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Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

Programa de Pós-Graduação em Ciência Política

Disciplina: Pensamento Político e Social Brasileiro

Prof.: Juarez Guimarães

CRISE DE REPRESENTAÇÃO E O PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO

Aluno: Odilon Araújo Gonçalves

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CRISE DE REPRESENTAÇÃO E O PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO

Odilon Araújo Gonçalves

São cada vez mais frequentes os estudos sobre a estabilidade dos


regimes democráticos pelo mundo, principalmente a partir de constatações de
pesquisas recentes de que o nível de confiança e de apoio a esses regimes tem
caído. Os estudos que começaram por analisar as chamadas democracias
consolidadas como Estados Unidos e Inglaterra, logo chegaram à conclusão de
que o fenômeno é global. O mundo que, atualmente, tem maioria de países
democráticos – em maior ou menor grau (MOISÉS, 2008), convive também com
as crises de legitimidade e de apoio ao regime.

Os trabalhos vão se acumulando no sentido de se detectar os motivos que


levam a maior ou menor adesão dos cidadãos à democracia e se enveredam por
bases diversas de pesquisas como fatores culturais e socioeconômicos. Na
verdade, a evolução dos trabalhos, que antes procuravam dar conta de uma
causa para maior ou menor apoio ao regime, aponta, agora, para fatores
multicausais, menos deterministas e que ainda merecem estudos detalhados,
aprofundados e bem distribuídos pelo mundo.

Apesar de que a maior parte da literatura produzida está, ainda,


direcionada para as chamadas democracias consolidadas, os estudiosos já
começam a voltar seus olhos para outras partes do mundo e a América Latina e
o Brasil já fazem parte do rol de pesquisas que buscam entender as orientações
dos cidadãos sobre a democracia. Exemplos recentes e bem estruturados
desses trabalhos são Desconfiança política na América Latina de Jamison e
Power (2005) e Cultura política, instituições e democracia – lições da experiência
brasileira, de Moisés (2008), que nos ajudam neste artigo.

Os dois trabalhos estudam os diversos autores que têm se debruçado


sobre o tema democracia e a adesão dos cidadãos a esse regime pelo mundo,
trazendo o estudo para a América Latina e para o Brasil, neste caso,
especialmente no caso do texto de Moisés.

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Importante chamar a atenção para o que se fala a respeito de crise de
legitimidade dos regimes democráticos pelo mundo, apontada por um sem
número de pesquisas ricas em surveys, com as mais diversas abordagens, que
possibilitam, também, diferentes análises e conclusões. A maioria delas, no
entanto, direcionadas a um momento de queda nos níveis de confiança e de
apoio a regimes democráticos pelo mundo e, da mesma forma, na América
Latina e no Brasil.
No entanto, o que está por trás dessas evidências de insatisfação é que
o que o mundo democrático vive hoje é uma crise de representação e não uma
crise no regime democrático. O povo quer, sim, democracia. Quanto mais,
melhor (SELIGSON e BOOTH, 2009). O que se apresenta como mais
problemática é a relação entre eleitor e eleitos, tanto no poder Legislativo quanto
no Executivo. Cada vez mais se acentua por parte do cidadão a falta de
sentimento de estar representado. Na avaliação de Miguel (2003, p. 124), apesar
de o termo “crise na representação política” ser muito genérico e dificultar
comprovação, três conjuntos de evidências o sustentam: declínio do
comparecimento eleitoral, ampliação da desconfiança em relação às instituições,
medida por surveys e esvaziamento dos partidos políticos.
A falta de sentimento de estar representado deve-se, obviamente, pelo
fato de que o eleitor elege seu representante na expectativa de que terá seus
anseios atendidos ou de que, pelo menos, verá o representante trabalhar nas
casas legislativas ou no executivo, com o objetivo de atender a tais anseios. No
entanto, isso não é o que de mais comum acontece. A insatisfação surge logo
porque, nem de longe, o objetivo que poderia parecer óbvio – eleito representar
a vontade do eleitor – perde-se na complexidade do sistema representativo que
domina as democracias espalhadas pelo mundo.
A raiz do problema concentra-se, fundamentalmente, no fato de que, ao
eleger o representante, o eleitor dá ao eleito a “autorização”, quase que
incondicional, para agir politicamente em seu nome, sem a necessidade de
consulta prévia para tomar quaisquer decisões, no exercício do mandato. Com
algumas variações para mais ou para menos, dependendo do país, na prática, o
que ocorre é que o representante recebe um “cheque em branco” para bancar
suas ações legislativas ou executivas, de acordo com suas convicções, com

