve e seco de seus ossos entrechocando-se e seus gemidos
intermináveis. Um calafrio percorreu-lhe o coração, estrangu-
lando-lhe a voz na garganta. Mas tinha de ser forte. Por Thad.
Felizmente, suas pavorosas conjecturas não se concretizaram.
Seu captor deteve-se diante da pequena porta do rés-do-chão
e abriu-a, fazendo-a ranser nos gonzos.
— Sua nova morada, my Lady — anunciou, sarcástico,
enquanto a empurrava para o interior de um cubículo sombrio.
Tratava-se, ao que parecia, de uma pequena cela, uma
espécie de despensa isolada do resto do edifício e
completamente rodeada pelas paredes da antiga fortaleza. A
única luz que lá penetrava o fazia através de três estreitas
frestas, muito acima do alcance de suas mãos.
Virou-se. Giles de Rathborne observava-a do limiar, a
compleição atlética silhuetada pela luz da lua, às suas costas.
— Não alimente ilusões, minha bela. Seu destino
depende unicamente de sua resolução. Eu lhe darei a
liberdade, se me disser o nome dos bandoleiros e dos ladrões
destes bosques.
Vera fuzilou-o com os olhos.
— Nunca, ouviu bem? Nunca! Prefiro sofrer os maiores
suplícios do que denunciar meus companheiros!
Giles encolheu os ombros.
— Como quiser. Deixou-lhe o cuidado de refletir nisso.
Durma bem.
Antes que ele fechasse a porta, ela gritou-lhe atrás:
— Eu não pregarei os olhos, debaixo deste teto maldito! E
espero que o mesmo aconteça com my lord, tendo consciência
de quanto é odiado por estas partes!
Giles virou-se impetuosamente para ela.
— Odiado? E por quê? Quem tem motivos para me odiar?
— Como pode esperar que o povo ame o tirano que o
despojou de seus bens e de sua liberdade?
— Tirano, eu? Não diga bobagem!
— My lord não é o senhor de Rathborne? — atirou Vera,
os olhos azuis duros e frios como aço. — O homem que
expulsou viúvas e crianças de suas casas, deixando-as morrer
de fome e de frio? Que mandou queimar os campos dos
meeiros que se recusavam a pagar os impostos exorbitantes
que costuma cobrar?
Os olhos escuros de Giles encheram-se de raiva e
incredulidade.
— Você deve estar louca! Estive três anos ao mar. Não
despojei ninguém de seus bens!
— My lord é o senhor de Rathborne — ela repetiu, com
um furor que lhe foi impossível reprimir. — Embora não es-
tivesse aqui, todas as injustiças foram cometidas em seu
nome. E se duvida de minhas palavras, pode perguntar a
qualquer um, de Rathborne a Ripley Wold!
Giles olhou-a atentamente. Ela parecia estar dizendo a
verdade.
— É o que eu farei! Pode estar certa disso.
Vera ergueu a cabeça com altivez e afastou-se. Após um
instante, ouviu a porta fechar-se com estrondo e logo em
seguida os ferrolhos correrem ruidosamente, tirando-lhe a
mínima possibilidade de salvação.
Preparada para enfrentar as circunstâncias mais
adversas, o seu primeiro cuidado foi examinar o cubículo, à luz
baça que coava das frestas. Não havia nenhuma passagem, a
não ser a porta por onde entrara, que podia ser aberta apenas
pelo lado de fora. Não lhe restava outro recurso senão uma
grande confiança que seus companheiros viessem resgatá-la.

Depois de passar em claro a maior parte da noite, Giles


levantou-se bem cedo e saiu a cavalo. Vestira-se
simplesmente, sem ostentar nenhum distintivo ou insígnia que
revelasse sua posição social. Não pretendia identificar-se como
o novo senhor de Rathborne. Ainda não.
O verão escoava-se rapidamente e o céu já adquiria a
transparência típica do outono. Por entre os ramos dos
carvalhos cor de sangue, a meia milha de distância, uma
cerração azulada, decerto fumaça de madeiras, flutuava no ar
como uma nuvem ténue. Pairava uma quietude por toda a
parte. Mas ele não conseguia encontrar a paz que costumava
sentir, durante os longos passeios nos verões salpicados de
sombra de sua juventude.
Sua inquietação crescia a cada passo. Não se afastava
muito de casa e já reconhecia as primeiras evidências do
estado em que se encontravam as suas terras. Os pomares
estavam abandonados e as margens do rio cobertas com o
acúmulo de detritos trazidos pelas cheias. Os montes de feno
eram minguados. O gado magro ruminava a pastagem pobre,
esticando o pescoço para alcançar as folhas de carvalho. Seu
coração apertou-se. Que mais lhe estaria reservado?
Talvez o proprietário de algum dos brancos chalés
situados além da colina pudesse lhe dar uma explicação
convincente. Esporeou Califa e, após contornar a curva do rio,
ergueu-se nos estribos. Dos brancos chalés de sua infância só
restavam ruínas escurecidas e cinzas. Duas paredes
melancolicamente apoiadas uma à outra eram tudo quanto
restava do celeiro.
Desmontou, à procura de indícios. Um menino de seus
onze anos emergiu de uma moita com uma atiradeira e, ao vê-
lo, fez menção de fugir.
— Espere! Não vou lhe fazer nenhum mal — tranquilizou-
o Giles. — Pode me dizer o que aconteceu com as casas que
havia aqui?
O garoto olhou medrosamente para os lados.
— Foram queimadas na Páscoa, senhor.
— Sabe quem foram os bandidos que atearam o fogo?
— Não foi nenhum bandido, não senhor. Foi o
administrador de Rathborne. — O menino apontou para os
escombros da última casa. — Vi com meus próprios olhos,
quando ele atirou o archote aceso.
Giles reprimiu todo sentimento que pudesse traí-lo.
— Sabe me dizer por quê?
— Os proprietários não pagaram os impostos, senhor.
Não tinham dinheiro.
Giles gratificou-o com uma moeda e tornou a olhar para
as ruínas.
— Meu Deus!... — murmurou, um abismo de
consternação abrindo-se a seus pés.
Decorrido um instante, olhou para o céu que se cobria de
nuvens e empreendeu o triste e penoso caminho de volta a
casa.
Ao alcançar Rathborne o espírito de Giles estava tão som-
brio quanto o céu. Três semanas antes, dominado por um sen-
timento de autoconfiança, voltara para a Inglaterra. Cheio de
sonhos e esperanças, em nenhum momento lhe passara pela
cabeça que seus planos poderiam se frustrar. Agora, porém,
era obrigado a encarar a dura e triste realidade: os reparos
necessários para devolver a Rathborne parte de seu antigo es-
plendor engoliriam seu quinhão da bem-sucedida aventura ao
lado de Drake. O ouro e a prata dos espanhóis, com os quais
contava equipar seus próprios navios, estavam definitivamente
perdidos.
Decidido a fazer frente à situação, tomou um atalho que o
levou diretamente à galeria, onde outrora acumulavam-se qua-
dros de mestres e mármores preciosos. Mas ao transpor a
porta, reconheceu já sem surpresa, o mesmo abandono, a
mesma desatenção que imperava no resto da casa.
Não sabia o que o levava a isso nem o que pretendia,
mas avançou resolutamente pelo corredor. Sem utilidade havia
alguns anos, a galeria, construída para o exercício das armas
quando o tempo tornava-se inclemente, convertera-se numa
exposição permanente dos retratos de família. A parede oposta
aos vitrais armoriados estava coberta deles.
Enquanto caminhava, avistou Francis Finch, que ia
avançando vagarosamente entre a elegante negligência das
tapeçarias, da profusa confusão das armas, dos mármores, das
pinturas. Alcançou-o com duas passadas.
— Quanta coisa bonita tem aqui, Giles! — disse-lhe o
amigo, entusiasmado.
— Na maioria, vêm de meu avô. — Giles mostrou com
um gesto da mão os retratos pendurados nas paredes — Meus
antepassados.
— Há algumas telas lindas. — Francis indicou urna delas.
— Essa, por exemplo.
Giles aproximou-se e teve um aperto de coração.
— Minha mãe — informou tristemente. — Clarice
Hammond.
Era um retrato de corpo inteiro. Do alto da moldura
dourada, ela parecia tão linda e delicada como ele recordava: o
rosto oval, a linha graciosa do queixo, a expressão meiga e
ligeiramente tímida.
Mas a primeira impressão de serenidade era enganadora.
Os olhos escuros, velados e distraídos, espelhavam uma
grande e indescritível melancolia.
— Meu pai a fez sofrer além de todos os limites, ele
mesmo provocou sua morte.
— Uma criatura tão encantadora...
— Ela o era realmente, mas John de Rathbome não podia
contentar-se apenas com uma mulher. Seus desejos e apetites
nunca eram saciados.
Retomaram a caminhada em silêncio.
— Tudo aqui me traz recordações dolorosas. Vejo
fantasmas em toda parte — tornou Giles, enquanto se detinha,
pensativo.
Sem proferir outra palavra, ele retrocedeu um passo.
Depois de lançar um olhar em torno, comentou, subitamente
animado:
— Pode haver, entre essas telas e painéis pintados, um
tesouro de valor incalculável. Isso resolveria todos os meus
problemas.
— Tem razão. Há alguns anos, foi descoberto em
Burlington House um retrato de Henrique VIII. O conde de
Leicester pagou um soma considerável pela tela, com a qual
presenteou a nossa rainha.
Giles lembrava-se do episódio. Depois disso, a estrela do
conde, ofuscada por seu casamento com Lettice Knollys,
tornara a brilhar.
— Vamos dar uma olhada — disse, hesitante. — Apenas
uma olhada.
Caminharam lado a lado, ao longo da galeria,
examinando os quadros um a um. Viram-se diante de homens
severos e mulheres de sorriso afetado, alternando-se com
paisagens desbotadas, e de inúmeros retratos de antepassados
em velhas molduras douradas.
— Bem, foi apenas uma ideia — suspirou Giles, reconhe-
cendo ao primeiro olhar uma coleção banal e duvidosa. — Esta
galeria tornou-se um depósito de refugos. Meu pai deve ter
delapidado o tesouro, a fim de satisfazer os caprichos da
amante, fria e calculista.
Enquanto se encaminhavam para a extremidade oposta,
o sol surgiu de trás de uma massa de nuvens escuras e uma
longa faixa de luz tombou sobre um outro retrato, quase es-
quecido entre duas tapeçarias. Giles estacou, a respiração
suspensa. A pintura representava uma dama esguia, de
cabelos de ouro e vestido azul, com uma menina no colo. A
mão segura do artista captara o olhar afogado num sonho
romântico, a expressão cheia de bondade.
— Um retrato encantador — disse Francis. — Quem são
elas?
— Allys de Breffny, prima de meu pai, e sua filhinha, Lady
Verena. Antes de conhecê-la, Sir Lyle Stanton levava uma vida
desregrada. O casamento regenerou-o. Tiveram uma única
filha, que rivalizava com a mãe em graça e beleza. Quando o
casal morreu, num acidente de carruagem, meu pai fez uma
petição à rainha reivindicando a tutela de Lady Verena. A
menina criou-se em Rathbome.
Francis surpreendeu-se. John de Rathbome não era dado
a manifestações de bondade.
— Foi um gesto nobre. Giles sorriu, irônico.
— Lady Verena era a única herdeira de uma grande
fortuna, isso explica o interesse. Mas ele não deixava de ter
uma certa razão. A maior parte das propriedades de Stanton
pertencia, originalmente, a Rathbome.
— Não sabia disso.
— Meu avô, ingenuamente, deixou-se seduzir por uma
jovem que havia atraído a atenção do rei. Ele escapou com
vida da ousadia, mas perdeu metade de suas terras, que foram
doadas a Sir George Stanton por serviços prestados a Sua
Majestade. Serviços de alcovitagem, segundo as más línguas.
Giles fez uma pausa pensativa, antes de acrescentar:
— Se Lady Verena tivesse vivido, salvaria Rathborne da
ruína.
— De que modo? — admirou-se Francis.
— Quando Elizabeth subiu ao trono, determinada a
unificar seu reino dividido, ficou conhecendo a verdade. Não
podendo mais restituir as terras ao seu verdadeiro dono para
não atirar sobre si a ira de inimigos poderosos, concordou em
entregar a tutela de Lady Verena a John de Rathborne,
concedendo-lhe, também, o privilégio de usufruir as riquezas
do vasto domínio.
— Pobre criança! — disse Francis, olhando para o rosto
delicado da pequena Vera. — De que morreu ela?
— Ninguém sabe. Isso aconteceu há muito tempo,
quando uma terrível epidemia alastrou-se pela região. Passado
o tumulto, verificou-se que a pequena Lady Verena tinha
desaparecido com sua ama. Posteriormente, soube-se que a
mulher tinha morrido num lazareto. Da menina, nunca mais
ninguém ouviu falar.
— Que coisa espantosa!
As nuvens voltaram a cobrir o sol, amortecendo a
claridade que tombava sobre o quadro. O jogo de luz e sombra
pareceu dar vida ao retrato. Giles conteve a respiração. O
rosto de Allys parecia vivo e os olhos... observando-o, dizendo-
lhe alguma coisa...
— E um grande quadro — disse Francis.
Giles examinou-o novamente e experimentou a estranha
sensação de que Allys surgia em carne e osso diante de seus
olhos. Contemplou sua nobre figura, os traços delicados e os
profundos olhos azuis, tão profundos que pareciam quase
violeta... A constatação atingiu-o com a força de um golpe.
Não era de admirar que sua fisionomia lhe parecesse íao
familiar. Vira-a naquele mesmo dia, estampada no rosto de
Vera!
— Por São Jorge e pelo dragão! Francis Finch
sobressaltou-se.
— Que foi?
— Olhe bem para o retrato. Consegue ver o que eu estou
vendo?
— Extraordinário! — bradou, após um instante de muda
contemplação.
Giles sorriu triunfalmente. Sabia que não estava louco!
Reconhecia Allys em cada um dos traços da jovem fora-da-lei.
Era como se a antiga lady tivesse renascido e se corporificado
nela: o rosto oval, o pescoço de cisne, os grandes olhos
violeta...
Ergueu a cabeça num movimento brusco e pôs-se a rir.
— Fantástico!... Realmente fantástico!
Alertado por aquela crescente exaltação, Francis encarou-
o.
— Que é que há? — indagou.
— Acabei de ter uma ideia maluca. Vai saber logo do que
se trata. Antes, porém, preciso resolver um problema. — Giles
segurou-o pelo braço. — Está com vontade de divertir-se um
pouco?
— E não estou sempre?
— Otimo! Esteja nos jardins do fundo ao entardecer. Não
faça barulho e vá armado.

Fazia frio no cubículo onde Vera se encontrava. A medida


que o sol desaparecia, o ar tornava-se gelado e a áspera
umidade penetrava em seus ossos, privando-lhe o corpo de
preciosas reservas de calor. Nunca, como naquele momento,
desejou estar metida em seu quente gibão acolchoado e suas
calças de pano.
— Quando eu sair desta confusão, nunca mais irei usar
um vestido! — prometeu-se, estirando as pernas e os braços
enrijecidos.
Se não fosse sua má sorte, estaria agora sentada junto à
fogueira, ao lado de Thad e do bando. Uma lágrima solitária
escorreu-lhe pela face. Thad era o único pai que conhecera.
Mais do que isso: ele era seu primeiro e grande herói. E, no
entanto, fora capaz de delatá-lo ao inimigo. Ela, que preferia
morrer do que causar-lhe qualquer sofrimento...
Tinha que conquistar logo a liberdade para avisá-lo do
perigo que corria. Ele e todos demais!
Estava convencida agora de que cometera dois graves
erros. O primeiro fora confundir Sir Giles com um dândi da
corte e atacá-lo na floresta. O segundo, deixar que ele se
apoderasse do punhal. Se houvesse calculado tudo com mais
cuidado, podia ter feito melhor uso da arma. Um ataque
simulado e um golpe certeiro entre as costelas e...
Suspirou fundo. Apesar de seu ódio por Lorde Rathborne,
sabia que não teria a coragem de matar um ser humano. A não
ser que sua vida estivesse em jogo. E não acreditava que ele
pretendesse lhe fazer algum mal, não obstante as ameaças
veladas.
Levou a mão ao colo, onde ele pousara os lábios, e a lem-
brança da cena vivida entre as quatro paredes do quarto in-
vadiu-a de calor. Perturbada, começou a pensar em fatos sem
importância, evitando sucumbir à magia daqueles instantes.
Insensivelmente, seus olhos se fecharam. Reagiu, num
último e poderoso esforço para manter-se alerta e pronta para
aproveitar todos os meios de salvação que se apresentassem.
Mas o cansaço a sufocava. Rendeu-se a ele e mergulhou num
sono profundo.
Acordou de repente, sem saber onde estava. Arregalou os
olhos, lutando contra a sonolência, até que a realidade atingiu-
a de pronto. Pela primeira vez, desde que fora aprisionada,
deixou-se levar pelo desespero.
A cela estava às escuras. Em redor, tudo era silêncio.
Houve um momento em que julgou reconhecer, fraco e
distante, o pio de uma coruja. O sinal de Thad! Levantou-se do
banco, esperando a possível repetição do som.
Passado um momento, seu desânimo aumentou.
Ninguém do bando tentaria resgatá-la, a menos que houvqsse
alguma chance de sucesso. E que chance eles poderiam ter, se
nem ao menos sabiam onde ela se encontrava?
Outro pio rompeu o silêncio da noite. Desta vez, o sinal
era inconfundível. Tinha que fazê-los saber onde estava. Olhou
um torno. O banco! Mas teria que pô-lo de pé, para alcançar as
altas janelas. Conseguiu seu intento, após muito esforço e
várias tentativas frustradas.
Galgou-o agilmente e enfiou o rosto entre a festa. Pôde
discernir um movimento ao longo da orla da floresta. Algumas
sombras furtivas avançavam cautelosamente em direção aos
muros do castelo. "São eles!", pensou, invadida por um sen-
timento de orgulho e satisfação.
Inesperadamente, um grupo de homens emergiu das
moitas onde estavam emboscados e investiu com rapidez,
atacando-os pelos flancos e pela retaguarda.
— Fujam! — ela gritou, ao perceber que Thad caíra numa
cilada. — Fujam antes que eles os apanhem!
Era tarde demais, porém. Os archotes fulguravam e logo
os dois grupos empenharam-se num combate feroz. Os
homens de Lorde Rathborne, bem armados, interceptavam e
devolviam com destreza os golpes do adversário que, menos
numeroso, não podia oferecer resistência efetiva.
Vera retrocedeu, chocada, e o banco balançou. Instintiva-
mente, ela agarrou-se ao peitoril da janela, todos os nervos e
músculos do corpo completamente distendidos. Tentou gritar
por socorro, mas sua garganta estava tão contraída que não
emitia nenhum som.
A porta abriu-se com estrondo no exato instante em que
a velha argamassa se esfarelava sob os seus dedos. Ouviu que
a chamavam pelo nome e deixou-se cair sobre um par de
braços atléticos, que a envolveram com firmeza.
— Thad!... — Sua voz quebrou-se num murmúrio: — Eu
sabia que você viria.
Sem palavras, ele a jogou sobre o ombro. De cabeça para
baixo, demorou um pouco para perceber que estava sendo le-
vada não para os bosques, mas para a mansão. Transpuseram
a ampla porta de entrada, as escadas escassamente
iluminadas. Assim que foi depositada no chão de um pequeno
quarto, viu-se face a face com Giles de Rathborne.
Ele sorria sarcasticamente.
— Espero que seu desapontamento não seja grande
demais, madam.
— É imenso! — gritou, num arranque de ódio. Giles
segurou-a pelos pulsos com mãos de ferro.
— Calma, minha bela instigadora de discórdias. Não
quero machucá-la. Não, depois do grande serviço que me
prestou, atraindo seus amigos salteadores para uma
emboscada.
Vera deixou escapar um gemido:
— Não!
— Veja por si mesma.
Ele empurrou-a para uma das janelas e levantou o canto
da cortina. No pátio, iluminado pelas tochas, estavam Thad,
Hewe, Garvin e Ferris. Mostravam-se acabrunhados e Thad
pareceu-lhe de súbito que envelhecera vários anos.
Giles deixou cair a cortina.
— Esta noite, seus amigos dormirão na masmorra. Não
tente nenhum de seus truques ou mandarei enforcá-los ao
amanhecer!
— Eles vieram para me salvar. — Os olhos
repentinamente cheios de lágrimas, ela implorou: — Faça de
mim o que quiser, my lord, mas restitua-lhes a liberdade!
Giles não ficou insensível, embora se sentisse mais emba-
raçado do que comovido. Ela estava profundamente
angustiada. Não adiantaria nada alimentar-lhe o ódio. Isso
poderia arruinar seus planos. E o seu futuro, e o futuro de
todos os que viviam em Rathborne, podia depender dela.
— Talvez eu leve seu pedido em consideração — disse
com voz mais branda. — Vou poupar a vida de seus amigos em
troca de sua cooperação. Lembre-se disso e eles poderão obter
a liberdade.
Dito isto ele saiu, fechando a porta atrás de si. Ao ouvir o
repentino estalido da chave girando na fechadura, Vera voltou-
se bruscamente.
"Uma precaução desnecessária", pensou amargamente.
Mantendo seus amigos sob custódia, Lorde Rathborne manti-
nha-a mais cativa do que as grades de ferro de uma prisão.

CAPITULO V

No dia seguinte, deu-se início ao trabalho de fazer de


Rathborne uma habitação confortável. Novas criadas,
requisitadas na aldeia, entravam e saiam atarefadas, arejando,
lavando e esfregando de alto a baixo todos os cómodos da
mansão, enquanto bisbilhotavam acerca do dono da casa.
Quando Giles chegou de sua cavalgada, o sol de
setembro penetrava pelos amplos vitrais armoriados,
cintilantes em seu colorido, semeando pequenas manchas de
cor nos imensos corredores.
A impressão que lhe causou a amplo espaço iluminado do
salão, com seu teto trabalhado, os seus quatro candelabros, os
seus tapetes vermelhos e seus nobres retratos em molduras
douradas, foi de admiração e deslumbramento.
— Oh! — fez, entrando. — Está bem melhor.
Francis, que estava debruçado sobre a mesa, estudando
alguns mapas, ergueu os olhos.
— Tínhamos um encontro marcado, lembra-se?
— Saí para caçar ratos — suspirou Giles. — Ou melhor,
um bem gordo.
Francis balançou a cabeça.
— O que, realmente, andou fazendo, meu amigo?
— Fui a Turnley e trouxe de volta John Tapper, meu
administrador. Mandei-o encarcerar no velho estábulo.
Pretendia jogá-lo na masmorra, junto com os outros bandidos,
mas pensei melhor. Aqueles homens podem acabar com ele e
eu o quero vivo, respondendo a um julgamento público!
— Uma ideia brilhante, Giles. Tão brilhante quanto seus
cálculos para a nossa projetada viagem. Estive estudando o
roteiro. Dois navios, quatro meses ao mar e poderemos encher
nossos cofres com os tesouros do Oriente. Se — acrescentou
Francis, bem-humorado — tivermos os dois navios e você não
estiver ainda preso a este lugar!
Giles aproximou-se da lareira com as mãos estendidas.
Junto ao fogo, os olhos e os cabelos escuros retinham os
reflexos ambarinos das chamas e seu rosto adquiria uma
beleza ardente.
— Seria uma operação bastante dispendiosa. Algo
praticamente irrealizável, nas presentes circunstâncias.
Contava com os recursos de Rathborne, para equipar as
embarcações. Isso foi antes que eu viesse para cá e visse com
meus próprios olhos em que pé estão as coisas.
Giles apontou para o teto pintado e debruado a ouro, que
parecia brumoso devido à infiltração.
— Pelas Chagas de Cristo, onde poderei encontrar
artesãos hábeis para restaurá-lo? E se encontrar, como vou
pagá-los? — indagou, olhando para Finch.
Seu amigo suspirou, abrindo os braços num gesto de im-
potência.
— Meu avô era um administrador extraordinariamente
competente. Respeitava e tratava com justiça seus
arrendatários. Meu pai e meu meio-irmão tinham outras ideias
e o resultado é esse que você está vendo: Rathborne está à
beira da ruína.
— Você pode levantar um empréstimo, dando suas
terras em garantia — sugeriu Francis. — E fazer depois todas
as reformas necessárias.
— Há já um ônus real sobre a propriedade.
— O que vamos fazer, então?
— Esperar.
— Esperar?
— Isso mesmo.
Giles alisou a barba, pensativo. Não tinha alternativa. Po-
deria perder as terras que davam sustentação a Rathborne.
Era uma ameaça real. A menos, naturalmente, que levasse
adiante os seus planos. Já analisara, repetidas vezes, todos os
pormenores. Havia alguma esperança. Talvez não muita, mas,
de qualquer maneira, já era alguma coisa. Foi isso o que
finalmente o levou a tomar a decisão.
— Vai depender de uma porção de coisas. Mas há
grandes possibilidades de termos os navios equipados e
prontos para zarpar nesta primavera, quando o tempo estiver
favorável.
— Que pretende fazer? Roubar as jóias da coroa? —
brincou Francis.
— De uma certa foram — disse Giles, sorrindo. Depois,
subitamente sério: — Lembra-se das acusações de Vera?
— Sim, claro. Mas...
— Pois eram verdadeiras. Enquanto eu experimentava o
fio de minha espada nas índias Ocidentais, meus arrendatários
tinham que abandonar seus lares e seus bens.
Francis sentiu-se comovido. O dilema em que se
encontrava o amigo era assustador.
— Você não pode se recriminar pelos excessos de seu ad-
ministrador. Não é culpado de nada. Herdou esta enorme pilha
de pedras, duas semanas antes de zarparmos.
Giles abanou a cabeça, obstinado.
— Tapper é um mau-caráter. Utilizou os poderes que lhe
foram conferidos para explorar meu povo. Se eu tivesse
voltado a Rathborne por ocasião da morte de Morse, teria
descoberto a verdade e evitado que ele continuasse a praticar
atos tão abomináveis. Ao invés disso, temendo que Drake
levantasse âncora sem mim, ignorei as minhas obrigações. E,
assim, mais três anos se passaram sem que se fizesse justiça!
Francis permaneceu em silêncio, sem saber o que dizer.
Decorrido um momento, Giles ergueu a cabeça e a tensão
de seu rosto moreno afrouxou-se num sorriso.
— Volte para os seus mapas, meu amigo, e trace o
roteiro. Se meu plano funcionar, teremos os navios necessários
para a nossa empreitada — ajuntou, com estranha convicção
na voz. — Quanto a mim, tenho muito o que fazer.
Dito isto, encaminhou-se para a porta. Com, a mão no
trinco, voltou-se e informou:
— Esta noite, durante o jantar, você verá os primeiros re-
sultados de meu trabalho.

O momento em que a chave voltou a girar na fechadura,


Vera, de pé junto à janela virou-se vagarosamente. Seu captor
estava parado no limiar, um sorriso insinuando-se nos lábios.
— Está na hora de meu pão e água? — zombou.
Giles fingiu não tê-la ouvido.
— Dormiu bem? — perguntou brandamente.
— Não — respondeu Vera com frieza.
— Sinto muito. Alguma coisa a perturbou?
Ela o trucidou com o olhar, mas procurou manter a voz
impessoal e distante:
— Não.
— Não gosto que me respondam com monossílabos!
— Há escolha?
O rosto de Giles alterou-se.
— Parece que não há limites para a sua insolência! — Ele
segurou-a pelo braço, fazendo um esforço para controlar-se.
— Quem é esse Thad e por que ele vive na floresta?
Esqueça as meias-palavras. Quero a verdade!
— Tire suas mãos de mim que eu lhe direi tudo o que sei!
— Vera respirou fundo o começou: — Thad era mestre-
carpinteiro. Vivia bem. Tinha uma bela casa e uma bela
esposa, quando desentendeu-se com John de Rathborne.
Desconheço os pormenores, sei apenas que ele não fez nada
para incorrer na ira do senhor do castelo!
Ela calou-se por um momento, pálida e ofegante.
— Thad foi jogado na mesma masmorra onde se acha
agora. Libertado seis meses depois, encontrou seu lar em
cinzas, suas plantações destruídas e suas terras confiscadas.
Sem outra alternativa, tomou o caminho da floresta em
companhia de outros homens, vítimas também da autoridade
despótica de John de Rathborne. Juntos, fizeram um pacto
solene de viverem ali, e de se defenderem em caso de
necessidade, até o momento em que se fizesse justiça.
A cólera de Giles se desfez, ao fitar a bela criatura que
tinha diante de si, só, sem protetores, e que se defendia com
tanto ânimo e coragem.
— Você disse coisas terríveis a meu respeito. Fiquei indig-
nado e depois interessado em descobrir a verdade. Fiz inda-
gações e certifiquei-me de que você não tinha mentido.
— Otimo! — fez Vera, recuperando a ousadia. — Já é um
começo!
Ele continuou calmamente, como se não houvesse
compreendido a provocação:
— O que eu não entendo é por que, já que a situação é
tão difícil, ninguém se lembrou de fazer uma petição à rainha,
exigindo justiça.
— Fizemos, my lord. Sem resultado.
— Não acredito! A rainha é uma mulher de grande força
moral. Não iria tolerar essa espoliação!
— Pois eu lhe afirmo que fizemos inúmeras petições!
Tomamos todas as medidas possíveis. Nosso apelo foi inútil.
Giles ficou em silêncio por um momento, indagando em
seguida:
— A quem encarregaram de levar as petições?
— Sir Albert Sprocket, de Faifield Hall.
— Receio que foram enganados. Sprocket é primo em
terceiro grau de John Tapper. Não iria solicitar a intervenção
da rainha.
Ele viu a expressão chocada no rosto de Vera e quis
saber:
— Está preocupada com a sorte de seus irmãos?
Ela deixou escapar um longo suspiro.
— Estou, my lord. E se o senhor soubesse das
necessidades, do sofrimento e da opressão em que vivem,
também não ficaria indiferente.
"Mas é claro que ele sabe", pensou subitamente. Não
podia deixar de saber. Simplesmente não se importava.
Nascera rico e sua única preocupação era conservar sua
riqueza..
Giles apoiou as mãos no espaldar da cadeira e pôs-se a
examiná-la atentamente. O que o intrigava era que só podia
entender parte das razões que a levavam a viver na floresta,
em companhia de salteadores. Mas as razões que ainda
permaneciam ocultas o intrigavam ainda mais.
— Um sentimento nobre — comentou distraidamente,
continuando a observá-la.
Sua semelhança com as duas figuras do retrato era
impressionante. E a possibilidade que essa semelhança não
fosse acidental animava-o a persistir.
— Que lembrança tem de sua infância?
A pergunta inesperada perturbou Vera.
— Lembro-me da casa de meu avô... uma velha
propriedade rural perto de Brampton Hill. A lenha estalando no
grande fogão de pedra, os gansos que eu tangia com uma
longa vara, para evitar que escapassem do quintal... Isso foi
antes que ele morresse e eu fosse viver na floresta, com Thad.
Giles suspirou imperceptívelmente. Aquelas não eram as
recordações de uma lady bem-nascida. Francis tinha razão em
considerar seu plano impraticável. Mas não queria censurar-se,
mais tarde, por não haver tentado todos os caminhos.
Inteiramente consciente do absurdo e da improbabilidade
de sua aventura, tomou a mão de Vera e apertou-a com força.
— Contrariando o bom senso, vou libertar seus amigos
proscritos e garantir-lhes o perdão. Antes, porém, quero que
faça um pacto comigo.
"Antes fazê-lo com o diabo!" diziam os grandes olhos vio-
leta, mais claramente do que as palavras.
— Primeiro, my lord, quero conhecer seus termos.
"Pequena esperta!..." Giles sustentou-lhe o olhar com fir-
meza.
— É simples. De minha parte, anularei todas as taxas
impostas pela tirania de meu administrador e devolverei a seus
legítimos proprietários as terras injustamente confiscadas. Por
fim, retirarei as acusações que pesam sobre os seus amigos
fora-da-lei e os declararei livres novamente.
Ela parecia inteiramente perplexa. Giles aproveitou o
momento para abordar o que sabia ser o ponto central do
acordo.
— Em troca, a senhorita deverá abandonar a vida rude
da floresta, por outra, de conforto e luxo, em Rathborne.
Vera não conseguia acreditar em seus ouvidos. Um
homem tão brilhante, atraente, tão perfeito em tudo...
— Não compreendo, my lord. O senhor é um homem
poderoso e de elevada posição social. Por que... por que
escolheu a mim, uma pobre moça, entre tantas outras?
— Mulher alguma poderia desempenhar o papel que lhe
destinei... — começou Giles, entusiasmado, mas interrompeu-
se, ao vê-la enrubescer até a raiz dos cabelos.
— O senhor não espera que eu acredite nessa... nessa
bobagem! O que quer realmente de mim?
— Deixe-me terminar, ao menos! Você não tem a menor
ideia do que eu pretendo.
Um súbito lampejo iluminou o rosto de Vera.
— Não está insinuando que eu seja sua amante?
— Um relacionamento com... você? Por quem me toma?
— Não o conheço, mas imagino que o senhor não faz
nada de graça!
Giles obrigou-se a conter sua irritação.
— Cuidado, linda Vera. Não há no mundo nada mais
intolerável do que uma mulher de língua afiada.
— De minha parte, não posso imaginar nada mais
intolerável do que ser a sua amante!
— Não gosto de vangloriar-me, mas saiba que mulher al-
guma jamais recusou minhas atenções!
— Talvez, entre todas as mulheres a quem o senhor
rendeu homenagem, não houvesse nenhuma que quisesse
resistir — objetou Vera friamente.
Durante alguns segundos, que pareceram horas,
enfrentaram-se silenciosamente, como inimigos. De repente, o
rosto de Giles desanuviou-se. Quando ele falou, sua voz era
diferente, quase suave.
— Temos de brigar o tempo todo?
— O senhor não tem o direito de me tratar como se eu
fosse uma idiota!
A resposta arrogante enfureceu-o de novo. Pequena gata
selvagem... Seus olhos brilhavam de cólera, quando a encara-
ram, e seu tom de voz continha uma ameaça velada.
— Vamos acabar com essa troca inútil de palavras.
Temos coisas mais importantes para discutir!
Ela o olhou, ainda desconfiada. O bom senso falou mais
alto. De nada adiantaria ficar provocando-o.
— Não gosto de mistérios — objetou. — E não entendo
por que razão não fala francamente, dizendo logo o que deseja
de mim.
— Pretendo apresentá-la à sociedade — informou Giles.
mais calmo. — Acredito que aprenderá depressa as boas ma-
neiras e o modo de agir de uma dama de alto nascimento. Ao
menos pelo tempo que for necessário.
Vera permaneceu em silêncio, enquanto ele explicava
como pretendia restaurar Rathborne e reparar os danos
causados pela má administração de Tapper. Não demonstrou
nenhuma emoção, durante a narrativa envolvendo a herdeira
desaparecida, mas quando Giles terminou, disse calmamente:
— Acredita, então, na possibilidade de ela estar viva?
Giles ficou admirado. Não esperava aquela reação.
— Não sei. Realmente, não sei.
Ele ergueu-lhe o queixo com dois dedos e olhou-a.
Imaginou vê-la pela primeira vez, tanía suavidade descobriu
nesse rosto.
E, na realidade, era lindo banhado por aquela leve
claridade matinal.
— Há muita semelhança entre você e a menina do
retrato. Acho que o estratagema vai funcionar. Minha
convicção baseia-se no conhecimento... no conhecimento da
rainha.
— Uma mudança de nome e de ambiente. Uma nova
vida. Não será fácil — murmurou Vera, mas o plano, embora
extravagante, começava a interessá-la. — Por quanto tempo
eu deverei fazer-me passar por essa dama?
Giles inclinou-se para ela.
— Não compreendeu, Vera? Você deve tornar-se a
"própria" Lady Verena. Para sempre...
— Acho que não poderia levar essa farsa até o fim, my
lord. — Ela olhou em volta, desanimada. — Tudo isto me
sufoca! Preciso de ar e de luz. E principalmente de liberdade.
Sem isso, acho que morreria.
Giles olhou-a, absorto.
— Pensaremos em outra coisa, então. Talvez Lady Verena
desapareça de novo, desta vez para sempre. Antes, porém,
terá de preparar-se para o papel que irá desempenhar. Vestir-
se com apuro, conversar, sorrir. Além disso, terá lições de
dança, música e etiqueta social. Enfim, todo o refinamento de
uma dama que disputa um lugar na corte.
Ele examinou-a de alto a baixo.
— E a primeira coisa que deve aprender é sentar-se
dentro dos limites da decência. Somente uma prostituta de
taverna assumiria uma pose tão... masculina!
Vera encarou-o com os olhos chamejantes.
— Se deseja me transformar numa lady, trate-me como
tal!
— Que pretensão! — exclamou Giles, zombeteiro. —
Onde aprendeu a agir assim? Na floresta?
Ela ignorou a ofensa e respondeu com altivez:
— No mais respeitáveis dos lugares. Por um certo
período, estudei com as boas irmãs do Convento de Santa
Inês.
— Otimo! Isso facilita muito as coisas. — Giles fez uma
pausa. — Então, Vera, podemos fechar o acordo?
Ela torceu as mãos, aflita.
— Não tenho motivos para confiar no senhor, my lord.
— Nesse caso, eu lhe darei um muito bom. — Giles
tomou-a pela mão e levou-a até a janela. — Reconhece
aqueles homens?
Uma carroça, atrelada a uma parelha de cavalos, estava
estacionada no pátio. Dois lacaios em libré ocupavam a boleia
e outros três o estribo posterior. No interior havia quatro ho-
mens: Thad, Garvin, Hewe e Ferris, todos com as mãos e os
pés atados. Vera recuou, arfante e tremula. Ali estava o re-
sultado de sua loucura!
— Que... que pretende fazer com eles? — balbuciou, vi-
ràndo-se para Giles.
— Bem... — ele começou, reacendendo em seu olhar um
brilho de triunfo, que, entretanto, logo se apagou — isto cabe a
você resolver. Aceite minha proposta e eles estarão livres.
Rejeite e...
Vera empalideceu.
— Muito bem, my lord. Aceito sua proposta. Mas não
tente me enganar ou pagará caro por isso!
— Sei manter minhas promessas — ele retrucou
secamente. Depois afastou-se uns passos para retirar papel e
tinta da gaveta, ordenando a seguir:
— Escreva um bilhete a Thad, dizendo-lhe que prefere
uma vida confortável em Rathborne a outra, incerta, na
floresta.
Sem proferir palavra, Vera sentou-se à mesa e redigiu
algumas linhas com mão trêmula. Quando a tinta secou, viu-o
dobrar o papel e chamar um guarda para que o levasse ime-
diatamente ao líder do bando. Abaixou a cabeça, lutando com
sua fraqueza. Seu pescoço arqueou-se como o de um pequeno
cisne. Parecia tão frágil e vulnerável, que Giles condoeu-se.
Mas estava decidido a ir ao fundo da questão.
— Venha até a janela comigo. Deverá sorrir e acenar,
para convencê-los de que vai ficar aqui por sua livre e
espontânea vontade.
Em silêncio, Vera aproximou-se mais da janela e colou o
rosto à vidraça. Naquele instante, o guarda mostrava o bilhete
a Thad, desdobrando-o para que ele pudesse lê-lo.
Estremeceu, diante da consternação expressa em seu rosto. O
que escrevera, naturalmente, espantava-o. Viu-o girar-se para
os outros. Mas havia pouco que explicar acerca do inesperado
proceder de sua filha adotiva. Os quatro pareciam estupefatos
quando olharam para o alto, o que contribuiu para irritar-lhe
ainda mais os nervos.
Fez-lhes uma aceno, quando a carroça começou a
movimentar-se, esforçando-se para acalmar seus receios. E se
Lorde Rathborne estivesse mentindo? Após o que lhe pareceu
uma eternidade, o veículo alcançou a orla da floresta. Viu-os
saltarem e correrem, as silhuetas recortadas contra o céu, em
direção ao fundo sombrio das árvores. E, de repente, não os
viu mais...
Lágrimas brotaram de seus olhos e um suspiro saiu do
fundo de seu coração.
— Thad...
— Não tenha receio, Vera. Manterei minha palavra — pro-
meteu Giles com voz branda.
Ela lançou-lhe uma olhar de puro ódio.
— Pode estar certo de que eu o obrigarei a isso! —
exclamou, com o ar altivo de quem estava preparada para o
que desse e viesse.
— Com a ponta de um punhal, sem dúvida! — ele
ironizou.
— Se for preciso!
Um sorriso inesperado encrespou o rosto de Giles,
suavizando-lhe as feições.
— Vou pedir que lhe sirvam a primeira refeição.
— Obrigada — ela suspirou, vencida.
— Não se preocupe tanto — ele tornou. — Por ocasião do
Ano Novo, essa história já estará terminada. Poderá, então,
esquecer tudo e continuar a viver sua própria vida.
Seu ar confiante aqueceu o coração de Vera, acendendo a
chama da esperança. Ela não tinha condições de saber, nem
ele tampouco, que nunca estiveram tão enganados!

