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A luta pela democracia é o que une as esquerdas atualmente, e só essa união e

mobilização popular podem reverter o golpe parlamentar no Brasil. Esta é a avaliação


do filósofo e sociólogo português Boaventura de Sousa Santos que, em entrevista
exclusiva conduzida pelo Movimento Democrático 18 de Març o (MD18) e
a Universidade Federal do Pará, fez uma análise precisa da atual situaç ão política
brasileira. Boaventura desnuda o cenário do que ele chama de Golpe Parlamentar.
Fala ainda da importância das lutas sociais, da influência dos Estados Unidos na
política brasileira e também sobre as estratégias internacionais para combater o Golpe
Parlamentar no Brasil. Neste contexto, o intelectual chama a atenç ão para a criaç ão de
uma grande frente internacional contra a política imperialista americana que, na sua
leitura, está em franca ofensiva contra os países que compoẽ m o BRICS. Membro ativo
do Fórum Social Mundial, Boaventura destaca a resistência popular que toma as ruas
do Brasil como a última trincheira da democracia e faz um apelo para que movimentos
sociais mantenham-se ativos e as ruas continuem ocupadas. Mesmo num cenário
catastrófico e desolador, seu pensamento pulsante e potente contorna todo o
pessimismo.

Esta conversa, conduzida por Kalynka Cruz-Stefani, Professora de Comunicação da


Universidade Federal do Pará, Doutoranda em Sociologia pela École des Hautes
Études en Sciences Sociales (EHESS) e Maria Fernanda Novo dos Santos Doutoranda
em Filosofia pela UNICAMP com estágio na Universidade Paris X, dá sequência à
série de entrevistas do MD18 com grandes intelectuais de esquerda publicadas no Blog
da Boitempo. Leia a primeira entrevista da série, com o sociólogo franco-brasileiro
Michael Löwy, clicando aqui.

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Diante desta grave crise politica no Brasil, nós do MD18, assim como cada
brasileiro engajado contra o golpe, buscamos entender quais ferramentas podem
nos ajudar a pensar como resistir a esse governo ilegítimo. Para isso, precisamos
entender a partir de diversos pontos de vista este cenário. O senhor, que se dedica
há muitos anos a refletir sobre o Brasil, poderia nos dar a sua leitura deste quadro
geral?

Estamos envolvidos em uma luta naõ só nacional, mas internacional, dada a importância
do Brasil e, portanto, devemos juntar todos os esforços e ter alguma clarividência sobre
o momento difić il que estamos enfrentando. Em primeiro lugar, obviamente, estou
absolutamente convicto de que se trata de um governo ilegit́ imo e de que estamos diante
de um golpe parlamentar. O perfil é de um golpe parlamentar relativamente diferente
daquele que aconteceu em Honduras e no Paraguai, mas tem, no fundo, o mesmo
objetivo que é, sem qualquer alteraçaõ constitucional, sem qualquer ditadura militar,
interromper realmente o processo democrático. É evidente que o momento é difić il
porque nem toda gente pensa como nós, essa é a primeira questaõ . Por exemplo, neste
momento que vos falo, meu coraçaõ está pesado, uma colega minha da USP, Flávia
Piovesan, que colabora comigo em um projeto internacional, aceitou ser secretária dos
Direitos Humanos…. Ontem lhe mandei uma mensagem dizendo-lhe que o prestígio
dela naõ deveria de modo nenhum ser posto a serviço de um golpe parlamentar e que
eles naõ merecem a qualidade que ela tem. Estou, neste momento, a assinar uma carta,
assinada também pelos advogados populares e outras organizações sociais, me
manifestando contra a decisaõ dela. Flávia diz que, para ela, naõ é um golpe
parlamentar : o impeachment está previsto etc. Já conhecemos este tipo de
argumentaçaõ , obviamente que temos muitos argumentos jurid́ icos contra esta posiçaõ
dela, mas naõ deixa de ser perturbador que uma pessoa ligada aos Diretos Humanos
venha emprestar a sua dignidade a este governo. Portanto, isto significa que vamos
entrar num período difić il, complexo, com alguma divisaõ dentro do país, isto era a
primeira coisa que gostaria de dizer. Certamente, vai ser muito importante que as forças
progressistas, que inequivocamente, penso eu, saõ as que estaõ a defender a ideia de que
houve um golpe parlamentar, mantenham o seu nível de mobilizaçaõ para neutralizar
naõ só aqueles que desde sempre estiveram a favor do golpe, como aqueles que acabam
por legitimar o golpe, como é o caso da Flávia, se vier a se concretizar, o que parece que
vai ser o caso.