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suas tendências, com suas articulações partidárias, com seus acertos para
formação de coalizões ou com seus alinhamentos a grupos ou seguimentos, não
necessariamente identificados com os eleitores que ele deveria representar.
Dizendo de outra maneira, há um excesso de poder colocado nas mãos
do representante eleito e a falta de mecanismos que obriguem esse
representante a cumprir o que foi prometido em campanha faz dele um ator
autônomo no sistema representativo. Ao assumir o poder, ao invés de
representar o povo, os eleitos passam a substituir o povo.
De forma resumida, o que ocorre é que, nas eleições, partidos ou
candidatos se apresentam aos eleitores com propostas e intenções políticas. Os
eleitores avaliam propostas, características pessoais e partidárias e escolhem
seus candidatos. Os vitoriosos, então, seguiriam as políticas propostas. Isso,
numa condição ideal de representação porque, em nenhuma democracia, os
representantes eleitos são obrigados a sere fiéis a seus mandatos.
“Consequentemente, quando cidadãos elegem seus representantes, eles não
dispõem de dispositivos institucionais para forçá-los a manter suas promessas.”
(PRZEWORSKI, 1998. p. 13).
O resultado disso é percebido diariamente em ações desenvolvidas por
representantes, que passam ao largo do crivo dos representados que, como dito
antes, se distanciam, cada vez mais, do processo político. Decisões são tomadas
no âmbito executivo, legislações são votadas e aprovadas, no âmbito legislativo,
sem a anuência de quem vai arcar com as consequências positivas ou negativas
desses atos: o cidadão. Instalado aí, um ciclo vicioso cruel. Os eleitores se
matêm distanciados do processo político, os eleitos, cobertos pelas regras do
sistema representativo atuam da maneira que acham melhor e o ciclo se fecha
provocando maior distanciamento entre representante e representado.
A complexidade do sistema representativo fomenta debates, instiga
pensamentos em busca de soluções que visem à busca de formas de
responsabilizar os representantes por seus atos, no âmbito do mandato e que
ofereçam ao eleitor mais do que a opção do voto para avaliar a atuação do
representante e, na eleição, conceder-lhe ou não, mais um mandato. Fazer isso,
durante o mandato do representante, no entanto, não é tarefa fácil, por uma série
de fatores, como os apontados por Anastasia.

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... a responsabilização dos governantes pelos governados não é tarefa simples.
No caso de resultados que sejam considerados negativos pelos cidadãos, vale
indagar a quem responsabilizar: os políticos eleitos, que escolheram as políticas
erradas, ou os burocratas, que implementaram errado as políticas certas
escolhidas pelos políticos eleitos? Se os responsáveis forem os políticos eleitos,
onde estarão localizados os problemas: na escolha dos fins a serem alcançados,
por violarem as preferências e/ou os interesses dos cidadãos, ou na escolha dos
meios, incompatíveis com a consecução dos fins definidos em sintonia com estes
mesmos interesses e preferências?
Se os responsáveis forem os burocratas, por não agirem em consonância com
os fins ou por não procederem de acordo com os meios especificados, como
obrigá-los a prestarem contas de seus atos e omissões?
Como saber, ademais, se políticos e burocratas pautaram suas ações pelo
melhor interesse dos cidadãos, atuando, no entanto, em um universo de
escolhas trágicas, que inviabilizou a opção por cursos de ação que gerassem
maior equidade, bem-estar e justiça social? Ou se, pelo contrário, agiram
orientados por seus próprios objetivos e interesses, ou por aqueles de parcelas
minoritárias da população, desconsiderando as preferências e as necessidades
da maioria dos cidadãos? (ANASTASIA, 1999, p. 3)

É nesse ponto que a falta, ainda, de grande quantidade de estudos


referentes à democracia na América Latina e no Brasil, talvez não tenha
apontado para o surgimento, também nesta região, do que Norris (1999) chamou
de cidadãos críticos.

Embora ainda não tenha sido feita na América Latina uma pesquisa sistemática
sobre ‘cidadãos críticos’, esperamos que os futuros trabalhos identifiquem um
número crescente de eleitores que rejeitam os governantes ao mesmo tempo
em que matêm a esperança de que a democracia irá um dia, cumprir suas
promessas.(POWER e JAMISON, 2005, p.89).

O conceito de Norris de “cidadão críticos” está mais afeito àqueles


cidadãos de democracias industrializadas ou as chamadas mais consolidadas e
dizem respeito aos cidadãos que defendem o regime democrático,
incondicionalmente, mas que mantém uma posição crítica em relação à
condução do regime pelos governantes. Não estaria o conceito, então, ligado
aos cidadãos de democracias mais recentes, ou ainda não totalmente
consolidadas como se convencionou chamar a maioria das instaladas nos
países da América Latina e no Brasil.
Por outra análise, o Brasil, em pesquisa recente aparece com um dos
índices mais baixos de pessoas que se dizem democratas, entre países
estudados na América Latina, 40% (Moisés, 2008). Além disso, o mesmo estudo
aponta que 54% dos brasileiros são considerados ambivalentes, ou seja, apesar

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de não se opor à democracia não estão seguros de que ela é o único regime a
ser adotado ( “the only game in town” ). Mas, nenhum estudioso se arrisca a dizer
que o país corre risco de um revertério no regime democrático e, pelo contrário,
o que se vê são outros estudos que buscam dar explicações para a baixa adesão
à democracia no Brasil. Não raro, essas explicações tangenciam elementos de
cultura e história que afetam o comportamento político do cidadão brasileiro.

É como os estudos relativos à baixa participação e a pouca tradição


brasileira de associativismo, de cooperação e civismo, conforme já chamava
atenção Putnam (2002).

Após a independência, tanto os Estados Unidos quanto as repúblicas


latino-americanas dispunham de cartas constitucionais, recursos abundantes e
idênticas oportunidades internacionais; porém os norte-americanos foram
beneficiados pelas tradições inglesas de descentralização e parlamentarismo,
enquanto os latino-americanos foram prejudicados pelo autoritarismo
centralizado, o familismo e o clientelismo que haviam herdado da Espanha
medieval. Em nosso jargão, os norte-americanos herdaram tradições de civismo,
ao passo que os latino-americanos foram legadas tradições de dependência
vertical e exploração. (PUTNAM, 2002, p. 189).