CAPITULO VI

Durante o almoço, Giles dava a impressão de um homem


que chegara a bons termos consigo mesmo e com sua
situação. Quando os pratos foram retirados, ele ergueu a taça
e sorriu por cima da borda.
— Bebamos, Francis — propôs. — Depois abriremos outra
garrafa deste excelente vinho e faremos uma comemoração.
— A que brindaremos?
— A fortuna recuperada!
Francis pareceu um tanto surpreso, mas logo se refez e
perguntou num tom jovial:
— De que modo irá encher de ouro os seus cofres? Giles
tomou um longo sorvo de vinho, o que lhe aqueceu ainda mais
o sangue.
— Isso é algo que tem certa relação com a pequena
salteadora. Quando voltar à corte, por ocasião das festas de
fim de ano, pretendo levá-la comigo.
Francis engasgou-se, ao indagar:
— Você... o quê?
Os olhos de Giles iluminaram-se, diante de um
pensamento novo e encorajador.
— É uma ideia maravilhosa, Francis. Se eu conseguir a
administração dos bens de Stanton, terei condições de
restaurar Rathborne. Com dinheiro e ímpeto reformador, um
homem de boa vontade poderá operar milagres aqui.
Ele sorriu, vilorioso.
— E quando me houver desincumbido dessa tarefa,
voltarei à vida de aventuras — ajuntou, já sonhando com a
grande vela panda desfraldada e a galeota dançando sobre um
mar de púrpura.
— É loucura proclamar que essa pequena seja um dos
bastardos de Stanton!
— Você não percebe, Francis. Um bastardo não tem
direito a nada. — Giles riu brandamente. — Meu plano é bem
mais ousado. Pretendo fazer daquela maltrapilha uma
verdadeira lady. Lady Verena Stanton, para ser mais exato!
Francis olhou-o como se não entendesse.
— Se você puder fazê-lo, Giles...
— Estou certo de que poderei, meu caro Francis — ele
disse, inclinando-se sobre a mesa e dando-lhe uma palmadinha
de encorajamento na mão. — Agora, ouça minha história.
Anunciarei à rainha e à corte que descobri a herdeira desapa-
recida dos bens de Stanton vivendo numa aldeia próxima. A
pobrezinha, que tinha sido criada por um velho casal de cam-
poneses, já falecidos, desconhecia sua verdadeira identidade.
Que acha?
Francis acenou com a cabeça, ainda em dúvida.
— Não vai ter alguma dificuldade para provar isso? Giles
ergueu-se, os dentes brancos mostrando-se num sorriso.
— Talvez não. Vamos. Quero que ela aprenda a
comportar-se como se fosse, de fato, uma lady da cabeça aos
pés!
E assim, à dourada claridade outonal, entre o resplendor
das altas janelas da galeria e o brilho do assoalho encerado,
teve início a educação de Vera. Giles tinha consciência de que
seu dever era, antes de mais nada, conquistar a confiança da
pequena, lançando mão de toda a sua habilidade. Passadas
algumas horas, porém, viu os aborrecimentos que o
esperavam.
— Por todos os santos! Se tropeçar mais uma vez, terei
que metê-la numa armadura!
Vera lançou-lhe um olhar exasperado. Tentara agradá-lo
de todas as formas. Mas Lorde Rathborne via sempre defeitos
em tudo o que ela fazia.
— Foi o senhor que me obrigou a vestir estas saias
ridículas!
— É bôm que vá se acostumando. Dentro em breve, terá
que usá-las com frequência.
"Talvez para o resto da vida", pensou, sorrindo
intimamente. Quando tomasse gosto pelo luxo que estava à
sua espera, ela esqueceria de vez a floresta. Tinha certeza!
— Quero que aprenda a ser amável, expansiva, radiante.
E a andar com graça! Vamos, tente mais uma vez.
Sob o seu olhar crítico, Vera recolheu as saias e
atravessou rapidamente a galeria.
— Não, não! Com graça!
— Mas eu estou andando...
— Você está marchando! Deslize. Assim!
Giles ergueu a mão no ar e deu alguns passos leves e
graciosos, Lady Irma, que acabava de entrar, estacou,
surpresa, e Vera rompeu numa risada.
Ele aborreceu-se. Não via nada de engraçado na situação.
— Estamos ensaiando há mais de três horas e juro que
não vou parar, enquanto você não perder esse seu jeito de
moleque!
— Estou com fome — ela queixou-se, Ele fez que não a
ouviu. — Ande, ou melhor, "deslize"!
Armando-se de paciência, Vera recolheu as saias e deu
alguns passos hesitantes. Mas suas tentativas de deslizar
terminaram, quando a ponta de um de seus elegantes
sapatinhos prendeu-se na crinolina que lhe enfunava as saias.
Tropeçando aqui e ali, nos móveis e objetos de adorno, foi
chocar-se de encontro à parede, numa confusão de braços e
pernas.
— Será que você não vai aprender nunca?
Giles deixou escapar uma torrente de pragas e Lady Irma
saiu apressada, quase colidindo com Francis Finch, com quem
trocou um breve olhar, conscientemente destituído de
significação.
Francis ficou à espera, olhando a cena com contida ansie-
dade.
— Que é que está passando? Precisam de ajuda? —
indagou cortesmente, decorrido um minuto.
Giles virou-se para ele com ar infeliz.
— Faça-me esse favor, meu amigo. Estou a ponto de
enlouquecer.
Vera endireitou-se com dificuldade e deu alguns passos
em sua direção.
— Não adianta insistir, my lord. Faria melhor mandando-
me de volta à floresta.
— Pensa que sou um perfeito idiota, não? — explodiu
Giles, o rosto tão vermelho quanto o dela. — Talvez seja. Eu
devia imaginar que, uma vez seus amigos livres, você faria de
tudo para romper o compromisso!
Vera sustentou-lhe calmamente o olhar.
— E acredita que sou eu a culpada desta confusão?
— E a única interpretação!
— Que quer que eu faça? Não pode esperar que eu ande
graciosamente, metida nessa verdadeira couraça! — exclamou,
perdendo a calma. — Este corpinho apertado não me deixa
respirar e essas anquinhas... é como se eu estivesse dentro de
uma cesta. Vou-lhe mostrar!
Vera desatou as tiras que prendiam a armação e puxou-a
para baixo.
— Veja! E um instrumento de tortura. Recuso-me a usar
algo tão ridículo!
Giles inclinou-se, segurando-lhe o braço com força.
— Vista-o ou farei isso com as minhas próprias mãos!
— Oh, não... — ela balbuciou, sentindo um começo de
pânico.
Francis interpôs-se entre os dois, pondo um fim à
prolongada e tumultuosa discussão.
— Venha, senhorita Vera. Tome meu braço e ande pela
sala comigo.
Ela o fitou com ar reconhecido.
— Ficarei encantada, Sir Francis.
Foi quase um milagre. A princípio, Vera mostrou-se
desajeitada. Depois, passado o nervosismo, soltou-se e seus
movimentos tornaram-se mais leves, mais graciosos. E, de
repente, observando-lhe os pés, tão ágeis, precisos, a seguir
os movimentos dos pés de Francis, Giles ficou desorientado,
sem saber o que estava acontecendo.
Nunca, antes disso, fracassara com uma mulher! Mas
aquela criança crua, impetuosa parecia imune ao seu charme.
Bom... tinha que admitir que não a tratara como devia. Fora
injusto, talvez, ferira sua suscetibilidade...
— Perdoe-me por privá-lo da companhia da senhorita
Vera — disse-lhe a voz de Francis de repente.
— Oh, absolutamente!...
Vera olhou para Francis com gratidão. Ele era um homem
bonito, educado, e estava fazendo um delicado e agradável
esforço no sentido de distrai-la. Não haviam dado dez passos e
ele já a fazia sorrir.
— Não tenha medo. Eu a protegerei do dragão feroz.
— Tenho certeza que sim, my lord.
— E agora imagine-se um cisne, flutuando nas águas
verdes e cristalinas de um rio. Cabeça erguida, deslizando com
suavidade e elegância ao sabor da correnteza... Muito bem!
Agora, siga a curva do rio... assim...
Giles fitava-a com olhar incrédulo.
— Conseguiu, afinal! Eu sabia que você não podia ser tão
desajeitada!
Vera estacou no mesmo instante, lançando, desorientada,
um olhar a Francis. Seu apoio e suas maneiras gentis tinham-
na ajudado a superar o embaraço. Mas haviam bastado
algumas palavras desdenhosas do senhor de Rathborne para
fazê-la sentir-se de novo a pequena proscrita que realmente
era.
Em face daquela provocação, quis provar que ele se
enganava. Tornou a erguer os olhos e afigurou-se deslizando
serenamente pelo rio sinuoso, sob o sol de outono e os
salgueiros chorões...
Mas o círculo mágico rompera-se. Esbarrou num
obstáculo, voltou a tropeçar. Um profundo rubor assomou ao
seu rosto, ao tornar-se consciente de que o bruto que a
observava com atenção punha-se a rir. Mortificada, agradeceu
o braço solícito de Francis, fez-lhe uma rápida reverência e
saiu correndo da sala.
Giles seguiu-a com o olhar, por um momento, e uma ex-
pressão tensa, estranha, de constrangimento, estampou-se em
seu rosto. Passando por Francis como se ele fosse um
fantasma, encaminhou-se para a janela e sentou-se no peitoril.
Aquela era a hora do dia que mais gostava. E gostava so-
bretudo do momento em que a luz se dissipava e o derradeiro
canto dos pássaros chegava até ele, vindo das velhas árvores.
Olhou os arredores. Além do relvado, avistou a torre ameada
de onde arremessara a primeira flecha, sob o olhar atento do
mestre-arqueiro.
Aqueles tinham sido tempos felizes. Seu pai estava longe,
lutando em Calais. Tinha liberdade para dar uma volta sozinho
pelos bosques, vendo em cada árvore um cavaleiro andante e
uma aventura que sua imaginação revestia de maravilhas.
E havia o belvedere, vislumbrado por entre uma cortina
de folhagem, onde sua mãe descansava sobre almofadas de
brocado, durante o verão, lendo alto ou tocando no alaúde as
músicas que ele escolhia. Ao longe, flutuavam os cisnes, como
brancas flores sobre o rio verde e cintilante. Um cenário fresco
e luminoso, um encantamento feito só para ele.
E, agora, tudo isso ia ser vendido por uma ninharia ou
posto a leilão. Seu orgulho, suas recordações, até sua vida
estava ligada a Rathborne. Mas para salvá-la seria preciso um
milagre e ele não dispunha de nenhum.
Francis aproximou-se e ficou parado a seu lado, sob o
retângulo de luz. Podia quase adivinhar o que passava pela
cabeça de seu amigo.
— Você sempre soube manejar o leme de seu navio. Não
será desta vez que irá deixá-lo navegar à deriva, não é?
— Não adianta insistir. Rathborne está perdida —
suspirou Giles. — Não posso transformar um patinho feio num
daqueles cisnes lentos deslizando sobre o Serpentine.
Francis pousou-lhe a mão no ombro.
— Você não percebeu. Ela sente-se insegura de si
mesma, nem menina nem mulher. Trate-a como a um adulto,
isso lhe-dará senso de responsabilidade.
— Que está querendo dizer?
— Você passou muito tempo ao mar, tendo por
companhia apenas homens rudes. As mulheres são criaturas
delicadas, mais sensíveis às palavras elogiosas do que à
qualquer espécie de autoridade.
Giles fitou-o, perplexo.
— Mas essa criatura está habituada a subir pelas
árvores, como um moleque!
— Exatamente por isso. Minha ideia é descobrir suas qua-
lidades femininas, tratá-la como se ela fosse uma dama por
nascimento. Dar-lhe a oportunidade de se afirmar.
Giles deixou-se convencer.
— Parece que meus métodos não deram resultado.
Vamos experimentar os seus.
Quando a porta do quarto abriu-se, Vera, instalada com
um guardanapo em torno do pescoço numa cadeira de
espaldar alto, ergueu os olhos. Giles Rathborne, em traje de
montaria, estava parado no limiar. Lançou-lhe um olhar rápido
por cima do pão e do leite e continuou a comer. Quando
terminou, tornou a encará-lo.
— Esteja à vontade, senhor.
Ele ignorou a ironia e obrigou-se a manter a voz num tom
cordial.
— Esta noite, a senhorita jantará à minha mesa. Desde
que esteja convenientemente vestida, é claro.
— Prefiro usar meus próprios trajes.
— Isso não será mais possível. Uma verdadeira dama
deve trajar-se com elegância.
Dito isto abriu a porta. Duas criadas entraram com um
cesto contendo trajes de seda e veludo, linhos bordados, golas
debruadas de renda e um grande sortimento de meias de seda
e sapatinhos de cetim.
Giles não deixava, um minuto sequer, de observá-la. A
pobre criatura lançava, aturdida, um olhar em torno. Estava
deslumbrada. Os vestidos e acessórios, que confiscara das
arcas e cofres da antiga amante de seu pai, eram ricos e de
extraordinário bom gosto.
Mas Vera já recobrara o seu equilíbrio emocional.
— Não sou uma boneca, my lord. Recuso-me a me enfeitar
com rendas e plumas!
Giles ergueu as sobrancelhas.
— Esquece-se de que é uma lady, agora?
As criadas pareciam estupefatas. O bate-boca,
naturalmente, espantava a todas. Ele dispensou-as com um
gesto da mão e voltou os olhos para Vera.
— Acho, minha querida, que deve fazer tudo o que eu
mandar.
— Prefiro ir para o inferno!
— Fizemos um acordo — lembrou-a Giles secamente. —
E agora vista-se. Quero vê-la resplandecente, na hora do
jantar.
Ela sorriu com sarcasmo.
— Não saberia nem por onde começar, senhor.
— Pedirei a Lady Irma que venha ajudá-la.
Sem mais palavras, ele girou nos calcanhares e saiu à
procura de Lady Irma. Encontrou-a na rouparia, dobrando os
lençóis.
— Por favor, prima. Ajude a mocinha a vestir-se para o
jantar. Quando ela estiver pronta, acompanhe-a até a galeria.
Escusou-se com uma ligeira inclinação e dirigiu-se para a
estrebaria. Minutos depois, descia, a trote, pela alameda, de-
saparecendo sob as folhagens de setembro. Passadas duas ho-
ras, voltou à galeria, esperando encontrar Vera, bela e esplen-
dorosa como uma noite de junho. Mas não havia ninguém à
sua espera.
Furioso, subiu rapidamente para o quarto de Vera. Ao
abrir a porta, viu-se diante de uma cena de comédia. Ela
espalhara o conteúdo da cesta por toda a parte. Havia pilhas
de vestidos amontoados sobre a cama. O chão estava coberto
de fichus, sapatos e meias, e a mesa de carvalho de perfumes
e unguentos.
Suas emoções atingiram um grau inconcebível de intensi-
dade. Avançou, rugindo por entre os dentes cerrados:
— Que revolução é esta?
— Aqui não há nada que me agrade — ela disse com
altivez. Lady Irma torcia e retorcia as mãos, desolada.
— Está vendo, my lord. É uma criatura selvagem, não
conseguirá nada com ela. Eu já desisti. Se quiser vê-la
convenientemente trajada, terá de vesti-la com suas próprias
mãos.
— É o que farei se for necessário! Deixe-nos a sós, por
favor.
Giles fechou a porta e, calmamente, começou a descalçar
as luvas. Vera arregalou os olhos, alarmada, e recuou.
— Que vai fazer comigo? Ele continuou a avançar.
— Aviso-a desde já: não sou um homem paciente. E a
senhora está frustrando constantemente as minhas
expectativas! — Ele estacou, as mãos na cintura. — Vai tirar
esse vestido agora, por bem ou por mal!
Vera gelou. Então era isso o que ele pretendia? O ódio
cresceu em seu coração. Iria lutar como um gato selvagem,
com unhas e dentes. Arranharia aquele rosto até fazê-lo san-
grar!
— Não se aproxime, my lord, ou...
— Ou o quê?
— Ou... — Vera hesitou. Sentia-se como um animal
acuado diante de um predador... Faltava-lhe forças até para
evitar os olhos dele, dois carvões acesos. Ele informou com
frieza:
— Esta é a sua última chance, querida. Coopere ou irá
sofrer as consequências de sua teimosia.
— Estou fazendo a minha parte — ela murmurou por fim,
com um encolher de ombros.
— Não está, não! E vai ter de fazê-la, se quiser que as
acusações contra os seus amigos sejam retiradas.
A raiva de Vera evaporou-se depressa, quando ela
percebeu a gravidade da situação.
— Vou me comportar. Prometo.
Um furtivo triunfo inundou os olhos de Giles de
Rathborne.
— Está bem. Esta vez, esquecerei o que houve. — Ele
abriu a porta. — Mas lembre-se, nada de truques!
Quando ele saiu, Vera começou a examinar os vestidos,
um a um. Eram lindos, tinha que admitir, mas por qual se
decidir? Tirou-a de seu dilema uma leve batida na porta. Era
uma criadinha, que entrou fazendo uma reverência.
— Sou Audry, madam. Sua nova criada de quarto. Posso
ajudá-la?
— Não tenho a menor ideia do que usar — suspirou Vera.
— O que sugere, Audry?
A jovem enrubesceu.
— Se me permite, madam... O azul. Combina com seus
olhos.
Era bonito, de uma beleza preciosa. E o contato da seda
sob suas mãos deliciou-a. Vestiu-o com a ajuda de Audry e
depois sentou-se diante do espelho. Quando a moça terminou
de penteá-la, esperou, ansiosa, pela sua opinião. Mas Audry
permanecia boquiaberta, como se não soubesse o que dizer.
— Estou tão mal assim? — perguntou, insegura.
A criada voltou subitamente a si.
— Oh, não! Está linda, my lady.
— My lady ... — murmurou Vera. Procurando apreender
todo o significado dessa palavra.
Audry acenou vigorosamente com a cabeça.
— Lady Irma explicou-nos que a senhora é Lady Verena,
que retornou a Rathborne depois de uma ausência de muitos
anos.
Vera suspirou. O círculo em que se metera apertava-se
ainda mais.
A mesa ostentava castiçais de bronze dourado de quatro
ramos em cada extremidade e, no centro, um arranjo de flores
à francesa. A baixela refletia o brilho do sol poente, filtrado
pelos vitrais, os cristais faiscavam.
"Mesa digna de um rei", pensou Giles com satisfação. "Ou
melhor, de um lorde".
Ele estava trajado de branco como que para uma noite na
corte e Francis Finch achava-se impecável numa casaca de
veludo castanho. Lady Irma envergava um modesto vestido de
seda verde adornado com um fichu, como convinha à sua
beleza de velha dama. Seu rosto envelhecido, inteligente,
exprimia contentamento.
— Não recebemos muito convidados por aqui, Sir Francis.
É um prazer tê-lo conosco.
Francis Finch voltou-se para ela com um sorriso e
murmurou uma observação. Pouco depois, o jantar foi
anunciado e os três tomaram seus lugares. Giles sentou-se à
cabeceira da mesa e olhou para a cadeira à sua esquerda,
ainda vazia. De cenhos franzidos, chamou o criado e ordenou:
— Avise Lady Verena que estamos à sua espera.
Não foi preciso. A porta do corredor abriu-se, dando
passagem a uma jovem mulher, tão linda quanto seu vestido
azul semeado de pérolas. Giles envolveu-a num olhar
apreciativo, demorado. Lady Irma aprovou, benévola, e
Francis, tomado de surpresa, contemplou-a com a boca
entreaberta.
Vera parou um instante no limiar. Compreendeu logo que
agradava e isso deu-lhe confiança, transformando seu
nervosismo em euforia. Avançou, radiante e orgulhosa,
começando a apreciar a homenagem daqueHes conhecedores.
A sua aproximação, Francis ergueu o corpo numa
elegante mesura, e Giles levantou-se, saudando-a com uma
reverência profunda, como se ela fosse a própria rainha da
Inglaterra.
Uma estranha sensação de langor dominou-a. Aquela
admiração máscula surpreendia-a e encantava-a ao mesmo
tempo. Nunca ninguém a olhara desse jeito. Nem mesmo
Garvin ou Hewe.
— My lady, sua graça rivaliza com sua beleza — ele
murmurou, levando-lhe a mão aos lábios.
Essas palavras fizeram-na corar sem que pudesse evitá-
lo. Ele, que não havia feito outra coisa senão censurá-la ou
ameaçá-la, desde o instante em que a vira, afirmava que ela
era linda!... E sorria com tanto calor, com tanta intimidade...
— Venha sentar-se a meu lado... Lady Verena.
O brilho de seus olhos extinguiu-se. A mulher que Sir
Giles homenageava era Lady Verena, herdeira de uma grande
fortuna e pupila do senhor de Rathborne. Fora uma doida em
acreditar, ainda que por um momento, em suas belas palavras
e em seu belo sorriso! De ora em diante, teria que se manter
fiel a si mesma.
Apesar da frustração, sentou-se tão graciosamente
quanto lhe foi possível. Mas não era fácil ajeitar na cadeira
saias tão volumosas. Lutava ainda para recolhê-las, quando
ouviu Giles perguntar-lhe, num tom duro:
— Por que se agita tanto? Odeio gente inquieta nas
horas das refeições!
— Estas malditas saias... — murmurou, surpresa com
aquela brusca mudança de humor.
Um pequeno sorriso percorreu a mesa, e ela enrubesceu,
encabulada.
— Sabia que a senhora diria isso. Que linguagem! — ele
tornou, irônico.
— Na floresta, não ouvia nem falava outra! — retrucou
com petulância.
Depois, nervosa, pôs-se a brincar com a taça de vinho,
girando-a entre os dedos esguios. Ia levá-la aos lábios, mas a
taça tremeu-lhe nas mãos, respingando um pouco de seu
conteúdo sobre o gibão de brocado branco de Giles.
Ele bateu com os punhos na mesa, possesso de raiva, e
levantou-se.
— Veja só o que fez, desastrada! — berrou, enquanto
enxugava com o guardanapo a larga mancha que se alargava
sobre o colete imaculado.
Vera sorriu com altivez. Assim era melhor. Emoções ho-
nestas! Recebera com prazer os seus galanteios e, por um mo-
mento, perdera o senso crítico. Agora, enquanto ele a envolvia
num jorro de insultos, voltava a recuperá-lo. Sabia quem era e
por que estava ali.
— Não usei esse traje mais do que duas vezes! Agora
está arruinado por sua falta de modos! — ele continuou.
Vera baixou os olhos e disse com fingida humildade:
— Não é bonito de sua parte censurar-me diante de seus
convidados, my lord. Quanto a seu traje, darei um jeito.
Giles fuzilou-a com os olhos.
— Isso é o que eu gostaria de ver!
— Pois já vai ver!
Num impulso súbito, Vera apanhou a taça de vinho que
estava pela metade e despejou o conteúdo sobre o gibão. A
surpresa deixou-o mudo e ela teve tempo de dizer o que
sentia:
— Eis aí como estão as coisas. E bom que nos
entendamos, senhor!
Antes que ele pudesse esboçar um gesto, afastou a
cadeira e sem proferir qualquer outra palavra, saiu correndo da
sala. Mas, enquanto subia a escada, teve a desagradável,
impressão de ter agido como uma idiota.

CAPITULO VII

A aurora chegou lentamente à floresta. O sol não havia


ainda devorado a bruma e Thad, com Wolf a seus pés, já
assumia seu lugar debaixo dos ramos copados de um imenso
carvalho. Todos os companheiros se agruparam em redor dele.
— Não acredito um minuto sequer que Vera tenha
decidido ficar em Rathborne por sua livre e espontânea
vontade! — disse Garvin pela centésima vez. — Aquele patife a
obrigou a isso. Não posso imaginar outra coisa!
— Vera é corajosa, sabe lutar. Jamais capitularia —
objetou Ferris. — Talvez ela tenha se deixado seduzir pela boa
vida e pela mesa farta de Rathborne. Vera gosta de comer
bem.
Permaneceu um instante pesado silêncio. Thad,
recordando o aceno que recebera de sua filha adotiva, retirou o
bilhete amassado do bolso. Mas não precisou lê-lo, sabia-o de
cor. Não havia nada ali que pudesse sugerir insinceridade.
Absolutamente nada. Nem ela lhe fizera qualquer sinal, ao
aparecer à janela.
Vera era esperta, teria dado um jeito de comunicar-se, se
fosse preciso. E mais, devia ter um bom motivo para perma-
necer em Rathborne. Talvez o novo lorde não fosse o homem
sem consciência, o tirano impiedoso e implacável que todos
imaginavam. Restituíra-lhes a liberdade, em vez de enforcá-los
no Carvalho do Druida. Uma prova de que era dotado de es-
pírito humanitário.
Vira com seus próprios olhos, o administrador corrupto
ser levado de volta para Rathborne acorrentado. Garvin
argumentara que tudo não passava de um ajuste de contas
entre ladrões: Não concordava com isso. Algo em seu íntimo
dizia-lhe que Vera não serviria como vítima expiatória para
defender a tranquilidade de seus companheiros.
Essa certeza teve excelente efeito sobre seus nervos,
levando-o a dizer:
— Continuem a vigiar Rathborne, mas não façam nada
contra seus moradores. Vera tem alguma ideia em mente. Não
sei dizer o que é, mas esta é a minha convicção.
A decisão perturbou Hewe. Aceitou-a com relutância, ju-
rando a si mesmo que haveria de defender Vera por todos os
meios, fazer tudo para salvá-la.

Vera voltou a cabeça, ao ouvir, na porta, uma batida


discreta. Encolheu-se e puxou os lençóis, certa de que Giles
entraria no instante seguinte. Mas quem apareceu à sua frente
foi Audry, trazendo a bandeja da refeição matinal e uma jarra
de água quente.
— Lady Irma está na rouparia — ela anunciou com bom
humor — tentando limpar a mancha de vinho do gibão de
Lorde Rathborne.
Vera sentiu o rosto queimar de vergonha. Logo mais, ele
deveria ministrar-lhe lições de dança e etiqueta. Como iria
tratá-la?, refletiu, enquanto a criada mantinha um fluxo cons-
tante de comentários sobre o infeliz episódio.
Findo o desjejum, Audry levou embora a bandeja e ela
deu início ao pequeno e íntimo ritual de sua toalete. Depois de
banhar-se e pentear-se, pôs-se a repassar os cetins, os
veludos e os pesados brocados, pensando, vagamente, se iria
tropeçar, mais uma vez, naquelas sais imensas.
Um achado inesperado pôs fim ao seu temor. Havia,
entre aquelas maravilhas, um vestido caseiro de cambraia, de
mangas compridas e decote alto, semelhante aos que Audry e
as outras criadas usavam. A singeleza de seu estilo agradou-
lhe. Por algumas horas, voltaria a ser Vera, simplesmente.
Quinze minutos após a hora marcada, entrou na galeria
como se estivesse pisando em brasas. Preparava-se para
arranjar um pretexto que explicasse a sua demora, quando
percebeu que não seria necessário. A galeria estava deserta.
Suspirou fundo, de alívio e prazer. Ou ele esquecera-se do
compromisso, ou não voltara ainda de sua cavalgada matinal.
Passou a meia hora seguinte examinando as pinturas. Depois
foi até a janela e ofhou para o jardim, mergulhado no tranquilo
e cálido resplendor da hora.
Borboletas esvoaçavam em torno das rosas tardias e das
margaridas-do-campo, pássaros invisíveis cantavam nas velhas
árvores, sobre as quais o outono já começava a espargir a sua
púrpura e o seu ouro.
Algo chamou-lhe a atenção. Além do relvado, de um
frescor deslumbrante, altos canteiros formavam um enorme
hexágono: o labirinto de Rathborne! Já ouvira falar daquela
geometria verdejante, de cantos recortados em formas
fantásticas, e a visão fascinou-a.
Ergueu-se na ponta dos pés e pôde discernir, no centro, o
telhado de ardósia de um pequeno pavilhão. Um desejo de
mistério levou-a a abrir a porta lateral e a descer os degraus
da escadaria externa. Pelos caminhos ensaibrados do jardim,
atravessou o imenso gramado e chegou à muralha de buxos
que fechava o hexágono. Enquanto penetrava em seu interior,
caminhando por trilhas desconhecidas, teve consciência da
grande quietude em que mergulhavam todos os ruídos da ma-
nhã. A sensação que experimentou foi de uma profunda
solidão. Durou o bastante para que pensasse em Thad e no
futuro incerto que a aguardava.
Estava ainda empolgada por uma imensa onda de
emoção, quando o atalho interrompeu-se numa curva sem
saída. Voltou sobre seus passos vagarosamente, sem saber
onde se encontrava. O labirinto, bem imaginado, era formado
por numerosas veredas entrelaçadas e intrincadas. Mas não
tinha medo de perder-se em seu interior. Podia orientar-se
pelo vento, pelo sol e pelos sons. Empenhou-se e, em poucos
minutos, encontrou o centro do dédalo, uma rotunda herbosa
ocupada pelo pequeno pavilhão circular, meio escondido pela
hera e pelas roseiras.
Era um lugar encantador, parcialmente sombreado por
velhas árvores e arbustos espessos. Procurou um banco de
pedra e deitou-se ao sol, muito agradável àquela hora. Minutos
depois, porém, um sopro de vento desprendeu folhas secas e
arrancou um gemido dos plátanos meio desfolhados. Um pom-
bo, pousado no telhado em cúpula do pavilhão, levantou vôo.
Sentou-se, toda arrepiada. Súbito, uma forma escura
atirou-se sobre ela. Sua primeira reação foi proteger-se com os
braços. Depois reconheceu o intruso.
— Wolf? Como me encontrou?
O cão, com a liberdade de um favorito, pôs-se a lamber-
se o rosto. Vera procurou afastá-lo, segurando-o pelo pescoço,
e sentiu algo sob os dedos: uma corda de arco prendendo um
caniço oco. No seu interior havia uma grande folha de carvalho
onde tinham sido desenhados um crescente e uma linha em
ziguezague. Era uma mensagem de Thad. Decifrou-a facil-
mente: teria que encontrá-lo ao amanhecer à entrada do
labirinto.
Partiu a folha em pedaços minúsculos e levantou-se, com
a impressão de que era terrivelmente tarde.
— Vamos, Wolf — murmurou, aflita.
O cão lateu alegremente e trotou ao lado dela, em
direção aos jardins posteriores. Deixou-o ali, com algumas
recomendações, e entrou em casa pela porta da cozinha. Parou
no alto da escada de serviço para tirar os sapatos e avançou
sem ruído. Ao enveredar pelo corredor principal, quase caiu
nos braços de Finch, que vinha em sentido contrário.
— Bom dia, Sir Francis — cumprimentou-o, com uma re-
verência.
Ele parecia petrificado. Após ficar uns momentos boquia-
berto diante dela, gaguejou, evitando olhá-la:
— Bom dia, senhorita Vera. Sir Giles está à sua procura.
— Oh, não!... — murmurou Vera, sem se dar conta do
vulto alto e musculoso que surgia à porta do quarto dela e a
observava com olhar atento. Por isso deu um salto, quando
ouviu uma voz grave às suas costas.
— Onde esteve? Procurei-a por toda parte!
Era Sir Giles. Ela virou-se e enfrentou-o.
— O senhor não apareceu na galeria, como estava
combinado. Julguei que não estivesse em casa e saí para
conhecer os jardins.
Giles segurou-a pelo braço.
— Não quero que se afaste de casa sem minha ordem!
Cheguei a pensar...
— O quê? Que eu tivesse quebrado minha promessa? —
ela disse, livrando-se de sua mão. — Um verdadeiro cavalheiro
não deveria duvidar da palavra de uma dama!
Francis rompeu numa risada.
— A mocinha está aprendendo depressa!
— Nem tanto — resmungou Giles. — Damas não andam
por aí desabrigadas e descalças, como mendigas!
Ele observou-a com mais atenção e seus olhos se
estreitaram.
— Seus lábios estão roxos e você está tiritando de frio!
— Estou perfeitamente bem! — rebateu Vera. — Não pre-
cisa se preocupar comigo.
Abruptamente, ele arrastou-a para a janela que dominava
a imponente curva da escada, expondo-a à claridade que atra-
vessava obliquamente o vitral. Viu-a quase nua à sua frente e
ficou com a respiração suspensa.
— Você não tem um pingo de juízo! — exclamou, des-
concertado.
— Que foi, senhor? — ela indagou, preocupada. — Sujei
o vestido?
— Vestido? Isso é uma camisola, criatura de Deus!
Vera contemplou-se e estremeceu. Misericórdia! Era como
se não tivesse nada sobre o corpo!
— Oh! — fez enrubescendo de vergonha. Compreendia
agora o ar espantado de Francis e por que,ele evitara olhá-la.
— Como eu podia saber? Estava no meio dos vestidos que o
senhor me mandou. Vesti-o porque me pareceu mais
apropriado para a lição de dança, e muito mais bonito do que
os outros...
Ela ia continuar, mas ele calou-a com um ar severo.
— Felizmente para a Inglaterra, você não está em
posição de ditar moda!
— Mas tenho o direito de dar a minha opinião!
Giles ocultou um sorriso. Ela era inteligente. Inteligente e
corajosa. Faria por merecer a confiança que depositara nela.
— Já deu, senhora! E agora, a menos que queira causar-
nos mais embaraços, vá mudar de roupa. Enquanto isso,
pedirei a Audry que lhe prepare uma refeição quente.
Vera colheu uma fugaz expressão em seus olhos e tornou
a enrubescer. Tensa e pouco à vontade, correu para o quarto,
fechando a porta atrás de si.
Francis voltou-se para Giles com um sorriso nos lábios.
— Sua pupila é muito bonita. Um botão de rosa.
— Cheio de espinhos!
— Reconheço que ela é bastante selvagem. Mas merece
o melhor de seus cuidados.
Giles pensou por um momento. Não era a pior coisa do
mundo.
— A única coisa que me assusta é o tempo que vai me
tomar esta aventura.
A salvo em seu quarto, Vera despiu-se rapidamente. Em
seguida, o pensamento fixo em Giles, enrolou-se num cobertor
e foi até o armário. Depois de uma escolha cuidadosa, decidiu-
se por um vestido de veludo dourado, que lhe pareceu o mais
simples. Acabava de colocá-lo sobre a cama, quando ouviu um
som rascante na porta. Entreabriu-a e um focinho peludo
introduziu-se no vão.
— Wolf! Não devia ter vindo aqui. Vou ter problemas por
sua causa!
O cão correu para ela, balançando o rabo. Vera afagou-
lhe a cabeça, antes que ela a derrubasse, e disse com
severidade:
— Pode ficar. Mas se alguém entrar, esconda-se debaixo
da cama!
Mas não houve tempo. A porta abriu-se e Audry entrou
com a bandeja do almoço.
— Sir Giles disse que my lady precisava algo quente para
aquecer-se — ela comentou, sem demonstrar surpresa com a
presença do cão. — Trouxe-lhe uma boa sopa de verduras.
Vera retirou a toalha que cobria a bandeja.
— E pão fresco. É disso que eu gosto!
Audry olhava-a com espanto. Lady ou não, ela comia
como um homem. Vira-a devorar a refeição matinal, ovos,
salsichas, pão, queijo e cerveja, com um apetite que faria
inveja a um camponês!
— Comer! Acho isso maravilhoso — tornou Vera, entre
dois bocados. Depois, apontando para a cama: — Aprova
minha escolha?
— É lindo, senhorita! — disse Audry com entusiasmo. —
Deseja mais alguma coisa?
— Não, obrigada. Desejaria apenas que agradecesse Sir
Giles por sua atenção.
Vera esperou que a criada saísse, aguardou um minuto e
em seguida dirigiu-se na ponta dos pés até a balaustrada do
corredor. Olhou para baixo. Parado no hall, Giles ouvia a criada
sorrindo.
— Aquela criaturinha adorável disse isso? Otimo! Voltou
para o quarto com a sensação de estar flutuando.
Até aquele momento nunca ninguém a chamara de
adorável. Isso a encantava e não sabia dizer por quê.
Terminou o almoço perdida em pensamentos. Será que Sir
Giles era mesmo tão implacável como às vezes parecia?
Preparou-se para a aula de dança com delicada atenção,
contente de ter cedido ao impulso de usar o vestido de veludo
dourado. Depois mirou-se no espelho e desceu. Ao alcançar o
patamar existente no meio da escada, correu a vista pelo hall e
viu Francis Finch, em trajes de montaria, parado à porta de
entrada. No pátio, um cavalariço segurava pelas rédeas sua
égua baia.
Colhida de surpresa, debruçou-se sobre o corrimão.
— Sir Francis...
Ele voltou-se e saudou-a tirando o gorro emplumado.
— Senhorita Vera!... Como está linda! Venha até aqui e
deixe que eu a admire.
Ela terminou de descer a escada e parou diante dele.
— O senhor está de partida?
Francis tomou-lhe a mão e reteve-a entre as suas.
— Sim, estou. Pensei que soubesse.
— Lamento muito. Sua companhia deu-me prazer.
Ele sorriu, enquanto a fitava nos olhos.
— Eu também lamento, senhorita.
Vera ficou um momento em silêncio, antes de dizer:
— Gostaria que soubesse que apreciei muito o que
procurou fazer por mim. Obrigada.
— Não precisa agradecer-me. — O sorriso dele ampliou-
se.
— Gostaria de ficar mais alguns dias mas, infelizmente,
não será possível. Meu pai está impaciente com a minha
demora.
Vera ia responder, quando um movimento na sacada dos
menestréis atraiu sua atenção. Levantou os olhos. Giles estava
debruçado sobre a balaustrada, olhando-a de uma maneira um
tanto curiosa.
— Parece que você esqueceu o caminho de casa, Francis
— ouviu-o dizer com petulância. — Se quiser, posso empres-
tar-lhe um mapa.
Francis ergueu os olhos para ele e sorriu.
— Não compreendo, Giles. Por que está tão ansioso para
que eu me vá? Há pouco você insistia para que eu ficasse!
Giles acenou com a mão.
— Adeus e boa viagem!
Francis riu, como se aquilo não fosse mais do que um
gracejo.
— Só posso atribuir essa mudança de humor ao ciúme.
Tem medo de que eu o prive do afeto dessa jovem dama?
Giles desceu as escadas correndo.
— Que diabo está fazendo aí? Cortejando Lady Verena, talvez?
Lembre-se de que ela é minha pupila e irá casar-se quando e
com quem eu determinar!
Vera estava morta de vergonha com aquelas insinuações
descabidas. Mas encontrou forças para exclamar, indignada:
— Engana-se, senhor. Se um dia resolver me casar, será
com quem eu quiser!
Giles fitou-a. Seus lábios estavam crispados e os olhos
negros faiscavam de raiva.
— Dobre a língua, pequena insolente! Sei o que é melhor
para você!
Vera sentiu o sangue ferver. Sir Giles estava assumindo
depressa demais o papel de tutor. Ele não tinha ainda esse
direito!
— Eu o acho insuportável, senhor. E extremamente rude!
Francis apertou-lhe a mão.
— Tem razão, senhorita. Acho que Sir Giles exagera.
Giles voltou-se para ele, irritado.
— E você? Como ousa ficar aí com a mão de minha pupila
entre as suas? — Ele deu um passo para a frente. — Estou
surpreso. Sempre imaginei que você preferisse as criadas de
taverna!
Francis abandonou sua pose lânguida e conteve a custo o
riso.
— Por Deus, Rathborne! Será que o que estou ouvindo é
a indignação de um guardião zeloso? Ou a de um homem
apaixonado?
Giles enfrentou-o com ar ameaçador.
— Mais uma palavra e pagará com a vida essa audácia!
— É o que eu quero ver!
Vera ficou primeiro apreensiva e depois alarmada. O que
Sir Giles estava fazendo era vergonhoso! Não podia suportar
tal coisa. Era terrivelmente cruel e brutal para com Sir Francis!
Por quê, afinal, lhe dissera coisas tão amargas e ofensivas?
Num segundo as adagas foram desembainhadas.
Ressoaram no ar o retinir das armas e os gritos irritados dos
dois homens. Sir Giles foi mais rápido. Executou uma manobra
perigosa, arremessando para longe a espada de Francis.
Vera, no auge do terror, gritou desesperadamente:
— Não o mate, senhor! Ele é seu amigo!
Nesse momento, porém, Sir Giles parecia estar a milhas
de distância.
— Renda-se, Finch! — ele gritou, arrancando o gorro de
seu adversário com uma estocada.
— Jamais! — gritou Finch.
Rodearam-se como cães selvagens prontos para se
devorarem. Sir Giles deixou cair a espada e um instante depois
os dois homens entravam em luta corporal e rolavam pelo
chão, engalfinhados.
Vera, horrorizada, ora fitava um, ora outro. Tornou a su-
plicar:
— Pare com isso, Sir Giles! Pare... oh!
Houve um som abafado e gorgolejante, que a deixou
louca de raiva. Eles estavam rindo! Rindo e lutando como dois
filhotes de urso da mesma ninhada. Podia esperar tal compor-
tamento de Hewe e Ferris, que eram pouco mais do que ado-
lescentes, mas nunca daqueles dois emproados cortesãos. "Os
homens!"'..., pensou, com desdém.
Aborrecida por ter se preocupado inutilmente, dirigiu-se
para a escada. Havia já alcançado o primeiro patamar, quando
viu Lady Irma debruçada na balaustrada.
— Deus do céu! Que confusão é essa, menina?
Vera deu de ombros.
— Alguma brincadeira idiota. O dono da casa e seu
hóspede estão empenhados numa luta corpo-a-corpo.
Lady Irma balançou a cabeça e refugiou-se na rouparia.
Vera continuou a subir. Nesse instante, Wolf passou por
ela como um raio e foi saltar sobre os dois homens, latindo
alegremente. Em seguida, pôs-se a lambê-los com sua língua
rosada, contente de tomar parte num jogo tão divertido.
Vera não pode conter uma gargalhada, diante de
espetáculo tão extravagante. Estava ainda rindo, quando
entrou no quarto e jogou-se sobre a cama. Dez minutos
depois, entretanto, ao ouvir o ruído de patas ferradas no pátio,
o riso congelou-se em seus lábios.
Correu para a janela a tempo de ver Sir Francis despedir-
se de Sir Giles, parado na escadaria externa.
— Estarei de volta quando você menos esperar — ele pro-
metia. Depois acenou para Vera e ajuntou com um sorriso de
malícia: — Há coisas a que nenhum homem pode resistir!
Giles ergueu o braço, num gesto de adeus.
— Então está resolvido! Boa viagem! — ele gritou alegre-
mente. Depois voltou-se e olhou para cima.
Vera afastou-se rapidamente da janela, com a convicção
de que em nenhum momento de sua permanência no castelo
sentira-se tão apreensiva. Agora, teria de enfrentar sozinha o
humor de Giles de Rathborne!