Em segundo lugar, eu penso que é uma situaçaõ muito difić il porque algo que raramente
se discute no Brasil, aliás que muito pouco se discute no Brasil, é a presença pesada do
imperialismo norte-americano. Nós naõ podemos entender o que se passa no Brasil sem
uma açaõ desestabilizadora norte-americana, inspirada e financiada pelos norte-
americanos. Há duas dimensões; obviamente que uma é o financiamento de
organizações que surgiram a favor do impeachment e que nós temos informaçaõ de que
alguns dos maiores conservadores norte-americanos – como por exemplo os irmaõ s
Koch que financiam uma das agendas superconservadoras nos EUA – têm estado a
financiar estas organizações. Por outro lado, os EUA têm feito muita força para que os
homens, sim homens, de fato, todos brancos, que estaõ do lado deles assumam o poder
o mais rápido possível. Com que objetivo? Fundamentalmente com o objetivo principal
de neutralizar o Brasil como um dos protagonistas dos BRICS. Os BRICS saõ uma
ameaça extraordinária para os EUA, porque os EUA saõ uma economia em dependência
que se aguenta fundamentalmente porque detêm importante capital financeiro e,
portanto, por aceitaçaõ universal do dólar. Os BRICS chegaram exatamente a criar um
banco que é uma alternativa ao Banco Mundial e, portanto, as trocas entre eles podem
ou naõ ocorrer em dólar. Isto significa um ataque extraordinário ao dólar. Portanto, os
EUA têm vindo desde algum tempo produzir uma polit́ ica de neutralizar todos os paiś es
que estaõ nos BRICS. Começaram pela Rússia. Mas, na Rússia, o processo democrático
é um pouco complexo, aí o modo de neutralizar a Rússia foi baixar o preço do petróleo.
De uma semana para outra baixou para menos da metade do preço. Em segundo lugar,
no caso do Brasil, como há uma democracia, uma democracia viva, aproveitaram
obviamente das contradições do processo democrático; sabemos que as democracias
representativas defendem-se muito mal dos antidemocratas. Aproveitaram-se disso para
criar uma desestabilizaçaõ muito forte. Aliás, basta ver quem está neste novo governo
para ver de forma clara como houve interferência dos EUA no sentido de realinhar o
Brasil pela politica americana. O maior exemplo é o José Serra, que é o homem dos
EUA que vai para o governo com dois objetivos: fazer com que o Brasil se alinhe
completamente com os EUA, o que significa anular o banco dos BRICS, e abrir a
possibilidade de o Brasil entrar na parceria Transpacif́ ico. Logo, contra inimigos deste
tipo, é muito difícil lutar.

Neste sentido, o que representa o boicote da Rússia e eventualmente da China,


nesse jogo de forças internacionais? Isto é capaz de influenciar contra o que está
acontecendo, desestabilizar este governo que tomou o poder?

O Brasil está agora com a oportunidade – e devemos ter consciência disso – de fazer
uma luta contra o imperialismo norte-americano. Há aqui realmente, alguma
oportunidade para desestabilizar este projeto global que, como sabem, naõ é apenas na
América Latina. Vemos muito bem que no sul da Europa, na Grécia, em Portugal e na
Espanha as mesmas receitas de austeridade estaõ a ser aplicadas. Portanto, o Brasil está,
neste momento, numa posiçaõ histórica que permite ser uma frente de luta contra o
imperialismo, mas isto vai depender de muitas coisas, vai depender acima de tudo do
movimento popular interno do Brasil. É fundamental lançar internacionalmente a ideia
de que, com vários países, o Brasil possa vir a construir um bloco que faça alguma
afronta a esta intençaõ dos EUA e da Uniaõ Europeia. Neste momento, a UE naõ tem
nenhuma identidade autônoma em relaçaõ aos EUA.