Ideias como essas não são novas. Têm sido objeto de estudos que
integram boa parte dos pensadores políticos brasileiros, especialmente aqueles
que buscam a interpretação de nossas origens e de nossa formação política e
social (como BOMFIM, 2005; FAORO, 1975; HOLANDA, 2013, entre outros).
Interessante observar, inclusive, que além da riqueza de informações que
ajudam a compreender nossas origens e as origens do pensamento político
brasileiro, os autores citados que lançaram as primeiras edições de suas obras
na primeira metade do século passado (exceção para Raymundo Faoro, cuja
obra Os Donos do Poder foi lançada em 1958), as observações deles parecem
nos mostrar o que ocorre no Brasil do século XXI.
Manoel Bomfim, por exemplo, que lançou a primeira edição de América
Latina – Males de Origem em 1905, apresenta uma visão crítica aguçada sobre
a relação do cidadão com o Estado, aponta para os “males da origem” da
colonização brasileira pelos portugueses e como, segundo o autor, ao deixar o
Brasil, os portugueses deixaram uma tradição de atraso econômico, social e
político, baixa cultura cívica, fruto da relação parasitária dos europeus –

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especialmente os portugueses – com o Brasil (BOMFIM, 2005).
As análises de Bomfim vão desde as origens dos colonizadores brasileiros
e da América Latina, com estudo profundo desde o período anterior à
colonização, que passam pelos períodos coloniais e, no Brasil, avançam para os
períodos de independência, abolição da escravatura e início da República que,
aliás, é motivo de crítica também. A crítica não é à república em si mas à falta
de pensamento republicano da classe política brasileira com a herança ibérica
atrasada e mal formatada.

...os políticos sul-americanos são conduzidos fatalmente a considerar os


regimes políticos como coisas que existem e que devem existir por si mesmas,
independentemente dos interesses gerais das populações. A muitos
republicanos sinceros se afigura que a República tem razões de ser abstratas,
fora da felicidade dos povos. Para eles a República – por efeito de qualquer
virtude intrínseca destas quatro sílabas – basta para se justificar a si mesma.
Adota-se o regime republicano para possuir-se esta coisa mirífica –
REPÚBLICA!... Não pensam que tal regime tenha sido adotado por aquele capaz
de dar ao povo a maior dose de felicidade, e que é por isso, unicamente e
exclusivamente por isso, que ela deve existir. Era um estado social melhor que
se pedia, quando se pedia República. Sim, esta palavra, só ela, transportava os
corações, porque em cada letra ardia um ideal: justiça, reparação, solidariedade,
beleza nas almas e nas coisas. Se a sonoridade destas sílabas inflamava os
entusiasmos, é porque estávamos certos de que o dia em que pudéssemos
aclamá-la na praça pública, seria o dia do renovamento, e que ela traria consigo
todos os progressos políticos e sociais – a eliminação de todos os abusos,
liberdade e amor entre os homens, um pouco de felicidade para os que esperam
justiça e carinho desde as primeiras idades. Era isto o que se aclamava na
República, e não esta, em si, que, abstrata, nada significa (BOMFIM, 2005, p.
222).

A ausência da idéia diferenciada de público e privado e da


responsabilidade com o povo e com a coisa pública é evidenciada. Mais do que
isso, o governante, segundo Bomfim, não tem idéia de suas atribuições.

Nem lhes passa pela mente que seja função essencial do Estado cuidar
do bem público, e promover quanto possível a felicidade das populações!... Se
os governos se impressionam nos momentos de crise social ou econômica, é
porque estas crises se refletem sobre o Estado, ou diminuindo-lhe as receitas ou
ameaçando mesmo a permanência dos dominantes. É para defender os seus
interesses que ele intervém (BOMFIM, 2005, p. 214).

Também Raymundo Faoro segue a mesma linha crítica forte da ausência


de discernimento entre público e privado entre os governantes brasileiros. “A
comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como
negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas

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que se demarcam gradualmente” (FAORO, 1975, p. 733).
Em Donos do Poder, Faoro apresenta a sociedade brasileira dominada
pelo patrimonialismo, assentado nas relações políticas, sociais e econômicas
tradicionais, baseada no estamento, forma de divisão da sociedade diferente das
classes, que agregam interesses econômicos definidos. A sociedade estamental
é organizada por camadas “e definida politicamente por suas relações com o
Estado e socialmente, por seu modus vivendi estilizado e exclusivista”
(CAMPANTE, 2003, p. 154).
As ações patrimonialistas por parte do Estado criam uma gama de
estamentos, muito próximos do poder e redundam em uma outra prática que
atravessa os tempos na sociedade brasileira: o aparelhamento político.

Sobre a sociedade, acima das classes, o aparelhamento político – uma


camada social, comunitária embora nem sempre articulada, amorfa muitas vezes
– impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeável de
comando. Esta camada muda e se renova, mas não representa a nação, senão
que, forçada pela lei do tempo, substitui moços por velhos, aptos por inaptos,
num processo que cunha e nobilita os recém-vindos, imprimindo-lhes os seus
valores (FAORO, 1975, p. 737).

Nesses atos, em que se beneficiam aqueles que estão próximas do poder,


numa relação de compadrio, a participação popular é sufocada. Para Faoro, “a
soberania popular não existe, senão como farsa, escamoteação ou engodo”
(FAORO, 1975, p. 742).
Afirmação semelhante faz Sérgio Buarque de Holanda, para quem as
reformas brasileiras sempre foram de caráter intelectual, de cima para baixo,
contando com a indiferença do povo (HOLANDA, 2013). Isso justifica, pelo
menos em parte, a afirmação de que as constituições brasileiras também são
quase que pró-forma. As leis são feitas para não serem cumpridas. No mais das
vezes são cópias de outros países com realidades completamente diferentes da
vivida no Brasil (BOMFIM, 2005; FAORO, 1975; HOLANDA, 2013) e criam a
situação de contraste entre o Brasil Legal e o Brasil Real (HOLANDA, 2013), ou
seja, há um número relativamente grande de normas e leis que não são
cumpridas, em função de situações de costumes e práticas informais que
suplantam ou sufocam a eficiência e a eficácia da legislação criada, no mais das
vezes, a partir de modelos implementados em outros locais.