CAPITULO VIII

— Está linda, madan — exclamou Audrey com reverência,


enquanto dava o último retoque na toalete.
Vera aproximou-se do grande espelho de seu quarto,
curiosa de conhecer sua imagem nesse dia. O reflexo da jovem
alta e esbelta num esplêndido vestido de veludo cor de amora,
que o espelho transmitiu, pareceu-lhe o de uma impostora. O
que não teria dito a verdadeira dona desse traje?
— Por que a outra lady deixou para trás estas
preciosidades? — quis saber.
— Lady? — fez Audry com desprezo. — Ela não era
nenhuma lady!
— Não? — surpreendeu-se Vera.
— Fugiu com outro, enquanto a casa dormia! Essa fuga
causou ainda mais escândalo porque ela levou consigo não
apenas as suas jóias, mas a maior parte das que pertenciam à
mãe de Sir Giles. Além de outros objetos de valor.
— Oh, terrível, miserável mulher! —explodiu Vera,
fazendo menção de tirar o vestido que lhe pertencera, como
um violento protesto contra a sua atitude.
Audry tranquilizou-a:
— A modista entregou esses vestidos depois de sua fuga.
São absolutamente novos.
Vera sentiu-se melhor. Queria apresentar-se bem vestida,
no seu primeiro jantar a sós com Sir Giles. E, para isso,
escolhera o mais lindo traje de seu novo guarda-roupa. Era
uma forma de desculpar-se pelos aborrecimentos que lhe
causara e, ao mesmo tempo, não incorrer em seu desagrado.
— Pode ir, Audry.
A criadinha fez uma reverência. A saída, informou:
— Há ainda uma coisa, madam...
— O quê?
— O jantar será servido no gabinete particular de Sir
Giles.
Audry escapuliu de mansinho, deixando Vera a sós com
seus pensamentos. Lamentava a ausência de Francis Finch, a
pessoa em que mais confiava. Mas o que a preocupava real-
mente era o temperamento instável de Sir Giles. O jantar com
ele seria constrangedor.
Esperou ainda alguns minutos e então saiu, levando um
castiçal. No corredor, deteve-se um instante, à escuta. O
tempo mudara, soprava um vento forte que sacudia nos
gonzos todas as janelas. Bastou que desse apenas um passo
para sentir que uma atmosfera estranha parecia permear a
casa.
Ergueu o castiçal e teve a impressão de ver uma figura de
mulher, a sua frente. A visão foi clara e instantânea. Enquanto
duraram aqueles momentos, seu coração cessou de bater.
— Audry? — chamou medrosamente.
Não houve resposta. Deu mais alguns passos e viu-se
diante do retrato de uma mulher de cabelos negros e trajes
antigos. Em seu dedo anular refulgia um anel com uma pedra
azul engastada em folhas de ouro lavrado, que lhe parecia
estranhamente familiar. Sua tensão se desfez. Avançou
resolutamente pelo corredor com o castiçal erguido acima da
cabeça, até chegar à imponente curva da escada.
A porta do gabinete estava entreaberta, lançando um
triângulo de luz sobre o assoalho do saguão. O fogo ardia
alegremente na lareira e os candelabros acesos afastavam as
sombras. Sentindo as batidas fortes de seu coração, empurrou
a porta e entrou, lançando olhares furtivos em torna de si.
Depois sentou-se rigidamente na cadeira e ficou um momento
a ouvir o vergastar do vento de encontro as janelas e o
arremesso violento da chuva.
— Se ao menos Sir Francis estivesse aqui — disse em voz
alta, erguendo-se para fechar as cortinas. — Ou se Lady Irma
não estivesse indisposta!
Uma voz falou atrás dela:
— Permita, my lady.
Vera teve um sobressalto que pôs à prova os seus
nervos. Voltou-se rapidamente, com os dedos trêmulos. Sir
Giles estava a menos de um passo de distância. Em sua
surpresa, balbuciou uma desculpa.
Ele adiantou-se sem dar sinal de tê-la ouvido e, com uma
série de movimentos bruscos, fez correr as pesadas cortinas de
seda. No mesmo instante, o rumor da chuva extinguiu-se na
sala.
Vera ficou à espera, preparando-se para uma noite
desagradável. Mas seus receios pareceram-lhe injustificados.
Sir Giles dava a impressão de estar verdadeiramente satisfeito
de vê-la. Involuntariamente, pôs-se a examiná-lo. Ele estava
formalmente trajado em preto e ouro, uma moldura perfeita
para o seu tipo moreno. Um colar de ouro e rubis fazia par com
o anel de cabochão e o pequeno brinco em sua orelha
esquerda. O efeito, ainda acentuado por sua bela figura e suas
maneiras altivas, conferia-lhe a graça de um rei e a rudeza de
um pirala.
Abruptamente, uma pergunta começou a martelar-lhe o
cérebro, com persistente excitação: como conviver vinte e
quatro horas por dia com um homem que começava a achar
atraente, enormemente atraente? E o que fazer para agir com
um mínimo de naturalidade em sua presença?
Giles, por sua vez, estudava-a com ar pensativo. Quando
ordenara que o jantar fosse servido em seu gabinete, aquilo
parecera-lhe uma grande ideia. Agora, não tinha tanta certeza.
Sentia por aquela estranha jovem uma resistência mesclada a
uma súbita e violenta atração, que só podia ser atribuída ao
fato de ter passado três longos anos ao mar. Ou... ou quem
sabe ao fato de que ela não era apenas uma mulher
inteligente, mas também perturbadora.
Permaneceu um instante em silêncio, percebendo, mais
do que nunca, que teria de lutar contra um outro grande
obstáculo: seu equilíbrio emocional.
— Esteja à vontade — murmurou por fim, guiando-a até
a mesa, já posta.
Sentaram-se lado a lado, ela ajeitando graciosamente as
saias.
— Você aprende depressa — disse-lhe, como uma nova e
delicada maneira de pô-la à vontade.
Ela corou e virou o rosto para o lado, revelando o perfil:
testa alta, nariz de corte delicado, queixo resoluto. Tudo o que
anteriormente lhe parecera apenas gracioso fundia-se agora
para modelar um rosto encantador e misterioso.
Vera sentiu o peso de seu olhar e voltou-se para ele com
incontida ansiedade.
— Por que está olhando tanto, my lordl Isso me deixa
nervosa!
— Lamento muito. Mas o fato é que terá de se acostumar
com as atenções e os galanteios masculinos.
— Não sei se vou gostar disso — ela protestou,
embaraçada.
— Olhares interessados e fantasias amorosas estão fora
do controle dos homens. Não há nada que uma mulher bonita
possa fazer para evitar isso.
— Eu não sou bonita — murmurou, sentindo um doce
calor crescer-lhe dentro do peito.
Seus olhares se encontraram e se prenderam.
— Ah, você é tão inexperiente... — ele suspirou.
Vera baixou os olhos, impotente diante das emoções dis-
paratadas que a perturbavam. Sentia claramente que não
eram apenas cúmplices num plano temerário, que podia levá-
los para a Torre de Londres, mas também um homem e uma
mulher. Mordeu os lábios, apreensiva. Se ele soubesse o que
sentia, estaria irremediavelmente perdida.
Giles observava-a, fascinado. Ela era mutável e excitante,
um jogo de luz e sombra sobre um-rnar violáceo como seus
olhos. Subitamente, sentiu que podia olhar-se dentro deles
sem nunca encontrar o fim...
Nesse instante, o criado entrou com o primeiro prato,
rompendo o encantamento. Respirou, aliviado. Não queria
correr nenhum risco. Nada que pudesse emocionar o coração.
Queria a aventura... e nada mais.
Comeram um instante em silêncio, ambos imersos em
pensamentos. Vera foi a primeira a rompê-lo.
— Gostaria de saber se Sir Francis já chegou em Finch
Hall.
Giles encolheu os ombros, indiferente.
— Finch Hall é a propriedade vizinha. Eu costumava ir
para lá com frequência, para passear e confraternizar com
Francis e sua encantadora irmã, Lady Anne. — Ele calou-se,
como se estivesse avaliando uma nova ideia, que lançou de
chofre: — Você teria muito o que aprender com Lady Anne. Ela
é uma dama da cabeça aos pés!
Vera olhou-o com atenção. Quais seriam os sentimentos
reais de Giles de Rathborne pela encantadora Lady Anne?
Sentiu-se enervada só de imaginar a resposta e tratou de
reagir.
— Ouça como vento assobia! Espero que Sir Francis já
tenha chegado a Finch Hall.
A observação pareceu irritá-lo.
— Vai passar a noite falando dele?
— Por que não? Sir Francis é uma pessoa maravilhosa.
Ele nada disse, limitando-se apenas a fazer um sinal ao
criado para que servisse o vinho e trouxesse o assado.
— Sirva-se à vontade, my lady. Não estamos ainda na
corte. Vera não se deixou de modo algum perturbar.
— Acha que não fica bem comer muito, my lord.
— De maneira alguma. Prefiro uma franca demonstração
de apetite do que uma delicadeza fingida — ele observou. —
Tome um pouco de vinho para acompanhar. Leve, seco e fres-
co.
Ela agradeceu e concentrou-se na comida. Estava com
um apetite devorador e saboreou o assado com prazer. Mas
toda vez que erguia os olhos do prato, via-se provocada pelo
olhar de Sir Giles.
— Que foi, my Lord? — indagou, com leve irritação na
voz.
Ele olhou-a com tolerante bom humor.
— Estava pensando como irá desempenhar o papel de
encantadora dama diante da rainha.
Vera corou, incapaz de esconder sua total insegurança.
— Sou sua pupila. O que os outros iriam pensar se eu
me atrapalhasse com os talheres ou manchasse a toalha de
vinho, não é?
— Ou comesse demais — ele ajuntou com um sorriso
maldoso.
— Há uma única coisa que não precisa ser alimentada,
senhor — ela disse com altivez.
— Qual é?
— Sua vaidade, que é inata!
Giles depôs ruidosamente o garfo e a faca e disse com
fria precisão:
— Chega! É melhor calar-se ou não respondo por mim.
Vera tomou calmamente um gole de vinho, antes de
responder:
— Não tenho medo de ameaças, senhor.
Com muito esforço. Giles conseguiu controlar a voz.
— Pois saiba que minha vontade é estrangular esse
pescoço adorável.
Ela se sentiu bastante confiante, a ponto de retrucar
ironicamente:
— O senhor não ousaria! Sou importante demais para o
sucesso de seus planos.
Ele afastou a cadeira e levantou-se. Num gesto rápido,
agarrou-a pelos ombros e obrigou-a a levantar-se também.
— Se fizer alguma tolice, juro que... — ela começou, mas
interrompeu-se, quando um lampejo de ira brilhou nos olhos
dele e a pressão de suas mãos tornou-se mais forte.
— Jura o quê?
— My lord... — balbuciou. — Está me machucando.
Giles contemplava-a em silêncio, possuído de um
sentimento estranho, algo que não podia explicar. Ela parecia
um animalzinho acuado. Sua respiração estava acelerada e seu
peito ofegava. Fixou os olhos em seus seios arredondados, que
se insinuavam através do decote generoso e sentiu o próprio
sangue correr depressa nas veias. Ah, não era fácil resistir...
Vera sentia-se como que paralisada, alheia a qualquer
coisa a seu redor. Ela, também, estava surpresa com a
estranha intimidade que se estabelecia entre ambos. Olhou-o
ansiosamente, querendo decifrar-lhe os pensamentos. Será
que ele era tão frio e duro como dava a entender? E esta
expressão de seu rosto, o que queria dizer?
Sentiu um arrepio delicioso, misto de medo e excitação.
Sensações desconhecidas inflamavam seu corpo, despertando-
lhe desejos nunca antes imaginados. Fechou os olhos,
enquanto, num gesto impulsivo, entreabria os lábios, à espera
do contato que a faria vibrar.
A tentação era muito forte. Giles quis aconchegá-la nos
braços mas hesitou, entre o receio e o desejo. A dúvida durou
apenas um segundo. Lutando ainda para dominar-se, recuou e
disse-lhe com brandura:
— Termine de comer seu assado, antes que esfrie. Sem
insolências, desta vez.
Vera se demorou ainda um instante, desapontada.
— Desculpe — murmurou com dificuldade, como se esti-
vesse engasgada. — Disse coisas que não devia.
Giles sentiu que aquelas palavras tinham exigido muito
esforço da parte dela, e esboçou um leve sorriso.
— Esqueça isso, eu também me excedi.
Voltaram a seus lugares e retomaram o jantar
interrompido. Mas a atmosfera estava carregado de tensão.
Giles esvaziou a taça de vinho num único gole e tornou a
enchê-la.
— Não imaginava que estivesse com tanta sede — mur-
murou, como que se desculpando.
Tomou a segunda taça um pouco mais devagar e
recostou-se na cadeira, já mais calmo. Fora melhor assim.
Achava-a adorável e, se ela fosse outra, a teria estreitado nos
braços e empolgado sua boca macia. Mas ela era Lady Verena,
não podia esquecer-se disso.
Vera mal podia respirar, um grande peso sufocava-lhe o
peito. Embora tivesse perdido o apetite, mantinha os olhos
estudadamente fixos no prato, tentando ignorar a presença da-
quele homem sentado a seu lado. Mas, de vez em quando,
aquela mão forte, de dedos longos, interpunha-se em seu
campo de visão, provocando-lhe um desejo incontrolável de
tocá-la.
Mais uma vez, lamentou o acordo que fizera. Era como se
tivesse saltado num rio gelado, sem antes considerar sua cor-
renteza e profundidade. E, agora, estava sendo carregada para
longe e muito mais depressa do que julgara ser possível.
Terminada a refeição, resolveu por um fim àquele
constrangimento.
— Talvez seja melhor deixarmos a lição de dança para
amanhã, quando estivermos mais descansados — disse apres-
sadamente, escondendo a perturbação sob uma capa de indi-
ferença. — Permite que eu me retire?
— Perfeitamente, my lady. — Giles levantou-se. — Vou
acompanhá-la até o quarto. A galeria deve estar às escuras.
Ele apoderou-se de um castiçal e guiou-a
cerimoniosamente ao longo da galeria e do vestíbulo, a chama
da vela oscilando à corrente de ar. Quando alcançaram o
quarto de Vera, parou e virou-se.
— Vai precisar disso — observou, passando-lhe à mão o
castiçal.
Ela ficou um momento com a respiração suspensa
quando, à luz bruxuleante da vela, pôde vê-lo sorrir. Uma
sensação de felicidade apertou-lhe a garganta. Queria muito
que ele a beijasse, mas tinha medo. Não, dele, de si mesma.
Sem uma palavra, abriu a porta e entrou.
O quarto estava imerso na escuridão, a única claridade
era a fornecida pelos carvões que ardiam na lareira, sob umja,
camada de cinzas. Vera sentiu um arrepio percorrê-la e
cambaleou. O castiçal escorregou-lhe dos dedos sem que
percebesse.
Giles ouviu o estrondo e entrou no quarto. Acendeu uma
vela, que apanhou no toucador, e a manteve à altura dos
ombros, para olhá-la.
— Que aconteceu?
Ela nada pôde dizer durante um minuto, enquanto conti-
nuavam a olhar-se nos olhos.
— Nada, my lord. Assustei-me sem motivo e o castiçal
escorregou-me da mão.
Nesse instante, uma golfada de ar gelado soprou da
chaminé e a porta bateu, encerrando-os num pequeno mundo
particular. Pressentindo o perigo, Giles achou melhor bater em
retirada. Acendeu a vela do castiçal, colocando-o ao lado da
cama, e encaminhou-se para a porta.
— Boa noite, my lady.
— Boa noite, my lord.
Já com a mão no trinco, ele virou-se e viu que um pouco
do creme da sobremesa ficara preso aos lábios dela. "É ainda
uma criança", pensou, permitindo-se um pequeno sorriso de
ternura.
— Venha cá.
Ela sentiu um pontada de medo, mas isso não a impediu
de dar alguns passos. Ainda sorrindo, ele limpou-lhe o excesso
de creme com o polegar, verificando, pelo tato, a maciez de
sua boca, carnuda e sumarenta como uma cereja. Não se con-
teve. Inclinou-se e beijou-a de leve.
— My lord... — ela murmurou numa queixa, desprenden-
do-se dele.
Incapaz de se dominar, ele enlaçou-a e prendeu-lhe a
boca num beijo vagaroso, que lhe sufocou na garganta os
últimos murmúrios de protesto.
— Não vá ficar se debatendo — murmurou-lhe ao ouvido,
como se ainda duvidasse de sua rendição incondicional.
O ardor dele contagiou-a poderosamente. Ah, não, ela
não ia resistir! Não queria que ele parasse... pensaria nisso no
dia seguinte. Agora, desejava apenas entregar-se àquele
contato delicioso.
As carícias tornaram-se alucinantes e apaixonadas. Mãos
fortes deslizaram para dentro de seu decote e tomaram seus
seios, moldando-os suavemente até senti-los enrijecer às pal-
pitantes explorações.
— Minha preciosa... — ele sussurrou, seus lábios exigindo
outra vez os dela.
Vera mantinha-se de olhos fechados, flutuando num
mundo sem ideias, insuportavelmente excitante. Ele beijava-a
sofregamente, demorando-se no beijo, mordia-lhe o lóbulo da
orelha, subjugava-a, apertando-a mais e mais contra seu
peito.
Sentiu-se dominada pela paixão e um frêmito de desejo
subiu por seu corpo, tornando-o indolente e submisso, rou-
bando-lhe a capacidade de resistir. E gemeu, em profundo
abandono, quando sentiu uma boca macia pousar sobre o bico
rígido de seu seio e sugá-lo avidamente.
— Oh, Giles...
De repente, a luz difusa de um relâmpago iluminou
vivamente o aposento. Viu o rosto dele alterado pelo desejo e
assustou-se.
— Não! Não faça isso! — gritou, agitando-se nos braços
que a enlaçavam.
Agora estava lúcida, via tudo com clareza. Desejava-o,
mas havia outras coisas que desejava mais, como respeito,
ternura, amor. Aflita, sem perceber que estava chorando,
puxou o cor-pete para cima e cobriu os seios nus.
Ele trouxe-a de novo para junto de si e beijou-lhe o
pescoço com avidez.
— Vera... — murmurou, a voz baixa e rouca. Ela se
afastou, com os lábios contraídos.
— O acordo era para que eu fizesse o papel de sua
pupila, não o de sua amante. Se precisar de uma mulher para
distraí-lo em suas horas de ócio, terá que procurá-la em outro
lugar.
— Vera... — ele insistiu.
Totalmente incapaz de conter suas emoções, ela explodiu
em palavras carregadas de ressentimento.
— Afaste-se, senhor. Se me tocar novamente, juro que
enterrarei meu punhal em seu coração perverso!
Um estrondo inesperado rompeu o momentâneo silêncio.
O ruído se extinguia, quando o vento ululou, soprando em
rajadas furiosas que agitavam as árvores e faziam estalar os
ramos.
Giles sentiu o golpe em cheio. O desejo escorrendo-lhe
inteiramente dos nervos, voltou-se.
— Não terá outros motivos de queixa, madam. Juro que
não tornarei a pôr os pés em seu quarto! — ele afirmou, antes
de sair.
Vera fechou lentamente a porta e demorou ainda um
segundo recordando o olhar dele, um olhar altivo e magoado.
Veio-lhe a suspeita de que agira como uma idiota e sua fúria
desapareceu, substituída por um repentino sentimento de
remorso. Giles deixara-se arrastar pela paixão, como ela.
Despiu-se com gestos mecânicos e vestiu uma singela ca-
misola de cetim. Em seguida sentou-se diante do espelho e,
quase por instinto, abriu o decote, expondo a curva delicada
dos seios, onde constatou a presença de um sinal deixado
pelos lábios dele. A cena vivida entre as quatro paredes do
quarto invadiu-a de calor.
Nervosa e agitada, levantou-se e pôs a andar de um lado
para o outro. "Será que ele pensa que vou cair em seus braços
tão facilmente?"", perguntou-se. "Pois isso não acontecerá!"
Não era nenhuma lady, apenas Vera da floresta. E estava ali
com um único propósito, que não era o de ser seduzida pelo
senhor do castelo!
Enxugou uma lágrima solitária e jogou-se sobre a cama.
Toda a sua segurança esvanecia-se e a dúvida sobre as
suas próprias forças insinuava-se em sua cabeça latejante e
confusa.
Temia que se ele tornasse a tomá-la em seus braços
capitularia, mesmo sob o risco de ir demasiado longe.

CAPITULO IX

Vera despertou com um cheiro bom de lavanda e alecrim.


