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Características da poesia de Alberto Caeiro

A. Plano semântico:

 A defesa da objetividade

Nada existe para além daquilo que, de facto, é percetível para o ser humano, para além
daquilo que percebemos através dos órgãos dos sentidos. Caeiro é o poeta do real e do
objetivo.

 O predomínio da sensação sobre o pensamento

O Homem deve renunciar ao pensamento, pois este implica que se deturpe o significado das
coisas que existem, sem que seja necessário pensarmos nelas. Para Caeiro, só os sentidos
contam, principalmente o olhar. Ele só se interessa por aquilo que capta pelas sensações.
Nesta medida, é um sensacionista. Vive aderindo espontaneamente às coisas, tais como são,
e procura gozá-las com despreocupada e alegre sensualidade.

 A comunhão total entre o Homem e a Natureza

Caeiro identifica-se com a Natureza, vive segundo o seu ritmo, deseja nela se diluir, integrando-se
nas leis do Universo. Considera que o ser humano deve submeter-se às leis naturais e não deve
racionalizar processos que existem naturalmente (por exemplo, as ideias de vida ou de morte,
que existem enquanto verdades absolutas).
 O paganismo
Da ideia de comunhão absoluta com a Natureza resulta uma visão pagã da existência, que
consiste na descrença total na transcendência; a única verdade é a sensação.

B. Plano formal:

 Linguagem simples, que se aproxima do falar quotidiano, coloquial e natural.

 Léxico familiar, pobre e reduzido.

 Adjetivação quase ausente. Predomínio de substantivos concretos.

 Quase ausência de metáforas, metonímias ou sinestesias. Uso de comparações simples, que


permitem a transformação do abstrato no concreto.

 Polissíndetos.

 Predominância das formas verbais no Presente do Indicativo e no Gerúndio (sugerindo


simultaneidade e arrastamento).

 Predomínio da coordenação.

 Irregularidade estrófica.
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 Verso livre.

 Ausência de rima.

 Aproximação à prosa.

 Ausência (aparente) de preocupações estilísticas.

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Alberto Caeiro representa a antítese de Fernando Pessoa ortónimo, o “remédio” para a


sua ansiedade e para a sua angústia perante o mistério da existência, inacessível ao Homem.
Para este heterónimo, a única via para atingir a felicidade é não pensar, é recusar a essência,
para acreditar que apenas existe a aparência. Alberto Caeiro propõe uma “desculturalização”, na
medida em que nega a visão da realidade, sujeita à análise do pensamento, defendendo que
existir é, afinal, estar de acordo com as leis naturais.

Caeiro olhava “com uma formidável infância” (diz Fernando Pessoa). E por esta busca da
infância podemos ver, desde já, neste heterónimo de Pessoa, uma intenção de renascer, de lutar
contra o elaborado, o artificial, o falso, e um apelo ao reencontro da ingenuidade das crianças.

Uma afirmação atribuída por Álvaro de Campos a Alberto Caeiro foi esta: “Toda a coisa
que vemos, devemos vê-la sempre pela primeira vez, porque realmente é a primeira vez que a
vemos”. E acrescenta ainda Campos: “O meu Mestre Caeiro não era pagão: era o paganismo (...).
Em Caeiro não havia explicação para o paganismo; havia consubstanciação.”

Ao definir o seu mestre Caeiro como o paganismo, Fernando Pessoa / Álvaro de Campos
queria(m) significar um regresso às origens, em que a oposição sentir / pensar não existisse, e
tudo quanto fosse fruto da razão e do pensamento fosse recusado.
Ora, como por aqui se vê (numa primeira leitura, direta e mais elementar), o mestre Caeiro
aparece-nos como um ingénuo, um amante da simplicidade e da inocência, da natureza sem
metafísica, da vida simples do campo. Não tendo mais que a instrução primária e escrevendo
mal o português, entregava-se às sensações desprovidas de pensamento (a sensação é tudo – é
saúde –, o pensamento é doença). É nisso que Caeiro se aproxima do guardador de rebanhos,
integrando-se como ele na natureza, vagabundeando passivamente pelos espaços, fruindo a
felicidade de cada coisa.

Apaixonado pelo presente (aceitar o passado ou o futuro seria atraiçoar a natureza), pelo
concreto, pelo imediato, pela anulação da subjetividade, sempre preocupado com o olhar
(sensações visuais), ele diz aceitar as coisas tal como se lhe apresentam, admirando a sua
originalidade, diversidade e mobilidade – que é o que constitui, segundo ele, o seu signo de
existir. E neste ponto reside toda a sua sabedoria.

Foi a dor de pensar, a mágoa do viver consciente, que levou Pessoa a admitir como mestre
de si próprio e dos seus heterónimos a figura do instintivo Caeiro. Para este, pensar não é
compreender, pensar anula a felicidade, é o instrumento da divisão do ser, da sua desintegração;
pensar é sofrer, é virar as costas ao mundo e às sensações. A visão total perante o mundo, a
desejada unificação só se obterá com a anulação do pensamento.

Caeiro propõe um regresso à inconsciência, ao pasmo essencial – gesto que, apesar da sua
complexidade, se tende imediatamente a relacionar com essa espécie de paraíso-perdido que é
o tempo da infância, encarado como tempo de uma pré-consciência feliz.

Mas esse regresso constitui um impossível para Pessoa, pelo que o heterónimo manifesta
apenas uma intenção, um desejo de que assim seja – mas nunca poderá ser. A superação do
problema que preocupa Pessoa não encontrará também através de Caeiro a solução ansiada.

A simplicidade de Caeiro é apenas aparente. Ele não é efetivamente o que afirma ser, mas
antes alguém que aspira a ser a realidade que enuncia – o que constitui uma contradição mal
disfarçada. Tudo com quanto depara é marcado pela argúcia (subtileza, agudeza de espírito) que
o caracteriza, pela sua capacidade de observação, pela sua inteligência e racionalidade,
resultando daí a formulação de constantes juízos de valor e uma sistematização de pensamento
que culmina com afirmações do tipo “o único sentido íntimo das coisas / É elas não terem
sentido íntimo nenhum”.

E é assim que toda a imagem de “grau zero” que esse heterónimo de Pessoa pretende
transmitir soa como um disfarce. Caeiro, em suma, é um filósofo da não filosofia (nas palavras de
Jacinto do Prado Coelho), é alguém que diz nada ter a ver com a metafísica, mas que se mostra,
em cada momento, profundamente comprometido como ela. Ao negar toda a metafísica, já está
a raciocinar, já está a construir uma nova metafísica: uma anti metafísica.

A sua linguagem é sobretudo abstrata, adaptada ao raciocínio, e nunca nela surge a


descrição impressionista da realidade. O seu realismo ingénuo, paradoxalmente, desemboca
sempre no raciocínio. Como poeta bucólico, Caeiro deveria basear a sua poesia na descrição
visualista da natureza. Não só não o faz, mas a sua linguagem é adaptada à exposição de uma
teoria anti metafísica. Querendo repudiar qualquer filosofia, Caeiro transformou-se num poeta
filósofo, ou anti filósofo.

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