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Uma das características que merecem atenção na análise da formação
brasileira, no que se refere, principalmente aos aspectos políticos e sociais está
ligada às relações familiares da sociedade, que foi detalhadamente retratada por
Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (2013). As características da
colonização do Brasil pelos portugueses, as formas como a metrópole tratou a
colônia desde sempre ajudam a entender essa característica que ainda permeia
a sociedade brasileira.
Diferentemente de outros países, o Brasil foi, desde seu início,
caracterizado por grandes extensões de terras, pertencentes a uma única
pessoa, aquinhoada que foi, pela coroa portuguesa. Originou-se daí, as grandes
fazendas, dominadas pelos senhores dessas terras, os senhores de engenho,
com poderes absolutos e incontestados naquele território.

Nos domínios rurais, a autoridade do proprietário de terras não sofria


réplica. Tudo se fazia consoante sua vontade, muitas vezes caprichosa e
despótica. O engenho constituía um organismo completo e que, tanto quanto
possível, se bastava a si mesmo. Tinha capela onde se rezavam as missas.
Tinha escola de primeiras letras, onde o padre-mestre desasnava meninos. A
alimentação diária dos moradores, e aquela com que se recebiam os hóspedes,
frequentemente agasalhados, procedia das plantações, das criações, da caça,
da pesca proporcionadas no próprio lugar. Também no lugar montavam-se
serrarias, de onde saíam acabados o mobiliário, os apetrechos do engenho, além
da madeira para as casas: a obra dessas serrarias chamou a atenção do viajante
Tollenares, pela sua “execução perfeita”. Hoje mesmo, em certas regiões,
particularmente no Nordeste, apontam-se, segundo o sr. Gilberto Freyre, as
“cômodas, bancos, armários que são obra de engenho, revelando-o no não sei
quê de rústico de sua consistência e no seu ar distintamente heráldico”
(HOLANDA, 2013, p. 80).

Naquelas propriedades viviam a família do senhor de engenho, além de


escravos e agregados, que aumentavam o círculo familiar sob a autoridade do
dono da propriedade. Assim como a propriedade se bastava, se sustentava, o
senhor era o determinador das regras de convivência naquele rincão. Assim era,
em todo o país, com as famílias como referência de núcleos sociais. Até mesmo
penas de morte eram executadas, a partir de julgamentos feitos na própria
família ocorriam, sem que a justiça formal do país interferisse.

O quadro familiar torna-se assim tão poderoso e exigente, que sua


sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A entidade
privada precede sempre, neles, a entidade pública. A nostalgia dessa
organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem
necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos, não podia deixar

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de marcar nossa sociedade, nossa vida pública, todas as nossas atividades.
Representando, como já se notou acima, o único setor onde o princípio de
autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a idéia mais normal do poder,
da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens. O resultado
era predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios à comunidade
doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo
privado, do Estado pela família (Holanda, 2013, p. 82)

Essa estrutura social durou enquanto duraram as grandes propriedades,


mesmo depois, apesar de em menor grau, em função das características do
plantio, da introdução do café nas grandes propriedades de terra. Com as
fundações das cidades, no entanto, o cotidiano desses fazendeiros começa a
mudar porque as cidades necessitavam de trabalhadores e dirigentes. No
entanto, esse contingente veio justamente das áreas rurais. As funções de
dirigentes eram supridas pelos senhores de terra e as outras pelos demais ex-
habitantes das grandes propriedades. Não é difícil concluir que as práticas
administrativas patriarcais e patrimoniais presentes nos núcleos familiares
antigos se transferiram para a administração das cidades, permeando a
administração pública das relações hierarquizadas, embasadas na centralização
do poder e na obediência.
E, para esses novos atores políticos, dentro desse contexto com base
familiar, seria demais querer que eles tivessem alguma noção de distinção entre
o que é público e o que é privado. O usual é que as relações no poder público
também sejam permeadas pela individualização, pelos laços de amizade, de
relação sanguínea. Há que se criar um vínculo amigável primeiro antes de
qualquer relação comercial ou política. A partir da criação do vínculo é que
começam a se dar as relações de trocas materiais ou de favores, mesmo nas
relações que deveriam ser unicamente profissionais.
É com esse pano de fundo que Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes
do Brasil apresenta a contribuição que o Brasil dará à civilização: a cordialidade.
Mas, ao contrário do que a princípio sugere a palavra que adjetiva o “homem
cordial”, a qualidade em questão nada tem a ver com polidez, que poderia se
assimilar à cordialidade.

Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o


contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de
a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de
manifestações que são espontâneas no “homem cordial”: é a forma natural e

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viva que se converteu em fórmula. Além disso a polidez é, de algum modo,
organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica
do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência.
Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intatas sua
sensibilidade e suas emoções.
Por meio de semelhante padronização das formas exteriores da
cordialidade, que não precisam ser legítimas para se manifestarem, revela-se
um decisivo triunfo do espírito sobre a vida. Armado dessa máscara, o indivíduo
consegue manter sua supremacia ante o social. E, efetivamente, a polidez
implica uma presença contínua e soberana do indivíduo. (HOLANDA, 2013, p.
147)