Por um breve espaço de tempo, permaneceu na misteriosa
bruma entre o sonho e a realidade. Não queria sair daquele
torpor macio e aconchegante, mas algo a transportava ao
mundo consciente.
Abriu os olhos vagarosamente e viu alguém parado à
porta, com a mão enluvada no trinco. Uma jovem linda como
uma manhã de primavera, a pálida beleza envolta em trajes
antigos. Não se assustou, mas achou que devia ser o efeito da
estranha luminosidade que invadia o quarto.
Fechou e tornou a abrir os olhos. A moça estava ainda
diante dela, mas agora sorria! Foi um minuto profundo, silen-
cioso, findo o qual a gentil aparição se desvaneceu. Nada mais
subsistia no quarto, a não ser um tímido raio de sol.
Acreditando que tudo não passara de um sonho, jogou as
cobertas para um lado e levantou-se. Ao descerrar as cortinas,
o ar fresco de outubro atingiu-lhe o corpo aquecido. Tomada
de arrepios, banhou-se rapidamente e envergou um vestido
simples, de lã azul, enfeitado com uma gola de linho branco.
Penteou os cabelos para cima, prendendo-os num coque
severo, e mirou-se no espelho. Viu-se bem diferente do que na
noite anterior e alegrou-se. Nada de ostentação, nada que lhe
lembrasse um brilho que não lhe convinha!
Sentindo-se capaz de enfrentar Sir Giles de igual para
igual, encaminhou-se para as escadas sem ter consciência de
que nem a simplicidade do penteado nem a sobriedade do
vestido conseguiam diminuir-lhe a graça e a sensualidade. Na
floresta. onde a luta pela sobrevivência exigia todos os
esforços, não houvera lugar para a vaidade. A imagem que via
no rio todas as manhãs era algo que aceitava com indiferença.
O hall estava vazio. Dirigiu-se diretamente para a sala de
refeições, sentindo uma indefinível ansiedade. A porta estava
entreaberta. Escancarou-a e espiou.
Não havia ninguém. Um longo raio de sol iluminava a
mesa, revelando que a travessa de pão, queijo e presunto
estava ainda intacta e o jarro de cerveja cheio até a borda.
Sentou-se em frente à porta, para não ser colhida de
surpresa, e desdobrou o guardanapo. O fato de não ter
encontrado ninguém animou-a bastante. Ficou um minuto a
deleitar-se com as deliciosas fragrâncias. Depois cortou uma
grossa fatia de presunto e outra de pão, sobre o qual espalhou
uma generosa camada de manteiga.
Derretia na boca. Quando voltasse à sua antiga vida na
floresta, iria sentir falta daquele pão saboroso, recém-saído do
forno. E também dos travesseiros macios, do calor da lareira,
do conforto do quarto...
Foi arrancada de seus devaneios pelo ruído de cascos de
cavalo no caminho ensaibrado. Afastou a cadeira e correu para
a janela. Um cavaleiro atravessava o parque como que perse-
guido por todas as fúrias. Não precisava se preocupar com Sir
Giles. Pelo que lhe era dado ver, ele iria permanecer o dia
inteiro fora de casa. Sentiu uma pontada de desapontamento
que a intrigou e a fez lamentar tê-lo assaltado naquela tarde
fatídica. O ousado feito revirara seu mundo, transformando
rapidamente o passado numa espécie de ilusão.
Perguntando-se se jamais um dia voltaria ao convívio de
Thad, subiu para visitar Lady Irma, que estava ainda acamada.
Ao alcançar sua porta, pensou ouvir vozes no interior do
quarto. Aguardou um momento e depois bateu, anunciando-se.
Encontrou a velha senhora placidamente recostada aos
travesseitos, naquele quarto rigorosamente asseado a nítida
imagem da doçura e da serenidade.
— Como se sente nesta manhã tão bonita? — perguntou-
lhe, avançando.
— Muito melhor, menina. Estou na cama por insistência
de Giles — disse Lady Irma com um sorriso reconhecido.
— Pensei ter ouvido vozes.
— Estava conversando com minhas damas.
— Damas, my lady! — indagou Vera, lançando olhares
inquietos ao seu redor.
— Meus fantasmas — explicou Lady Irma com
naturalidade. — Eles me visitam com frequência, sabia?
Suas palavras pareciam bastante inofensivas,
principalmente porque foram proferidas naquele tom doce e
casual, com que ela se dirigia a todos, mas Vera estava
espantada. Fantasmas?... Talvez Lady Irma estivesse tendo
alucinações. Procurou ganhar tempo para refazer-se da
surpresa, indagando:
— Que esteve fazendo, senhora?
Lady Irma mostrou-lhe uma folha de papel coberta de
anotações.
— Preparando o inventário da despensa. Logo, irei iniciar
a confecção dos bolos e pudins natalinos. Antes, porém, terei
de verificar o estoque de manteiga, açúcar, especiarias, licores
e frutas cristalizadas.
— Estamos ainda no outono, my lady. O Natal está longe!
— Os bolos e os pudins devem ser mergulhados em
licores e depois vedados durante pelo menos um mês, para
que tomem gosto. Parece que as irmãs do convento deram-lhe
educação espiritual, mas negligenciaram sua educação básica.
Vera sentou-se na beirada da cama e inclinou-se para ela
com um sorriso.
— Elas bem que tentaram, my lady.
Não houvera bolos nem finas gulodices no convento. A
despensa das irmãs não era farta. Jamais experimentara um
bolo de Natal em toda a sua vida. Visões daquelas deliciosas
iguarias assaltaram-na e fizeram-na engolir em seco.
— Posso ajudá-la, quando chegar o momento? Eu lhe
ficaria
grata.
Os olhos de Lady Irma iluminaram-se de prazer.
— Eu é que lhe estou grata — ela disse com um sorriso.
— Ensinarei a você tudo o que sei. Talvez, então, eu lhe en-
tregue as chaves da despensa e da rouparia.
Vera alarmou-se.
— Não diga uma coisa dessas, my ladyl A senhora fará as
honras de Rathborne por muitos anos ainda. Alguns dias de
repouso já lhe fizeram bem.
— Não se trata disso. Eu estava pensando na hipótese de
você fazer de Rathborne seu lar permanente.
— Eu... eu não compreendo.
Lady Irma olhou-a com simpatia.
— Já soube de casos de tutores que se casaram com
suas pupilas.
— Não tenho vontade de fazer o papel de castelã nem de
me casar! — exclamou Vera, chocada. — Principalmente com
um homem arrogante e autoritário, que não admite posições
discordantes das suas!
Lady Irma inclinou-se sobre a cama e deu-lhe uma
palmadinha na mão.
— Tudo isso vai mudar, menina. Com o tempo, irá
perceber que Giles é um homem encantador, o melhor que
uma mulher poderia desejar para marido.
— O que é a senhora está dizendo é impossível!
— Tenho minhas razões para acreditar que não é tão
impossível assim, minha querida. O tempo dirá.
Vera ergueu-se abruptamente.
— Não conte muito com isso, my ladyl
Lady Irma voltou a concentrar-se em sua lista e nada res-
pondeu.
Vera ficou a olhá-la, procurando inutilmente decifrar-lhe
os pensamentos. As criadas diziam que ela não regulava bem.
Ouvira os comentários e dera-lhes o devido desconto, mas
agora começava a pensar se, afinal, não havia alguma verdade
nisso.
Giles procurava dissipar os efeitos de uma noite
maldormidá com uma cavalgada pelos campos. Exercícios
físicos tinham sido sempre seu meio de relaxar a tensão
interior. Assim, antes que os pálidos raios do sol matutino
iluminassem a linha distante da floresta, já estava longe de
casa.
Mas, enquanto atravessava em disparada prados e
campos incultos, não podia esquecer que em Rathborne
aguardava-o um outro problema, desta vez sob a forma de
uma mulher independente. E o fato de que estivesse atraído
por ela e que ela, por sua vez, detivesse seu futuro nas
pequenas mãos tornava a situação ainda mais complicada.
Não sabia ainda que caminho tomar. Pensou em ir até
Hallford, a cidade mais próxima. Havia ali jovens encantadoras,
que se prestariam a todos os jogos eróticos. Tomada a
decisão, lançou-se por uma vereda que se recortava entre as
camadas de neblina que envolviam os campos. Ao atingir as
primeiras árvores do bosque, porém, encurtou as rédeas. Era
inútil querer enganar-se. A mulher que desejava encontrava-se
dentro de sua própria casa. Apesar do vento frio, sentiu, de
repente, calor.
Nos tempos de seu avô, as coisas eram bem diferentes. O
nobre que desejasse uma mulher da aldeia tomava-a sem
temer um escândalo público de concubinato. Ninguém o
condenava por isso. A prova era que muitos jovens da região
tinham nas veias um pouco do sangue dos Rathborne.
Mas, por São Miguel, ele não era nenhum patife para
aproveitar-se das circunstâncias! Recusava-se a manter uma
relação imposta pela força e pelo medo!
Sentindo-se mais solitário do que nunca em sua vida,
seguiu para a aldeia e passou parte da manhã ouvindo as
queixas e os problemas de seus arrendatários. Quando chegou
em casa tinha decidido uma mudança. Refugiou-se em seu
gabinete e lançou-se de corpo e alma ao trabalho. Isso iria
ajudá-lo na luta que travava consigo para expulsar da mente
as lembranças da véspera.
Atendidas ao menos as necessidades básicas de sua
comunidade, redigiu uma carta, que lacrou com as armas de
sua família e entregou a um emissário. Depois, saiu à procura
de Vera. Encontrou-a na cozinha, os braços mergulhados até
os cotovelos na farinha.
— Que diabo está fazendo? — perguntou-lhe, mal-
humorado. — Não tem outra maneira melhor de passar o
tempo?
Vera parou de amassar o pão e ergueu os olhos.
— Estou habituada a uma vida ativa, my lord —
respondeu lentamente, procurando manter a voz distante e
impessoal.
Ele aproximou-se, sem fazer caso dos olhares furtivos das
criadas.
— Se quiser cavalgar comigo, é só dizer.
— Está bem, my lord. Amanhã sairei consigo.
— Amanhã não posso. Vou estar ocupado.
— Nesse caso, sairei sozinha.
— Nada disso! Você vai ficar em casa, trabalhando nas
roupas que tiverem necessidade de alguns pontos. Lady Irma
poderá orientá-la.
Vera olhou-o fixamente durante um segundo.
— My lord não está falando sério! — exclamou, a voz
demonstrando uma completa incredulidade.
— Por quê? Acha extraordinária a minha sugestão?
— Acho!
Giles tomou-a pelo braço e arrastou-a para fora da
cozinha, longe dos ouvidos atentos das criadas.
— Que bobagem é essa? Todas as mulheres sabem
costurar!
— Eu, não, my lord. Já tentei, mas não tenho jeito para
isso.
Ele sorriu perfidamente.
— E suas roupas, quando morava na floresta? Quem as
fazia?
— Eu... eu... — gaguejou Vera.
— Você as roubava, não é? Não pensei que estivesse tra-
tando com uma mulher sem escrúpulos!
Ela ergueu a cabeça com altivez.
— Não me sinto absolutamente envergonhada por isso.
Nunca pretendi ser alguém que não sou. Quem teve a ideia de
me transformar numa dama foi o senhor!
Giles apertou-lhe novamente o braço.
— Você não tem mesmo jeito! Vou levá-la imediatamente
para Finch Hall. A transferência para um ambiente mais formal
talvez a ajude a converter-se numa lady. Mesmo contra a sua
vontade.
Vera sentiu o rosto arder.
— Tudo isso é loucura!
— A mim só interessa uma coisa: salvar Rathborne. Se
não fosse por isso, não chegaria ao extremo de discutir com
uma pirralha!
— Claro, está fazendo tudo para o bem de Rathborne.
Não para apoderar-se de uma herança que não lhe pertence!
Aquela acusação atingiu Giles com a força de um punho.
Como ela ousava duvidar de seus motivos?
— Parece que a verdade o deixa mudo — ela continuou,
implacável.
Giles virou-lhe as costas e saiu sem proferir palavra. Que
fosse para o inferno com toda a sua ironia! Não iria se rebaixar
ao ponto de lhe dar explicações! Essa revolta seguiu-o pelo
caminho ensaibrado, até a estrebaria. Outra boa cavalgada po-
deria ajudá-lo a recuperar a calma e a objetividade para pôr as
ideias em ordem.
Selou Califa e atravessou o parque a galope. Um bando
de gansos selvagens atravessava o céu outonal, rumo ao sul.
Mas estava por demais preocupado para invejar-lhes a
liberdade.
Devia ter tomado Vera por sua confidente desde o início.
Relutara em revelar-lhe sua história familiar, por temor de que
ela a usasse como uma arma contra ele. Não percebera, então,
como ela era inocente. E era essa inocência, aliada a uma
incontestável beleza, que o atraía, despertando-lhe um delírio
de voluptuosidade. O homem que primeiro lhe estimulasse a
sensualidade e a tivesse palpitante nos braços seria
duplamente premiado.
Ao alcançar o alto da colina, deu-se repentinamente conta
de onde se encontrava. Por São Dunstan! Estava a meio ca-
minho de Briarton Ridge e a imagem de Vera não cessava de
lhe passar pela cabeça, insinuante, perturbadora. O que estava
acontecendo?
Tirou o gorro de peles e correu os dedos pelos cabelos.
Não havia mais dúvida. Não podia deixar tudo ao acaso, ou
antes ao capricho. Teria que levá-la imediatamente para algum
lugar onde houvesse mais gente. A tensão de seu corpo tinha
chegado a um ponto crucial. Queria-a simplesmente, com toda
a força de sua vontade máscula.
Em Finch Hall, a presença de Francis e de sua irmã
serviria de freio ao desejo insano de possui-la. Contudo, era
uma decisão difícil.
Vera esperou ainda um instante. Depois tomou uma
decisão que lhe pareceu o remédio certo para o seu desânimo:
conhecer Rathborne. E o fez passo a passo, aposento por
aposento. Impressionou-se, durante sua volta pela casa. com o
número de quartos vazios, de sombrios corredores e salões
nobres, e com a série de alojamentos de criados sob os beirais,
acessíveis apenas pelas estreitas escadas em caracol. Tinha a
impressão de estar num castelo de sonhos, habitado por seres
fantásticos.
O que mais a agradou foi o antigo solário, com seu
assento acolchoado ocupando todo o vão da ampla janela.
Estava fechado, recendendo a poeira. Abriu os postigos para
arejá-lo e ficou contemplando a paisagem. O ouro permanecia
ainda no céu, a transparência na atmosfera. Quem poderia
sentir-se infeliz num dia como aquele?
Seu olhar distraído tombou sobre o labirinto. Wolf estava
deitado à entrada, a nobre cabeça pousada entre as patas.
Teve um sobressalto. Havia se esquecido completamente de
Thad!
Empregou apenas alguns minutos para alcançar a porta
de casa. Saiu precipitadamente, correndo pelo gramado com a,
maior velocidade possível. O espaço em torno do labirinto, bem
com a parte que podia ver do parque estavam vazios,
imensamente vazios.
Instintivamente, ao invés de voltar como havia chegado,
internou-se entre as verdes e altas paredes, com sugestões de
mistérios pelos cantos. A memória ajudou-a. Num abrir e
fechar de olhos, atingiu o coração verde com seu pátio secreto.
Havia uma presença ali, um visitante oculto nas sombras.
Correu para ele de braços abertos.
— Tive tanto medo que você não tivesse esperado...
— Como eu poderia ir embora sem ter visto você? —
retrucou uma voz baixa e rouca.
Vera deu um pequeno grito.
— Hewe! Que está fazendo aqui? Onde está Thad? Hewe
emergiu das sombras, olhando nervosamente para os lados.
— Fui eu que lhe mandei a mensagem, querida. Vim bus-
cá-la. — Ele aproximou-se e tornou-lhe as mãos. — Há dois
cavalos na floresta, à nossa espera.
— Quê? — ela fez, sem compreender.
— Venha comigo, Vera. Pelo amor de Deus! Ela conteve
o fôlego.
— É por causa de Thad? Ele está doente?
— Thad está bem.
Vera contemplou-o demoradamente. Seu rosto estava
pálido e suas mãos tremiam.
— Que há com você, Hewe?
O olhar que ele lhe lançou era tão cheio de amor e
adoração, que ela sentiu uma pontada de tristeza.
— Não sabe como foi duro para mim. Longe de você
todos esses dias...
Ela sorriu, contrafeita.
— Talvez tenha sido melhor assim, Hewe.
Desajeitadamente, ele tentou abraçá-la.
— Um beijo, minha querida — murmurou, agora com a
boca diante da boca de Vera. — Entenda que eu...
Ela o empurrou, tomada de uma raiva que o fez
empalidecer ainda mais.
— Que deu em você? Deixe-me!
— Vera... por favor, volte comigo!
Ela se sentiu acuada, detestando a ideia de magoá-lo.
Mas não queria alimentar-lhe as esperanças.
— Não quero ir embora daqui. Ponha isso em sua cabeça
de uma vez por todas! — quase gritou. Depois viu-o tão pros-
trado que se arrependeu. — Desculpe, Hewe. Mas precisa com-
preender que eu dei minha palavra. Preciso ficar aqui!
— Deu sua palavra a quem? Àquele miserável?
Desesperada. Vera deu-lhe as costas e afastou-se
correndo.
Hewe seguiu-a com os olhos, atônito. Não conseguia
entender por que ela recusara a oportunidade única de
recuperar a liberdade. Promessas podiam ser rompidas,
especialmente se feitas a um tirano.
— Maldito Lorde Rathborne! Gostaria de vê-lo enforcado!
— gritou, exaltado.
Não iria desistir. Encontraria um meio de convencê-la,
antes que o senhor do castelo destruísse para sempre os seus
sonhos de felicidade.
Vera encaminhou-se para casa tomada de um terrível
estado de nervos. Enquanto atravessava o gramado, chegou-
lhe aos ouvidos o som trovejante de um cavalo a galope.
Virou-se. Ao reconhecer o cavaleiro, ficou gelada da cabeça
aos pés.
Será que ele a vira sair do labirinto em companhia de
Hewe? Não queria ser obrigada a dar-lhe explicações.
Recolheu desajeitadamente as saias e disparou pela
alameda de árvores ornamentais. Ao alcançar o caminho de
cascalhos, diminuiu o passo. Se alguém a visse chegar do
parque, pensaria que estava chegando de um passeio. Alisou
as saias e avançou resolutamente. Mas, ao dobrar por trás da
casa, caiu literalmente nos braços vigorosos de Giles, que
subia pelo gramado. Despreparada para esse encontro, sentiu
o sangue fugir-lhe do rosto.
— Céus! — exclamou, para disfarçar o choque. — O
senhor não olha por onde anda?
Os olhos dele estavam escuros de cólera mal reprimida.
— Nós dois temos contas a acertar, madam. Por que saiu
sem a minha ordem?
Retraindo-se diante de seus modos rudes, ela não soube
o que responder. Ele insistiu:
— Quem era aquele homem? Seu amante?
Esse insulto capacitou-a a superar o medo inicial.
— Não tenho amantes! — protestou.
Uma expressão sombria surgiu no rosto de Giles.
— Depois do que vi, imaginei que tivesse um!
Com as pernas trêmulas e o coração acelerado, Vera
reuniu a pouca coragem que ainda lhe restava e gritou:
— Acredite no que quiser!
Depois saiu correndo, rápida, e desapareceu nas sombras
do pórtico.
— Onde está Lady Verena?
Audry acolheu a rápida pergunta de seu patrão com ar de
completa ignorância.
— Deve estar lá em cima, my lorcl — ela disse, após um
instante de hesitação.
Giles subiu incontinente ao quarto de Vera. Encontrou-a
sentada à mesa de toalete com os olhos vermelhos, como se
tivesse chorado.
— Está atrasada — disse-lhe secamente.
— Não quero jantar. — Ela fez uma pausa, sentindo difi-
culdade para articular as palavras e prosseguiu num
murmúrio: — Estou sem apetite.
Giles franziu a testa.
— Parece que afrouxei demais as rédeas. Você vai descer
comigo já!
Vera engoliu a indignação e fez que sim com a cabeça.
Não conseguiria falar mesmo que quisesse.
Ele afagou a barba, num atitude reflexiva e, depois de
alguns instantes, fez uma pergunta que a deixou trêmula.
— Estamos de acordo quanto a nossa ida a Finch Hall,
não estamos?
— Quando deseja partir? — indagou, com ar
desconsolado.
— Dentro de duas semanas, no máximo. Tenho que
acertar meus negócios antes disso.
— O senhor pensou bem no que vai fazer? — tornou, os
nervos à flor da pele.
— Sente-se tão insegura assim?
— Não estou pronta, my lord. Não poderia desempenhar
meu papel à altura do que o senhor espera — disse-lhe timi-
damente, lançando-lhe um olhar para ver como reagia.
Mas ele pareceu não dar importância à observação.
— Acho que você se sairá bem.
— My lord...
Giles fitou-a por um momento. Ela mantinha-se ereta na
cadeira, os punhos cerrados ao lado do corpo trêmulo. Seus
olhos estavam cheios de lágrimas.
— Não fique tão preocupada. Já fiz a lista dos possíveis
convidados e lhe direi como terá que se comportar com eles.
Ninguém fará questão de sua sinceridade, apenas de suas ma-
neiras.
Vera levantou-se com um suspiro. Reconhecia que sua
permanência ali tinha se constituído numa grande experiência
em todos os sentidos. Além de haver aprendido muito,
amadurecera anos em poucos dias. Então, como explicar o
pânico que sentia à ideia de ir a Finch Hall?
A verdade era que tinha medo de não poder levar adiante
aquela farsa. E se isso acontecesse, tudo estaria perdido.
— Não me obrigue a isso, Sir Giles. Não tão já! —
implorou, uma repentina palidez acentuando a profundeza de
seus olhos cor de safira.
Giles sentiu um estranho impulso de confortá-la, de
beijar-lhe os olhos, os cabelos. Mas se conteve.
— Não será uma visita formal. Não haverá bailes nem
jantares de gala. E você não estará sozinha. Eu estarei sempre
ao seu lado.
Parecia estranho, mas aquelas poucas palavras, ditas em
tom cativante, tiveram o dom de tranquilizá-la. Nada tinha a
temer. Estavam juntos, para o bem ou para o mal. Fechou os
olhos e suspirou fundo.
Giles pensou que ela estivesse a ponto de desmaiar e a
sustentou pela cintura. Ficou surpreso ao notar como ela era
leve, macia, feminina e, sem perceber, apertou-a mais contra
si.
Vera abriu os olhos e desvencilhou-se bruscamente. Seu
rosto, tão pálido minutos antes, estava agora afogueado.
— Senhor! — exclamou, indignada.
Mas ele relutava em deixá-la, demorando-se muito para
retirar o braço de sua cintura e afastar-se.
— Está com medo de mim?
— Não tenho medo de ninguém, my lordl
.....Pequena mentirosa...
Seus olhos eram amistosos, não havia neles nada que pu-
desse assustá-la. O problema era que, depois dos
acontecimentos da noite anterior, Vera não acreditava que
fosse possível manterem uma simples relação de
camaradagem.
— Lembre-se de sua promessa — disse, apoiando as
mãos em seu peito poderoso.
Giles recuou, formalizado. Ela não deixava de ter razão.
Aquela proximidade era um perigo.
— Vou pedir a Audry que lhe sirva o jantar no quarto —
informou, antes de sair.
Vera deixou-se cair sobre a cama, atordoada. No
momento em que ele a sustentara pela cintura, tinha
mergulhado num langor de sensualidade do qual só fora
arrancada por um poderoso esforço de sua vontade. Onde
estava sua segurança? Sem resposta a essa questão, sentiu
uma sombra descer sobre seu mundo.
As duas semanas seguintes transcorreram na maior
tranquilidade. Em nenhum momento a rotina das lições, que
agora incluíam geografia e história, foi alterada. Mais segura,
Vera revelava grande aplicação e aproveitamento, cumprindo
seus deveres dedicadamente.
Giles estava encantado com suas incessantes
manifestações de inteligência. Tinha a alentadora impressão de
que ela se achava sob alguma influência nova, que agia como
estímulo sobre sua mente e sua curiosidade intelectual.
Havia em Rathborne uma biblioteca cheia de antigos
mapas e instrumentos de navegação. Vera passara a
frequentá-la, sonhando de olhos abertos com viagens
maravilhosas em mundos distantes. Uma noite, embalada pelo
tamborilar monótono da chuva contra as vidraças, perdia-se
tanto em sonhos, que não ouviu Giles entrar.
— O jantar está sendo servido — ele anunciou.
Ela virou-se com um sobressalto. Esplendidamente
trajado, a luz dos candelabros formando um halo em torno de
seus cabelos escuros, era realmente o homem mais bonito que
já conhecera
— Está com uma bela aparência, my lord — balbuciou
acanhada — Parecido com Lancelote. ou talvez com o cavaleiro
Rolando.
Giles contemplou-a com estupor. De onde ela conhecia
tais personagens? Podia estar familiarizada com as lendas
sobre os cavaleiros do Rei Artur, mas um herói francês como
Rolando era praticamente desconhecido no campo!
Caminhou até ela e encarou-a.
— Quem lhe falou desses heróis? As irmãs do convento?
— Não, my lord. O convento Santa Inês é um lugar
devotado às orações e ao trabalho. Não falávamos desses
nobres paladinos. Eles aparecem em minha memória como
pinturas sobre tecido.
— Uma tapeçaria?
— Talvez.
— Fale sobre isso — intimou-a, excitado.
Vera fechou os olhos e deixou que imagens matizadas de
nostalgia remontassem o caminho do tempo e lhe inundassem
a mente.
— Havia flâmulas, um campo inteiro delas, ostentando o
lírio francês em prata e ouro. e outras rubras como papoulas.
Os elmos de Rolando e seus homens eram bordados com fios
de ouro... e suas espadas também. Havia flores num dos
cantos... vermelhas, azuis e amarelas, com o formato de uma
estrela de seis pontas. O punho da espada do Rei Artur era
enfeitado de pedras tão brilhantes como os rubis de seu
colar...
Ela interrompeu-se, forçando a memória, mas as imagens
dissolviam-se em névoa. Quanto mais tentava retê-las, tanto
mais insubstanciais elas se tornavam.
— Isso é tudo, confessou, pesarosa. — A tapeçaria era
muito bonita e eu gostava de olhá-la. Mas não consigo me
lembrar onde a vi.
Giles olhava-a extremamente pensativo. Primeiro, sua
facilidade em chegar ao centro do labirinto e em seguida sair
de lá... agora as figuras da tapeçaria. Havia uma única maneira
de desvendar o mistério.
— Venha comigo — pediu, pousando-lhe a mão no braço.
Depois apanhou um castiçal e guiou-a por uma escada
estreita. Avançaram, ofegantes no escuro, até um pequeno
aposento junto ao sótão. Nesse instante, um relâmpago zebrou
o quadro da janela, e uma tapeçaria destacou-se na meia-luz.
Vera aproximou-se, deslumbrada, enquanto Giles erguia
o castiçal para iluminá-la. O Rei Artur, Sir Galaor e Lancelote
estavam montados em seus corcéis. E, exatamente como ela
se lembrava, havia o cavaleiro Rolando de encontro a um
fundo de flâmulas. Nobres e cavalgaduras ostentavam
emblemas ricamente bordados com incrustações damascenas.
Examinou-os, lutando em silêncio, numa difícil busca de sua
memória.
— Estranho! É muito parecida com aquela de meus
sonhos. — Ela apontou para o Rei Artur, a prodigiosa Excalibur
brilhando na mão bronzeada. — Veja, há até pedras preciosas
engastadas no punho... Mas há também outras figuras que não
reconheço.
Toda tensão escoou-se dos nervos de Giles. Vera não
identificara a tapeçaria que outrora pendera da sacada dos
menestréis, acima do Grande Hall. Malograra sua expectativa.
Pena porque, por alguns minutos, chegara a acreditar que
havia realmente encontrado a herdeira desaparecida.

Giles emergiu da estrebaria usando seu traje de montaria


preferido: gibão acolchoado de cano castanho, macio como
seda pelo uso. e calças justas, cor de areia. Tudo estava
pronto para a partida, mas Vera não chegava.
Impaciente com a demora, deixou o pátio onde estava
reunida a comitiva e entrou em casa. A voz ligeiramente
alterada pela irritação, perguntou a uma criada que descia as
escadas:
— Lady Verena?
— Está em seus aposentos, senhor.
Giles apertou os lábios. Mais essa, agora! Mas, enquanto
atravessava o hall, ela mostrou-se no alto da escadaria,
vestindo um traje de montaria de veludo azul escuro. O rico
traje dava-lhe a aparência de alguém que tivesse nascido
verdadeiramente para uma vida de privilégios. E isso era tão
extraordinário e tão novo que ficou a olhá-la, surpreso. Se
Verena tivesse sobrevivido, devia ser exatamente como ela.
Fez-lhe uma cortesia formal.
— My lady, conceda-me a honra de cavalgar em minha
companhia, neste dia tão lindo.
Ela acenou com a cabeça.
— Ficarei encantada de acompanhá-lo. Lorde Rathborne.
Giles apoderou-se de seu braço e sentiu-a tremer.
Tranquilizou-a.
— Não tenha medo. Você os deslumbrará.
Vera sorriu e, desde esse momento, uma leve esperança
tomou o lugar de sua inquietação. Era bom que fosse
experimentar seu papel em Finch Hall. Dispunha apenas de
três meses para esmerar-se e aprender tudo o que fosse
preciso para passar por um dama.
Partiram para Finch Hall em grande estilo, acompanhados
por criados, uma carruagem com as arcas de roupas e pela
escolta de Giles. Não tinham avançado cinco milhas, quando
foram alcançados por um cavalariço de Rathborne, que
chegava a todo galope.
— Trago-lhe uma carta, my lord— ele anunciou,
explicando que viera a mando de Lady Irma.
Giles empalideceu.
— Aconteceu alguma coisa à minha prima?
— Não, my lord. Lady Irma está bem. — O criado apre-
sentou-lhe um envelope lacrado. — Acaba de chegar de
Hamplon Court.
Giles examinou cuidadosamente o sobrescrito e, em
seguida, o sinete que o autenticava. Ao reconhecer as armas
heráldicas da rainha, abriu-o com manifesta preocupação.
— Por São Jorge! — exclamou, quando se inteirou do
conteúdo.
Seu tom enfurecido espantou Vera.
— Más notícias, my Lord?
Ele não respondeu logo. Precisou de um minuto para se
dominar.
— Parece que temos de mudar nossos planos —
informou, enquanto guardava o envelope no bolso do gibão. —
Vou mandar um bilhete a Sir Francis e a Lady Anne com nosso
pedido de desculpas.
— Por quê, my lord? — indagou Vera, não sabendo ainda
se devia sentir medo ou alívio.
Sua espera foi de curta duração e transformou-se em
choque, quando Giles revelou o conteúdo da carta em voz alta,
para que toda a comitiva o ouvisse:
— Nossa Graciosa Majestade envia saudações a Lady
Verena. Em sua infinita bondade, a rainha expressa sua alegria
e satisfação de vê-la restituída ao nosso convívio.
Sua palavras eram macias como seda, mas seu olhar era
duro. Um nó de apreensão formou-se no peito de Vera,
dificultando-lhe a respiração. Não sabia o que estava para vir.
As mãos de Giles fecharam-se em torno das rédeas,
enquanto ele continuava:
— Quanto ao pedido de tutela, a rainha aceitou-o sob
considerando, my lady. Fomos convidados a ir a Hampton
Court e aguardarmos lá, junto à comitiva da rainha, a sentença
definitiva.
— Para a corte!... — Uma expressão de desalento estam-
pou-se no rosto de Vera. — Quando?
Os olhos dele tornaram-se mais escuros do que o céu
noturno.
— Faça seus arranjos imediatamente. Partiremos no final
da semana.

CAPITULO X

Vera mantinha-se de pé junto à amurada, vendo o rio


correr. Sombras avermelhadas cobriam o Tamisa, o cais de
pedra e as margens relvosas. Um pouco além, a multidão de
telhados de ardósia recortava-se contra o céu de um azul tão
profundo, que parecia envernizado.
De seu posto, ela saboreava o revigorante frescor do ar
outonal sentindo-se tranquila e justificada. Sua missão era sal-
var Thad e seus amigos, e faria isso desempenhando seu papel
com perfeição. Não haveria obstáculo que não ousasse enfren-
tar.
Embriagada com essa súbita confiança em si própria, sus-
pirou de contentamento. Aquela nova vida tinha seus atrativos
e não havia razão para que não os desfrutasse. Era um prazer,
sem dúvida, contemplar o senhor de Rathborne, belo em negro
e dourado, a cabeça altiva coberta com um rico gorro de peles
enfeitado de pedras preciosas.
As outras mulheres deviam estar sentindo a mesma
coisa, a julgar pelos olhares interessados que lhe lançavam.
Mas ele parecia alheio a tudo, o olhar perdido na distância
ilimitada do horizonte.
Deliberadamente e com grande esforço, Vera abandonou
seus devaneios e tornou a debruçar-se sobre a balaustrada.
Outro barco, pintado de azul e dourado, descia o rio, a proa
erguendo-se e abaixando-se numa nuvem de espuma. Seguiu
com o olhar as ondulações do rastro que se desdobravam até a
margem, repleta de botes amarrados sob os salgueiros. Nunca
navegara e estava fascinada com o tráfego do rio, alegre como
uma parada de galantes cavaleiros.
— Adoro a água — disse, virando-se para Giles com os
olhos brilhando de excitação.
Ele acenou, sorrindo, e pôs-se a contemplar aquela
confusão multicolorida através dos olhos dela. Durante um
breve instante de encantamento, lembrou-se da primeira vez
que pisara num barco e de sua mal contida excitação. Algo
vivo e estimulante pairou subitamente no ar. Aspirou-o,
perguntando-se por que ela o fazia sempre recordar sonhos já
quase esquecidos.
— Eu também — confessou-lhe.
O barco deslizava agora ao longo de uma curva. Vera
esticou o pescoço, na esperança de avistar o palácio, situado
além das árvores. Havia uma promessa de mistério na história
de Hampton Court, assombrado, segundo se dizia, pelos
fantasmas das infelizes esposas do rei Henrique.
A embarcação completou a curva e as vermelhas
chaminés do palácio apareceram acima das árvores copadas,
seguidas por uma série interminável de torres e torreões. O
instante em que os portões do palácio ficaram à vista,
experimentou uma sensação de irrealidade. Nem mesmo as
mais loucas visões poderiam tê-la preparado para aquele
espetáculo: jamais pensara que Hampton Court pudesse ser
tão imenso e tão esplêndido!
Súbito, toda a sua segurança dissipou-se, substituída pelo
temor: o que a aguardava naquele mundo que não era o seu?
Era ali que a batalha seria ganha... ou perdida.
Giles percebeu sua luta íntima e estendeu-lhe a mão.
— Não se preocupe. Não é tão assustador quanto parece.
Vera apertou-a com força, grata diante daquela nova ma-
nifestação de solidariedade. Seus olhos se encontraram. Fica-
ram a fitar-se, perdidos, sozinhos no espaço, suas emoções
atingindo um grau inconcebível de intensidade.
Uma leve lufada de vento agitou a névoa cinzenta do
gorro de peles de Giles, quando ele inclinou-se para murmurar:
— Bem-vinda a Hampton Court... Lady Verena.
Nesse momento o barco encostou no embarcadouro e
seus rostos se tocaram. Num gesto instintivo, ela apoiou-se
contra ele, uma das mãos em seu peito vigoroso. Sentiu-se
segura e protegida e desejou que aquele momento se
eternizasse.
Mas durou só alguns segundos. Alguém esbarrou neles ao
passar e Giles afastou-se para lhe dar passagem com um
pedido de desculpas. Depois, recobrado seu equilíbrio
emocional, ele endireitou-se com ar sério. Subitamente, temeu
por ela. Cometera uma imprudência, ao trazê-la para Hampton
Court. Só Deus sabia o que podia acontecer a uma criatura
inocente numa corte tão cheia de intrigas!
Tinha como desculpa a necessidade de proporcionar uma
vida digna a seu povo. Mas isso era querer justificar sua
conduta e calar sua consciência. Movido por súbito impulso,
sugeriu:
— Ainda não é tarde demais para acabarmos com esta
farra.
— Que quer dizer? — perguntou Vera, fitando-o com ar
de surpresa.
— Será preciso fingirmos? — ele retrucou, exasperado. —
Ora, você sabe o quero dizer!
Ela compreendeu tudo e o atacou duramente, em voz
baixa:
— Não pertenço à nobreza, my lord, mas minha palavra
vale tanto quanto a sua. Prometi que desempenharia meu
papel até o fim. Pretendo honrar minha promessa!
Depois passou por ele e encaminhou-se para a prancha
de desembarque. Mas, ao colocar os pés no cais de pedra, um
calafrio de medo percorreu-lhe a espinha. Sua sorte estava
lançada. Não haveria retorno.
Giles alcançou-a com duas passadas e insistiu,
imprimindo peso às palavras:
— Se as coisas escaparem ao nosso controle, lembre-se
de que eu lhe devolvi a palavra dada e que você a recusou.
Dito isto, ele a guiou para o Portão Ana Bolena e suas
imponente torres octogonais. Enquanto o atravessavam, Vera
olhou-o de soslaio. Aquelas feições duras como granito con-
venceram-na de que os momentos idílicos passados no barco
não tinham sido mais do que um claro de magia, perdido logo
depois de entrevisto.
Suspirou imperceptivelmente e seguiu-o. Transpuseram
outro portão semelhante ao primeiro, que se abria para o pátio
interno, e a fachada do castelo mostrou-se por cima da arcada
do rés-do-chão, refulgente sob os reflexos dourados do sol.
Esqueceu-se de tudo, menos do prazer que essa visão lhe
causava.
— É esplêndido! — exclamou, percorrendo com o olhar
todas as janelas ogivais e todas as torres ornamentadas.
Giles acenou vagamente com a cabeça, pensativo. Que
ideia aconchegá-la contra si! E à vista dos outros passageiros e
também de alguém que estivesse à janela do palácio...
Precisava controlar-se!
Prosseguiram caminho em meio às sussurradas
exclamações de Vera, que admirava este ou aquele aspecto da
silhueta feudal que se recortava no céu.
— Veja como toda a fachada recebe luz! — ela observou,
entusiasmada.
Um casal que passava lançou-lhe um olhar zombeteiro e
a mulher riu, antes de virar-se. Seu evidente deslumbramento
estava chamando a atenção dos esnobes cortesãos.
— Pare de olhar para tudo com esse ar embasbacado! —
disse Giles, apertando-lhe o braço com força. — Vão torná-la
por uma campônia.
Vera livrou-se com um protesto:
— O senhor está me machucando!
— Bem... às vezes eu perco a paciência. Tato e
diplomacia não são o meu forte — ele confessou.
— Como quer que eu não me entusiasme se nunca vi
nada semelhante em toda a minha vida? Diferentemente do
senhor, não nasci em berço de ouro!
Giles deu uma risada breve, subitamente desarmado.
— Bem, senhora, isso é outra história.
Não houve mais tempo para que continuassem a
conversa. Haviam chegado à esplêndida arcada estriada de
sombras curvas, sob a qual situava-se uma porta monumental,
de madeira entalhada.
Dois andares acima, uma janela abriu-se subitamente e
uma linda mulher de cabelos escuros inclinou-se sobre o
peitoril.
— Lorde Rathborne! — ela chamou alegremente.
Giles não deu mostras de tê-la ouvido. Impassível, abriu
a porta e empurrou Vera para dentro.
— Espere! — ela disse. — Não ouviu que o chamavam?
— Não ouvi nada — ele murmurou entre dentes.
— Mas eu ouvi. E bastante claramente!
— Era Lady Letícia Lattimore — ele admitiu a contragosto.
— Ela é lady só no título, não no caráter. Não gostaria que
você fizesse sua primeira, aparição na corte sob a sua tutela.
Vera ficou pensativa.
— Compreendo seus motivos. Mas não sou uma criança.
Giles empurrou-a bruscamente para uma alcova e
agarrou-a pelos ombros.
— Ouça, Vera. Em questões de sociedade, você é
aterradoramente ingénua. Não sabe...
Ele interrompeu-se, não permitindo que a cólera o domi-
nasse. Afinal, era o único culpado por aquela situação. Súbito,
pensou em tomá-la pelo braço e afastá-la dali. antes que sua
inocência fosse corrompida por uma rede de intrigas. Queria
levá-la consigo, educá-la e fazer dela uma mulher completa em
corpo, intelecto e espírito.
— Gostaria de nunca ter tido a ideia de trazê-la para cá!
— Tem medo que eu o envergonhe diante de seus
amigos? — ela perguntou, altiva.
— Não se trata disso. Não vê que estou preocupado com
sua sorte?
Vera desvencilhou-se dele com um safanão.
— Vá para o diabo com toda a sua preocupação! —
gritou-lhe, sem meias palavras.
Ele agarrou-a, rápido, pela cintura.
— Por Deus, criatura! Fale mais baixo!
Uma clara e imperiosa voz de mulher soou atrás deles.
— Parece que Lorde Rathborne continua sendo incapaz de
resistir a um rostinho bonito. Pensei que já tivesse aprendido a
controlar seus impulsos!
Sufocando uma exclamação, Giles rodou nos calcanhares.
— A rainha! — ele sussurrou para Vera.
Ela ficou imóvel como uma estátua de pedra, a respiração
em suspenso. A rainha!...
Era Sua Majestade em toda a sua glória e esplendor, a
figura central, segura e altiva, de um grupo colorido de damas.
Esguia, lânguida, uma das mãos pousada ligeiramente na
cintura, ela deslizou na direção deles, os olhos ambarinos
fitando-os do alto de um rosto pálido, insatisfeito, encantador.
Giles dobrou automaticamente o joelho, aprofundando-se
numa mesura.
— Majestade.
Vera voltou a si de seu assombro e curvou-se numa reve-
rência. Imaginara sua apresentação à soberana como algo
muito mais formal do que um encontro no corredor. E no calor
de uma discussão com Sir Giles!
Houve um longo e opressivo silêncio. Giles estava
desolado. A rainha era muito severa no que dizia respeito à
moralidade. Não tolerava intrigas amorosas nem escândalos no
palácio. E, o que ela vira, fazia-a supor que ele se deixara levar
pelo descontrole de um amante rejeitado.
— My lord de Rathborne — retomou Elizabeth com gélida
polidez — um homem com sua aparência e posição tem o
direito de pretender uma dama menos relutante em conceder
seus favores.
Antes que ele pudesse retrucar, Vera endireitou-se e res-
pondeu por ambos.
— Com sua permissão, Majestade, mas houve um mal-
entendido. Não foi uma discussão de namorados que a senhora
presenciou.
— Não? — fez Elizabeth, curiosa, examinando-a da
cabeça aos pés.
— Lorde Rathborne estava reprovando meus modos.
Talvez eu tenha recebido uma educação inadequada, e essa é
a única escusa que posso encontrar para o meu procedimento.
Peço-lhe que me perdoe.
Elizabeth fez um sinal.
— Que tem a dizer, my lord?
— A culpa é toda minha, Majestade. Fui muito duro em
minhas reprimendas — confessou Giles, colocando-se ao lado
de Vera, como que para protegê-la. Ela era honesta e corajosa.
Não sabia que seu futuro estava em jogo e não mereceria
sofrer por isso, pois muito dependia dele.
A rainha adiantou-se até ver a luz incidir sobre o rosto de
Vera.
— Um botão de rosa e sem nenhuma afetação —
observou, depois de um exame minucioso. — Alta e
encantadora como a rainha da Escócia.
Elizabeth dirigiu-se a Giles.
— Eis aí um enigma, my lord. A jovenzinha não ousa
revelar-se muito. O senhor acha que a conhece mas ainda não
a conhece como deveria. Quem é ela?
Giles sentiu que a tensão o abandonava.
— Majestade, permita que lhe apresente minha pupila,
Lady Verena Stanton.
Vera esboçou um sorriso envergonhado e aprofundou-se
em outra reverência. A rainha a fez erguer e acariciou-lhe o
rosto.
— Você tem a mesma expressão de Allys, autêntica,
temerosa... — Ela sorriu graciosamente para Giles. — Estou
satisfeita que a tenha trazido para o nosso convívio. E quanto a
dizer que ela é sua pupila, my lord, não acha a afirmação
prematura? Lady Verena não é ainda sua pupila. E talvez
nunca o seja.
Elizabeth fez um sinal às suas damas, ainda perplexas
com a ousadia de Vera. Antes de afastar-se, completou:
— Entregue nossa jovem aos cuidados de Lady Stafford.
Há uma vaga em aberto no círculo de minhas damas. Talvez
Lady Verena seja escolhida para preenchê-la.
Giles sentiu que a situação escapava ao seu controle e
quis protestar veementemente. Mas dominou-se. Um erro de
sua parte podia ser irreparável.
— É muita bondade de sua parte, Majestade. Como vê,
Lady Verena ficou sem palavra diante da honra que a senhora
tão amavelmente lhe concedeu — murmurou, enquanto pen-
sava: "Aonde, com os diabos, ela quer me levar?"
As palavras seguintes da soberana o disseram de maneira
bastante clara:
— Se Lady Verena me agradar, talvez eu me decida a ar-
ranjar-lhe um marido rico.
Furioso, Giles ficou a observá-la até vê-la desaparecer na
curva do corredor junto com seu séquito. Por onde começar,
agora?
Após aquele início infeliz, Giles saiu à procura de um pos-
tulante que abraçasse sua causa e a submetesse ao severo es-
crutínio da rainha. Precisava agir segundo as regras para que o
veredicto lhe fosse favorável.
O que o surpreendia bastante era a atitude discreta de
Vera, que o acompanhava em suas perambulações sem um
comentário nem uma queixa. A caminho de outra ala do
palácio, onde ele iria entrevistar-se com Sir Francis Drake, ela
entusiasmou-se.
— Vou finalmente conhecer o grande herói!
— Infelizmente, não será desta vez. Trataremos
unicamente de negócios.
Frustrada, ela deu dois ou três passos, mas logo voltou-
se para ele.
— Estou disposta a cooperar, mas faz horas que eu o
estou seguindo feito um cachorrinho! Será que neste enorme
palácio não há um lugar onde eu possa descansar
tranquilamente?
Giles franziu a testa, com ar de desagrado.
— Acho que está exagerando. Além ,do mais, não posso
fazer nada antes de falar com Lady Stafford. É ela a
encarregada de escolher seus aposentos. E isso encerra a
questão.
Para sua surpresa, Vera riu, como que se desculpando de
sua própria intensidade.
— Deve me achar obstinada como uma mula, não é? Era
o que Thad vivia dizendo. Mas aqui tudo é muito confuso e isso
me deixa nervosa.
Ele encolheu os ombros, com ar de derrota. As ante-salas
e os corredores repletos de Hampton Court produziam-lhe o
mesmo efeito. Retornaria de bom grado à liberdade de
Rathborne, quando seus assuntos na corte estivessem
concluídos.
— Não gostaria de perdê-la de vista nem por um
momento — afirmou. Viu, porém, a expressão de
desapontamento dela e acrescentou: — Há um lugar onde você
pode descansar sem ser perturbada. Mas tem que me dar sua
palavra de que seguirá minhas instruções.
— Prometo que seguirei, my lord. Mas saiba que eu sei
cuidar de mim.
— Você é uma pequena atrevida. O homem que fizer a
loucura de casar-se com você terá que viver o resto da vida
sob o seu domínio!
Vera não retrucou. Vencera a batalha, mas não a ponto
de vangloriar-se.
Giles tomou-lhe o braço e conduziu-a, através de uma
série de salões interligados por meio de portas, para a ampla
escadaria. No meio do caminho, uma explosão de risos o fez
estacar bruscamente. Dois nobres cortesãos atravessavam o
hall conversando alegremente.
— Alençon!... sussurrou, acompanhando-os com o olhar
até que dobrassem o corredor.
Ela já ouvira falar do nobre francês que aspirava à mão
da rainha. Os rumores de um casamento entre ambos tinham
tido amplas repercussões no país e haviam chegado até as
profundezas da floresta.
Os conselheiros de Elizabeth estavam divididos sobre o
assunto. Alguns alegavam como motivo de impedimento o fato
do duque ser vinte anos mais moço do que a rainha. Ainda
assim, uniões estranhas tinham acontecido através dos
tempos, sempre que estavam em jogo os supremos interesses
da nação.
Quando o campo ficou livre, prosseguiram caminho.
— Ele não tem encantos — observou Vera, passado o pri-
meiro assomo de surpresa. — Mas dizem que é muito
cativante. Acha que a rainha irá se casar com ele?
— Eis aí a parte estranha do caso. A rainha sente-se
atraída por ele e, ao mesmo tempo, o usa para manter à
distância os inimigos da Inglaterra. Depois que ele tiver servido
aos seus propósitos, ela o mandará de volta ao seu país. Ouça
bem o que eu digo.
Chegaram a uma ampla passagem abobadada. Enquanto
Vera deixava-se cair, com um suspiro, nas almofadas de um
banco, ele a avisou:
— Procure não chamar atenção e, sobretudo, não fale
com ninguém. Voltarei logo.
Vera tirou os sapatinhos e recostou-se no banco. Pelas
pálpebras semicerradas, podia ver os criados indo e vindo, ata-
refados. Após um momento de descanso, começou a entediar-
se. Finalmente convencida de que Giles não viria tão cedo,
levantou-se e, de sapatinhos na mão. deu alguns passos, evi-
tando a arcada principal.
Enquanto caminhava de um lado para outro, descobriu
uma pequena porta oculta sob uma tapeçaria. Abriu-a e viu-se
num jardim recluso, fresco e verde, aberto para o céu azul. Por
um momento, sentiu-se ofuscada com tanta luz.
Hesitante, seguiu por uma aléia de tílias, ao longo do gra-
mado. Folhas secas revoluteavam acima de sua cabeça e dis-
persavam-se no ar. Continuou a avançar, sentindo um
assombro cada vez maior. Ao findar de uma curva, um
pequeno lago surgiu à sua frente, dominado por uma branca
estájua de Diana. Libélulas azuis pairavam sobre a superfície
encrespada pela brisa e nenúfares amarelos flutuavam
serenos, junto aos rebordos de pedra.
Ficou extasiada durante um momento e tão quieta quanto
aquele jardim isolado do mundo. Não ouviu o ruído de passos.
Quando se deu conta de que havia mais alguém ah, já era
tarde demais.
Lembrando-se da advertência de Giles, refugiou-se sob os
ramos de uma árvore escura e farfalhante. Quase no mesmo
instante, dois nobres cortesãos surgiram da curva da aléia e
pararam a pouca distância dela. Conteve o fôlego e ficou à
espera.
— Esqueça suas dúvidas, Simmier— disse um deles, com
voz calma e educada. — Eu, também, posso usar de
artimanhas.
— Não se deixe lograr por ela, Monsieurl A rainha não
tem nenhuma intenção de se casar!
— Afirmo-lhe que Elizabeth me escolherá para marido.
Ela mesma me disse isso. Antes, porém, terá de preparar o
Conselho.
Vera ficou perplexa. Um dos homens era o mesmo que
entrevira no corredor. Baixo, moreno, um nariz aquilino
dominando um rosto comum. Mas a boca e o sorriso eram
agradáveis, os gestos graciosos e os olhos irradiavam
inteligência e bom-humor.
Então aquele era o famoso Duque de Alençon, irmão do
rei da França, que viera à Inglaterra para fazer a corte à
rainha!... Inclinou-se para vê-lo melhor, através.do cortinado
de folhas. Um gracioso cãozinho branco que seguia os dois
homens farejou-a e enfiou-se sob os ramos. Ao vê-la, lateu e
agitou o rabo, à espera de carícias.
Vera encolheu-se toda, pedindo a Deus que o duque e
seu acompanhante se afastassem antes que sua presença
fosse notada. Mas eles davam a impressão de que iriam
permanecer ali para sempre.
Simmier suspirava e agitava as mãos, num gesto
tipicamente gaulês.
— Ela o está usando para manter a Espanha ao largo!
— Isso também é verdade. Admito sinceramente que as
circunstâncias são embaraçosas. Mas tenho certeza de que
conseguirei a mão da nobre dama... — Alençon fez uma
elegante mesura à estátua de Diana — e que conseguirei
enternecer seu coração de pedra.
— Eu gostaria de acreditar nisso.
O duque esboçou um sorriso encantador.
— Elizabeth me ama, meu caro amigo. Sou ou não sou o
seu "querido francês"?
— Há demasiada pantomima política nisso, monsieur.
— Não vê que ela usa sobre o coração o broche de
diamantes que eu lhe dei? É tudo uma questão de tempo e
perseverança, mon cher.
Simmier encolheu os ombros, exasperado.
— Parece que perdi meu fôlego.
— E seu tempo. Se não me engano, você tem um
encontro marcado...
Os dois homens afastaram-se lentamente e Vera deu um
longo suspiro de alívio.
— Fora! — ordenou em voz baixa ao cãozinho.
Já se preparava para sair de seu refúgio, quando os
ramos foram afastados e o rosto de um homem apareceu pela
entreaberta das folhagens.
— Oh! — fez ele. — Estava à procura de meu cãozinho...
— Eu... eu... — balbuciou Vera, ao reconhecer Alençon.
— Assustei-a, mademoisellel
— Um pouco — ela murmurou, acanhada. Venha, por
favor. Há um banco confortável aqui — ele convidou e todo o
seu rosto era um grande sorriso.
Vera saiu do meio dos arbustos com uma desculpa na
ponta da língua.
— Perdi um brinco, monsieur e voltei para ver se o
achava.
Os olhos inteligentes de Alençon examinaram-na com
leve desconfiança.
— Estranho lugar para uma dama da corte perder seu
brinco!
Ela não tomou conhecimento da insinuação.
— Não sou uma dama da corte, my lord, mas uma
simples visitante. Cheguei hoje a Hampton Court.
Alençon ergueu as sobrancelhas, ainda em dúvida. A
jovenzinha apresentava-se bem-vestida, mas suas maneiras
eram deliciosamente canhestras. Olhou para seus pés calçados
apenas de meias e sorriu. Talvez ela estivesse dizendo a
verdade.
— Permita-me, mademoiselle — disse, fixando-lhe os
traços. Era realmente bonita.
Recolheu seus sapatinhos e conduziu-a a um banco de
jardim. Depois, sem pedir-lhe permissão, calçou-a. Ela aceitou
seu auxílio com uma naturalidade que o deslumbrou. "Uma
jovem mulher muito intrigante", pensou.
Mudou de tática e perguntou-lhe, num francês rápido:
— Como se chama, senhorita?
Naquele preciso momento, uma voz chamou alto:
— Vera, onde está você? — Era Giles que vinha buscá-la.
Ela o aguardou, temerosa. Ele veio caminhando devagar.
Viu-a, mas não viu Alençon, que estava oculto pela
folhagem.
— Mas o que há com você? Não lhe disse para esperar
por mim? — explodiu, mostrando-se desnecessariamente
autoritário. Depois, ao perceber que não estavam sós, ficou
embaraçado.
O duque sorriu maliciosamente.
— Compreendo agora por que estava procurando seu
brinco num lugar tão... estranho. E percebo que sou demais
aqui.
Ele recuou respeitosamente.
— Adieu, mademoiselle. Espero vê-la novamente.
Quando Giles alcançou-a. Alençon tinha desaparecido e o
cãozinho com ele.
— Primeiro a rainha, agora Alençon!... Será que não
posso deixá-la sozinha nem por um instante?
— Eu me sentia entediada.
— Você se sentia entediada... — repetiu Giles
sarcasticamente. — E por isso resolveu dar um passeio!
Vera estava excitada demais para retrucar.
— Monsieur... falou comigo em francês!
Giles levantou os olhos para o céu. Outra mulher
encantada com o pequeno sedutor!
— Certamente, isso não é motivo para que você fique tão
excitada! — resmungou.
— Mas Giles... Ele falou em francês e eu... eu entendi!
Ele fitou-a como se ela estivesse louca.
— Não é possível! — disse-lhe também em francês.
— Certamente que é! — ela respondeu. — Está vendo
como é verdade?
— Não abuse de minha paciência, mocinha! Você
aprendeu francês no convento.
— Oh, não! As irmãs eram simples religiosas. Não tinham
capacidade para ensinar francês.
Giles agarrou-a pelo braço e indagou ansiosamente:
— Nesse caso, quem é você? — E sem esperar resposta:
— Diga a verdade!
Ela empalideceu e seus grandes olhos violetas encheram-
se de lágrimas.
— Já lhe disse tudo o que sabia sobre o meu passado —
murmurou, um soluço escapando-lhe da garganta.
Não puderam prosseguir na discussão naquele momento,
pois a porta do jardim tornou a abrir-se e uma senhora de
meia-idade pequena e magra, adiantou-se com um sorriso cor-
dial.
— Sou Lady Stafford. A rainha designou-me para assisti-
la, Lady Verena. Eu a vi do balcão.
Vera olhou para cima e perguntou-se, confusa e
envergonhada, se seu estranho encontro com Alençon fora
também presenciado.
— Se quiser vir comigo — continuou a gentil dama — eu
lhe mostrarei seus aposentos.
Desde que não havia mais possibilidade de falar a sós
com Giles, Vera deixou-o para acompanhar a atendente da
rainha. Mas sentiu sua falta imediatamente.
Das sombras da arcada, dois homens observaram Vera,
quando ela passou em companhia de Lady Stafford. Nenhum
dos dois deixou de notar seus grandes olhos pensativos. O
mais alto e o mais velho seguiu-a com um olhar de conhecedor
de belezas femininas.
— Caro Lumleigh, acho que fui atingido pela flecha de
Cupido! Veja que rosto... que olhos! — Ele suspirou. — Acalme
a perturbação de minha alma e diga quem é essa doce
criatura.
Os olhos de Lumleigh brilharam de malícia.
— Essa doce criatura, Charpentier, é Lady Verena,
herdeira dos bens de Stanton.
— Oh, a pupila de Rathborne!... — O francês tornou a
suspirar. — Nesse caso, não há esperança para mim.
— Por que não? Não há nenhum compromisso sério entre
os dois.
Charpentier ficou surpreso.
— Tem certeza?
— Soube-o de alguém de minha confiança. Eles foram
vistos discutindo e a rainha ficou bastante desgostosa. Como
vê, pode cortejar Lady Verena sem receio. Talvez venceu a
batalha!
— Você me devolve a esperança, meu amigo!
Um sorriso brincou nos lábios bem-desenhados de
Charpentier. Ali estava a oportunidade de aumentar seu poder,
bem como de render culto à beleza.
— Mas há um problema — declarou.
— Qual?
— Terei que pedir permissão a Rathborne para cortejá-la
e eu prevejo dificuldades nesse sentido. O homem passou a
detestar-me desde o dia em que lhe arrebatei a linda Jane
Lindsey.
Lumleigh deu de ombros.
— Ele não tem do que se queixar. Zarpou para a costa
setentrional da América do Sul e deixou a donzela sozinha. Mas
não se preocupe desnecessariamente. A despeito dos esforços
de Rathborne, a rainha ainda não o nomeou tutor de Lady
Verena. A bela herdeira e suas consideráveis propriedades
serão do homem que satisfizer as exigências de nossa
soberana.
Charpentier esfregou as mãos.
— Ótimo! Pedirei a Alençon que me ajude. Uma palavra
dele nos reais ouvidos de Sua Majestade e minha causa estará
ganha!
— Por Deus, homem! — exclamou Lumleigh, não se con-
tendo. — Está querendo se divertir à minha custa ou está fa-
lando sério?
— Quando dinheiro e amor estão em jogo, meu amigo, eu
falo sempre a sério. — O francês sorriu, sonhador. — Não
tenho especial predileção pelas pálidas beldades inglesas, mas
essa criatura... Oh, não descansarei enquanto não a tiver!
Lumleigh sacudiu a cabeça, espantado.
— Você parece ter certeza da vitória!
— E tenho, mon ami. Lady Verena e sua fortuna estarão
em minhas mãos antes que o mês termine. — Ele fez uma
pausa e acrescentou sedosamente: — Acredite, saberei
apreciar tanto uma quanto a outra.