Além disso, é também preciso que o movimento popular no Brasil continue.


Principalmente agora que o golpe naõ está consumado, mesmo que haja uma suspensaõ
(do Governo de Dilma) e que naõ haja pressa (do Governo ilegit́ imo) em resolver.
Aliás, esta é uma outra ilegitimidade deste governo – e foi assim com Itamar Franco
também – mas este Governo é um governo provisório, porque a presidente Dilma está
suspensa, naõ foi afastada definitivamente e, portanto, este Governo naõ deveria ter uma
polit́ ica de mudança taõ radical com tantas medidas que estavam na pauta do congresso
e que agora vaõ avançar. E estas pautas saõ demolidoras e vaõ alterar todo o modelo
econômico. É evidente que o processo (de afastamento de Dilma) vai avançar e
certamente o golpe consuma-se. Por isso a vossa pergunta inicial faz todo o sentido, o
que fazer internamente?

Os movimentos sociais e populares foram atacados diretamente com o


esfacelamento de políticas que foram conquistas históricas. A extinção, ou a cisão
em secretaria, de Ministérios que trabalhavam a favor de políticas públicas que
atendessem às demandas populares foi a primeira canetada de Michel Temer.
Como entender este ato que representa a implosão da comunicação entre governo
e sociedade civil?

Obviamente, a extinção destes Ministérios é para mostrar que este Governo e este golpe
sabem muito bem a que vieram. Está absolutamente claro que os cortes nos Ministérios
foram exatamente em todos os Ministérios que respondem às pautas dos Movimentos
Sociais. Aliás, a ministra da Igualdade Racial, Nilma Gomes, que foi minha pós-
doutoranda, uma das mais brilhantes que tive e cuja polit́ icas estive a acompanhar de
muito perto é um bom exemplo do que efetivamente acaba de passar no Brasil. Por isso,
é muito importante notar que, quando a direita conservadora entra no poder, ela entra
com uma violência enorme, no sentido de apagar o mais rapidamente possível a
memória de tudo que se passou em tempos mais recentes. Vejam o que aconteceu com o
Macri, porque a estratégia é global. Em três semanas, alterou a legislaçaõ que
praticamente anulou todas as conquistas sociais que o governo peronista de Cristina
tinha desenvolvido nos últimos anos. É exatamente isto que vai se passar agora. Qual o
problema dos argentinos? É que o Macri ganhou as eleições e, portanto, houve uma
divisaõ na sociedade. Isto fez com que os movimentos sociais ficassem paralisados.

No Brasil, naõ . Uma presidente ganhou as eleições, a direita naõ gosta do resultado das
eleições e começa a desestabilizar. Poucos meses depois de a presidente ser eleita,
pedem o impeachment dela. É como eu disse e tenho escrito : temos, neste caso do
Brasil, talvez a polit́ ica mais honesta da América Latina que foi impedida pelos
polit́ icos mais corruptos. Isto nunca tinha acontecido. É uma coisa nova e, portanto, os
movimentos sociais estaõ a tomar conta disso. Eu acho que nós, neste momento no
Brasil, temos uma série de movimentos, realmente uma frente unida, mas com suas
especificidades. Tem alguns movimentos mais próximos do PT, outros estaõ mais
independentes, no aspecto mais amplo da esquerda. De um lado, o MST; do outro, o
MTST, que saõ distintos – eu, aliás, trabalho com ambos. Estaõ nesta frente também os
movimentos quilombolas, os movimentos indígenas; todos estaõ muito ativos. E eu
penso que, para efeito internacional e interno, esta mobilizaçaõ deve se manter.