Parece claro que o homem cordial está absolutamente ligado à


individualidade, à busca da manutenção das relações pessoais com o intuito
direto de proveito para si e para aqueles que estão no seu círculo de
relacionamento próximo, como nas famílias, o que, por conseqüência, dificulta a
formação de uma cultura associativa.
O interessante estudo “Cordialidade e familismo amoral: os dilemas da
modernização”, de Paulo Luiz Moreaux Lavigne Esteves (1998) faz uma
comparação dos conteúdos trabalhados por Sérgio Buarque de Holanda em
Raízes do Brasil e Edward Banfield em The moral basis of a backward society.
Esteves mostra que o termo “cordialidade” de Holanda guarda praticamente as
mesmas características do “familismo amoral” de Banfield ao se referirem a
cidadãos desprovidos de habilidade de agir em conjunto para a realização do
bem comum ou para a realização de qualquer ato que transcenda o interesse
material imediado da família nuclear. Esse tipo de atitude, que para Sérgio
Buarque de Holanda, é característica do povo brasileiro, é um entrave para a
modernização e a consequente democratização.
No caso de Banfield, o estudo se passou na década de 50 do século
passado, em uma cidade do Sul da Itália, que o autor denominou de Montegrano.
O estudo buscava os motivos pelos quais os habitantes daquela cidade não
conseguiam se unir, trabalhar em conjunto para o bem comum da comunidade,
além dos interesses materiais da família nuclear. O resultado é semelhante ao
que Sérgio Buarque de Holanda apresenta com o homem cordial e, no caso
italiano, foi denominado de familismo amoral. Os dois modelos se apresentam
como símbolo do atraso social, contrários à civilidade que se coloca como a porta
à modernidade entendida pelo bem estar de toda a sociedade.

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Ambas as narrativas sublinham a ausência do elemento civil exigido por
seus respectivos modelos. O significado do elemento civil não se refere
simplesmente à posse e exercício de determinados direitos. A civilidade
transformada em tradição ética, oposta, de um lado, à cordialidade e, de outro,
ao familismo amoral. Estas narrativas ressaltam a importância de tradições
éticas específicas, capazes de informar a ação dos indivíduos na direção do
reconhecimento da igualdade entre distintos cidadãos e da possibilidade de
acordos, parciais precários e provisórios, entre interesses e ideais diferentes. Por
fim, a partir de tais narrativas é possível pensar que sob a moderna configuração
da sociedade civil jaz um ethos moderno que orienta e limita a conduta individual
na direção de um padrão que permite relações horizontais, nas quais o elemento
da autoridade encontra-se ausente. (ESTEVES, 1998).

Não se vê, pelos olhos dos autores que trabalham com o homem cordial e com
o familismo amoral, grandes esperanças de mudança substancial nas
características das sociedades estudadas, de forma a se atingir uma cultura
cívica que elimine a arraigada herança familiar e no caso específico do Brasil, o
patrimonialismo. Atendo-se ao caso brasileiro, Sérgio Buarque tenta buscar
esperanças de mudanças na corrosão das bases que sustentam a cordialidade:
o mundo rural e a estrutura patriarcal. Mas, não pode afirmar que a
predominância do mundo urbano signifique, também, a predominância da
civilidade.
E está mais do que claro que não significa mesmo. Quase um século
depois das análises de Sérgio Buarque, não se pode dizer que a consolidação
de um capital social que leve à consolidação de uma cultura cívica no Brasil
esteja, ao menos, encaminhada. Ao contrário, fala-se hoje da necessidade de se
preparar melhor a mão de obra para se evitar o desemprego estrutural, para
agregar valor aos produtos, até agora, vendidos in natura, como se repetíssemos
o que disse há mais de um século (em 1905) o até então desconhecido Manoel
Bomfim, trazido à luz para os estudiosos recentemente.

Ninguém se deteve a examinar o caso e procurar os meios eficazes de


se fazer a transformação na produção. Não viam, sequer, que o trabalho livre
deve ser inteligente e aperfeiçoado, e que era mister, antes de mais nada, educar
o trabalhador, instruí-lo, levar o produtor a melhorar os seus processos, meio
único de compensar a barateza do trabalho escravo que se perdia. Disto não se
cogitou. Decretou-se a libertação, e foram-se todos, considerando a reforma
como acabada; e se alguém ainda se ocupou do caso – foi para pedir ou propor
que se importassem braços baratos, que pudessem substituir os antigos
escravos, nada se alterando nos costumes e nos processos: chineses ou
italianos, que viessem ocupar as antigas senzalas – um salário baixo,
equivalente à alimentação e ao juro do preço do negro... tudo mais como dantes.
(...) E o fazendeiro que viveu sempre parasita, já não quer somente braços
baratos; reclama também quotas diretas, em espécie – auxílios à lavoura,
compensação aos lucros cessantes... Ontem parasita do escravo, hoje parasita

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do Estado – é-lhe indiferente, certamente, quem o tenha de manter, contanto
que não haja de alterar o viver. E os auxílios vêm; mas nem ele se sacia nem
melhoram as condições da lavoura, convertida hoje em verdadeiro pauperismo,
cuja miséria aumenta na proporção das esmolas e auxílios que recebe.
(BOMFIM, 2005, p. 188)