CAPITULO XI

Lady Stafford conduziu Vera a um quarto de hóspedes na


galena superior.
— Este é o aposento que lhe foi destinado, Lady Verena
— ela anunciou, abrindo a estreita porta com as armas dos
Tudor. — É um tanto acanhado, mas lhe servirá apenas nas
noites em que não deverá atender a rainha. Passará as outras
num dos confortáveis aposentos ao lado do Salão de Audiência
ou da sala particular de Sua Majestade.
— Fico-lhe grata, Lady Stafford. Está sendo mais do que
bondosa.
— Pobre menina! Deve estar exausta. Descanse um
pouco antes do jantar.
— Obrigada, my lady. — Vera fez-lhe uma reverência.
Sua mentora era solícita e afável, mas tinha necessidade de
ficar a sós por alguns instantes.
Lady Stafford afastou-a e ela deu alguns passos e olhou
cm torno. Esperava algo inteiramente diferente. O quarto,
quase lodo ocupado pelas caixas e arcas de roupa que trouxera
de Rathborne, era abafado, escuro e sem conforto. Na alcova,
cortinados de lã cobriam a estreita cama de plumas. A jarra e a
bacia para as abluções estavam colocadas sobre uma pequena
cómoda. Um espelho, um tapete, e era tudo.
Quando seus olhos se habituaram à semi-obscuridade,
descobriu um reticulado deslizante, que deixava filtrar a luz
que chegava por uma abertura na parede. Espiou através dele
e percebeu que a vista limitava-se a uma seção do telhado de
ardósia e a uma nesga de céu entre duas altas chaminés.
Desolador. Não compreendia por que toda jovem encarava
como um sonho dourado a perspectiva de tornar-se dama da
rainha! Uma batida na porta tirou-a de suas divagações.
Aguardou um momento. Só quando ouviu a voz de Giles,
chamando-a, foi que se decidiu a abri-la.
— Eu o convidaria a entrar, senhor — disse-lhe, saindo
para o corredor. — Mas receio que não haja espaço para nós
dois.
Giles não sorriu.
— Pensei que fosse gostar.
Vera hesitou, mas acabou dizendo o que pensava:
— Preferia dormir ao ar livre. Sinto-me como um
animalzinho numa toca.
— Acho que você exagera.
— Veja por si mesmo.
Ele enfiou a cabeça no vão da porta e teve que concordar
com ela.
— Nem um pouco acolhedor. Mas será por pouco tempo,
minha querida. Dentro de algumas semanas, estaremos de
volta a Rathborne.
Ela animou-se.
— E mesmo? Giles assentiu.
— Preciso fazer uma visita de cortesia ao ministro do
Tesouro. Se me atrasar, encontre-se comigo no Hall dos
Banquetes. Até lá, tenha juízo. Não é exigir muito, é?
Vera concordou, sem palavras.
— Tenho um presente para você — ele prosseguiu,
tirando urna bolsinha de camurça do bolso. Depois de afrouxar
os cordões, fez deslizar na palma da mão um cordão de ouro.
— Para celebrar sua primeira visita à corte.
Vera lançou uma pequena exclamação de surpresa e
ergueu-o. O cordão sustentava um medalhão com a figura em
relevo de um cisne cravejado de pedras preciosas.
— E lindo! E parece muito antigo— Fitou-o, hesitante—
Por que está me dando um presente tão caro? Giles demorou
um pouco para responder.
— Não sei. Descobri-o na loja de um ourives. O cisne me
fez pensar em você.
Vera enrubesceu e não soube o que dizer. Por que em
certas ocasiões, como aquela, ele tornava-se quase carinhoso,
ameaçando confundi-la?
Giles tirou-lhe o enfeite das mãos e a fez voltar-se.
— Deixe-me ajudá-la.
Ela ficou imóvel, quase hirta, ciente o tempo todo do
toque macio e cheio de calor de seus dedos, que deixavam
uma trilha de fogo por onde passava... Fechou os olhos para
saborear melhor aquela sensação deliciosa. ""Abrace-me",
desejou, fremindo de impaciência. Que sentiria agora, se ele
tornasse a beijá-la como já o fizera?
A mesma emoção dominava Giles, provocando-lhe um
ardor incontrolável. Impulsivamente, ele curvou-se para beijar
aquela nuca cheirosa, suas mãos ansiosas descendo até
encontrarem a curva suave dos seios. Sentiu-os, através do
vestido, e acariciou-os.
Súbito, endireitou-se, envergonhado. Um gesto, um nada
bastava para fazer sua resistência enfraquecer! Felizmente,
aquela loucura não durara mais do que poucos segundos. Mas
como tudo se tornava difícil, exigindo esforço e luta!
— Pronto! — anunciou, com voz controlada.
Ela virou-se para que ele a apreciasse. O colar combinava
às mil maravilhas com sua beleza virginal.
— Irá deslumbrá-los, esta noite — disse, com
sinceridade.
— Prevejo que terei de desembainhar minha espada uma
dezena de vezes, para manter à distância seus admiradores.
— Os admiradores de minha suposta fortuna —
murmurou Vera. imersa em repentina tristeza. — Sei quem
sou, my lord. Um patinho feio com as plumagens de um cisne.
— Engana-se, querida. Você é um pequeno cisne, recém-
implumado e ainda inseguro de suas asas. Mas ainda assim um
cisne.
Quando ele saiu, Vera sentou-se num tamborete, aos pés
da cama. Sentia uma angústia atenuada por uma emoção des-
conhecida, de uma doçura profunda. Giles tornara-se impor-
tante demais para ela. Só se sentia bem perto dele e isso a
assustava. Não pertencia a seu mundo. Não obstante, lutaria
por ele e não o abandonaria em nenhum momento, até que a
rainha lhe concedesse a gerência dos bens dos Stanton. Aí,
então, voltaria a vida errante dos fora-da-lei.
Melhor assim, queria ir embora, quanto mais longe
melhor! Não tinha intenção alguma de permitir que a rainha
lhe arranjasse um marido, assim como não quisera que Thad a
levasse ao casamento. Afinal, nem todas as mulheres eram
talhadas para a vida conjugal!
Sentindo-se muito só no mundo, enxugou a lágrima
solitária que lhe aflorou ao canto dos olhos. Subitamente,
reagiu e pôs-se a rir. Um pássaro pousara no peitoril da janela
e a olhava com curiosidade, entortando comicamente o
pescoço.
— Amigo tordo, você riria também, se pudesse ler meus
pensamentos!
O pássaro pipilou e voou para longe. Ainda sorrindo, Vera
despiu-se e meteu-se na cama, afundando no colchão de
penas. Adormeceu quase que imediatamente.
Quando acordou, ficou surpresa ao verificar que
escurecera. Apressou sua toalete e acabou se decidindo por um
esplêndido vestido de brocado cor de rubi, entreaberto sobre
uma onda de rendas. A gola branca de rufos engomados,
semeada de rosetas de ouro com um cabochão central de
granada, era a moldura perfeita para o medalhão que Giles lhe
dera.
Preparou-se com delicados e infinitos cuidados. Ao
terminar, procurou o espelho e examinou-se atentamente.
Satisfeita com o resultado, saiu para o corredor, deslizando por
entre um torvelinho de pessoas que não conhecia, e deixou
que aquele fluxo humano a conduzisse até o Hall dos
Banquetes.
Ainda que ninguém lhe dirigisse a palavra, percebeu que
era alvo de olhares furtivos. E quando sentiu que lhe tomavam
o braço, retraiu-se, sobressaltada.
— Giles! — exclamou, ao virar-se e reconhecer seu tutor.
Seu alívio era tão evidente que, ao invés de sorrir, ele ir-
ritou-se.
— Achou que eu a abandonaria? Pois faz meia hora que
estou à sua espera!
Com gestos bruscos de seus braços vigorosos, ele pôs-se
a abrir caminho por entre os grupos de pessoas que se
aglomeravam nos corredores e guiou-a pelo salão apinhado,
cintilante de luzes e cores, de brocados de ouro e prata, de
diademas preciosos.
Sentaram-se à mesa que lhes fora destinada, sob os
olhares distantes das damas de uma tapeçaria gótica. Quase
no momento em que Giles se acomodou, um pajem acercou-se
dele apressadamente e sussurrou-lhe um recado por cima do
ombro. Ele levantou-se e escusou-se com uma ligeira
inclinação.
— Desculpe-me, Vera. Voltarei num instante. Durante mi-
nha ausência, fique longe das confusões.
— My lord não precisa temer nada — ela afirmou,
disposta a entregar-se aos prazeres da mesa.
O jantar começou a ser servido sem que Giles tivesse
aparecido. Criados de libré passavam com bandejas
transbordantes de iguarias: peixes, veados, tortas e faisões
enfeitados com suas próprias plumas. Vera lembrou-se das
refeições simples, consumidas junto à fogueira, na clareira da
floresta, e o sorriso que começava a insinuar-se em seus lábios
extinguiu-se.
Fechou os olhos por um momento, pensando nas
estranhas conjunções de circunstâncias que á impediam de
voltar para lá. Quando os reabriu, viu um estranho sentado no
lugar de Giles. Um homem bonito, moreno, de cabelos e olhos
castanhos. Olhou-o detidamente e reconheceu-o como um dos
integrantes da comitiva do Duque de Alençon. Ele fitava-a com
ar preocupado.
— Não está passando bem, ma chériel — perguntou-lhe
com afetada galanteria.
O tom solícito de sua voz surpreendeu-a e animou-a.
Esboçou-lhe um sorriso tímido.
— É apenas tristeza, my lord. — Seus olhos encheram-se
de lágrimas. — Estava me sentindo inútil e solitária.
Ele inclinou-se ainda mais para ela, insinuante e
encantador.
— Se está à procura de braços vigorosos e de um largo
peito onde apoiar sua cabecinha solitária, não precisa procurar
mais! Ficarei feliz em abrigá-la em minha cama.
Ela o fitou com tamanha surpresa e indignação, que ele
retraiu-se, certo de que cometera um engano. As damas da
corte eram mulheres de sociedade, estavam habituadas à
galanteria, às distrações e aos prazeres. Mas aquela mocinha
parecia a própria imagem da virtude.
— Vejo que é nova na corte. Não está habituada aos
galanteios.
— Não a galanteios tão vulgares, my lord.
Charpentier se recompôs imediatamente. Aquela
senhorita inglesa era realmente original! Lançou-lhe um sorriso
encantador, destinado a abrandá-la.
— Admito que minhas palavras foram ousadas demais,
mademoiselle. Mas não passaram de uma tentativa desajeitada
de fazê-la sorrir.
Seu arrependimento parecia sincero e a cólera de Vera
desfez-se. Apesar disso, ela não quis deixá-lo pensar que
tolerava sua ousadia.
— Fiquei perplexa, my lord. Não estou habituada aos cos-
tumes fáceis da corte.
— Mereço sua repreensão, mademoiselie. Peço-lhe que
me perdoe — murmurou o francês, com voz quente e o olhar
doce. Depois, contrito, tomou-lhe a mão e levou-a aos lábios.
— Permita que me apresente. Sou Charpentier, secretário de
Sua Graça, o Duque de Alençon.
Giles parou no limiar do salão e esquadrinhou-o.
Vislumbrou os cabelos dourados de Vera no instante em que
Charpentier inclinava-se confidencialmente para ela. Seu
sangue ferveu. O francês era um patife sem escrúpulos, além
de um sedutor profissional.
Tudo quanto ouvira segredar sobre o passado do
secretário do duque veio-lhe de novo à mente. Engravidara
uma jovem francesa de família nobre, que se dera com
ingenuidade, quando ele lhe prometera casamento. Acabado o
capricho, abandonara-a miseravelmente, com a desculpa de
que a moça se entregara levianamente e que, depois, perante
o irreparável, inventara uma história que o comprometia.
A infeliz voltara para casa desonrada e a família fechara-
lhe as portas. Desamparada, sem ninguém que a socorresse
em sua aflição, ela pusera fim à vida, jogando-se nas águas
geladas do Sena.
Vera seria presa fácil daquele homem frio e dissimulado,
incapaz de um sentimento sério, e que, apesar do escândalo
mal abafado, continuava a ter sucesso com as mulheres.
A fisionomia séria, concentrada, adiantou-se pelo salão
repleto, admirando-se de que a identidade de sua pupila já
fosse do conhecimento de todos. Charpentier era apenas o
primeiro da multidão de pretendentes que disputariam a honra
de tê-la por esposa.
Uma herdeira rica, sem parentes vivos, representava um
bem valioso demais para aqueles caçadores de dotes. E
quando, além de rica, era tão linda quanto Vera...
Giles fechou os punhos. O perigo que ela corria era real.
Charpentier apanhava o que podia apanhar, vorazmente,
inescrupulosamente. Mulheres experimentadas, como Letícia
Lattimore e Jane Lindsey, habituadas à vida da corte, saberiam
enfrentá-lo de igual para igual. Vera, não.
Não podia ouvir suas palavras, mas compreendia
perfeitamente o que seus olhos diziam. Sem perdê-lo de vista,
pois temia que ele pudesse levá-la embora, estugou o passo.
Quando o alcançou, colocou-se ao seu lado, a expressão
ameaçadora.
Charpentier levantou-se imediatamente, com uma leve
mesura.
— Devolvo-lhe sua encantadora pupila, Lorde Rathborne.
— Ele fez uma pausa, depois prosseguiu, a voz carregada de
ironia: — Pensei que não viesse mais. Lady Lattimore é uma
mulher encantadora.
— O senhor deve estar louco! — explodiu Giles, indignado
com a insinuação.
Estavam agora, afinal, em campo aberto, e Charpentier
ficou satisfeito.
— É o despeito que o faz perder a cabeça, my lord?
— O senhor herdou um belo título, além de uma bela
aparência. Se deseja viver o suficiente para usufruir essas
regalias, é melhor não se envolver com uma dama que está
sob a minha proteção!
— Como são veementes esses ingleses! — atirou-lhe o
francês, revelando um certo nervosismo e depois voltou-se
para Vera: — Preciso ir, mademoiselle. Caso contrário, seu
impetuoso paladino me fará correr daqui a ponta de espada.
Adieul
Antes de afastar-se, ele não pôde impedir-se de uma
última farpa.
— My lord está equivocado sobre as minhas intenções. Se
soubesse que a encantadora jovem era sua pupila, não teria
sequer ousado sorrir para ela. Ninguém ignora suas pretensões
à mão... e à fortuna de Lady Verena.
O cínico atrevimento do outro foi demais para Giles, que
pousou a mão no copo da espada e disse asperamente:
— Que me leve o diabo se compreendo como foi que se
aproximou dela, Charpentier. Mas agora afaste-se, ou não
respondo por mim!
Vera levantou-se impetuosamente e agarrou-o peío
braço.
— Por favor, não! — ela implorou, desolada. — Não
brigue por minha causa. Não sou tão suscetível como pensa às
adulações e às conversas frívolas.
Charpentier abriu a boca, atônito, e seu vago,
desdenhoso sorriso dissipou-se. Embora furioso como estava,
Giles sentiu-se tentado a rir, tão completa fora a sua transição
de sedutor a tolo. Mas não riu. Tinha vontade de partir-lhe a
cara com um soco!
A prudência acabou por prevalecer. Já muitos olhares
curiosos e desconfiados vagavam pelo salão e fixavam-se
neles.
— Vamos deixar que esse pedante termine seu jantar so-
zinho. E que faça bom proveito!
Vera seguiu-o docilmente até o jardim. E apesar de seu
estado de espírito, deleitou-se com a beleza do céu, repleto de
estrelas. A lua erguia-se, flutuando sobre o Tamisa e o rio
tornava-se de prata em meio às sombras. Além dos terraços
que se escalonavam diante do castelo, e dos jardins em
declive, os grilos entoavam suas canções. Se fechasse os olhos
quase podia acreditar que estava,em Rathborne. Suspirou sem
querer, desejando, por um momento, que assim fosse.
Giles viu seu rosto, pálido na semi-obscuridade, e
condoeu-se.
— Seu primeiro dia na corte foi bastante decepcionante.
— E muito cansativo, my lord.
— E uma mulher corajosa, Vera, e eu me penitencio por
exigir tanto de você. — Enfiou imperativamente o braço sob o
dela. — Mas a noite está tão bonita e agradável... Não quer dar
um passeio comigo?
Vera suspirou imperceptivelmente. Faria, de bom grado,
tudo o que ele quisesse.
— Certamente, my lord.
Puseram-se a caminhar vagarosamente ao longo de
caminhos ensaibrados, iluminados por nesgas de luz. Diante
das portas abertas, silhuetas de damas de saias-balão cediam
lugar a outras silhuetas, a um impreciso desfile de silhuetas
que se moviam ao som de delicadas melodias. Vera prendeu a
respiração. Eco de antigas emoções palpitaram em sua
memória. Se pudesse descobrir o que significavam...
Estacou, lançando um olhar em torno, como se as
imagens que vira havia muito, em algum lugar, estivessem
ocultas nas sombras. Uma bela manhã de verão... abelhas
zumbindo em torno das flores de laranjeira... alguém
mostrando-lhe como fazer uma coroa com botões de malva-
rosa... Por uma fração de segundo, o passado ficou ao alcance
de sua mão. Seus lábios se entreabriram e uma sensação de
bem-estar inundou-lhe o coração.
Giles olhava-a, intrigado. Ela parecia animar-se, como
uma flor sob a chuva.
— Que foi?
— Não sei. De repente, tive uma lembrança agradável de
minha infância. Eu fazia coroas de flores com uma mulher.
Quem é ela não sei... seu rosto é indistinto... Só pude ver o
anel que usa na mão esquerda.
— Que espécie de anel?
— Uma grande pedra azul, em que está lavrado um
símbolo, engastada em minúsculas folhas de ouro.
Um arrepio escalou a espinha de Giles. Sua mãe possuía
um anel semelhante ao descrito por ela. Era uma raridade na
Inglaterra, pois fora trazido da Terra Santa por seu tataravô.
Nunca vira outro igual em todas as viagens que fizera ao redor
do mundo.
— Onde aconteceu isso?
— Lembro-me de uma vereda de pedra que conduz a
uma porta aberta num alto muro... Além da porta há um
jardim com uma pérgola sombreada por madressilvas, e
também um banco rústico...
Não havia nada semelhante em Rathborne. Giles
experimentou um sentimento de inexprimível alívio e deixou
passar a história sem dar-lhe importância. Outros
pensamentos assaltavam seu espírito.
Inclinou-se um pouco em sua direção e disse-lhe
suavemente:
— Duvide das amizades fáceis e seja especialmente
desconfiada de homens como Charpentier ou Lumleigh. Não
acredíte um momento sequer em suas promessas de ajuda.
São calculadas.
— Sou uma pessoa simples, my lord. O que eles
haveriam querer de mim?
— Minha criança, há alguma coisa na inocência que atrai
os depravados. Especialmente quando à inocência une-se a
heleza.
“Beleza... inocência"... Ele era sincero, quando dizia isso?
Vera procurou esconder sua perturbação atrás de um sorriso.
— E o que esses dois vilões poderiam fazer? Atrair-me,
para uma cilada e levar-me à força para seus antros? Não
lenho medo disso, senhor!
Giles agarrou-a pelo braço. A luz do luar, os olhos negros
cintilavam.
— Charpentier não usaria tais meios. Suas armas são a li-
sonja e a sedução, que ele sabe usar como ninguém! — disse-
lhe friamente. — Até agora, nenhuma mulher soube resistir à
sua aprimorada técnica. E, pelo que testemunhei há poucos
instantes, você também não.
— Suas censuras são injustas, my lord. Não fiz nada
para merecê-las.
— Pois faça com que eu não duvide disso!
Ela desvencilhou-se e deu um passo para trás.
— O senhor é insuportável! Gostaria de voltar ao salão e
pedir a Charpentier que tomasse o seu lugar!
Com uma rapidez a que Vera não conseguia escapar, ele
puxou-a de encontro ao peito e beijou-a com sensualidade e
posse, forçando seus lábios a se entreabrirem. A princípio ela
debateu-se, assustada com aquela impulsividade, mas aos
poucos afrouxou as defesas e logo estava retribuindo com o
mesmo ardor.
A música do salão, que chegava diluída ao jardim,
aumentava o clima de desejo. Palpitante em seus braços,
compreendeu que nada além dele tinha importância. Ele era o
centro de sua vida, de todo o seu universo.
Giles afastou-a um pouco de si e sorriu, triunfante.
— Ainda quer que eu ceda meu lugar a Charpentier? Acha
que aquele francês amaneirado está à altura de sua natureza
sensual e apaixonada?
Vera respirava com dificuldade. Então, era isso o que ele
pretendia? Provar que era melhor do que o outro?
— O senhor se tem na conta de um conquistador
irresistível, por quem todas as mulheres se apaixonam
perdidamente. Pois estou espantada com sua arrogância!
— Não se esqueça de que tive você em meus braços.
Senti seu corpo e vi toda a sua resistência cair por terra.
— Não é verdade!
— É um desafio? — Giles deu um passo para a frente.
Vera recuou. Não podia permitir que ele a beijasse outra vez,
pois a reação dela seria um desmentido completo a tudo o que
vinha dizendo.
— Está com medo — ele zombou. — Medo de si mesma!
Era verdade. Ele despertava-lhe os sentidos, roubando-
lhe a capacidade de resistir. Queria afastar-se dele, olhá-lo
com desdém ou então com frieza, mas suas pernas não
obedeciam. Giles agarrou-a pelos ombros.
— Confesse que tenho razão. Confesse que fraqueja no
mesmo instante em que a tenho nos braços!
Vera fez um poderoso esforço sobre si mesma.
Preparava-se, para responder, contestando-o, quando
percebeu que não estavam mais sozinhos. Letícia Lattimore
vinha pela vereda na direção deles.
— Aí está você. Giles! — ouviu-a dizer alegremente.
Procurei-o por toda parte.
Aproveitou o momento e escapuliu. Uma vez em seu
quarto, apoiou-se à porta e pôs-se a soluçar convulsivamente.
Na manhã seguinte, Lady Stafford veio buscá-la para sua
primeira audiência oficial com a rainha. Ao entrar na ante-sala
em companhia da amável guia, viu-se em presença de cerca
uma centena de representantes das mais ilustres famílias da
nobreza. Um pouco assustada, pois sua chegada despertara
sussurros e olhares furtivos, Vera sentou-se com grande com-
postura e retribuiu com graciosa cortesia alguns cumprimentos
que lhe foram dirigidos.
De vez em quando, palavras ditas em voz baixa, tais
como "assassinato, complô planejado pela rainha da Escócia
contra Elizabeth", bem como "veneno" e "pólvora", chegavam
a seus ouvidos. Antes mesmo que pudesse apreender-lhes o
sentido, Giles chegou. Olhou-a da porta com uma dureza que a
gelou, depois veio caminhando na sua direção.
— Gostaria de saber por que fugiu de mim ontem à noite
— ele disse baixo, numa voz tensa, enquanto se sentava ao
seu lado. — Metade da corte já sabe disso!
Vera sustentou-lhe o olhar.
— Culpe Letícia Lattimore por sua indiscrição, não a mim!
— Se estivéssemos em outro lugar, eu lhe daria a lição
que merece.
— Não sou uma criança, embora o senhor insista em tra-
tar-me como tal — ela declarou calmamente.
Giles cerrou os maxilares com força.
— Tem razão. Não é mais uma criança. É uma jovenzinha
inexperiente com um corpo de mulher — murmurou entre
dentes.
— Talvez essa seja uma boa oportunidade para eu
adquirir mais experiência.
Ele ia retrucar, quando Charpentier introduziu-se na
conversa.
— Está aborrecendo Lady Verena, Rathborne. Sugiro que
a deixe em paz.
Giles fitou-o de alto a baixo. Não podia deixar de sentir
que eram como gladiadores numa arena da antiga Roma.
— Você de novo? Estou cansado de sua intromissão em
meus assuntos!
Nesse instante, a porta do Salão de Audiência abriu-se e
a condessa de Rutland anunciou que a rainha estava pronta
para receber a homenagem de seus súditos. Todos se
levantaram. Charpentier deteve-se diante de Vera e ofereceu-
lhe o braço.
— Permite-me, mademoisellel
Ela aceitou-o com um sorriso deslumbrante.
— Sinto-me honrada de tê-lo a meu lado, monsieur.
Enquanto avançavam, Charpentier fez um comentário sobre o
medalhão.
— Uma jóia rara. Soube que a rainha deu-o a sua mãe,
Allys de Breffny, como prova da amizade que as unia.
Vera tocou o medalhão com a ponta dos dedos e ergueu
os olhos, surpresa.
— Recebi-o de presente de Sir Giles. Ele me disse que o
comprou de um joalheiro.
O francês decidiu tirar a máxima vantagem do episódio.
— Não devia acreditar nisso, chérie.— Ele inclinou-se
confidencialmente para ela. — Ignora, por acaso, o que todos
sabem?
Ela fitou-o, confusa.
— O que, monsieur?
— Os cofres dos Rathborne estão vazios e seu tutor
pretende enchê-los forçando-a a casar-se com ele. -—
Charpentier fez uma pausa estratégica. — Se mademoiselle
precisar de um amigo, pode contar comigo.
— Obrigada, monsieur. Mas espero que não tenha de re-
correr a seus bons ofícios.
Acabavam de entrar no salão suntuosamente decorado
com colgaduras entremeadas de ouro e prata! representando
cenas de caça e tapetes orientais. Sobre uma plataforma,
muito além da entrada, erguia-se o alto trono esculpido,
ostentando as armas reais.
Não tiveram que esperar muito. Instantes depois,
Elizabeth surgia à porta do lado sul, aberta de par em par.
Seguida por suas damas de honor, ela parecia de fato uma
rainha da cabeça aos pés, num magnífico traje de veludo
negro, inteiramente bordado a ouro, que lhe realçava a alvura
da pele.
As damas aprofundaram-se em reverências, enquanto os
cavalheiros deixavam-se tombar de joelhos, proclamando:
— Deus salve nossa graciosa rainha! Morte à traidora da
Escócia!
Elizabeth correu os olhos pelo salão e retribuiu com um
aceno de cabeça aqueles protestos de lealdade.
— Como podem ver, estamos gozando de boa saúde.
Somos ainda a rainha da Inglaterra e continuaremos a sê-lo,
para desespero dos escoceses que, insensatamente, nos
ousaram desafiar!
Suas palavras despertaram murmúrios de admiração e
risadas delicadas. Só os observadores mais sutis, como Vera,
perceberam as linhas de fadiga que lhe circundavam os olhos.
Obviamente, dormira mal. E, diferentemente do que fazia acre-
ditar, a tentativa de assassinato a ferira fundo.
Não houve mais tempo para outras considerações. A
soberana começava a receber a homenagem de seus súditos.
O silêncio caiu sobre a sala de audiência e Vera esperou, os
nervos tensos, a sua vez. Pouco depois, ela e Giles foram
anunciados e conduzidos até o trono.
— Ah, aí está nosso caçador e seu cisne! — exclamou
Elizabeth. — Agora compreendo por que nos fez a petição,
Lorde Rathborne.
— Perfeitamente, majestade. Lady Verena Stanton está
sozinha no mundo e precisa de um protetor. Solicito-lhe que
me confira essa honra até que ela atinja a maioridade.
Elizabeth olhou de um para o outro e fez um gesto para
que Vera se aproximasse.
— Que idade tem, minha filha?
— Não sei bem, majestade. Dezessete... talvez dezoito
anos.
— Dezoito anos! — disse Elizabeth e suas palavras
soaram de modo muito semelhante a um suspiro. — Nossa
Lady não precisa de um tutor, my Lord, mas de um marido!
Houve de novo risos. Vera esperou que cessassem para
argumentar:
— É muita bondade preocupar-se comigo, majestade.
Mas não tenho queda para a vida de casada. Preferia continuar
solteira.
O tom suave de sua voz e a modéstia de suas palavras
causaram satisfação a Elizabeth, que voltou para Giles os olhos
astutos. Sabia que o belo e impetuoso lorde e a jovem lady
tinham discutido mais de uma vez, desde que haviam chegado
a Hampton Court. O que haveria atrás dessa aparente
antipatia? A rainha recostou-se no alto espaldar e pôs-se a
girar o grande anel de rubi.
— Se não tivesse outra alternativa senão casar-se, Lady
Verena, que espera de seu futuro marido?
Vera respondeu pensativamente:
— Dedicação e respeito.
— Uma resposta judiciosa e meritória para alguém tão
jovem.
Elizabeth lançou seu olhar dourado sobre a assistência,
como a pedir aprovação, depois tornou a fixá-lo na bela
criatura que tinha diante de si.
— Lorde Rathborne é um homem em que pode confiar.
Daria um bom marido.
Vera, imediatamente, suspeitou de uma armadilha. Teria
Giles combinado tudo com a rainha? Lembrou-se das palavras
de advertência de Charpentier e levantou a cabeça, fria, sem
sorrir.
— Não o duvido, majestade. Mas nossos temperamentos
não combinam. Não podemos ficar juntos um só minuto sem
discutirmos.
Elizabeth contraiu os lábios finos, ponderando a resposta.
Aquela jovem manifestava claramente sua intenção de jamais
contrair matrimónio com Giles de Rathborne.
— Prefere a companhia de monsieur Charpentier? — inda-
gou.
— Sem dúvida, nobre senhora!
Os olhos de Giles se ensombreceram sob a onda de
sangue que lhe subiu ao rosto. Seus lábios tremeram, mas o
excesso de humilhação impediu-o de proferir o que quer que
fosse. O desapontamento também, talvez.
A rainha, sem poder dissimular sua surpresa, fez um sinal
a Charpentier, que sorria triunfalmente ao pensar como tinha
conseguido tão rapidamente o que queria.
— Sua vontade será satisfeita, Lady Verena — ela
anunciou, a voz neutra: — Monsieur Charpentier nos procurou
ontem para pedir sua mão. Damos nossa permissão real para
que se case com ele tão logo os editais sejam publicados.
Vera sentiu tudo girar ao seu redor e teria desmaiado, se
Charpentier não a sustentasse pela cintura.
— Minha querida... — ele murmurou, levando-lhe a mão
aos lábios. — Mal posso acreditar em tanta felicidade.
Elizabeth levantou-se, branca, a jóia emblemática luzindo
sobre o seio esquerdo, e deu a audiência por encerrada. Antes
de retirar-se, foi simples e explícita:
— Vejo com agrado essa união por casamento entre a
França e a Inglaterra.
Enquanto a rainha se afastava, Vera olhou em torno, es-
pantada e aflita. Tudo fora tão absurdo e tão rápido! Mas Giles
iria encontrar uma saída pra aquele terrível mal-entendido!
Ele, porém, já se fora. Onde estaria agora?