Qual é o nosso problema? Como sou cidadaõ honorário das universidades de Saõ Paulo
e Porto Alegre, eu falo como se fosse brasileiro. É assim que me sinto neste momento.
Eu acho que, neste momento, realmente o grande problema que nós enfrentamos é que a
mobilizaçaõ popular naõ é sustentável ao longo de muito tempo com o mesmo
dinamismo. Isto é, as pessoas a certa altura cansam, o processo do impeachment vai
durar seis meses e naõ é criv́ el que se mantenha o mesmo nível de mobilizaçaõ . Naõ
quer dizer que ela naõ se mantenha, mas temos que lutar muito para que ela se
mantenha. Eu penso que vai ser muito importante manter esta pressaõ . Neste momento,
quando vocês me perguntam onde estaõ as vias de luta política, naõ há outra via se naõ
a via popular, da luta social na rua, nas organizações. Veja como alguns dos ministros e
alguns dos secretários foram recebidos quando entraram: os próprios servidores os
insultaram. Portanto, esta desestabilizaçaõ dos desestabilizadores é fundamental. Ela
tem que se manter e, portanto, acho que há várias estratégias que devem ser adotadas no
sentido de manter esta mobilizaçaõ em alto niv́ el para poder continuar a fazer pressaõ .
Naõ uma pressaõ sobre o congresso, porque realmente como vocês dizem e muito bem,
este congresso naõ representa de maneira nenhuma o Brasil, e isto é o que nos devemos
pensar para o futuro. Ou seja, é preciso uma reforma polit́ ica.

Portanto, eu acho que vai ser necessário manter acesa a luta social, mantê-la unida pela
democracia. Pois, quando os movimentos se unem é pela democracia. Como sabem – e
talvez vocês acompanhem o meu trabalho – eu fiz várias crit́ icas à presidente Dilma
obviamente. Acho que a presidente Dilma naõ estava preparada para esta situaçaõ , de
maneira nenhuma. Ela foi uma escolha pessoal do presidente Lula e, portanto, naõ me
admiro que o presidente Lula considere que está a passar por uma derrota pessoal.
Porque foi realmente uma escolha pessoal de alguém que sai da presidência com 80%
de aceitaçaõ e, portanto, pensa que os próximos quatro anos seraõ anos de bonança,
seraõ anos tranquilos, mas naõ foi isso. Dilma cometeu erros enormes, sobretudo no
inić io do segundo mandato ao fazer as polit́ icas de austeridade que nós conhecemos e ao
nomear para as finanças o Levy. Portanto, o que une os movimentos neste momento é a
luta pela democracia, naõ é luta pelo governo do PT. E isso parece-me que é o
importante, isso pode unir as pessoas.

E esperamos que esta unidade se mantenha, porque o que vem por ai em termo de
legislaçaõ , pelas medidas que vocês aqui mencionam (como as pautas conservadoras do
Congresso) e que obviamente têm toda razaõ , há muitas outras que estaõ na calha.
Notadamente, a legislação sobre as empresas públicas. A proposta que já está no Senado
é para que as empresas públicas funcionem como empresas privadas. A independência
do Banco Central é outra, e fundamentalmente da proposta do pré-sal. Retirar da
Petrobras o fato de ter 30% da reserva do pré-sal e abrir isso ao mercado internacional,
eles querem tirar isso. Agora façam a ligaçaõ , porque os irmaõ s Koch saõ os grandes
industriais do Petróleo nos Estados Unidos. Saõ os que estaõ , por exemplo, por trás do
cracking nos EUA e na Argentina. Portanto, eles têm muito interesse econômico em
receber este recurso.
Quando o senhor afirma que a mobilização social é quase o único caminho, surge
uma questão incontornável. Qual é a possibilidade de acionar recursos jurídicos
internacionais ?

Eu acho que várias medidas podem ser tomadas, e eventualmente estaõ a ser tomadas.
Por exemplo, eu mesmo tomei uma iniciativa no âmbito do Fórum Social Mundial de
criarmos um tribunal ético internacional. Isto está a causar muita polêmica dentro do
Fórum porque as correntes dominantes naõ querem assumir uma posiçaõ direta em
nome do Fórum. É um debate que eu tenho com o Chico Whitaker, e penso que vou
perder este debate. Pelas informações que tenho até hoje, a maioria das pessoas naõ quer
que Fórum Social Mundial apareça como criador de um tribunal ético. Eu penso que
isto é uma derrota enorme. E faço aqui uma crítica porque sou uma das pessoas que
esteve no FSM desde o inić io e sinto que é a sentença de morte do FSM se naõ tomar
nenhuma medida nesta situaçaõ em que está o país, que, no fundo, deu ao mundo o
FSM, que foi o Brasil.