A atualidade do texto de mais de um século de idade chega a assustar e


nos coloca em situação difícil na busca de argumentos que nos livre da tendência
a nos convencer de que o caminho em busca de uma sociedade mais justa está
nos primeiros passos e há muito que se percorrer, até que o texto se torne
realidade passada e não uma realidade teimosa que se repete irritantemente.
Encarar tais realidades como essa, relativas a avanços que estão
aguardando na fila há décadas ou há mais de um século como nos exemplos
dados acima talvez seja um caminho para se entender melhor a tal crise de
representação política. Mais do que entender, buscar, de verdade, soluções que,
pelo menos, minimize essa relação moribunda entre o representante e o
representado.
Mas corremos sempre o risco de ficarmos repetindo os erros se,
definitivamente, não encontrarmos o fio que costure a relação do representante
com o representado. A fiscalização ou a promoção da transparência dos atos
dos representantes, a prestação de contas, a chamada accountability são os
principais desafios que se colocam à frente da melhor relação entre os dois
atores.
Para Przeworski, apesar de os cidadãos, como dito antes, não disporem
de mecanismos institucionais para controlar seus representantes, o julgamento
pode ser feito na hora das eleições, por meio da prestação de contas. “Governos
são ‘accountable’ se os eleitores puderem discernir se os governos estão agindo
em seus interesses e puderem aprová-los apropriadamente” (PRZEWORSKI,
1998, p. 13). Nesse caso, os eleitores teriam como avaliar criteriosamente a
atuação dos representantes e reeleger aqueles que agirem apropriadamente.
Mas existe um problema que está no centro dessa relação
representante/representado que é a assimetria de informação. Em todo o
processo, o cidadão vive uma situação de desvantagem sobre a quantidade e a
qualidade da informação que dispõe para fazer os julgamentos necessários e
tomar as decisões políticas mais adequadas.

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... o controle através das eleições requer informação. A principal dificuldade para
nós cidadãos, tanto no sentido de instruir os governos sobre o que nós queremos
que eles façam, como para julgar o que eles têm feito, é que nós simplesmente
não sabemos o bastante, não dispomos de informação suficiente. Além de tudo,
governar é parte da divisão do trabalho, e mesmo se nós tivéssemos que
escolher nossos governantes ao acaso, não com base em conhecimentos
privilegiados de que eles já dispõem, eles inevitavelmente iriam adquirir
conhecimento especializado.
Na verdade, nós queremos que eles desenvolvam tal especialização e tal saber ao
governar. Porém, nós simplesmente não sabemos o bastante, e a razão
para isto não é só voluntária, mas estrutural. Cidadãos podem ser mal ou bem
educados, a média pode ser mais ou menos agressiva censurando a informação,
eleitores podem ser mais ou menos atentos. Mas o problema da informação é
mais profundo. (PRZEWORSKI, 1998, p. 15)

Essa mesma assimetria de informações sentida no momento da eleição é


aquela que complica a responsabilização do representado durante o mandato.
As informações, apesar de aumentarem com o passar dos tempos, ainda são
insuficientes para garantir uma relação mais harmoniosa entre eleitores e eleitos.
E essa informação não vai chegar facilmente ou passará a ser fornecida por
determinação de decretos. É preciso criar uma cultura de participação para que
mais e mais pessoas sejam informadas e recebam educação política.
Novamente o texto do início do século passado é trazido para lembrar que
a sugestão dada hoje não é nenhuma novidade. Também lembra e relembra que
os problemas insistem em desafiar a necessidade de se buscar o casamento do
cidadão com o seu representante político.

(...) é preciso muito esforço e boa vontade da parte dos governantes,


para dominarem as naturais tendências a ver no exercício da autoridade o gozo
do mando; é preciso que eles saibam conter-se, e tratem de educar-se e educar
todas as classes, de modo a que se convençam, uns e outros, de que o Estado
só tem uma razão de ser: representar e defender os interesses gerais comuns
da sociedade, e o seu bem-estar. (BOMFIM, 2005, p. 213).

Por outro lado, o cidadão precisa perceber que sua participação traz
resultados positivos, participar mais e disseminar essa ideia vantajosa de
participação a número cada vez maior de pessoas e, assim, o desenvolvimento
da democracia vai sendo construído, como observa Tarso Genro.

As experiências participativas com o ‘retorno’ das decisões que se integram


como conquistas da vida cotidiana, o aprimoramento das técnicas decisórias, a
incorporação das novas tecnologias informacionais e a formação de novas elites

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dirigentes (de extração popular direta) vão, paulatinamente, impondo-se como
um aprendizado de longo curso. É um outro estágio do que ocorreu no longo
período de formação das atuais elites profissionais que nos governam.
Deverá ser um longo aprendizado e um desenvolvimento que permita “uma
combinação de estruturas em que as instituições da vida cotidiana sejam
organizadas de maneira participativa, os meios de coordenação econômica e
política o mais estreita e transparentemente associados a essas instituições,
tanto quanto possível, e em que a estrutura legal seja decidida por um organismo
o mais representativo possível”. Trata-se de abrir a possibilidade de um futuro
indeterminado, que combine a previsibilidade da representação política, com a
indeterminação originária da democracia direta. É um futuro paulatinamente
constituído pela evolução e por saltos, com formas experimentais e regulações
combinantes (GENRO, 2003, pp. 20-21)

A construção desse futuro passa por uma participação que, como diz Luiz
Carlos Bresser Pereira (2005), cria uma sociedade civil ou uma esfera pública
em que cidadãos ajam civicamente, gerando o que ele chama de sociedade civil
ativa. Nela, “os governantes não obedecerão à lei apenas porque são
constrangidos a fazê-lo, porque percebem que isso é de seu próprio interesse
ou porque encaram a lei como justa” (BRESSER-PEREIRA, 2005, p. 85).
Bresser Pereira afirma que, no Brasil, as condições para isso já estão surgindo,
no sentido de se criar uma democracia republicana, composta por cidadãos
dotados de virtudes republicanas.
Na construção desta democracia republicana, Bresser Pereira chama a
atenção para instituições que, para ele são fundamentais e que se assemelham
às defendidas por Przeworski. O primeiro fala de organizações de
responsabilização social, inseridas na sociedade civil, ocupando um espaço
público não estatal, a fazer a intermediação entre representantes e cidadãos.
“Estamos corretos em considerar a esfera pública e a sociedade civil como
intermediárias entre os representantes e os cidadãos. Elas reduzem a distância
e a tensão entre eles” (BRESSER-PEREIRA, 2005, p. 85). O segundo chama
para a necessidade de comissões eleitorais independentes, escritórios de
prestação de contas independentes, agências estatísticas independentes. “Nós
precisamos de ‘accountability agencies’ independentes dos outros órgãos e
níveis de governo e designados a informar o público, não somente seus
representantes” (PRZEWORSKY, 1998, p. 16).
Os modelos e fórmulas surgem de estudos cada vez mais aprofundados
e devem surgir. Apesar deles, é razoável dizer que a chamada crise de
representação política não é algo trivial e de fácil solução. Mas o caminho parece