CAPITULO XII

Charpentier tomou-lhe a mão e cobriu-a de beijos.


— Mademoiselle me tornou o mais feliz dos homens. Já
prevejo a sensação que fará na corte da França!
Vera permaneceu muda por um instante.
— França?... — Acabou por balbuciar, os olhos cheios de
espanto.
— Sim, França. Cumprida a missão que me trouxe à
Inglaterra, eu a levarei a Paris. Será um prazer servir-lhe de
guia, ma chérie. Quero que ame tudo o que eu amo.
Ele beijou-lhe os dedos, um a um.
— Não queria deixá-la sem antes lhe abrir meu coração.
Mas preciso ir imediatamente ao encontro de monsieur le duc.
Perdoe-me.
Vera esboçon um sorriso, com ar infeliz.
— Vá, my lord. Não se preocupe comigo.
Charpentier acariciou-a com os olhos. Um bocado
delicioso, mal podia esperar o momento de experimentá-lo.
— Até a noite, chérie. Estarei à sua espera no lago do
jardim. Não falte.
Vera respondeu ao acaso e sorriu com esforço para
ocultar sua confusão. Que fizera, por surpresa, por despeito,
talvez? Se ao menos pudesse correr atrás de Giles e dizer que
tudo não passara de um terrível engano... Mas não foi possível.
Havia chegado à porta e um grupo numeroso de pessoas
aglomerava-se à entrada para cumprimentá-la.
Letícia Lattimore foi a primeira a apertar-lhe a mão e a
congratular-se com ela.
— Tem sorte, Lady Verena. Arranjou um marido nobre
em apenas dois dias de corte! — A viúva abriu-se num sorriso.
— Desejo-lhe felicidades.
Quando ela se afastou, a condessa de Rutland tomou seu
lugar. . . .
— A rainha tem grande estima por Charpentier e
também por monsieur le duc. Gozará dos esplendores da corte
francesa sem ter de abandonar as amizades que fez aqui,
minha querida.
Quando os cumprimentos terminaram, Vera saiu por
entre a multidão. Apesar da leve dor de cabeça que começava
a incomodá-la, passou o resto da manhã cumprindo as tarefas
prosaicas e insípidas que Lady Stafford lhe atribuíra, e
recebendo novas felicitações por seu compromisso com o
nobre francês.
Todo pareciam achar que ela agarrara Charpentier por
meio de um truque de astúcia feminina. Que loucura! Fora um
acidente absurdo. Um assomo de ressentimento, algumas
palavras proferidas estupidamente num momento de cólera e
vira-se comprometida a um homem que não amava!
O que a impacientava era encontrar-se ali, presa como
numa cela. Livre, iria ver Giles, explicar-lhe tudo. Ele haveria
de compreender e mostrar-se generoso para com ela.
Não foi senão uma hora muito avançada do dia, quando a
rainha saiu pra cavalgar com Alençon, que teve a oportunidade
de percorrer salas e corredores intermináveis, à procura de
Giles. Sua tensão aumentava insuportavelmente, á medida que
o tempo transcorria. Completamente arrasada após uma busca
inútil, foi fechar-se em seu quarto.
Deixou-se cair à beira da cama e mergulhou em
reflexões. Usara sua língua afiada como uma arma para atingir
Giles.
Ferira-o no seu orgulho, humilhara-o diante da corte e da
rainha. Ele não a perdoaria!
Seu desespero renovou-se. Se ele não a perdoasse, não
teria forças para continuar respirando. Amava-o e não tivera a
coragem de admiti-lo. Teimara, cheia de maldade, em fazê-lo
sofrer. Atirou-se sobre a cama e enterrou o rosto no
travesseiro, reprimindo com todas as forças a vontade de
chorar. Era uma dor de agonia...
Uma discreta batida na porta tirou-a da aflição em que se
encontrava, Levantou-se de um salto e alisou apressadamente
as saias.
— Giles?... — perguntou, esperançosa.
— Sou eu, menina —respondeu Lady Mary Shaton do
outro lado.
Vera abriu a porta e aprofundou-se numa reverência.
— My lady...
A dama da rainha pôs a mão em seu ombro.
— Sua Majestade chegou do passeio e deseja vê-la,
querida. Vera acompanhou-a tomada de dúvidas pungentes.
De que maneira poderia abordar o assunto com a rainha? Seria
possível fazê-la compreender o equívoco que sua terrível
atitude provocara? Tinha pouca esperança de que ela, apesar
de toda a sua simpatia, pudesse aceitar suas razões.
Ao entrar nos aposentos reais, encontrou Elizabeth ao
clavicórdio. Parou no limiar, subjugada. Nunca tinha ouvido
coisa mais bela do que aquela delicada melodia murmurada
pelo frágil instrumento nem contemplado uma transformação
tão grande na fisionomia da soberana, sob a influência da
música: naquele momento, ela resplandecia.
Quando o pequeno concerto terminou, prostrou-se diante
dela, numa reverência profunda.
— Majestade...
Elizabeth ergueu a cabeça e sorriu bondosamente.
— Aproxime-se, Lady Verena — ela convidou. Depois
tomou-a pela mão e levou-a até o sofá. — Diga, minha
querida, Esta satisfeita com seu marquês?
Vera olhou-a como se não entendesse.
— Marquês...?
Elizabeth voltou o rosto aristocrático para ela.
— Quer dizer que não sabe que Charpentier, o homem
com quem se comprometeu, é marquês?
Vera sentiu-se corar.
— Vi monsieur apenas duas vezes.
— Então, por que tanta pressa em se casar? Está
grávida? — Oh, não! Não se trata disso, Majestade.
— Giles de Rathborne é um homem fascinante —
observou Elizabeth, os olhos profundos, astutos, a desafiá-la.
— Descobriu seu paradeiro, acolheu-a em sua casa, não foi?
— Sim, Majestade.
— Que é que ele procurou fazer? Eis aí o que me
interessa.
Vera rejeitou a insinuação.
— Lorde Rathborne sempre me tratou com respeito. Sou
ainda virgem.
Elizabeth riu francamente.
— Bom para você! Charpentier. apesar de suas inúmeras
complicações amorosas, é inflexível num ponto: deseja que
sua futura seja virgem. Seu médico particular irá examiná-la
amanhã, para certificá-lo disso.
Vera surpreendeu-se
— Isso é necessário, madam!
— Sim, se quiser casar-se com seu marquês.
— Casamento significa uma vida de deveres sérios.
Gostaria que Sua Majestade me desse alguns dias para refletir
melhor.
Havia tal sinceridade em suas palavras, que Elizabeth foi
levada, imediatamente, a considerar o pedido.
— Pensei que soubesse o que queria. Mas não é tarde
demais. Tem toda a liberdade para decidir seu futuro — ela
afirmou, precisa.
Depois, com um único gesto de suas mãos expressivas,
virou o medalhão de esmeraldas que trazia preso a uma fina
corrente de ouro e pôs-se a contemplar a miniatura do conde
de Leicester. Lágrimas umedeceram-lhe os cílios. Muitos anos
antes, forçada pelas circunstâncias, ela própria tivera que se
decidir entre as razões de Estado e as razões do coração.
Por um momento, as recordações inundaram-lhe a
mente, vívidas e opressivas. Passado um minuto, ergueu o
rosto saturado de uma beleza melancólica e disse com
brandura:
— Tenho apenas um conselho a lhe dar, Lady Verena. O
amor é uma dádiva dos céus, não o desperdice. Vá, minha
criança.
Vera ajoelhou-se e beijou-lhe o anel.
— Sua Majestade é amável. Obrigada.
As palavras da rainha acompanharam-na durante o resto
do longo e exaustivo dia, passado entre obrigações rotineiras e
ansiedades pessoais. Apesar de tudo, sentia-se estranhamente
contente. Falaria com Giles à hora do jantar e faria uma
sincera confissão. Sabia agora com segurança o que queria.
Mas os acontecimentos tomaram outro rumo. Chamada
para servir a rainha, foi obrigada a permanecer nos aposentos
reais até muito tarde. Passava da meia noite quando,
finalmente, deram-lhe permissão para que se recolhesse.
Profundamente decepcionada, subiu para o quarto e
despiu-se com gestos mecânicos. Estendeu-se na cama e, os
olhos voltados para o teto, pensou no irônico da situação em
que se metera. Mas não desanimou. Thad dissera-lhe, certa
vez, que havia o momento de planejar e o momento de agir...
Sentou-se na cama de chofre. Definitivamente, era tempo
de agir!
A lua já ia alta no céu, quando Giles abriu a porta de seu
quarto. Não encontrara conforto na companhia dos amigos e
muito menos na bebida. Vera e Charpentier!... Era uma
fatalidade, uma ironia.
Tinha que reconhecer, porém, que procedera
insensatamente. Mantivera-a em seu poder com a pretensão
de fazê-la passar pela herdeira desaparecida, mas deixara-a
cair na rede de sedução armada pelo francês. Uma moça
simples como Vera não podia resistir às maneiras encantadoras
de um homem que, além da graça viril, a elegância discreta e
o hábito de agradar, possuía a vantagem de pertencer a uma
família de nobre estirpe e de grande fortuna.
Quando ela declarara publicamente que o preferia, ficara
primeiro surpreendido, sem poder articular uma palavra,
depois acabrunhado. E agora sabia por quê.
Durante sua vida, conhecera dezenas de criaturas
adoráveis, que lhe haviam tornado a vida agradável por
momentos. Deliciosos interlúdios de prazer que não
comportavam nenhuma responsabilidade de parte a parte.
Mas, dessa vez, a coisa fora longe demais. Além de todo
controle, além do tumultuar do sangue e do impulso da
imaginação.
Não saberia dizer quando se apaixonara por ela. Sabia,
apenas, com uma convicção profunda e forte, que a amava.
Por um instante, imaginou-se ao lado dela, declarando-lhe seu
amor... Que aconteceria?
Talvez nem tudo estivesse perdido, talvez houvesse ainda
uma possibilidade. Caso contrário, Charpentier não se mos-
traria tão desconfiado, tão temeroso de que a situação
escapasse ao seu controle. Alguns amigos já lhe haviam
chamado a atenção para isso...
O som de passos cautelosos no corredor vazio o fez
voltar-se rapidamente. Esperou por uma batida que não houve
e, quando a porta começou a abrir-se lentamente, ocultou-se
atrás do cortinado da alcova.
Uma figura envolta num amplo manto introduziu-se no
quarto. Com a rapidez do raio, caiu sobre ela e jogou-a sobre a
cama. O instante em que suas mãos tocaram formas incon-
fundivelmente femininas, reconheceu o visitante da noite.
— Vera! Que faz aqui?
— My lord... — ela gaguejou, descobrindo o rosto.
— Que loucura! Eu podia ter matado você!
Sem saber o que fazer ou dizer, Vera ficou imóvel, a
olhá-lo. Ele a ajudou a pôr-se de pé com ar aborrecido.
— Imagine se alguém a viu entrar! Iria pensar que eu a
convidei a passar a noite aqui. E amanhã, essa inocente
escapada noturna estaria convertida num grande escândalo!
— Já estou metida em apuros até o pescoço. — Ela o fitou
com olhos suplicantes. — Não me mande embora, por favor.
— Que significa isso, minha criança?
— Preciso falar com o senhor sobre um assunto da maior
gravidade.
Giles acendeu a vela do castiçal. À luz cambiante, viu-lhe
o rosto pálido e emocionado.
— É Charpentier? — indagou, apreensivo.
Vera suspirou.
— Sim, é Charpentier.
— Aquele miserável tentou aproveitar-se de você? Eu o
mato!...
— Ele não fez nada. — Os olhos dela começaram a se
encher de lágrimas. — Queria que soubesse que prefiro morrer
a ter de me casar com ele.
Ela parecia tão desesperada, que Giles vacilou. Onde,
com os diabos, queria levá-la a pequena feiticeira de olhos
violetas?
— Qual é o motivo dessa mudança, querida? Pensei que
estivesse loucamente apaixonada por ele! Ou melhor,
encantada com a ideia de tornar-se marquesa e senhora de um
lindo castelo!
Vera baixou os olhos envergonhada.
— Não zombe de mim, por favor. Eu apenas disse que
gostava dele porque o senhor estava tornando minha vida in-
suportável. Não pensei que a rainha fosse levar essa história a
sério. Além disso... — A voz dela quebrou-se. — O senhor
mentiu para mim a respeito do medalhão. Não o comprou. A
jóia pertencia à minha mãe. Charpentier me abriu os olhos.
Giles enfureceu-se.
— Pois eu lhe afirmo que o comprei para você! Foi só
depois, que eu me lembrei de ter visto outro semelhante na
dama da galeria. — Ele afundou os dedos nos cabelos. — Se
puder lembrar-se, perceberá que, no retrato, o cisne mostra o
reverso de sua silhueta.
Vera fechou os olhos e concentrou-se. A galeria de
Rathborne abriu-se em sua memória. Percorreu-a
vagarosamente até chegar diante do retrato de Allys de
Breffny.
— Tem razão! — exclamou. — Oh, Giles!... Perdoe-me.
Ele tornou-lhe o rosto entre as mãos e fitou-a longamente.
— Por que duvidou de mim? Se confiasse mais, teria me
poupado uma série de embaraços.
Vera ficou subitamente zangada.
— Está sendo injusto! Não estou aqui por minha vontade.
Fui praticamente obrigada a fazer o papel de Lady Verena!
Giles calou-se. A acusação, de um modo nada lisonjeiro,
aproximava-se muito da verdade. Acabou por dizer:
— Agora é tarde demais para pensarmos nisso. Mas deve
haver uma maneira para sairmos dessa entalada.
— Há uma que resolve definitivamente a questão.
Ele fitou-a com ar perplexo.
— Qual?
Vera esperou um momento, reunindo as forças e as
palavras.
— A rainha disse-me que amanhã devo ser examinada
por um médico francês...
Giles interrompeu-a, impaciente.
— Não sei o que isso tem a ver com o nosso caso!
— Tudo. Charpentier exige que sua futura esposa vá para
o casamento... intacta. Caso contrário, o compromisso será
desfeito.
— E você tem um modo de fazê-lo acreditar que não é
mais a virgem que ele supõe?
— Não, senhor.
— Não brinque com coisas sérias, Vera! Você... — Giles
interrompeu-se e ficou a olhá-la por um minuto, boquiaberto.
— Está querendo dizer que pretende entregar-se a um
homem ainda esta noite?
— Sim, é o que eu pretendo — ela admitiu com um fio de
voz. — E, dadas as circunstâncias... preferia que fosse o
senhor.
— Deixe-me ver se entendi bem. Para evitar o casamento
com Charpentier, você quer que eu a seduza. É isso? — ele
perguntou, francamente alarmado.
— Oh, não! Sou eu que quero seduzi-lo.
— Você está louca, Vera. Ou querendo divertir-se à
minha custa — explodiu, irritado. — Vá embora...
Não disse o resto. Vera deixara o manto escorregar de
seus ombros e mostrava-se toda nua sobre os pezinhos
calçados de cetim. Não havia o menor receio em seus olhos.
Parecia absolutamente segura de si mesma.
Contemplou-a sem um palavra, ainda duvidando de seus
olhos. Aquela linda mulher que estava diante dele era mesmo
real ou um produto de sua imaginação ardente? Deixou-se ficar
com os olhos presos naquela nudez subitamente revelada. Ela
era toda mel e ouro e ainda mais bela do que havia imaginado.
— Quer se deitar comigo, my Lordl Essas palavras,
proferidas com voz decidida, arrancaram-no de seu estupor,
devolvendo-lhe o sangue frio.
— Cubra-se! — intimou-a, recolhendo o manto e
arremessando-o para eJa. — Não deve despojar-se de sua
virgindade para evitar um casamento que lhe desagrada.
Acharei um modo de salvá-la de Charpentier. Dou-lhe minha
palavra!
Vera intuiu imediatamente que, no dia seguinte, valendo-
se de um pretexto qualquer, ele iria provocar o francês para
um duelo. E o que aconteceria, se o matasse? Seria enviado
para a Torre, talvez para o cadafalso...
Demorou-se mais um segundo, vencida e desesperada, e
depois envolveu-se lentamente no manto
— Se pretende bater-se em duelo com Charpentier, juro
que serei capaz de me jogar da torre do palácio!
Giles agarrou-a pelos ombros e sacudiu-a.
— Não diga asneiras! A vida é preciosa demais para ser
jogada fora dessa maneira!
— Não é isso o que pretende fazer? — Os olhos dela tor-
naram-se mais escuros. — Oh, Gíles... Não poderia continuar
vivendo sem você!
Ele puxou-a docemente para si.
— Minha Vera... Tão doida e tão sábia...
— Você não pode me deixar sozinha! E responsável por
mim.
— Sou um idiota. Andei falando bobagem. Foi ótimo você
ter vindo!
— Diga isso de novo, meu amor. — Ela ergueu o rosto.
Estava inundado de lágrimas.
Giles acariciou-a com ternura.
— Meu pequeno cisne... você veio para mim esta noite
roubada das estrelas.
Ela se aninhou em seus braços com um suspiro.
— Então, não vai me mandar embora?
— Não. Vou fazer o que já devia ter feito. — Ele
procurou-lhe os lábios e beijou-a longamente, com beijos
profundos e possessivos, que a fizeram gemer.
— Não temos muito tempo, querido.
— Temos a noite diante de nós, minha bela. E uma
eternidade!
Ergueu-a nos braços e depositou-a gentilmente na cama.
Despiu-se então rapidamente e deslizou para o lado dela.
— E isso mesmo o que você quer? — perguntou
loucamente, pondo-se a acariciar, com voluptuosa lentidão, o
corpo de curvas delicadas.
— Sim, meu querido.
Cheia de langor, Vera desíizou-lhe as palmas das mãos
no peito amplo, deliciando-se sensualmente com a maciez dos
pêlos escuros. Logo, adquirindo mais confiança, atreveu-se em
carícias mais precisas. O corpo dele era tão moreno quanto o
rosto, um corpo musculoso, forte e firme, em perfeita
harmonia com sua personalidade altiva e resoluta. Um suspiro
escapou-lhe dos lábios:
— É isso o que eu quero.
Giles acompanhava-lhe os gestos, achando
insuportavelmente excitante ser acariciado por mãos tão
inexperientes e tão tímidas diante de sua própria ousadia. Sem
poder controlar-se, levantou-a para ele, os seios de bicos
rosados à altura de seus lábios, e beijou-os demoradamente.
Vera deixou cair a cabeça para trás e abandonou-se,
enlanguescida, àquelas carícias voluptuosas. Um fluxo de
sensações, cuja força ainda desconhecia, percorria seus nervos
transformando seu sangue em fogo. Pela primeira vez na vida,
sentia-se feliz de ser mulher.
— Oh, Giles... meu querido...
Ele olhou-a por entre os cílios semicerrados. Ela jazia em
seus braços num profundo abandono e de tal maneira entregue
que parecia ausente. Uma ternura cálida fundiu seu coração.
Seria cuidadoso, a iniciaria nos mistérios do prazer sem fazê-la
sofrer.
Lentamente, deslizou a mão por seu ventre liso e macio
até encontrar a protuberância de pêlos dourados. Então
curvou-se e beijou-lhe o sexo, fazendo-o palpitar docemente.
Vera sentiu-se dissolver toda por dentro e, por um
instante, incapaz até mesmo de respirar. Fechou os olhos, não
querendo outra coisa senão que ele a possuísse, que a
contagiasse com sua febre e a excitasse até a loucura.
— Quero você, Giles — conseguiu dizer, a voz
estrangulada pela emoção.
Ele contemplou aquele corpo jovem e harmonioso, que se
expunha e se oferecia com delicado impudor, e foi arrebatado
por uma onda de paixão incontrolável.
— Você me terá, querida — lhe disse e deitou-a de
costas. — Agora abra-se para mim.
Os dedos fortes comprimindo-lhe as costas, imobilizou-a
sob o seu peso. Por fim, deixou-se cair sobre ela e a penetrou,
abafando com beijos apaixonados os gemidos iniciais. Quando
a sentiu mais descontraída, soergueu o corpo e começou a
mover-se, lentamente a princípio, depois com mais ímpeto.
Instintivamente, Vera ergueu os quadris para recebê-lo e
acompanhá-lo em seu ardor. Nunca sentira um prazer tão
extraordinário. Era como se estivesse desabrochando para uma
segunda vida, mais palpitante, mais apaixonada, sem mistérios
nem limitações de espécie alguma.
Giles sentiu-a inteiramente sua e penetrou-a mais,
fazendo-a submergir com ele num espasmo demorado, uma
doce e lenta agonia que prolongou até culminar numa onda de
prazer quase insuportável.
Passada a febre, permaneceram abraçados, saboreando
uma maravilhosa sensação de bem-estar.
— Giles?
Ele sentiu-a tremer e debruçou-se sobre ela.
— Sim?
— Você ainda não me disse...
— O quê?
— ... que me ama.
Abraçou-a mais e beijou-lhe a boca.
— Não acabei de provar isso, meu amor?
— Prefiro que me diga.
— Amo-a, querida. Mais do que você pensa. Mais do que
eu imaginava ser possível — declarou e depois beijou-a outra
vez, profundamente.
Ela sorriu, o reflexo do sorriso subindo-lhe aos olhos.
— Amar é pertencer um ao outro. Para sempre. — Um
súbito temor apagou seu sorriso. — Você tem que me
prometer que não irá provocar Charpentier!
Giles ficou um minuto pensativo.
— Tenho uma ideia melhor. Não participe amanhã da
caçada à raposa. Pretexte uma indisposição e permaneça em
Hampton Court. Eu, de minha parte, direi a todos que estou
preocupado com sua saúde e abandonarei a comitiva real.
— Há uma razão para isso? — indagou Vera ceticamente.
— Claro que há! — ele enfatizou. — Quando os caçadores
tiverem se distanciado, vá à estrebaria e mande selar um
cavalo, como se já estivesse melhor e desejasse alcançá-los, e
depois vá encontrar-se comigo no parque da ala leste do
palácio. De lá, partiremos a toda velocidade para Rathborne.
Quando nossa ausência for notada, já estaremos longe.
Ela permaneceu em silêncio e isso o intrigou.
— A ideia não lhe agrada?
Como resposta, Vera encostou a cabeça em seu peito e
sussurrou:
— Você me ama de verdade, Giles?
Ele ergueu-lhe o queixo e encarou-a.
— Você sabe que sim. Por que pergunta?
— Desculpe. Foi uma estupidez de minha parte. Não vou
perguntar novamente. — Ela beijou-o de leve nos lábios e
continuou: — Não tem medo de que a rainha possa fazer com
você o mesmo que fez com Oxford? Encerrá-lo na Torre por
crime de sedução?
— Lembre-se de que foi a "senhora" que me seduziu! —
Giles sorriu. — Duvido que a rainha a encerre na Torre. De
qualquer modo, é bom ficarmos longe de Hampton Court até
que ela se acalme.
Vera roçou-lhe os lábios pelo rosto.
— Agora que resolvemos a questão, quero lembrá-lo de
que a manhã está apenas a algumas horas de distância.
— Quer passá-las conversando ou dormindo?
— Não há um modo melhor?
— Melhor?.. — ele sorriu, belo como um deus. Vera
tocou-o e sentiu sua força impetuosa.
— Que está esperando?
Giles olhou-a. Os seios brancos, a leve depressão no
ventre que terminava num retângulo dourado... Linda e
desejável. Colocou-se de joelhos diante dela e puxou-a para si.
— Venha, amor. Ainda há muita felicidade à nossa
espera. Pela janela aberta, o sopro do vento trazia sussurros
do jardim e o interminável jogo das nuvens com a lua.
Vera saiu da cama com cuidado para não acordá-lo e en-
volveu-se no manto. A aurora mal despontava e os criados
ainda não haviam começado seus afazeres. Alcançou a porta
de seu quarto sem que ninguém a visse.
Enquanto se banhava, teve consciência de seu próprio
corpo. Sentia-o estuante de vida, satisfeito. Tocou-se, quase
numa carícia. Era mulher, definitivamente mulher.
Nua e radiante, escolheu sem pressa as roupas que devia
usar e pôs-se a vestir-se cuidadosamente. Em seguida, sentou-
se com toda a calma diante do espelho e começou a empoar-
se. Meia hora depois, vestindo um elegante traje de montaria,
desceu as escadas e surgiu no pátio, onde a rainha, montada
em magnífico cavalo, caracolava e ria à frente de seu alegre
séquito.
Ao perceber que a olhavam, Vera apoiou-se de olhos
fechados ao muro de pedra, simulando um mal-estar
repentino.
O truque surtiu efeito. Lady Mary Radcliffe correu para ela
e tornou-lhe o braço.
— Lady Verena! Não está se sentindo bem?
— Não muito, lamento dizê-lo. Sinto a cabeça pesada por
ter passado a noite em claro.
A dama de honor fitou-a com simpatia.
— É uma pena. Vá descansar e não saia de seu quarto
enquanto sua dor de cabeça não passar. Cuidarei de
apresentar suas desculpas a Sua Majestade.
— Obrigada, my lady. — Vera fez uma reverência e
regressou ao palácio, terrivelmente consciente de que a rainha
acompanhava sua retirada com olhos especulativos.
Decorrido um momento, Elizabeth voltou-se com os
cenhos franzidos para o secretário de Alençor, que seguia ao
seu lado.
— Charpentier, sua insensibilidade me surpreende. Lady
Verena mostra-se pálida, abatida, e o senhor parece não se
importar absolutamente com isso!
O francês olhou-a rápido, surpreso.
— Lady Verena significa muito para mim.
— Pois não é o que parece! — tornou a rainha com ligeira
irritação.
— Estou confuso, madame. Não sei por que diz isso.
— O senhor não desistiu da caçada, como fez Lorde
Rathborne, que devolveu seu cavalo aos palafreneiros e foi
atrás de sua pupila. Sem dúvida, preocupado com sua saúde.
Charpentier corou. Havia prometido dar seu apoio a
Alençor. Durante a caçada, o duque iria pôr em prática um
estratagema que obrigasse a rainha a decidir-se. Não podia
faltar com a palavra dada.
— Lady Verena tem quem cuide dela. Minha presença não
é necessária — afirmou, sabendo que já fora longe demais
para que agora recuasse.
Elizabeth envolveu-o num olhar irônico e depois voltou-se
para Alençor.
— Meu querido, precisa ensinar a arte de cortejar a seu
secretário. Caso contrário, ele irá perder sua bela herdeira. Há
coisas que nenhuma mulher pode suportar.
Dito isto, ela ergueu a mão esguia e fez um sinal. Uma
trompa isolada soou, dando início à caçada.
Espreitando cautelosamente de uma das janelas do
palácio, Vera avistou os caçadores que desapareciam a
distância, seus vultos diminuindo progressivamente. Quando
julgou que estivessem suficientemente afastados, desceu para
a estrebaria. Sua dor de cabeça não era mais um pretexto e
um suor frio inundava-lhe o corpo.
O palafreneiro ajudou-a a montar e recuou, de gorro na
mão, sorrindo de sua impaciência.
— Giselda está descansada. My lady não terá dificuldades
em alcançar a comitiva de Sua Majestade.
Vera agradeceu-o e partiu a galope. Sua emoção ritmava-
se ao passo do cavalo. "Livre, livre...", pensou e, no ímpeto da
excitação, esqueceu-se do medo e da dor de cabeça.
Giles esperava-a no lugar combinado. Quando ela se
aproximou, atirou-lhe uma trouxa de roupas.
— Vista-as. Vai se sentir mais à vontade.
Vera ficou encantada ao ver-se diante de um par de
calças pretas, um longo gibão verde acolchoado e um par de
botas de couro.
— É maravilhoso esquecer os vestidos por alguns dias! —
exclamou, enquanto mudava rapidamente de roupa.
Giles sorriu, quando a viu com os cabelos presos sob o
gorro. Parecia um criadinho acompanhando seu senhor numa
jornada.
— Compreendo o que quer dizer.
— Quanto tempo levaremos para alcançar Rathbome, se
cortarmos caminho pelos campos?
— Com um pouco de sorte, amanhã ao anoitecer.
Por horas a fio seguiram por estreitos caminhos pouco
usados, sabendo que não deviam descansar nem parar por um
instante até não deixarem para trás a estrada real. Uma vez
em campo aberto, galoparam lado a lado dentro da quietude
da vegetação rasteira.
Ao cair da tarde, ainda disfarçados de criado e senhor,
chegaram finalmente a uma pequena aldeia. Procederam a
uma inspeção dos arredores e, certos de que estavam em
segurança, pararam na primeira taverna, onde jantaram à luz
bruxuleante de uma vela grossa.
Mais tarde, quando a lua já ia alta sobre o vale,
recolheram-se na única e abafada peça e fizeram amor.
Depois, exaustos, deixaram-se cair na enxerga de capim
cheiroso e dormiram como pedras até o amanhecer.
Puseram-se a caminho ao despertar a aurora, quando a
neblina da noite ainda pairava sobre os campos. O ar, fresco e
revigorante, trazia um odor fresco de resina de pinho. Vera
aspirou um sorvo e contemplou, feliz, a revoada dos pássaros
que haviam despertado.
Minutos depois, a massa verde da Floresta de Rathborne
emergia dos farrapos de bruma que o vento esgarçava.
Seu coração encheu-se de alegria.
— Chegamos!
— sim, amor. Estamos em casa.
Contornaram os campos cultivados e dispararam em
direção a floresta. Nada poderia detê-los agora.

CAPITULO XIII

Enquanto avançavam a pleno galope, o sol tombou atrás


da floresta, mergulhando a estrada em penumbra. O céu
tornou-se cinzento, como se grandes asas tivessem se
estendido acima das copas das árvores, e o vento pôs-se a
soprar, prenunciando a chegada do inverno.
Vera sentiu um frio intenso nesse momento, e o coração
vazio e pesado. Era um mal-estar tão alheio a sua natureza,
que ela olhou em torno, inquieta, perscrutando as sombras.
Começava a sentir a presença de uma terceira pessoa.
Essa viva impressão durou até o instante em que
alcançaram o alto da colina. Então, algo de seu receio se
dissipou. A distância, já era possível divisar Rathborne e a
prolongação régia de seus jardins e de seu parque.
— Que beleza! — exclamou, sob o influxo de uma espécie
de encantamento.
Giles experimentava um sentimento de orgulho e
satisfação. Na imprecisa claridade azul do entardecer,
Rathborne parecia verdadeiramente um castelo de romance.
Concordou com um sinal de cabeça.
— E belo e mais do que isso. É o nosso lar.
Vera deixou escapar um suspiro de contentamento.
— Lar!... Meu querido, mal posso acreditar na sorte que
tenho.
Giles ficou olhando, emocionado, seu rosto pálido. Ela pa-
recia estranhamente frágil e cansada.
— Você está precisando de um bom banho e de uma boa
noite de sono.
— E de um bom jantar! A cavalgada abriu-me o apetite.
— Ela voltou-se na sela, preocupada. — Acha que encontra-
remos algo para comer?
Ele sorriu de sua simplicidade.
— Haverá sempre ovos, pão e queijo, além de uma
cerveja saborosa. Se isso não a satisfizer, pedirei a Lady Irma
que nos prepare algo mais substancial.
— Ótimo!
Prosseguiram tão lentamente quanto o permitia a marcha
de seus cavalos, comprazendo-se com aqueles últimos minutos
de privacidade total. Nunca tinham estado tão próximos nem
se comunicado mais profundamente entre si como naqueles
instantes através do fresco crepúsculo.
Justamente nesse momento, Califa relinchou,
pressentindo perigo. Giles ia reprimir seu ardor, evitando que
entrasse em pânico, quando uma flecha crivou a anca do
fogoso animal. Logo em seguida, outra atingiu-lhe o jarrete,
prostrando-o por terra.
— Golpe de covarde! — gritou, desembaraçando-se
rapidamente dos estribos e pondo-se de pé.
Já estava prestes a desembainhar a espada, quando mais
uma flecha o atingiu no ombro direito, a força de sua trajetória
arremessando-o ao chão. Tentou armar o braço esquerdo, mas
de uma posição tão desvantajosa era impossível resistir ao tiro
daquefe terrível arqueiro.
— Não se exponha a ser morta ou ferida! — gritou para
Vera. — Prossiga e não pare por motivo algum!
Sua advertência não foi ouvida. Ela desmontou e correu
para ele, procurando arrastá-lo para a beira da estrada.
— Fuja! — tornou a gritar, desesperado.
— Não!
Houve um ruído por entre as folhagens e outra flecha
partiu na direção deles, rápida como um raio. Instintivamente,
Giles protegeu-a com o próprio corpo. Não sentiu o impacto.
Apenas viu, de repente, na relva, uma flor vermelfia surgir
diante de sua cabeça caída e crescer até encher o horizonte.
Depois, suas pálpebras se fecharam. Vera debruçou-se sobre
ele.
— Giles!
Não houve resposta, só o silêncio profundo de algo que
se contrai e espera. Como o salto de uma fera. Ela ergueu-se,
com a espada na mão, pronta a enfrentar aquela presença viva
e perigosa, mas tarde demais. Alguma coisa atingiu-a na nuca,
cortando-lhe a respiração.
— Vera!
Ouviu a exclamação de surpresa enquanto tombava na
poeria da estrada. Não perdeu a consciência. Havia um
pensamento no fundo de sua cabeça que persistia em não
abandoná-la. Procurou levantar-se, mas as trevas desceram
sobre ela.