Esta recusa se dá por causa das políticas do PT?

Naõ , é uma polit́ ica que surge como medida jurid́ ica, isto é, aparece fundamentalmente
como desrespeito pela regra do Fórum. Segundo os princiṕ ios, o Fórum não toma
posições polit́ icas sobre a agenda internacional. Eu sou membro do conselho
internacional e venho lutando pela mudança dessas regras. Bem, tudo leva a crer que as
regras naõ seraõ mudadas. Em segundo lugar, eu penso que o Tribunal Interamericano
de Direito Humanos, a corte, a comissaõ e o tribunal podem eventualmente ser
chamados a se pronunciarem sobre a ilegitimidade deste governo. Eu penso que há uma
intençaõ de apresentar uma queixa na comissaõ internacional, senaõ mesmo no tribunal
dos direitos humanos, porque o próprio presidente da comissaõ já mostrou suas reservas
ao que está a passar no Brasil. E por outro lado, um dos juiź es mais prestigiados da
corte, que é o juiz Raul Zaffaroni, da Argentina, também se mostrou complemente
adepto disso.

Em terceiro lugar, eu penso que os estudantes mobilizados, os trabalhadores, os


imigrantes, todos os que estaõ fora do Brasil deviam, neste momento, fazer dois tipos de
açaõ . Um movimento de pressaõ sobre as embaixadas, manifestações na embaixada do
Brasil, por todos os meios pacif́ icos. E, por outro lado, ações junto aos ministérios dos
governos estrangeiros destes países. Ações orientadas, praticamente diárias e
eventualmente um acampamento, como se faz muitas vezes. Enfim, é preciso açaõ que
eu chamo de extra institucional neste momento. E junto das embaixadas para que isso
possa trazer algum impacto mesmo midiático. Penso que as mídias internacionais estaõ
realmente perturbadas com a agressividade do golpe e a agressividade da Globo. O
Guardian deu uma matéria em que tornou claro que os jornalistas se sentiam enganados
pela Globo. Na medida em que a Globo parecia que estava a transmitir distúrbios,
estava efetivamente a provocar distúrbios. Vindo do Guardian, é uma grande
condenaçaõ . Entaõ , a mid́ ia está divida e penso que ações inteligentes aqui na Europa,
sobretudo, podem ter algum impacto.

Portanto, a vossa responsabilidade aqui é manter esta dinâmica absolutamente forte para
aguentar, porque nos movimentos de rua e nos movimentos extra institucionais naõ
podemos estar todos mobilizados ao mesmo tempo. Mas, todos nos ajudamos uns aos
outros na mobilizaçaõ . Isto é, se souberem no Brasil que os estudantes e imigrantes etc
aqui de Paris se juntam para fazer uma açaõ junto à embaixada e junto aos ministérios
dos governos estrangeiros, isso vai animar quem está no Brasil. Ou quem está em
Portugal, quem está na Espanha, etc. Vocês têm que naõ só fazer estas ações como
torná-las conhecidas. Portanto, acho que isso é que tem ser feito : uma rede
internacional de apoio.

Frente à crise das instituições, acreditamos que o silêncio e a participação subjetiva


do judiciário foram fundamentais para sustentar as bases do golpe. Qual a sua
avaliação do dano que o Judiciário brasileiro causou ao Brasil ?