15
levar, pelo menos no Brasil para, no mínimo, uma profunda reforma política, que
contemple uma maior participação da sociedade.
Se admitimos que ainda vivemos em um ambiente social que abriga, em
sua maior parte, o homem cordial apresentado por Sérgio Buarque de Holanda,
com baixa capacidade de se organizar e criar capital social que lhe leve a uma
cultura cívica satisfatória, podemos admitir, também, que parte da solução esteja
na sugestão de Manoel Bomfim de que o Estado precisa se educar e educar os
cidadãos para a cidadania e para o civismo.
A outra parte pode e deve estar com a própria sociedade. Se existe uma
maioria que se comporta como o homem cordial, existe uma minoria que não o
faz. Dessa minoria podem emanar soluções participativas cívicas que fomentem
a evolução do capital social brasileiro.
Não é possível pensar em uma sociedade participativa em todas as
instâncias, mas também não se pode pensar em um sistema que privilegie
sempre uma elite que toma as decisões à revelia de um grande número de
envolvidos na política como um todo. Aliás, quando tomam, porque têm sido
cada vez mais freqüentes as decisões empurradas e adiadas, que acabam
saindo da estância política, legítima representante do povo nas decisões e caem
na estância judicial, na chamada judicialização da política.
É, de novo, a repetição do que foi dito antes, em relação à representação
distorcida, que defende interesses privados, de grupos parecidos com os
defendidos pelo homem cordial e pelo familismo amoral. É a representação
malfeita, que gera a crise de representação, muito promovida, também por outra
crise, a decisória, que toma conta, muitas vezes dos representantes,
principalmente no legislativo que, por essência, deveriam ser os grandes
representantes do povo, por serem os responsáveis, essencialmente, por legislar
e fiscalizar o executivo.
A vida política tem que dizer respeito a todos da comunidade, já que é a
ação política que determina as mudanças na sociedade. Talvez por isso,
Gramisci, nos Cadernos do Cárcere, analisado por Alvaro Bianchi em O
Laboratório de Gramisci – Filosofia, História e Política tenha escrito “...que o
conceito de ‘legislador’ deveria ser identificado com o de ‘político’ e, dado que
todos são ‘políticos’, na medida em que fazem parte ativa ou passivamente da

16
vida política, todos, também, são ativa ou passivamente ‘Legisladores’”
(BIANCHI, 2008. p. 195 ).
Talvez esteja aí, o grande elo que deveria ligar o cidadão ao
representante: o ato de legislar, como defende Rousseau e, como dito
anteriormente, a fiscalização do poder executivo, por parte da sociedade, por
seu próprio intermédio ou por seus representantes. Obviamente que, ao falar da
sociedade atuando por seu próprio intermédio, remetemos a formas de
participação que extrapolem as casas legislativas.
O Brasil já experimenta algumas formas de participação popular que já
começaram a mudar, mesmo que de forma muito lenta, a atuação da população
no contexto político geral. A Constituição Federal de 1988 traz inovações como
os Conselhos Gestores, alguns obrigatórios em estados e municípios, como os
de Saúde, Educação, Criança e Adolescente, Assistência Social e Trabalho.
Além disso, reviu o Pacto Federativo e concedeu novos poderes a estados e
municípios, que passaram a elaborar suas próprias leis orgânicas, a aumentar
arrecadação e a administrar as próprias receitas. Isso possibilitou o surgimento
de outros conselhos não obrigatórios pela legislação federal, mas que são
implantados por meio de leis estaduais ou municipais. A Constituição também
possibilitou que os municípios gerissem o próprio orçamento. Com isso surgiram
experiências como o Orçamento Participativo, implantado, em 1989, em Porto
Alegre (RS) e que se disseminou pelo país, notadamente nas prefeituras
administradas pelo Partido dos Trabalhadores (PT).
Da mesma forma, a Constituição de 1988 traz inovações como Plebiscito,
Referendo e a possibilidade de criação de projetos de lei por iniciativa popular.
Também, nessa esteira participativa, aparecem as figuras das CPIs, das
audiências públicas. Essas últimas, largamente utilizadas nas assembleias
legislativas e nas câmaras municipais, especialmente nas grandes cidades.
Por outro lado, essa mesma constituição cria a Medida Provisória, que
concentra o poder decisório nas mãos do Executivo. Após editada pelo Executivo
Federal, a Medida provisória entra em vigor imediatamente, deixando a
responsabilidade para o Congresso votá-la, depois de implantada. A constituição
de 1988 ainda confere iniciativa exclusiva ao presidente em matérias
orçamentárias e veda emendas parlamentares que impliquem a ampliação dos
gastos previstos.