Giles permanecia num mundo informe e vazio, sob


impressões confusas. Alguém debruçava-se sobre ele,
transportavam-no para algum lugar. Uma voz chegava da
névoa: In nomine Patriis, et Filii, et Spiritus Sancti... Súbito, foi
puxado para o fundo do abismo.
Quando tornou a emergir, uma voz de homem reclamava,
energicamente:
— Acorde-o!
— Não posso, my lord. Ele está assim desde que o
achamos à beira da estrada, banhado em sangue. Muito mal.
Giles coordenou forças para enfrentar o pesadelo.
Enquanto se abeirava da consciência, sentiu que o suspendiam
e o levavam por um corredor interminável. Ouviu uma voz
feminina... Lady Irma? e tudo tornou-a dissolver-se em brumas
úmidas e no esquecimento do sono.
Uma vez, chegou-lhes aos ouvidos a voz de Francis Finch.
Outra, as vozes que o interpelaram eram ásperas e
desconhecidas. E Vera? Onde estava ela? Não se conformava
com o abandono em que o deixava.
De vivo nele, só sentia o rosto. O resto de seu corpo
estava completamente entorpecido. Na sua revolta, esforçou-
se para libertar os braços e as pernas das correntes que
pareciam prendê-lo.
— Veja! — murmurou alguém excitadamente.
Seria Francis? Tentou abrira boca, mas não conseguiu
emitir nenhum som.
— Giles, meu velho! Pode ouvir-me?
Queria apenas dormir e não se lembrou de responder. Um
torpor subiu-lhe pelos membros e principiou a cair num poço
escuro, onde o tempo parecia transcorrer com infinita lentidão.
"Já sei", pensou. "Morri e estou no inferno".
— É inútil, Sir Francis. Ele tem sido sangrado desde o dia
em que chegou aqui. Sem resultados positivos. Tenho a
impressão de que não vai sair da inconsciência.
Giles abriu a boca e aspirou o ar. Sons ininteligíveis subi-
ram-lhe pela garganta. A custa de um esforço doloroso,
conseguiu reuni-los em palavras:
— Deixe-me em paz.
— Oh, meu Deus!...
Abriu os olhos e acordou numa cama larga e baixa,
encostada à parede, sob a qual pendia um crucifixo.
— Quem está aí? — perguntou. — Quero ver.
— Sou eu. Está me reconhecendo? — O rosto sorridente
de Finch ondulou diante dele.
— Então não morri...
— Você é feito de material resistente. Mas foi por pouco!
Que susto nos pregou!
Francis ajudou-a a sentar-se, auxiliado pelo barbeiro.
— Ainda é cedo para mexer-se. Olhe só para a frente.
Quando a tontura passou, Giles reconheceu as grades da
janela. Estava numa cela de prisão.
— Estou na Torre?
Francis suspirou fundo.
— Adivinhou. Está na Torre por vontade da rainha.
Trouxeram-no para cá ainda inconsciente.
Giles tomou um gole de água que o barbeiro lhe ofereceu
e foi díreto ao assunto.
— Posso perguntar por quê?
Um guarda surgiu no seu ângulo de visão.
— E acusado de vários crimes, my lord.
— Quais? — ele indagou calmamente.
— Rapto de uma jovem sob a proteção da rainha, roubo
de cavalos das estrebarias reais e assassinato.
— Assassinato? ... Assassinato de quem? — Giles voltou-
se para Francis, que empalidecera. — Ou esse homem é um
louco ou eu perdi a razão!
— A sua posição é das mais delicadas, meu amigo. Não
posso ocultar-lhe que você deve responder a julgamento. É
acusado de raptar Lady Verena Stanton para impedir que ca-
sasse com Charpentier. E...
— E ...
— E de matá-la quando ela o rejeitou.
"Vera morta?" A pergunta que Giles fez a si mesmo
passou-lhe como um relâmpago pela mente. Não, não!...
— Não a matei, não a matei! — gritou, com toda a força
de seus pulmões.
Depois caiu ao chão e mergulhou no esquecimento da
inconsciência.
Francis, firmemente empenhado em salvá-lo, trabalhou
na sombra dos acontecimentos, procurando que a justiça
cometesse um terrível engano. Mas, apesar de sua diligência, o
processo foi instaurado e Giles pronunciado.
O julgamento, retardado quase um mês pelo estado
gravíssimo do réu, suscitou grande interesse pela posição
social das partes envolvidas. Uma verdadeira multidão acorreu
a Westminster, onde se estabelecera a corte de justiça. Ali, sob
o magnífico teto de vigas marchetadas, se decidiria a sorte de
Giles de Rathborne.
O tribunal erigido para o julgamento ocupava uma
plataforma do grande salão. A parte inferior estava tomada
pela numerosa assistência. Charpentier, todo vestido de negro,
sentava-se na primeira fileira dos bancos dos nobres e Francis
Finch, que perdera toda esperança na absolvição de seu amigo,
na segunda.
A entrada do júri, o bastão da justiça, com duas pancadas
lentas e solenes, deu o sinal para que começasse os trabalhos.
Uma voz impessoal convocou:
— Giles, Lorde Rathborne é chamado a depor.
Giles avançou lentamente, os pulsos presos em algemas
de ferro, como um prisioneiro comum, o ombro ainda
enfaixado, e foi sentar-se no banco dos condenados com os
olhos perdidos na distância.
Um murmúrio abafado percorreu o recinto. Mas o júri,
presidido pelos ilustres condes Warwick e Rutland, oferecia o
aspecto da mais solene gravidade, uma demonstração clara de
que nada o comoveria.
Sir Lumleigh, que funcionava em nome da Coroa, ergueu
a voz e dirigiu-se a Giles.
— A manhã de 8 de Outubro, o senhor deixou Hampton
Court secretamente, em companhia de Lady Verena Stanton. É
verdade?
— Sim, senhor.
— E com que objetivo? — Lumleigh aproximou-se, o dedo
em riste. — Levar a inocente jovem para uma estalagem e
fazê-la compartilhar seu leito!
— Não era esse o meu objetivo, senhor.
— Pois eu afirmo que o senhor tomou-a pela força e a
desonrou! As circunstâncias o apontam nitidamente, e todos os
fatos que descobrimos confirmam esse ponto de vista.
Giles ergueu os olhos chamejantes.
— Não é verdade! Eu a respeitava. íamos nos casar
assim que chegássemos a Rathborne!
Surgiram murmúrios de surpresa. Charpentier levantou-
se, impetuoso, e injuriou-o furiosamente..
— Mentiroso! Patife!
Giles esperou até que o silêncio se restabelecesse para
afirmar:
— Eu a amava. Ela era o sangue de meu sangue, e alma
de minha alma. Teria dado minha vida para salvá-la...
Lumleigh falou precipitadamente, como um ator que
recebe sua deixa:
— Mas não o fez! Lady Verena não chegou a Rathborne.
As luvas, o manto e o gorro que ela usava foram encontrados
na floresta de Rathborne, empapados com seu sangue!
O advogado de Giles levantou-se de um salto.
— Com o sangue de Lorde Rathborne, my lordl Ele estava
gravemente ferido. Durante o ataque dos bandoleiros, recebeu
duas flechadas, uma das quais ao tentar proteger sua lady com
o próprio corpo!
O conde Warwick não o deixou prosseguir.
— Espere até que eu lhe conceda licença para falar,
Fielding.
— Minha obrigação é evitar que sejam cometidos
equívocos grosseiros ou deturpações dos fatos, senhor.
— Prossiga, Lumleigh — ordenou o juiz, impassível. O
representante da Coroa plantou-se diante de Giles.
— O senhor falou em promessa de matrimónio, em juras
de amor...
Houve uma pausa dramática, antes que ele finalizasse,
com a mais firme convicção:
— Mas essa mulher, que o senhor afirma ter retribuído o
seu amor disse à própria rainha, diante da corte, que não
queria absolutamente casar-se consigo!
A seguir, apanhou a folha de anotações e começou a ler:
— A rainha perguntou a Lady Verena se ela o queria para
marido. De acordo com as testemunhas, a resposta da infeliz
jovem foi exatamente essa: "Nossos temperamentos não com-
binam. Não podemos ficar juntos um só minuto sem discutir".
Essas palavras despertaram comentários entre a
assistência. Quando os murmúrios cessaram. Lumleigh falou:
— É do conhecimento de todos que Lady Verena aceitou
uma proposta de casamento de Louis, marquês de Charpentier.
Iriam casar-se tão logo os editais fossem publicados.
Ele voltou-se para Giles e passou algum tempo a estudá-
lo, antes de armar o bote.
— O senhor é tão licencioso em seus prazeres como
desenfreado em suas ambições. Queria a fortuna de Lady
Verena para encher seus cofres vazios. A força ou por meio de
ameaças, induziu-a a acompanhá-lo num passeio pelos campos
e depois a uma estalagem, onde a possuiu.
O acusador público caminhou para os jurados, falando
baixo, como oprimido pelo terrível do que ia revelar-Hies.
— Lorde Rathborne não é um sentimental ou romântico,
mas um homem voraz e desapiedado, arriscando tudo num
golpe audacioso. Os gritos e os gemidos de desespero de sua
vítima foram ouvidos pelos frequentadores da taverna que in-
felizmente, confundiram-nos com os gritos e os gemidos da
paixão.
Todos os olhares se voltaram para Giles. Ele, porém, per-
maneceu calado. Vera estava morta. Para que oferecer
batalha, se não queria viver sem ela?
Lumleigh prosseguiu, implacável:
— Afirmo, Lord Rathborne, que o senhor desfrutou a
pobre criatura e então, desvairado pelo ódio e pelo ciúme,
matou-a com suas próprias mãos. Depois de praticado o crime,
caiu em si e compreendeu que tinha cometido um homicídio e
que para isso o castigo é a forca. Tomado de desespero,
enterrou os restos mortais entre as raízes de um carvalho, na
floresta de sua propriedade!
O efeito dessas palavras foi terrível. O advogado de
defesa levantou-se novamente, também ele dramático.
— O senhor parece esquecer que Lorde Rathborne
estava gravemente ferido! Ele apenas não morreu porque a
Providência Divina interveio!
Lumleigh entreabriu os lábios num sorriso ferino.
— My lord foi ferido ou por sua vítima, numa desesperada
tentativa de escapar de suas garras, ou feriu-se
deliberadamente, para simular um ataque de bandidos e
escapar assina à punição da lei. Permita-me lembrá-lo de que
nos autos do processo não há nenhuma referência a flechas.
Outro protesto do advogado de defesa deixou claro que
duas flechas tinham sido retiradas do corpo de Giles e jogadas
ao fogo. Mas seu cliente manteve-se absolutamente impassível
e não confirmou. Os olhos cansados, as olheiras profundas, ele
parecia apenas querer que tudo terminasse o mais depressa
possível.
O julgamento prosseguiu, entremeado de lances
dramáticos. A defesa desempenhou muito bem o seu papel,
mas os indícios eram insuficientes para convencer o júri. Ao
passo que a acusação tinha provas em demasia. Havia motivo,
oportunidade, tudo. E, no final, o desfecho foi previsível: a
condenação de Giles.
No dia seguinte, ele foi levado de novo ao tribunal para
ouvir a sentença. Do banco dos réus. esquadrinhou a sala.
Charpentier soberbo, arrogante, os olhos insolentes de
triunfo... Letícia Lattimore pálida, chorosa...
Fitou Francis Finch. A expressão sombria de seu rosto
deixou-o pesaroso. Quis confortá-lo: "Não chore por mim.".
Mas parecia que não ia ter essa oportunidade. Sua sorte
estava decidida para sempre.
— Levante-se o réu.
Giles levantou-se vagarosamente, os pensamentos
confundindo-se uns com os outros.
O conde Warwick ordenou que a corte se levantasse e leu
o sumário de culpa:
— Lorde Rathborne, o senhor foi julgado por seus pares e
declarado culpado pela morte da infeliz Lady Verena Stanton.
Deveria ser decapitado. Mas como a vítima encontrava-se
ainda sob a guarda da Coroa seu crime foi considerado alta
traição.
Giles deixou pender a cabeça sobre o peito. A sentença
atingira-o em cheio.
Warwick continuou:
— O senhor terá a morte reservada aos traidores. Será
enforcado e seu corpo esquartejado.
Pronunciado o veredicto, os jurados abandonaram o
recinto e Giles foi conduzido, cambaleante, através de uma
multidão hostil. Caminhava sem ver nada, sem olhar para
nada, um grito estrangulando sua garganta: "Vera, Vera..."
A uma centena de milhas dali, no Convento Santa Inês,
uma jovem mulher estava sentada junto à lareira da saleta de
visitas. Com o rosto apoiado na mão, diante do fogo aceso, ela
procurava reconstruir as últimas semanas, sentir e ver os fatos
que tinham acontecido.
A medida que as primeiras imagens ficavam mais vívidas
e reais, tudo parecia aquecer-se ao seu redor. Revia a partida
da pequena estalagem, após uma noite de amor nos braços de
Giles, ouvia suas palavras. Relembrava sua emoção, à vista de
Rathborne.
Um suspiro escapou-lhe do peito. Agora, passava as
noites numa estreita cela monacal. Tinha os cabelos cortados
rente e sentia-se tão fraca e indefesa como um recém-nascido.
— Chegamos a pensar que a febre sacrificasse sua vida.
Não esperávamos que sobrevivesse — dissera-lhe irmã
Jaquetta.
Febre perniciosa. Lembrava-se, embora vagamente, de
sua dor de cabeça e dos tremores incontroláveis um ou dois
dias antes de fugir de Hampton Court. Mas havia lacunas,
pormenores completamente esquecidos. Não tinha como
recordá-los. Talvez, sobrepujada pelo mal, tivesse caído do
lombo de Griselda. Essa era a última imagem que retivera.
Não podia censurar Giles por tê-la trazido ali. Sempre que
uma epidemia envolvia a aldeia em sua rede mortífera, as ví-
timas eram isoladas para evitar o contágio. E sempre as irmãs
sabiam como ajudá-las e como aliviar suas dores.,
Mas encontrava-se no convento havia muitas semanas,
esperando dia após dia, hora após hora, que ele viesse buscá-
la. Por que ainda não o fizera? Já estava restabelecida e pronta
para voltar a Rathborne...
O eco de passos no corredor vazio interrompeu-lhe os
pensamentos. A pequena irmã Jaquetta entrou na sala
sorridente e anunciou:
— Há um jovem que voltou para vê-la, minha filha.
— Deus seja louvado!
Vera levantou-se de um salto, esperando ver a figura alta
e musculosa aparecer no limiar. Mas seu visitante era um com-
panheiro franzino, mais um adolescente do que propriamente
um homem.
— Hewe!
Ele entrou e parou no limiar, com uma curiosa mistura de
alegria e acanhamento. Depois avançou e parou diante dela.
— Vera... — murmurou, estendendo-lhe um pequeno
buque de flores do campo.
Ela o fitou com ansiedade.
— Thad veio com você? Hewe sentiu-se corar.
— Vim sozinho.
Lágrimas afloraram aos olhos de Vera. Seu pai adotivo
dava-lhe as costas.
— Parece que todos se esqueceram de mim...
Hewe ficou um momento em silêncio. Nunca a vira chorar
e isso o encheu de remorsos.
— Eles... eles não sabem que você está aqui —
gaguejou.
— O quê?
Ele olhou-a quase com raiva. Vera sempre queria saber
por que as coisas aconteciam... Mas acabou por confessar:
— Eu... eu não disse nada a ninguém.
Vera fitava-o, boquiaberta. Ele devia ter perdido o juízo.
— Não disse?...
— Se eles soubessem, teriam vindo e levado você para a
granja da irmã de Garvin — respondeu Hewe, em tom des-
contente. — Eu os ouvi falar a esse respeito mais de uma vez.
Subitamente, ele ajoelhou-se diante dela e beijou-lhe as
mãos.
— Amo você, Vera. Sempre a amei. — Havia em sua voz
uma ternura rouca. — Mas Thad tinha outros planos. Preferia
dá-la a Garvin. Quanto a Rathborne... o canalha pagou caro
pelo mal que lhe fez!
Vera desvencilhou-se dele e ficou a olhá-lo, o rosto como
uma máscara de mármore.
— Que está querendo dizer? — perguntou, com um fio de
voz.
Uma expressão estranha, mas não obstante reconhecivel,
estampou-se na fisionomia de Hewe.
— Você pensa que eu sou um perfeito idiota, não é? Pois
não sou! Não me deixei enganar pela belas palavras do lorde,
como os outros. E decidi que não iria permitir que ele a cor-
rompesse, enquanto eu permanecia de braços cruzados. Tinha
que fazer alguma coisa!
Vera sentiu um começo de pânico. Hewe era um garoto
esquisito, diferente dos outros. Sempre fora assim.
— Conte... conte tudo — incentivou-o, trêmula em seu
esforço para dominar-se.
Hewe, satisfeito com a oportunidade de revelar sua
esperteza, começou, na sua fala vagarosa:
— Eu estava caçando sozinho, quando vi Lorde Rathborne
chegar a galope...
— Vamos, fale. Eu saberei compreender.
— Num segundo, minha decisão estava tomada. Tinha
de matá-lo para que você ficasse livre.
Vera olhava-o respirando com dificuldade. Espantava-a a
expressão de seu rosto. O que ele fizera a Giles? Tentou per-
guntar, mas a voz ficou presa em sua garganta.
Seu companheiro não notou e prosseguiu, tenso e
excitado:
— No primeiro momento não a reconheci, disfarçada de
criado. Mas quando você virou-se para a floresta, meu coração
bateu forte. Era hora de agir. A primeira flecha errou o alvo.
Rathborne galopou na sua direção, com medo, certamente, de
que você fugisse dele e de sua influência.
Vera conseguiu dizer, por fim, com uma voz que não era
a dela:
— Que aconteceu?
— Acertei-o no ombro com uma flecha que era
endereçada a seu coração...
Hewe interrompeu-se. Tudo era tão confuso... Mas,
afinal, completou, atropelando rapidamente as palavras:
— Então... tudo aconteceu ao mesmo tempo. Você
tropeçou e caiu. Embora estivesse sangrando como um touro,
Rathborne teve forças para agarrá-la. Enviei-lhe outra flecha e
ele ficou imóvel no chão.
— Oh, Santo Deus! — arquejou Vera.
Hewe continuou, como se estivesse falando não para ela,
mas para si mesmo:
— A égua assustou-se com o cheiro de sangue. Empinou-
se e, ao descer, atingiu você na nuca.
Ele pôs-se a tremer, à medida que recordava os aconteci-
mentos.
— Oh, Vera... que susto você me pegou! Pensei que esti-
vesse morta. Tomei-a nos braços e levei-a para uma cabana
abandonada. Foi só no dia seguinte que percebi que você
estava com febre. Lembrei-me das boas irmãs do convento e a
trouxe para cá, para que elas cuidassem de você.
— Isso é verdade? — ela balbuciou.
Hewe acenou afirmativamente com a cabeça.
— Salvei-a de seu captor, Vera. E agora vou tomar conta
de você. Quero que se case comigo.
— Você deve estar louco!
Os lábios dele decaíram, mal-humorados.
— Mas o que há com você? Pensei que o odiasse!
— Odiá-lo... eu? Éramos amantes! Hewe recuou,
constrangido.
— Você não pode estar falando sério.
— Claro que estou!
Vera teve que fazer um supremo esforço para conter seu
tremor.
— Que foi feito de Giles?
— Safou-se, o miserável!
— Graças a Deus! — ela murmurou com fervor. — Ele
sabe que estou aqui?
— Por que quer saber?
A resposta saiu-lhe da boca numa torrente de palavras:
— Porque o amo! É unicamente isso, nada.mais do que
isso. Preferiria morrer a causar-lhe qualquer sofrimento!
Viu Hewe empalidecer e sentiu pena.
— Não posso casar-me com você, Hewe. Você é meu
amigo de infância, mas Giles... Giles é a minha outra metade.
Houve uma nota de triunfo na voz de Hewe.
— Você mudará de ideia, quando ele for executado.
Vera o fitou com uma expressão aturdida no rosto.
— A quem você se refere?
— Lorde Rathborne! — exclamou Hewe com súbita fúria.
— Ele morrerá por enforcamento daqui a três dias.
Ela o agarrou pelos ombros.
— Por quê?
— Seu belo lorde não passa de um assassino!
— Não acredito!
— Pois é verdade! Matou sua jovem pupila, Lady Verena
Stanton. Parece que os dois não se entendiam e que ele a
matou num acesso de cólera. As provas eram claras. Ele foi
julgado e condenado à morte dos traidores.
— É uma loucura monstruosa!
Hewe sorriu, cego pela vitória. „
— E a verdade! Você o perdeu para sempre!
Diante desse golpe, Vera sentiu uma ligeira vertigem.
Seu poder de resistência cedeu e ela deslizou para uma
escuridão completa.

CAPITULO XIV

Um dia antes da execução, um velho padre foi introduzido


na cela do condenado.
— Deseja confessar seus pecados, meu filho? — ele inda-
gou, abrindo o gasto livro de orações.
— Confesso que fui insensato e impaciente, e me
entristeço por isso — foi só o que Giles respondeu. Mas
gostaria de acrescentar: se deseja ouvir uma confissão de
assassinato, vá procurar em outro lugar.
— Mas essa não é uma confissão completa — objetou o
sacerdote, paciente.
— Sou inocente do crime que me atribuem.
— Recomendo-lhe que faça uma confissão geral e que
reze para ser perdoado. Depois terá consolo.
— Estou muito cansado. Gostaria que o senhor fosse
embora — disse Giles, com gélida polidez.
O velho padre olhou-o sem ressentimento.
— Então não há mais nada a dizer?
— Nada mais.
O religioso fechou o livro de orações e tomou:
— Nunca é tarde demais para um ato de
arrependimento. Passarei a noite orando pela salvação de sua
alma.
Quando ele se retirou, um homem de elevada estatura
apresentou-se ao carcereiro. Houve um tilintar de moedas e
logo em seguida as portas da cela se abriram para admitir
Francis Finch.
Ele avançou, retirando o gorro e o manto cobertos de
neve.
— Não vim antes porque não pude, Giles. Não pense que
o abandonei na hora em que mais precisa de apoio!
Giles apertou-lhe a mão.
— Eu o conheço bem, Francis. Nunca pensaria isso de
você. Temos sido bons amigos. Fico-lhe agradecido.
— Lamento que termine assim — suspirou Francis.
Depois, como já dissera tudo o que tinha a dizer e não
sabia como despedir-se, ele finalizou:
— Há alguma coisa que eu possa fazer para tornar mais
leve suas últimas horas?
Giles passou por ele e foi espiar pela janela. Dali, podia
ver a pequena porta que conduzia ao parapeito relativamente
baixo, talvez um antigo posto de vigia contra os ataques dos
inimigos que chegavam via rio. E vislumbrar, através das
árvores meio despidas, o Tamisa arrastando suas ondulações
lodosas. Naquele momento, um barco de gala desembarcava
no cais os dignitários que chegavam para a execução. Seguiu-
lhe o rumo com os olhos.
Decorrido um momento, voltou-se para Francis e olhou-o
como se não o estivesse vendo.
— Há, sim, uma coisa que você pode fazer por mim.
— Diga, então.
— Meu corpo será enterrado ou cremado?
Francis fitou-o com olhos perturbados. Seu amigo falava
da morte com naturalidade, até com um estranho alívio.
— Enterrado — respondeu laconicamente.
A sombra de um sorriso perpassou pelos lábios contraídos
de Giles.
— Nesse caso, quero ser enterrado ao lado de Vera.
Francis ficou pensando se devia ou não falar abertamente
ou se era melhor não o fazer. Para que perturbá-lo nos
instantes finais?
Giles percebeu sua hesitação e lançou-lhe um olhar longo
e penetrante.
— Não vai me negar esse último pedido, vai? Francis
manteve a voz sem a menor inflexão.
— Há um problema.
— Que espécie de problema?
— Eis aí a parte estranha do caso. Não encontraram o ca-
dáver.
— Como? Gomo? — perguntou Giles, como se não tivesse
entendido direito.
— Eu disse que os restos mortais de Vera não foram en-
contrados.
— Mas Lumleigh foi categórico, ao afirmar que ela está
enterrada debaixo de um carvalho!
Francis abanou a cabeça.
— Isso é o que ele supõe. Acharam seu manto, o gorro e
as luvas. Nada mais.
De repente, Giles teve a impressão de que flutuava em
direção da luz. Talvez Vera estivesse viva... Sentiu-se
renascer.
— Procure lembrar-se, Francis. É importante. Quando me
levaram inconsciente para Rathborne, eu tinha alguma coisa de
valor comigo? Ouro, moedas de prata, jóias...
Seu amigo foi relutante.
— Não vejo que importância pode ter isso agora.
— Não respondeu à minha pergunta, Francis.
— Você não foi roubado, se é isso o que está querendo
saber. Quando o encontraram inconsciente à beira da estrada,
estava com sua bolsa de moedas no cinto e todas as suas
jóias.
Francis silenciou por alguns instantes.
— Posso saber — prosseguiu — por que isso pode ser
importante?
— Não percebe? — disse Giles com uma nota de
excitação na voz. — Se não fomos atacados por um bando de
salteadores de estrada, como cheguei a acreditar, Vera pode
não ter sido morta!
— Acho que não o estou entendendo muito bem.
— Não sei como explicar. Não tenho uma lembrança
nítida dos acontecimentos. Mas sei, com certeza que, na hora
do ataque, estávamos perto do lugar onde vive aquele bando
de proscritos!
Giles fez uma pausa, sentindo uma raiva intensa de sua
própria estupidez.
— Eu devia ter pensado nessa possibilidade! Quem
poderia me atacar de surpresa em minhas próprias terras? E
quem mais teria interesse em Vera?
— Deus do céu! — exclamou Francis. — Acha que ela foi
raptada por sua própria gente? Mas se está ainda viva, por que
não voltou para provar que você é inocente?
O rosto de Giles anuviou-se.
— Temo que esteja ferida, ou então prisioneira de seus
companheiros. Conheço Vera. Ela encontraria um modo de
voltar para mim, se pudesse.
— Que devemos fazer?
— Encontrá-la, Francis. Faça isso, pelo amor de Deus!
Cuide dela para mim. Se tiver certeza de que ela está bem,
poderei encarar a morte com serenidade.
Francis não pôde deixar de sorrir.
— Se Vera estiver viva, não há razão para que você
morra! Não havia tempo a perder.
Esboçaram rapidamente um plano de ação. Para que a
cartada fosse bem jogada, era preciso que todos os lances
estivessem estudados e todas as entradas decididas. O
primeiro passo, obviamente, era fazer uma petição solicitando
a suspensão imediata da pena.
Algumas horas depois, Francis seguia cabisbaixo pelas
ruas apinhadas de Londres. Ainda oprimido pela risada irônica
de Lumleigh, caminhava alheado, sem ver a multidão
apressada que passava sem cessar a seu lado nem ouvir o
apelo das meretrizes já postadas nas esquinas.
Estavam desfeitas todas as esperanças que alimentara
sobre a sorte de Giles. O pedido fora negado. Falta de
evidências, dissera-lhe um dos juizes. Fantasias de um amigo
desesperado, observara outro. Cada um vira o caso de maneira
diferente, mas nenhum dos magistrados com quem tinha
falado duvidava de que lorde Rathborne, fosse o que fosse, era
também um assassino.
Giles, contra todas as expectativas, aceitara bem o
indeferimento. Extraordinariamente bem, considerando as
circunstâncias. Talvez porque, no fundo, já não esperasse coisa
alguma. Não havia como localizar Vera, na hipótese de que ela
estivesse ainda viva, e trazê-la de volta a Londres a tempo de
evitar a execução.
Francis agasalhou-se mais contra o vento frio,
perfeitamente cônscio de que agora, havia um único meio de
Giles salvar-se.

Lady Letícia Lattimore deixou o sofá e aproximou-se da


janela. Uma claridade opaca descia com a chuva sobre as vi-
draças. O vento interrompera o tráfego no rio e soprava agora
em rajadas tempestuosas, arrancando as últimas folhas das ár-
vores.
Os jardins, com o céu cinzento, os espaços vazios, as
folhas caídas, aumentaram sua angústia. Arrepiada, voltou
para o sofá diante da lareira acesa. Enquanto as chamas
envolviam-na em seu calor, tornou a pensar em Giles e em sua
triste sorte.
A voz calma, seca, da rainha interrompeu-lhe o
pensamento.
— Faz muito frio em Greenwich, não acha?
Letícia assentiu ausentemente. Encontrava-se ali com a
corte, mas seu coração estava com Giles de Rathborne, que
seria executado no dia seguinte, ao meio-dia.
Elizabeth deixou o grupo de suas damas e foi sentar-se
ao lado dela.
— Esse frio invernal parece congelar meus ossos e eu não
gosto disso. Amanhã mesmo partiremos para Richmond. Te-
mos que nos preparar para o Advento e para as festividades de
fim de ano.
— Estou com pouca disposição para os divertimentos —
retrucou Letícia com um suspiro fundo.
Elizabeth compreendeu perfeitamente seus sentimentos.
— Nem eu, minha cara lady. Como sabe, Lorde Rathborne
era um de meus favoritos — disse, com vol cansada mas
gentil.
Depois caiu num longo silêncio. Até que ponto sua
intervenção indiscreta complicara a vida dele? (Quisera,
excepcionalmente, fazer o papel de Cupido e agora estava
terrivelmente pesarosa quanto ao resultado.
— É quase inacreditável. Não lhe parece, Majestade? —
perguntou Letícia.
— É demasiado horrível! — exclamou Elizabeth,
emocionada. — Apesar das evidências em contrário, custo a
acreditar que Lorde Rathborne seja culpado desse crime.
Letícia fitou-lhe o rosto, mais pálido do que
habitualmente. Ela estava cheia de amargura. Mas era
inteligente, senhora de si mesma. Iria conformar-se diante do
inevitável.
— Ele pode não ter matado por dinheiro — observou —
Mas no calor do ciúme, quem sabe? ... Sir Giles é ciumento até
a loucura.
A rainha assentiu lentamente. Quem podia, realmente,
conhecer os segredos do coração de um homem? Se tivesse
podido penetrar na consciência de Leicester e certificar-se de
que ele não era culpado pela morte da esposa, o curso de sua
própria vida teria sido outro.
— Bom, vamos falar de coisas mais agradáveis. — A
rainha sorriu. — Soube que Charpentier voltou seus olhos para
você.
— E para meu dote de viúva. — replicou Letícia, realista.
— Porém, se Sua Majestade tiver gosto nessa união, basta
dizer-me.
— Não estou disposta a promover outro casamento. Mas
você o ama?
Letícia a fitou, pensativa. O primeiro marido
decepcionara-a. Outro casamento poderia acontecer algum dia,
se o homem fosse bastante importante para ela. Mas que
espécie de homem era o marquês?
— Não sei. Poderia fazer um esforço nesse sentido, mas
prefiro um homem mais viril. Não um homem que apenas se
case comigo, mas que me faça vibrar.
Elizabeth pousou a mão coberta de anéis em seu braço.
— Um diamante bruto? Eu também, Lady Lattimore. Eu
também, para minha profunda tristeza!
A rainha olhou para as chamas, perdida em pensamentos.
Passado um minuto, suspirou e tornou a aparecer tal qual era
com suas damas: serena e autoconfiante.
— Vou me recolher. Estou pouco disposta ao convívio so-
cial. Avise o mordomo que embarcaremos para Richmond ama-
nhã.
Letícia, de súbito, alimentou a esperança de que
pudessem estar longe, quando a notícia da morte de Giles
chegasse a Greenwich.
— A que horas, Majestade?
— Por volta das onze. Então, já estaremos no barco real.
Eu também não quero ouvir as plangentes badaladas do meio-
dia, Lady Lattimore. Sigamos para Richmond e não pensemos
mais nisso.
Letícia fez-lhe uma reverência. Ao erguer-se, avistou
Charpentier aos pés da escadaria. Ele ainda não a vira.
Recuando até que a sombra da porta a engolisse, recolheu as
saias e tomou a direção oposta.
"Estou ficando doida na maturidade", refletiu. Um ano
antes, não teria se esquivado à corte de um homem tão bonito
e cativante. "Se continuar assim, terminarei meus dias como
dama de honor da rainha... Ou sozinha em Lattimore Manor,
em companhia de meus criados e de meus gatos!"
A caminho de seus aposentos, teve sua atenção desviada
para um pequeno grupo parado junto à porta. Uma pessoa
estranha discutia com o mordomo real, que o tratava com a
altivez que costumava dispensar aos indivíduos de condição
inferior.
Viu-o de relance e ficou com a respiração suspensa. O ho-
mem parado ali, que parecia ter vindo de muito longe, vestia
as cores de Rathborne! Avançou rapidamente a tempo de ouvi-
lo dizer: '"
— ... pelo amor de Deus, homem! Preciso ver Lady Latti-
more imediatamente. Há uma vida em jogo!
— Sou Lady Lattimore — anunciou.
Depois fez um gesto ao senescal para que o deixasse
passar e examinou-o mais detidamente. Era um homem alto,
magro, de seus quarenta e poucos anos. Tinha os cabelos
levemente grisalhos nas têmporas, fisionomia franca e aberta,
belos dentes e uma cabeça bem proporcionada. Em seus olhos
cinzentos havia orgulho e desconfiança, como alguém que
passasse a vida a sustentar direitos constantemente
ameaçados. "Um homem de fibra", pensou.
— Graças a Deus! — ele disse com fervor. — Trouxe uma
carta. Recomendaram-me que a depositasse em sua mão. Ou
então na mão da própria rainha.
Letícia olhou-o de alto a baixo.
— Quem é o senhor e por que usa as cores de um
traidor? O homem enrubesceu de cólera.
— Lorde Rathborne não é traidor. Muito menos assassino!
Leia a carta, my lady, e se certificará disso.
Letícia quebrou o selo da missiva e leu rapidamente as
linhas que pareciam ter sido escritas sob forte emoção. Leu-as
de novo. Depois ergueu os olhos e sorriu através das lágrimas.
— Como se chama, senhor? E de onde veio?
O estranho deixou escapar um suspiro, mas seus olhos
cinzentos brilhavam, bem-humorados.
— Se eu lhe dissesse onde vivo e qual é minha profissão,
my lady, não iria acreditar!
Depois, com uma cortês reverência, ele se apresentou:
— Sou Thad, o pai adotivo de Vera, a jovem que a
senhora conhece como Lady Verena Stanton.

— Mais depressa! — gritou Vera. — Não há tempo a


perder. Sua extenuada montaria avançava pela estrada de
Greenwich, expelindo barro para todas as direções. Estavam
cavalgando contra o vento, que soprava forte, prenunciando
uma nevasca.
— Temos que descansar! — queixou-se Hewe. — Nossos
cavalos percorreram várias milhas a toda a brida e estão a
ponto de cair de exaustão!
— Descanse, se quiser. Seguirei sozinha, sem você! — ela
respondeu, com irritação.
"Por quê?, perguntou-se pela centésima vez. Por que per-
mitira que Hewe a escoltasse? Ele mal sabia manter-se na sela
e a fazia perder tempo com sua tolices. Desesperada, ergueu
as rédeas e incitou a pequena égua a arremessar-se para a
frente.
Se tudo corresse bem, Thad devia alcançar Greenwich
antes do meio-dia. O testemunho dele teria a capacidade de
sustar a execução até o momento em que ela chegasse e
provasse, unicamente com sua presença, que a condenação
proferida contra Giles era falsa e injusta.
Um véu de lágrimas toldou-lhe a visão. Enxugou-as brus-
camente com o dorso da mão e consultou o céu. Depois
esporeou o cavalo em direção da estrada real.

Thad tinha a desagradável impressão de que mil olhos o


fitavam, enquanto se mantinha com o joelhos dobrado sobre o
tapete damasceno, diante da rainha. Estava consciente de seus
trajes miseráveis de camponês, de seu aspecto fatigado, de
sua voz abatida e inexpressiva.
Por contraste, a soberana parecia altiva como uma deusa,
toda vestida de branco e enfeitada de pérolas e diamantes. Ao
pensar que ela detinha nas mãos pálidas a sorte de Vera e de
Giles de Rathborne, sentiu um longo arrepio.
— Às suas ordens, Majestade — murmurou.
Elizabeth permaneceu um instante em silêncio,
examinando-o. Depois observou, com voz dura:
— Que provas tem o senhor de que a história que acabou
de me contar é a pura expressão da verdade?
— Primeiramente o bilhete da jovem que a senhora
conhece como Lady Verena Stanton, afirmando que está viva e
convalescendo de uma grave enfermidade. E depois isto. —
Thad retirou do bolso do gibão um pequeno embrulho e o
depositou nas mãos dela.
Elizabeth abriu-o. Dentro havia um antigo livro de
orações, escrito em francês, uma miniatura de Allys de Breffny
numa moldura de ouro e um envelope lacrado.
— Que significa isso? — perguntou, revirando-o entre
seus dedos longos e sensíveis.
A resposta de Thad veio nítida e firme:
— Aí está a verdade sobre o nascimento de Vera, escrito
por uma moribunda. Isso é tudo o que eu sei. Pretendia
entregá-lo à minha filha adotiva no dia de seu casamento.
— Por que não o abriu?
Thad enrubesceu.
— Não queria conhecer seu conteúdo.
— É o seu único motivo?
— É uma longa história, Majestade. Permite que a conte?
Elizabeth concordou com um aceno de cabeça.
— A época da grande epidemia, minha falecida esposa
deu atendimento a uma criança que se extraviara junto com
sua ama. A criada não resistiu à doença e, ao falecer, entregou
esse livro e a menina aos cuidados dela. Nessa ocasião, a
minha Winnie não fez referência ao livro. Não sabia ler, mas
intuía que tais volumes contêm, frequentemente, registros de
família. E temia que se alguém tivesse conhecimentos disso lhe
retiraria a guarda de Vera, por quem tinha verdadeira ado-
ração.
Os olhos cinzentos de Thad anuviaram-se de velhas
recordações.
— Foram dias felizes. Aprendi a amar a menina, que tinha
cinco anos na época em que ocorreu o fato, muito criança,
portanto, para compreender o que se passava. Tempos depois,
em seu leito de morte, Winnie falou-me sobre o livro. Foi então
que eu soube de sua existência.
Thad respirou fundo e fez uma pausa.
— Logo após seu falecimento, fui obrigado a refugiar-me
na floresta para escapar das arbitrariedades de John de
Rathborne. Vera acompanhou-me. Escondi o livro num lugar
secreto e não pensei mais nisso. Até ontem.
— Não lhe passou pela cabeça que a menina tinha o
direito de saber quem eram seus pais? — censurou-o
Elizabeth.
— Dei meu coração a Vera e a criei como se ela fosse
minha própria filha. Com o passar do tempo, quase esqueci
que ela não era realmente minha.
A rainha consultou o relógio de brilhantes, preso à sua
corrente de ouro. Sua mão tremia.
— Não creio que disponha ainda de muito tempo para
convencer-me. A menos que meu relógio não esteja
funcionando, dentro de poucos minutos Lorde Rathborne
estará a caminho do cadafalso.
Letícia consultou seu próprio relógio.
— Faltam vinte minutos para o meio-dia, Majestade.
Elizabeth olhou de um para o outro e tamborilou com o
dedo no braço da poltrona.
— O senhor afirma que ele não é um assassino, mas não
trouxe nenhuma prova disso.
Thad fitou-lhe o rosto encolerizado e suspirou
imperceptivelmente.
— A senhora a terá, Majestade. Quando Vera chegar.
— Mas ela ainda não chegou! Além disso, Giles de
Rathborne pode não ser culpado de assassinato, mas cometeu
outros crimes, igualmente graves. Tentou infringir-me uma
impostora para se apoderar de propriedades que, por direito,
pertencem à Coroa!
Letícia juntou as mãos e orou por Giles e por Vera. A
rainha estava perdendo a calma. Conhecia os sinais: aquelas
manchas vermelhas no alto das faces pálidas. Elizabeth
apontou o dedo acusador para Thad.
— Enganar e defraudar a Coroa é um crime, crime de
traição!
Ela esperou até que suas palavras calassem na mente
dos dois e finalizou, dramática:
— E a pena para a traição é a morte!