É evidente que o judiciário é uma instancia conservadora. O judiciário tem um


desempenho extremamente desigual dentro do Brasil. Nós tivemos, no passado, alguns
momentos em que o judiciário parecia estar ao lado dos movimentos. Vemos algumas
decisões progressistas até do tribunal no que diz respeito à reintegraçaõ de posse no
caso das ocupações do MST, por exemplo no passado em Pontal do Paranapanema.
Mas, é evidente que a grande maioria e a instituiçaõ por si própria é conservadora.
Ainda que conservadora, mantém mesmo assim alguma ideia de primado do direito. E
para saber que a direita naõ quer o primado do direito, mesmo um primado do direito
conservador, vemos o que tem sido tentado aprovar no congresso do Brasil, que a
concessaõ da terra aos povos quilombolas e indígenas saia do STF e passe para o
congresso, o que significa que nunca mais nenhuma terra será concedida. Portanto, a
direita nem sequer no STF merece confiança. O STF que é, no fundo, a cúpula do
sistema. Agora, o grande problema é que sendo uma instituiçaõ conservadora como é,
ela é muitas vezes presa de uma politizaçaõ excessiva, óbvia, repugnante, como foi o
caso do Sérgio Moro. Um juiz de primeira instância que realmente assumiu como
justiceiro privado a Lava Jato, tomando medidas, algumas delas ilegais e
inconstitucionais. E aqui é que se nota o caráter conservador do sistema, pois ele naõ foi
disciplinado por irregularidades que cometeu, como por exemplo grampear o telefone
da presidente.

Vocês se recordam do clamor que houve no Brasil quando o presidente Obama e a NSA
tinham grampeado o telefone da Dilma. Bem, agora um juizinho de Curitiba o faz e naõ
acontece nada. Quer dizer é um escândalo o que se passou. Por outro lado, obviamente
que é totalmente seletivo, porque nunca houve tanta luta contra a corrupçaõ como nos
governos do PT. A corrupçaõ obviamente atinge sobretudo o PSDB e o PMDB, mas a
seletividade da investigaçaõ está sobretudo em cima do Lula e da Dilma e de algumas
pessoas do PT. E é evidente que tudo isto faz parte da jogada do império. Vocês viram
que o Sérgio Moro foi considerado um dos lid́ eres mais influentes do mundo, um dos
novos lid́ eres pela Time. Ora bem, a Time atua com a Globo. Ou seja, o imperialismo
norte-americano perfeitamente organizado para criar uma nova liderança polit́ ica no
Brasil. Eventualmente, um presidente daqui alguns anos, porque a própria direita sabe
que a maior parte de seus políticos é corrupta. Michel Temer naõ será mantido, ele está
ali para fazer o serviço do golpe. Depois ́, é evidente que o mandam embora a qualquer
momento. Nós naõ temos de fato, neste momento no Brasil, qualquer garantia jurid́ ica
forte contra um golpe desta natureza. Portanto, só há a pressaõ da rua.

Sobre o tempo de vida desse golpe, nos parece que há uma expectativa por parte
da população de que se realizem novas eleições para reconquistar a democracia.
Na sua avaliação, qual a nossa perspectiva de futuro se não conseguirmos reverter
este Golpe antes de seis meses?
É evidente que a pressaõ das ruas deve ser a máxima pressaõ durante o perió do do
julgamento do impeachment, nestes seis meses. Há várias possibilidades, e todas elas
têm vindo a ser discutidas pelos movimentos. Uma dela foi a possibilidade de uma
emenda constitucional para novas eleições muito em breve, no outono por exemplo,
depois de se criar uma situaçaõ de ingovernabilidade no pais que faça com que a única
soluçaõ seja realmente novas eleições. E que pode até ser que a direita ganhe. Mas se a
direita é inteligente, pode ser uma direita inteligente, penso que se for as eleições
provavelmente ganhe e assim se pacifica. Portanto, pode haver uma aliança naõ só do
movimento popular, mas de algumas forças conservadoras para fazer um projeto
eleitoral. Eu penso que se continuar a mobilização popular naõ vai ser possível aguentar
até 2018 sem outra consulta popular. É o melhor que pode acontecer no Brasil.