17
O presidente tem ainda exclusividade da iniciativa em matérias tributárias
e relativas à organização administrativa. Tudo isso faz do Executivo brasileiro
um dos mais poderosos do mundo (FIGUEIREDO E LIMONGI, 1999). Essas
inovações são estendidas aos executivos estaduais e municipais, com exceção
das Medidas Provisórias.
Como mais um complicador na crise de representação, esse excesso de
poder nas mãos do executivo cria uma relação de subserviência do legislativo
que se vê sem algumas das principais funções do legislador. No embate entre a
onda e a rocha acaba sobrando para o marisco, neste caso o cidadão, como
sempre. Na verdade, o prejuízo é geral, levando-se em conta como é tratada a
relação executivo/legislativo, com essa divisão assimétrica de força entre os dois
poderes.
O fim desse embate tem como resultado certo o clientelismo, que
atravessa todo o universo político brasileiro, das mais diversas formas. O
executivo tem todas aquelas vantagens legislativas citadas anteriormente e tem
a chave do cofre, onde está a maior parte dos recursos da União. Juntos, aí, os
ingredientes que vão fomentar as relações de troca entre Executivo e Legislativo,
com o cidadão no meio e que se reproduzem nos níveis estaduais e municipais.
Parece ser um caminho natural a construção de uma república
democrática ou de uma democracia republicana, com maior participação da
população, até mesmo partindo de exemplos que não saiam dos países centrais,
mas de emergentes, como sugerem Santos e Avritzer (2003). Parece fato que,
principalmente as populações de países mais “periféricos” como o Brasil e que
estão experimentando um sistema democrático recente, porém sólido, não se
contentam mais em simplesmente serem coadjuvantes de um sistema político
que atinge a todos.
Também parece fato que as novas práticas devem vir, não
necessariamente, embasadas somente em legislações que as criem, mas,
principalmente, em práticas de participação que se consolidem a partir de
resultados obtidos e testados pela sociedade, que permitam correções de
percurso e, acima de tudo, incentivem maior participação, ao ponto que o custo
político para o governante seja grande e que o faça pensar pelo menos duas
vezes antes de se opor a tal prática.

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A participação é experimentada, provada, aprovada e ampliada. No Brasil
isso é uma realidade cada vez mais sentida. Se está correta a suposição de que
a população, cada vez menos, aceita o papel de simples atestadora das ações
dos representantes, é razoável pensar que essa mesma sociedade vai, aos
poucos, exigir, também, uma relação mais equilibrada entre executivo e
legislativo, maior transparência, assim como outras formas de participação da
sociedade na vida política do país.
Apesar de não devermos nos ater somente nas leis que regulamentem
procedimentos favoráveis à sociedade, não há como viver sem as normas legais
em sociedades complexas. E elas vão surgindo e criando na sociedade a
necessidade de outras serem criadas, aprimoradas ou substituídas, para
acompanhar a evolução do mundo, no que se refere ás novas tecnologias, por
exemplo mas, principalmente, a evolução do pensamento da sociedade.
Exemplos no Brasil podem ser dados para a Lei de Acesso a Informação
e, no que se refere às novas tecnologias, as legislações que são aprimoradas
constantemente na área de informática, de sigilo de informação, assim como
regulamentações do uso do espaço na web. Já é possível, por exemplo, no caso
da Lei de Acesso à Informação, obter dados que, até pouco tempo, ficavam
restritos à boa vontade de dirigentes governamentais ou de funcionários públicos
mal-humorados.
Não há como negar que trata-se de um método de accountability que
poderá ser usado crescentemente, justamente para tentar fazer aquela
responsabilização, falada anteriormente, em relação aos dirigentes
governamentais ou representantes no poder Executivo. Isso, aliás, já está se
tornando realidade e, cada vez menos informações ficam engavetadas nas
repartições públicas. Os próprios governantes tomam a iniciativa de apresentá-
las à sociedade antes de serem cobrados para evitar um trabalho maior no
momento em que for demandado e como forma de aproximação com a
sociedade.
De forma complementar e com extrema importância, também evolui, cada
vez mais, as chamadas novas mídias, aquelas especialmente ligadas à Internet
que, sem dúvida, ampliaram o acesso à informação e aumentaram a democracia
das comunicações. Não há como negar que a classe política tem se preocupado
com sua imagem que, de um momento para outro pode ser veiculada na web.

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Em 2009, o mundo inteiro acompanhou pela Internet, os embates entre
membros da sociedade e representantes do governo nas eleições do Irã. As
mortes de manifestantes por forças governamentais foram transmitidas por meio
de celulares que filmavam e, imediatamente disponibilizavam as imagens na
Internet. No Brasil, atualmente, isso é prática corriqueira. Aliás, a grande mídia,
a chamada convencional, já se rendeu a essas novas tecnologias e, em vez de
combatê-la como um concorrente, busca incorporá-la na chamada convergência
de mídias, afim de se atingir, cada vez, um número maior de pessoas e de
maneira mais rápida.
Talvez estejamos diante da trilha que conduzirá ao caminho seguro para,
com o tempo, corroer, realmente, as práticas atrasadas elencadas por Sérgio
Buarque de Holanda relativas à atuação do homem cordial. Os elementos de
participação física e as novas tecnologias podem ser um dos agentes a contribuir
para o rompimento com o que o autor chamou de mundo rural e ações de
dependência patriarcais nas relações políticas brasileiras e que se entranham
nas mediações entre representantes e representados, criando o ambiente
desfavorável para a transição da sociedade arcaica, marcada pelas relações de
trocas individualistas, de compadrios, de sobranceria, de patriarcalismo,
patrimonialismo, para a sociedade cívica, marcada pela solidariedade, pela
liberdade, igualdade de direitos e deveres e divisão equitativa e justa de recursos
materiais.
Isso não será possível, no entanto, sem a melhoria dos quadros políticos
vigentes hoje, a educação deles e do povo, como sugeriu Manoel Bomfim e da
conseqüente participação, cada vez maior da sociedade brasileira na política do
país, tendo como rumo que a política é o instrumento legítimo de organização
justa das sociedades.

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