Um quadrado de luz reproduzia o formato da janela no


chão de pedra. E desapareceu assim que as nuvens encobriram
o sol. Nesse instante, a chave girou duas vezes na fechadura e
a porta da cela abriu-se.
— Chegou o momento, my lord.
Giles ergueu a cabeça. O carcereiro encontrava-se no
limiar, acompanhado de quatro homens de armas. O velho
padre estava ao lado dele, a estola sobre os ombros e o livro
de orações nas mãos enrugadas. Agora a coisa que ele mais
receava devia acontecer.
— Está na hora — tornou o homem.
Giles levantou-se lentamente e seguiu-os sem dizer
palavra.
Os guardas do cárcere, conhecendo a glória pessoal que
ele conquistara com seus feitos, lamentavam baixinho sua
sorte. Até a sentinela, um homem duro, de poucas palavras,
estava condoído. Quem podia censurar o lorde por ter perdido
a cabeça? Trocar um honesto inglês por um francês
amaneirado... Por Deus! Até onde as mulheres haviam
chegado com suas extravagâncias. Era realmente uma
vergonha! Num ímpeto, exortou-o a ter coragem.
Quando a lenta procissão alcançou o fim do corredor,
Giles parou diante da estreita porta de madeira. Sabia, pois
vira-a diariamente da janela de sua cela, que ela se abria para
o parapeito que dominava uma das laterais da Torre. Num mo-
vimento natural, voltou lentamente a cabeça e ergueu a mão.
— Um momento, senhores. Tenho um pequeno pedido a
fazer-lhes. Antes de morrer, gostaria de lançar um último olhar
sobre Londres.
O carcereiro olhou para o padre, que encolheu os ombros.
— Não vejo nenhum perigo nisso.
Obtida a aprovação, ele escolheu uma chave do molho
que trazia na cintura e introduziu-a na fechadura.
— Ali fora há um parapeito com uma bela vista da cidade.
Pode ir, mas não demore muito — advertiu.
Depois fez um sinal e um dos guardas adiantou-se com a
lança na mão e acompanhou o prisioneiro. Pela porta aberta,
chegavam o lento rufar dos tambores e os gritos da multidão
que se precipitava tumultuosamente para a frente, na ânsia de
assistir a execução.
Por um longo momento, Giles permaneceu imóvel,
contemplando o cadafalso, como se quisesse familiarizar o
espírito com o destino que o aguardava. Parecia alheio a tudo.
O guarda cutucou-o com a ponta da lança.
— Está na hora de descermos para o pátio, my lord.
— Não acelere minha morte! — ele implorou, simulando
um grande desespero e então deixou-se tombar de joelhos.
O desmoronar de um homem que parecia tão corajoso
comoveu o guarda, que deu um passo ém direção da porta a
fim de pedir instruções ao carcereiro.
Aquele instante de desatenção foi o sinal que Giles aguar-
dava para acionar seu esquema. Rápido como o raio, ele em-
purrou o guarda para o corredor, arrebatando-lhe ao mesmo
tempo a lança, com a qual bloqueou solidamente a porta.
— Mil desculpas, senhores! — gritou alegremente. Então,
ardente de impaciência, armou-se com a faca que Francis lhe
fornecera e cortou a corda que sustentava um galhardete. Para
um homem que passara metade de sua vida balançando-se no
cordame dos navios, não foi uma tarefa difícil deslizar do
parapeito até o peitoril da janela abaixo. Dali saltou para o
chão, pondo-se a correr ao longo dos alicerces do edifício até
encontrar o desvão que Francis lhe indicara. Ningiiém teria a
ideia de procurá-lo ali.
Pouco depois, um grupo de guardas passou correndo e al-
cançou o portão. O capitão deteve um jovem que o
atravessava e indagou:
— Viu alguém passar por aqui?
— Não senhor, ninguém.
Quando os guardas, frustrados, voltaram para o interior
da Torre, Giles emergiu do esconderijo. Um gorro, afundado
até as sobrancelhas escondia-lhe a parte superior do rosto, e a
capa, que erguia com os braços, encobria-lhe a inferior. Assim
disfarçado, atravessou incólume o pátio que fervilhava de
gente e tomou a direção do Tamisa. Uma vez na margem,
escondeu o manto atrás de uma pilha de pedras e atirou-se ao
rio.
Duas barcaças flutuavam nas águas escuras. Um
cachorro latiu em uma delas, vozes ressoaram. Mergulhou e
deixou-se levar pela correnteza até alcançar uma ponta de
praia afastada do tráfego fluvial.
Uma hora depois, seguia através dos becos de Londres,
rumo a uma certa estalagem. O proprietário conduziu-o a um
quarto particular sem lhe fazer perguntas, o que o fez sorrir
intimamente. Tudo se processava segundo os planos que ele e
Francis haviam traçado. Estava grato ao amigo, um príncipe
entre os homens!
Os sinos da igreja badalaram, enquanto saía a trote pelo
portão da cidade. Uma hora. Se tivesse aceitado passivamente
seu destino já estaria morto! Esporeou o ruão e, uma vez na
estrada, deixou-o tomar a dianteira.
Então, tudo se confundiu numa névoa de lembranças ine-
briantes. Recordou-se da primeira vez. quando deixara a corte
em grande estilo e cavalgara pela floresta de Rathborne, in-
consciente da grande surpresa que encontraria além de suas
veredas cobertas de folhas.
Desta vez, como na outra, iria deparar-se com Vera no
final da jornada.

Thad e Lady Lattimore não sabiam se tinham levado a


melhor ou se a rainha quisera pôr seus nervos à prova. O fato
era que, naquele momento, ela estava sentada a escrivaninha,
redigindo uma ordem de suspensão do cumprimento da pena
de morte. Um barco ligeiro já estava atracado no cais, pronto
para levar o decreto real ao capitão Fowler.
Uma inesperada batida na porta precedeu a entrada
apressada de Lady Stafford."
— Lorde Rathborne!... — ela anunciou, com voz estrangu-
lada pela emoção.
— Que houve com ele? — indagou Elizabeth, voltando-se
na cadeira.
— Escapou de seus carcereiros, quando estava sendo
conduzido ao cadafalso!
Thad juntou as mãos.
— Deus seja louvado! Agora podemos salvá-lo!
Lady Stafford lançou-lhe um olhar aflito.
— Então, senhor, é melhor que se apresse. O capitão
Fowler e seus homens saíram em seu encalço, determinados a
trazê-lo de volta vivo ou morto!

CAPITULO XV

Thad e Lady Lattimore acompanharam a rainha, quando


ela deixou Greemvich apressadamente. Todos os três
compreendiam a urgente necessidade de interceptar o capitão
Fowler, antes que ele e seus homens apanhassem o fugitivo.
Conheciam o ardor combativo de Giles de Rathborne.
Aquela hora, o sol brilhava, mas a neve empilhava-se em
montes ao longo do caminho e o vento frio fazia prever uma
nova nevasca. Thad preocupou-se. Acreditara que pudessem
alcançar o jovem lorde antes que a estrada se bifurcasse.
Agora, sua única esperança residia no fato de que tanto Sir
Giles quanto seus perseguidores seriam que diminuir o passo
de suas montarias.
Pensativo, olhou para o rosto inquieto e grave da rainha,
procurando inutilmente decifrar-lhe os pensamentos. Então,
numa atitude que ele não esperava, ela pôs-se a sorrir.
— O senhor não fala como um bandido — disse, gentil.
— E parece não pertencer a tal categoria.
Thad admirou-se de sua sagacidade.
— De fato. Majestade. Não fui sempre um proscrito. Meu
pai era proprietário de terras e também um renomado
arquiteto. Chegou a fazer trabalhos para o Hall dos Banquetes
e a Galeria de Inverno do palácio do Bom Rei Henrique.
— Edmund Carver... era seu pai? — A rainha estava per-
plexa. — O artista que restaurou e decorou com finos
ornamentos o palácio de Greenwich?
— Sim, Majestade. Meu pai fez a planta e desenhou a
galeria.
— E o senhor herdou seu talento?
— Fui seu ajudante por mais de doze anos e aprendi
muito com ele. Aos vinte anos, eu era um mestre-escultor. Aos
vinte e cinco, mestre-construtor... — Thad contraiu os lábios.
— Aos trinta, graças à maldade desenfreada de John de
Rathborne, tornei-me o chefe dos proscritos que viviam na
floresta.
— Por favor, prossiga, mestre Thad. Sua história me
interessa.
— Essa fase começou...
Thad fez-lhe um relato sucinto de sua vida, desde o
instante em que John de Rathborne puser os olhos em sua
mulher, até o momento em, que ela repudiara seus avanços.
Depois suspirou fundo.
— Pobre Winnie!... Morreu de parto.
— E quando ela morreu, que foi que aconteceu?
— Passei a viver na floresta, prestando serviços aos
camponeses e aos pequenos proprietários degradados e
oprimidos pela perseguição de John Tapper, o desonesto
administrador de Rathborne, e pondo a culpa de nossos males
no novo lorde.
— Injustamente! — indignou-se a soberana.
Thad procurou justificar-se. Relatou-lhe as cruéis
injustiças perpetuadas nos arredores de Rathborne, resultando
em sérios reveses para a população rural. Os camponeses
viam-se esbulhados de seus direitos de arrendamento e na
maioria dos casos, eram obrigados a tornar-se jornaleiros em
suas terras, ou então mendigos miseráveis.
Depois falou de seus sonhos e suas esperanças. Ao
alcançarem a primeira encruzilhada, a rainha, impressionada,
assegurou que daria seu perdão real e as suas boas graças
futuras aos proscritos que haviam se refugiado na Floresta de
Rathborne.
— Mas lembre-se — ela o advertiu. — Não haverá mais
brincadeiras de Robin Hood.
Thad sorriu amplamente.
— Sou velho demais para isso, my Lady. Ficarei satisfeito
com um teto sobre a minha cabeça e uma cama confortável
onde repousar meus ossos cansados.
— O senhor fala como se fosse um velho! Mas eu vi os
olhares doces que andou lançando a Lady Lattimore. —
Elizabeth tornou a sorrir. — Não podia ter feito coisa melhor!
Aquela manifestação de simpatia surpreendeu Thad.
Esperava uma reprimenda, por ter ousado olhar com interesse
para a gentil dama de honor. Mas a rainha mostrava-se
benévola para com ele. Se história de Vera terminasse bem,
sua felicidade seria completa. Não trocaram mais uma palavra.
As condições da estrada pioravam de minuto a minuto. A neve
derretia, e punha à mostra sulcos negros de terra pegajosa,
obrigando a carruagem a proceder com cuidado para não
atolar.
O céu carregava-se de nuvens ameaçadoras e, agora,
parecia quase impossível alcançar a tempo Lorde Rathborne.

Giles lançou um olhar por cima do ombro e esquadrinhou


a estrada. Seus perseguidores estavam se aproximando rapi-
damente. Uma milha adiante, a estrada real dividia-se em
várias outras e havia tráfego em todas elas. Se pudesse chegar
ao entroncamento antes que o apanhassem, suas chances
aumentariam consideravelmente. Não faltava muito agora...
Acabava de enveredar por uma curva a toda a brida,
quando um grito terrível cortou o ar e feriu seus ouvidos. No
caminho estreito e encharcado, havia uma alta carroça virada e
uma parelha de bois sob o jugo.
Encurtou as rédeas tão bruscamente que sua montaria
ergueu-se sobre as patas traseiras. Enquanto rodeava o
obstáculo, refletiu que logo a estrada ficaria obstruída por
outros veículos. Isso lhe daria preciosos minutos de vantagem
para prosseguir em seu caminho com uma sensação de
satisfação e segurança, quando viu que aquele não fora o único
acidente do dia. Um brioso animal, provavelmente extenuado
por uma longa jornada, tombara ao lado da estrada e agora se
debatia em meio à margem pantanosa, soltando relinchos
surdos. Seu jovem cavaleiro estava com os pés presos ao
estribo, do qual não conseguia desprender-se, encontrando-se
na iminência de ser atingido por um coice.
Giles experimentou um momento de perplexidade.
Prosseguir caminho ou ajudá-lo, arriscando-se a ser preso? A
hesitação não durou mais do que um segundo. Desmontou e
partiu como um raio em seu auxílio. Inclinado sobre ele, olhou
de relance para o rosto sujo de barro. Havia algo familiar
naquelas feições... Olhou melhor. Meu Deus, era Vera! Puxou-a
para si, esmagando-a de encontro ao peito.
— Meu amor, meu amor...
Vera quase sentiu seu coração elevar-se e dilatar-se, com
as lufadas de emoção.
— Giles... é mesmo você?
Então, todo o seu alívio jorrou como uma fonte e ela
agarrou-se a ele soluçando.
— Meu querido... pensei que nunca mais o veria. Pensei
que estivesse morto...
Giles manteve-a em seus braços até que toda aquela
tensão se dissipasse. Depois ajudou-a a levantar-se e
contemplou-lhe profundamente o rosto.
— Você está bem?
— Abrace-me, querido! Abrace-me, tenho medo.
Ele aconchegou-a mais a si, concentrando naquele abraço
toda a ternura de sua alma.
— Pode ficar tranquila. Eu estou aqui.
Permaneceram estreitamente abraçados, sentindo um
bem-estar crescente que anulava tudo, até a necessidade de
palavras. Foi um instante ao mesmo tempo doce e pungente,
em meio ao medo e à incerteza.
Estavam ainda nos braços um do outro, acreditando-se
esquecidos, quando Giles sentiu a ponta de uma lança
penetrar-lhe nas costelas. Voltou-se lentamente e encontrou-
se diante de um grupo de homens de armas.
— Lorde Rathborne — proclamou o capitão com voz
solene — fui encarregado de levá-lo de voíta para a Tone. Vivo
ou morto! Faça a sua escolha.
— Vivo, naturalmente! Tenho bons motivos para Viver!
Sem perder um instante, o capitão distribuiu ordens logo
executadas. Menos de cinco minutos depois tomaram o
caminho de volta e não tardaram a encontrar-se com a rainha
e sua escolta.
Elizabeth assomou à janela da carruagem e dirigiu-se ao
capitão.
— Vejo que recapturaram o fugitivo, capitão Fowler. Pelo
êxito dessa missão de extrema urgência, o senhor e seus
homens serão recompensados.
O olhar ambarino da rainha fixou-se em Giles.
— Lorde Rathborne, o senhor tem muito o que me
explicar. E, por Deus, é o que fará, antes que o dia termine!

Vera foi conduzida para uma das dependências do castelo


de Greenwich, com a ordem de lá permanecer até segunda
ordem. Sozinha no aposento amplo e confortável que lhe
destinaram, abriu as janelas e ficou olhando o horizonte, além
dos altos muros que rodeavam os jardins. Para onde teriam
levado Giles?
Um frio cortante descia com as primeiras sombras. Arre-
piada, fechou as janelas esforçando-se ao máximo para não
chorar. Temia que não fosse bastar uma palavra sua para res-
tabelecer a verdade dos fatos. Então, que seria dele?
O tempo passava lentamente, enquanto aguardava,
ansiosa as ordens da rainha. Não via ninguém, além da criada
que lhe trazia as refeições. E nada podia fazer senão esperar e
refletir que a imprudência de suas ações tombava, agora,
sobre suas próprias cabeças.
Vários dias passaram-se. Uma certa manhã, finalmente,
Thad teve permissão para visitá-la.
— A rainha está profundamente decepcionada — ele
informou com gravidade. — Comigo também por não informá-
la antes da situação crítica da baronia de Rathborne, dos
roubos e das práticas extorsivas do administrador.
Mantivera longa entrevista com Elizabeth e suas palavras
finais ecoavam-lhe ainda na mente: "Um homem corajoso to-
maria a si a iniciativa de inteirar-me do que se passava. Se
fosse homem, é o que "eu' teria feito!" Não ousara retrucar.
Ela tinha toda a razão de estar furiosa.
Vera estremeceu.
— O que ela irá fazer conosco? A liberdade de Giles está
comprometida?
— Sinceramente, não sei. Tivemos uma longa conversa e
ele autorizou-me a contar tudo a Lady Lattimore. Ela está
disposta a assumir a defesa de vocês dois, mesmo correndo o
risco de atrair sobre si o desagrado da rainha.
Os olhos de Thad cintilaram.
— Lady Lattimore é uma amiga dedicada e uma aliada
compreensiva. Fará tudo o que estiver ao seu alcance. Foi ela
que obteve a permissão para que eu a visitasse.
Os olhos de Vera umedeceram-se.
— Obrigada, querido Thad. Agradeça Lady Lattimore. Ela
está sendo muito generosa.
Thad concordou com a cabeça.
— Ela manda lhe dizer que suas arcas já chegaram de
Hamp-ton Court e recomenda que vista seu melhor traje. Sua
Majestade quer vê-la.
Uma hora depois, Vera soube que seria recebida pela
rainha à tarde, antes do chá. Fez seus preparativos e colocou
no pescoço o cordão que Giles lhe dera, confiante de que o
veria.
A hora marcada, dois guardas escoltaram-na até a ante-
sala do Salão de Audiência, retirando-se em seguida. Pouco
depois, a porta abriu-se e Giles entrou. Estava seguro de si.
Parecia aceitar perfeitamente sua situação atual.
Permaneceram um instante em silêncio, enquanto se
olhavam. Vera não se mexeu, os olhos fixos nele. Ainda em
silêncio, ele estendeu-lhe a mão.
— Vera...
Ela sorriu, trêmula.
— Como está bonito, my lord. Não parece um prisioneiro
da rainha.
Giles sorriu também, apesar de todo o acúmulo de seus
problemas.
— Vesti este traje pensando em você, meu amor. Sei
que vermelho é a sua cor preferida.
Vera fechou os olhos um instante, recordando aquele
primeiro jantar, quando perdera a cabeça e dera-lhe um banho
de vinho.
Reabriu-os cheios de lágrimas.
— Parece que foi há tanto tempo... Gostaria de voltar
àqueles dias.
— Gostaria? Pois eu não. —Ele puxou-a para si. Sua voz
era um murmúrio nos ouvidos dela. — Você ainda não era
minha.
Ela ergueu o rosto, iluminado por um intenso resplendor.
— Oh, Giles... O que a rainha irá fazer conosco?
Ele calou-se. Não queria preocupá-la antes do tempo.
Thad visitara-o pouco antes para dizer-lhe que a rainha estava
inclinada a perdoar Vera. Giles, o autor do plano, deveria
passar um ano ou dois na Torre.
Nesse instante, a porta abriu-se e Lady Stafford
anunciou:
— Sua Majestade está pronta para recebê-los.
Fizeram-nos passar diretamente para a sala real
particular.
Elizabeth estava jogando xadrez com a condessa de
Rutland e levantou os olhos do tabuleiro.
— Aproximem-se, por favor.
Ela estava trajada como que para uma noite de gala e
trazia diamantes no colo e nos cabelos. Era algo formal demais
para uma tarde de amenidades e Giles sentiu um peso
comprimir-lhe o peito. Tomou a mão de Vera e reteve-a entre
as suas. Iria protegê-la, ainda que à custa da própria vida!
A rainha levantou-se e dispensou sua parceira de jogo.
— Preciso falar a sós com Lorde Rathborne e Lady
Verena. É uma conversa sigilosa.
Vera começou a ver no semblante de Giles sinais de
profunda apreensão e quase sentiu o coração despedaçar-se.
Que seria deles?
Elizabeth voltou-se para os dois e franziu a testa, com ar
de desagrado.
— Isso não é novidade — ela principiou secamente. — O
senhor é o mesmo homem ousado de sempre, Rathborne. Urde
uma trama odiosa, seduz minha inocente dama de honor e
agora comporta-se desrespeitosamente em minha presença!
Ele apertou Vera contra si.
— Eu a amo, Majestade. Eu a amo de verdade. E farei...
Ela o interrompeu, corando.
— Perdoe a ousadia, Majestade, mas fui eu que seduzi
Lorde Rathborne. Foi a maneira que encontrei para não ser
obrigada a casar-me com Charpentier.
A rainha balançou a cabeça, com ar de desaprovação, e
indagou ironicamente:
— "Obrigada"? Não foi você mesma que disse que
preferia o francês a... a este senhor.
Vera pareceu não notar a ironia e justificou-se:
— Sei que parece estranho, Majestade. Mas tínhamos
discutido e eu estava furiosa.
— Estranho... e, contudo, não tão estranho assim —
observou a rainha, inesperadamente.
Giles olhou-a, surpreso, e exclamou:
— A culpa é minha! Obriguei-a a fazer o papel de Lady
Verena e coloquei-a numa situação embaraçosa.
A rainha ergueu a mão.
— Um momento! Não foi para ouvir justificativas que eu
os chamei aqui!
Dito isto e sem esperar resposta, ela apanhou um
pequeno cofre que estava sobre a escrivaninha e retirou de seu
interior um pequeno livro de orações e um pergaminho.
— Tenho aqui alguma coisa que irá interessá-los... e que
talvez... — Elizabeth deteve-se um instante — ... e que, talvez,
possa ajudá-los grandemente.
Diante do ar perplexo dos dois, ela informou, com ar
grave:
— É uma carta que resolve a questão de uma vez por
todas. Diz respeito à sua identidade, Lady Verena.
Vera permaneceu um instante como que petrificada.
— Sabe quem são meus pais, Majestade? — perguntou
com voz apagada, ao voltar a si do assombro. — Quem lhe deu
os escritos?
— Mestre Thad.
— Thad? — murmurou Vera, chocada e magoada.
— Ele teve lá suas razões para esse longo silencio.
Naturalmente, os últimos acontecimentos acabaram com as
suas hesitações. — Elizabeth, preparando a revelação com
tranquila arte, prosseguiu: — Os escritos lhe foram entregues
pela mulher que cuidava de você e de outra criança.
A rainha voltou-se para a lareira e pôs-se a fitar as
chamas. A princípio, Thad Carver não havia mencionado a
outra. Fora só quando insistira para que rebuscasse na
memória, que ele se lembrara de que havia "duas" crianças.
Duas meninas. Uma delas morrera logo após sua chegada ao
lar dos Carver e ele não imaginara que pudesse ter alguma
relação com a história.
"Os homens"... ela pensou. "Nunca sabendo ver por trás
das coisas óbvias". Depois encarou novamente seus atentos
ouvintes.
— Isso aconteceu à época da Grande Peste. Metade da
criadagem de Rathborne encontrava-se ou morta ou
moribunda. A mulher, uma jovem francesa que havia sido
contratada pela falecida Lady Rathborne, além de governanta
estava encarregada de tratar de Lady Verena, a quem,
felizmente, se afeiçoara muitíssimo.
"Quando a epidemia irrompeu, Henriette le Brun deixou
imediatamente a casa, levando consigo a menina que lhe fora
confiada. Estava convencida de que podia salvar-lhe a vida, se
pudesse instalá-la num lugar seguro e saudável. Ao partir,
levou também sua própria filha, tida fora do casamento"'.
A esta altura do relato, uma acha deslocou-se na lareira,
produzindo uma chuva brilhante de fagulhas. Quebrara-se
assim, a camada de gelo que se formara durante muitos anos
sobre o passado de Vera.
Elizabeth apreciou o instante dramático. Seu pequeno au-
ditório mantinha-se diante dela sujeito a uma profunda emoção
comum. Dois jovens, duas vidas procurando o equilíbrio, numa
sucessão de altos e baixos...
— Os senhores já devem ter percebido o final da história.
A rainha fez uma pausa.
— Já percebeu, minha criança, que pode ser tanto a
verdadeira Lady Verena, rica e titulada, como a filha ilegítima
de uma criada francesa?
Vera empalideceu.
— Quem sou eu, Majestade?
— A resposta está aqui. — A rainha ergueu o
pergaminho. — E, agora, é preciso que me diga: quer lê-lo ou
queimá-lo? Neste momento, Vera e Lady Verena são uma
única pessoa. A história dirá qual das duas irá sobreviver
oficialmente.
— A história não o dirá — ousou retrucar Giles. Ele
voltou-se para Vera. — Não importa quem você seja, meu
amor. É Vera que eu amo e com quem quero me casar. Não
Lady Verena, com seu título e sua fortuna!
A rainha fitou-o com curiosidade.
— Não pensou em suas propriedades arruinadas? A
herança de Lady Verena saldaria suas dívidas e lhe daria meios
de restaurar Rathborne.
Giles levou a mão de Vera aos lábios.
— Devolverei Rathborne ao seu antigo esplendor com o
suor de meu rosto, não importa quais sejam as dificuldades. E
o farei por Vera e por nossos filhos!
— Muito bem dito! — Elizabeth voltou-se para Vera. —
Como vê, a decisão é sua. Eu própria não li a carta. Se quer
saber a verdade, eu a darei a você, para que se informe de seu
conteúdo. Caso contrário, irei queimá-la e você permanecerá
Lady Verena para sempre.
Enquanto Vera debatia-se nesse cruel dilema, Giles mur-
murou quase para si mesmo:
— Isso explica tudo... o labirinto, o jardim de malvas-
rosa, as tapeçarias, o anel azul...
— É tudo tão confuso... — ela confessou.
— E tão encantador... — suspirou a rainha. Giles fitou-a
com ar suplicante.
— Majestade, amo Vera. Não posso viver sem ela,
morreria de desespero. Quero torná-la minha esposa assim
que for possível!
Os olhos cor de âmbar cintilaram, maliciosos.
— Rica ou pobre?
A resposta dele não se fez esperar:
— Rica ou pobre! Posso viver com ela em Rathborne ou
numa cabana na floresta, se for o caso. A decisão é dela.
Vera fechou os olhos e suspirou fundo.
— Sou filha de Thad. E será sempre assim.
A seguir tomou a carta da rainha e reteve-a um instante
entre os dedos. Depois caminhou até a lareira e soltou-a sobre
as chamas.
— Uma sábia decisão — observou Elizabeth. —
Desagradava-me a ideia de passar por tola diante de toda a
corte.
O pergaminho enrugou-se, tornou-se castanho, as pontas
escureceram. Quando acabou de queimar, ela murmurou:
— Um tão longo silêncio, e com esta explosão final!... Al-
guém arrependeu-se?
— Absolutamente não, Majestade — disse Giles.
— Eu também não — secundou-o Vera.
O olhar firme da rainha suavizou-se.
— A explosão — ela disse — fará desta noite uma ocasião
memorável. Durante a ceia no Hall dos Banquetes, pedirei a
todos que ergam um brinde a Lorde Rathborne e a Lady
Verena Staton, que se casarão na catedral um dia após o
Natal. Está tudo arranjado com o arcebispo. Mestre Thad e
Lady Lattimore serão os padrinhos.
Durante um breve momento, os dois não souberam o que
dizer, tamanha a alegria. Quando se refizeram da surpresa,
curvaram-se respeitosamente
— Somos gratos a Sua Majestade. Mais do que podemos
dizê-lo — disse Giles.
Elizabeth ergueu a mão esguia.
— Poderão mostrar sua gratidão evitando os problemas.
E agora vão e deixem-me com os "meus" problemas. Não sou
tão romanesca a ponto de esquecer os deveres de Estado.
Movidos por súbito impulso, os dois ajoelharam-se e
beijaram-lhe o anel. Antes que alcançassem a porta, ela os
chamou.
— Quero ser a madrinha do primeiro de seus filhos. Terão
minha permissão para trazê-lo à corte sempre que o
desejarem.
Havia um tremor involuntário em sua voz, assim como
uma ternura em suas palavras que revelava mais do que ela
teria desejado manifestar. Mas foi uma emoção passageira,
dominada logo por sentimentos mais fortes.
— Podem ir.
Porém, enquanto a reverenciava, Vera notou que ela
parecia outra vez ausente, como se uma visão lhe estivesse
passando diante dos olhos. Lançara-se de novo ao seu sonho.

Aquele ano, a corte retirou-se mais cedo para Richmond.


O Natal aproximava-se e os portais e os vestíbulos foram
adornados com teixos e coroas de azevinho, nozes douradas e
cachos de framboesa.
Com a chegada dos cortesãos, já entregues às alegrias
dos folguedos, o Hall e as galerias tornaram-se vibrantes de
ani-fnadas conversas, de risos e de música. Ninguém parecia
se importar com a inclemência do tempo, pois havia
mascarados e truões, e conversas apimentadas sobre os
escândalos mais agradáveis.
O duque de Alençon tinha deixado a França, incluindo
Charpentier em sua comitiva. Simmier, que permanecera em
seu posto de embaixador, aconselhara-o a retornar em janeiro.
Mas o nobre francês parecia finalmente convencido de que a
rainha recusaria sua proposta de casamento.
Giles, Lorde de Rathborne, anunciara inesperadamente
seu casamento com a bela pupila, Lady Verena, fato que
continuava a provocar as mais estranhas suposições. E, para
completar, havia o novo protegido da rainha, um homem que
viera, ninguém sabia de onde, e conseguira os favores reais.
Na véspera de Natal, um anseio de privacidade levou
Giles e Vera a se afastarem daquela confusão multicolorida. Os
menestréis tocavam no Grande Hall, e a música, que chegava
diluída à galeria onde haviam se refugiado, aumentava o clima
de desejo. Mas haviam feito uma promessa à rainha e procu-
ravam não exceder os limites.
Não que houvesse a menor possibilidade de ficarem a
sós. Os corredores e os saguões estavam sempre apinhados e
havia sempre a mão de um velho conhecido que se agitava no
ar, ao divisá-los. Como se isso não bastasse, Elizabeth decidira
que Vera devia passar as noites no apartamento real.
— Preciso cuidar da virtude de minhas damas — ela
dissera a Giles, com severidade.
Em vista disso, tinham que se contentar com palavras de
amor sussurradas ao pé do ouvido, ou a uma fugaz troca de
carícias nos recantos escuros. Não era uma solução satisfatória
para duas pessoas de natureza intensamente apaixonada.
Naquele momento, enquanto percorriam a galeria de
braços dados, Giles valeu-se da existência de uma alcova vazia
para beijá-la com sensualidade e posse.
— Esta espera é uma tortura. É preciso muito esforço
para me controlar — ele queixou-se.
— Tenha paciência. Faltam apenas dois dias — murmurou
Vera, amolecida. Cada momento nos braços dele era um suave
tormento.
— Apenas?... Por São Jorge! Para mim, são uma
eternidade! Não vejo a hora de ter você toda para mim.
Vera riu, deliciada.
— Nem eu de ser toda sua.
Ouviram vozes e separaram-se bruscamente. Um grupo
numeroso de damas avançava pelo corredor em animada con-
versa. A distância, pensaram ver, sob a luz mutável, a rainha
converter-se na figura central daquele mar de rostos.
Por precaução, deixaram rapidamente a alcova e
refugiaram-se na biblioteca da galeria, pequena e abafada por
cortinados e reposteiros.
— Sou o homem mais egoísta da Inglaterra. Não quero
dividi-la com ninguém, nem mesmo com a rainha! — confessou
Giles.
Encostando-se à porta que acabara de fechar, ele tomou
o rosto de Vera entre as mãos e beijou-a na boca de forma de-
lirante e brutal. Ela dobrou-se à onda de sensualidade que a
invadiu e correspondeu com um impulso selvagem e apaixo-
nado.
— Minha querida... você não pode imaginar como desejo
esse momento — ele sussurrou, continuando a brindá-la com
pequenos beijos no rosto.
Uma tossida discreta obrigou-os, novamente, a se
separarem Voltaram-se. Lady Lattimore emergia de trás das
cortinas da janela.
— Queiram me perdoar — ela balbuciou, confusa. —
Estava espiando o jardim. Parece tão lindo, à luz do
crepúsculo...
— Oh! — fez Vera, admirada. — Pensei que estivesse no
trando o palácio a Thad.
O lindo rosto de Letícia Lattimore tomou uma expressão
magoada.
— Desde que foi feito cavaleiro por seus bons serviços
Thad anda ocupado demais! Passa todo o seu tempo em
conferências com a rainha, não se importa mais comigo.
Nesse instante, ao fazer um movimento com a cabeça,
ela viu uma figura alta e musculosa junto à porta que acabara
de se abrir. Era Thad.
— Quem não se importa consigo, my lady? — ele
perguntou avançando.
Letícia corou profundamente.
— Não o vi chegar, Sir Thad.
Ele sorriu.
— Estava à sua procura, my lady. Disseram-me que
poderia encontrá-la aqui.
O rubor de Letícia acentuou-se e ela baixou os olhos.
Vera observava com atenção aquele pequeno e inocente
jogo de sedução. E a suspeita que brotara em sua mente havia
algum tempo transformou-se em certeza. Seria interessante
ver como tudo acabaria!
Lançou a seu pai adotivo um olhar avaliador. As feições
acentuadas, naturalmente fortes e expressivas, os olhos
cinzentos, vivos e penetrantes, tudo nele contava uma história
de dificuldades vencidas e de perigos afrontados. Ele era ainda
um homem vigoroso e estava com uma aparência esplêndida,
metido numa casaca e calças azuis-escuros. Habituara-se a vê-
lo apenas em trajes rústicos e era uma surpresa. Não o
supunha tão jovem e bonito.
Viu-o esboçar um sorriso e então inclinar-se para Letícia,
que estava com os olhos postos nele.
— A senhora acha que o fato de me terem feito cavaleiro
mudou meu modo de ser? Absolutamente não! Continuo o
mesmo. — ele afirmou.
Depois tomou fôlego, pronto a desfazer todas as ideias
erróneas a seu respeito.
— Alguns andam dizendo por aí que estou cortejando Sua
Majestade. Não é verdade. Estamos fazendo projetos e estu-
dando plantas. — Ele sorriu, feliz. — A senhora está falando
com o novo mestre-construtor da rainha. Vou dirigir os
trabalhos de restauração de Richmond durante os meses de
inverno e, se puder provar minha capacidade, deverei construir
o novo pavilhão de caça real, nos arredores de Rathbome.
Vera bateu palmas de alegria e Giles cumprimentou-o
pela nomeação.
Durante sua estada em Rathbome, terei prazer em
recebê-lo em nossa casa.
— O prazer será todo meu. Só espero que os aposentos
do castelo sejam mais confortáveis do que suas masmorras!
Giles sorriu e comentou, sem qualquer ironia:
— Estava certo de que o senhor diria isso.
Thad deu-lhe uma palmadinha nas costas e concentrou-
se em Letícia.
— Se não é pedir demais, gostaria que my lady fosse a
Rathborne. Poderia conhecer meu trabalho, além de me dar
um grande prazer.
— Sim, vá! — exclamou Vera, com entusiasmo. — Giles
e eu ficaremos encantados e tê-la em nossa casa.
Após um instante de hesitação, Letícia concordou.
Visivelmente feliz, Thad ofereceu-lhe o braço e lhe disse
alguma coisa baixinho ao ouvido. Pareciam ter esquecido a
presença' de quem quer que fosse.
Giles acompanhou-lhes a saída com os olhos. Estava
perplexo.
— Parece que mestre Thad e Lady Lattimore tornaram-se
bons amigos.
— Estou contente pelos dois. Gosto de Letícia. — Vera
fez uma pausa, antes de confessar: — Mas cheguei a ter
ciúmes dela.
— Ciúmes? — indagou Giles, incrédulo.
— Era natural, não acha, considerando o que houve entre
vocês dois!
— Que bobagem...
— Você ainda gosta dela? — insistiu Vera.
— Sim, gosto. Mas não da maneira que você pensa.
Letícia Lattimore é uma boa amiga. Devo-lhe muito.
Ela quis retrucar, mas Giles pôs um dedo em seus lábios.
— Não sou nenhum anjo, minha querida, e acho que você
já percebeu que houve muitas mulheres em minha vida. Mas
nenhuma delas foi importante para mim. — Ele sorriu, beijou-
lhe as pálpebras e finalizou: — Assunto encerrado. Venha.
Desceram até o hall, vestiram seus mantos e saíram para
o jardim. Apareciam as primeiras estrelas, as primeiras
constelações se acendiam, como jóias profundamente
engastadas no negror do céu. Enquanto caminhavam pelas
veredas ensaibradas, a lua ergueu-se acima das árvores,
cintilante e fria como a ponta de uma adaga, e foi refletir-se
em mil facetas sobre a neve imaculada.
Giles voltou-se para a gentil mulher que seguia ao seu
lado, segurando com elegância a cauda do vestido e lembrou-
se de algumas palavras que ela dissera havia muito, em algum
lugar.
— Os vestidos ainda a incomodam? Tem pressa em ver-
se livre deles?
Vera atirou-lhe um olhar provocante.
— Muita pressa, desde que você me ajude com isso.
Ele agarrou-a pela cintura, rápido.
— Dois dias!... Como poderei suportar a espera?
Ela ergueu o rosto, pálido e misterioso ao luar, e
prometeu:
— Farei com que tenha valido a pena!
Num impulso, Giles obrigou-a a inclinar a cabeça para
trás e encheu-lhe de beijos os lábios, as faces geladas, as
pálpebras semicerradas. Esqueceram-se de tudo, em meio à
vasta obscuridade que se estendia para além dos muros. Não
perceberam que alguém os espionava, o rosto encostado à
vidraça do balcão. Lorde Rathborne e sua lady... A rainha
olhou-os com agrado, pensando que, se aqueles dois não
estivesse tão apaixonados, teriam percebido que ela jamais
permitiria que um documento importante fosse destruído, sem
antes informar-se de seu conteúdo.
Elizabeth suspirou. E quem seria capaz de usar da razão,
uma vez cego pelas chamas da paixão? Voltou-se quase com
pesar e chamou sua dama de alcova.
— Lady Stafford, venha ver dois lindos pombinhos! Estão em
meu jardim e arrulham como se já fosse primavera!
Mary Stafford aproximou-se, curiosa.
— Ah, Lady Verena e Lorde Rathborne. Tão
apaixonados!... Fazia tempo que não víamos um casal tão
bonito e tão fidalgo!
A rainha concordou, embora, no fundo, sentisse uma
ponta de inveja. Eles haviam alcançado juntos uma felicidade
que ela própria desconhecia. Mas não era de admirar.
Lorde Rathbome era uma esplêndida figura de homem e
Vera, sua futura esposa, parecia uma verdadeira lady... a des-
peito de sua origem.
Elizabeth limpou com o lenço a névoa que embaçava a
vidraça e tornou a espiar.
Vendo-a agora, tão segura de si, tão elegante, quem
poderia jamais supor que ela não fosse uma autêntica
representante da nobreza?... Que era realmente, a filha
ilegítima de uma pobre ama francesa?

§§§§§§§§ Fim §§§§§§§§


MARIANNE WILLMAN é uma escritora devotada a dois gêneros
literários: romance histórico e romance contemporâneo.
Apaixonada por livros, ela começou cedo a frequentar as
bibliotecas públicas. Ainda lê muito livros de história e livros
de ficção de toda espécie. Sua vocação literária surgiu ao
colecionar tinteiros antigos. Nesse tempo, abandonou a
profissão de enfermeira e ingressou na literatura. Tem
produzido muito, desde então. Hoje, Marianne vive em Detroit
com a família.

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