Agora, o problema é perceber que esta é a proposta miń ima, isto é, eleições antes de
2018. Acho que é fundamental para pacificar o pais e restaurar a democracia. Mas é um
programa miń imo, porque o programa máximo seria uma assembleia constituinte
originária. Isto é, fazer uma assembleia constituinte, fazer uma eleiçaõ para uma
assembleia que fizesse uma revisaõ da constituiçaõ , que é o que está neste momento a
ser pedido para uma reforma polit́ ica. Porque se vamos fazer novas eleições sem mudar
o sistema polit́ ico, vamos ter o mesmo. Portanto, a bala, o boi e a bib́ lia vaõ continuar a
dominar porque saõ eles que têm dinheiro para colocar seus capangas no congresso.
Portanto, deveria haver uma reforma polit́ ica. Agora, há realmente espaço polit́ ico para
pedir esta reforma, e uma assembleia? Provavelmente naõ . Aliás, eu tenho dito que uma
assembleia constituinte num momento de grande crise social é complicado. Portanto, o
melhor é isso, a pressaõ , no meu entender acho que muito importante na frente popular,
uma pressaõ para que haja eleições, um processo eleitoral antes de 2018.

Aproveitando que você está aqui em Paris para uma conferência sobre
Epistemologias do Sul, gostaríamos que você nos ajudasse a pensar o que pode
acontecer com a inversão das vozes que detêm o poder e o espaço de fala, como
acontece com a presença dos negros nas universidades, ocupando lugares de
destaque e de tomadas importantes de decisão, de quilombolas lutando pelo
reconhecimento de sua ancestralidade, ou dos indígenas que se organizam para
defender suas terras e seus saberes. Isso é, de algum modo, a atualização de seu
conceito?

Basicamente, as Epistemologias do Sul saõ uma proposta que temos vindo a fazer no
sentido de valorizar o conhecimento nascido na luta. É justamente disso que estamos
falando até agora, dos movimentos sociais e daqueles e daquelas que se mantiveram
invisiv́ eis, ocultos, marginalizados ao longo da história. Isto é, os vencidos, digamos
assim, dos três grandes modos de dominaçaõ contemporânea: o capitalismo, o
colonialismo e o patriarcado. E fundamentalmente, a minha proposta de Epistemologias
do Sul é fortalecer esta resistência e lhe dar valor epistemológico, ou seja, os
conhecimentos nascidos na luta saõ isso.

Portanto, o meu trabalho intelectual naõ tem nenhuma influência direta, nem quero que
tenha diretamente aos movimentos. Eu sou aquele que está na retaguarda, eu aprendo
com os movimentos. E, naturalmente, posso ajudar com as minhas posições. Mas é
evidente que a energia, a força epistemológica que venham dai,́ dos movimentos
indiǵ enas, dos movimentos quilombolas, das mulheres. Saõ eles que nos têm ensinado
muito sobre aquilo que, depois, aparece como epistemologias do sul. É uma tentativa de
criar um paradigma naõ - eurocêntrico na relaçaõ filosófica, epistemológica e teórica.

É nisto que estamos. E, hoje, cada vez mais as pessoas estaõ a absorver esse conceito
que é central, de ecologia dos saberes, e junto aos saberes universitário, acadêmico que
obviamente todos nós reconhecemos, mas que ele naõ é único. Há outros saberes e eles
têm que se articular com outros saberes.

***

O Movimento Democrático 18 de Março (MD18) nasceu da luta contra o golpe de


Estado no Brasil. Sediado em Paris, e com grande presença de pesquisadores,
professores universitários, artistas e militantes de movimentos sociais, o movimento
propõe ampliar a reflexão sobre as possibilidades da esquerda na atual conjuntura de
crise. É com esse objetivo que o MD18 inaugura uma série de entrevistas com
intelectuais, artistas e militantes de diferentes horizontes, que visam ampliar o debate
sobre as formas de resistência que podem e devem advir. O projeto se inicia com a
participação de grandes pensadores da esquerda como Michael Löwy, Boaventura de
Sousa Santos, Nancy Fraser e Anselm Jappe, além de contar com a colaboração de
inúmeros intelectuais brasileiros. As entrevistas serão disponibilizadas em português e
em francês no site do MD18: http://www.md18.org/

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