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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS - UFSCAR

Departamento de Filosofia e Metodologia e das Ciências

Israel Fabiano Pereira de Souza

Um rosto esculpido na areia: o homem como achado arqueológico em As


Palavras e as Coisas

São Carlos
2018
Resumo

Trata-se de tentar entender a fatídica metáfora que Foucault utiliza no fim de As Palavras e as
Coisas – na verdade uma aposta – de que o homem seria como uma figura moldada na areia,
pronto a desvanecer na costa de uma praia qualquer. É possível que essa metáfora esteja
diretamente relacionada com o que a arqueologia descobre sobre a maneira com que as coisas
se relacionam entre si dentro de espaços e tempos delimitados, isto é, em campos de saber
determinados, inseridos em uma ordem específica. A história seria um agrupamento daquilo
que Foucault chama de epistemes. Não, contudo, como desenvolvimentos interligados entre si,
em que as epistemes posteriores fossem aperfeiçoamentos das anteriores. Deve-se considerar
os períodos históricos de uma forma horizontal, onde não se pode inserir uma causalidade
fortuita, uma vez que o campo das epistemes não tem nada de definido em eu percurso. Talvez
por isso seja sensato falar que Foucault faz uma arqueologia, e não A arqueologia. É através
dela que o futuro genealogista encontra a figura do homem na modernidade, uma face pronta
para ser absorvida pela maré do oceano do vir-a-ser.

Pelo que alguns apontamentos indicam, Foucault comete um sacrilégio ao proferir a


palavra história. Ora, que escândalo seria maior do que ignorar Descartes e proferir que Kant
foi o precursor da modernidade? Que insensatez é essa que declara ser o curso histórico
marcado por descontinuidades? Que o devir é apenas isso: uma sucessão de fatos que não
necessariamente levam à superação, ao desenvolvimento, à perfeição?
História que não serve para encontrar a origem dos pensamentos, dos conceitos; mas se
esforça em refletir lugares, situações, discursos, leis, tábuas de valores, comportamentos,
arquiteturas (ah! as heterotopias!), configurações. Enfim, semelhanças de um mesmo
dispositivo!
Ora, mas estamos ainda em 1966. A palavra-chave ainda é episteme. E por mais que o
próprio Foucault assinale a ruptura entre este termo e o anterior – o dispositivo – temos aqui
uma peculiaridade que acreditamos que marcara doravante o pensamento foucaultiano: “não
existem fatos eternos, assim como não há verdades absolutas”1. A história, ou melhor, o
filosofar histórico – pois aqui quem fala é filósofo da vontade de potência – exige a virtude da
modéstia. Daquela modéstia que não se imiscui com a categoria dos universais, do absoluto;
muito menos com a causalidade histórica e de sua evolução. Portanto, não estamos falando aqui
de uma história aos moldes hegeliano ou marxista. Nem mesmo, talvez, de uma história

1
NIETZSCHE, F. Humano, Demasiado Humano. São Paulo: Cia das Letras, 2005, p. 16.
científica que se preocupe em desnudar o absoluto dos fatos históricos, sua necessidade e
transcendência.
A história de Foucault procura, pelo contrário – e modestamente – não a origem das
coisas e dos fatos, mas as origens. Não há uma “imagem tranquila e continuísta que
normalmente se faz” (FOUCAULT, 1998, p. 4). Nem sequer podemos dizer que a história é
uma justificativa, no sentido de um apontamento das necessárias evoluções e revoluções em
que estamos inseridos. A história de Foucault, que acreditamos aparentada da “Wirkliche
Historie” nietzschiana, não é a que reintroduz a metafísica no devir sob a escusa de encontrar
nele o sentido oculto que aí se acha envolto em erros e amarras preconceituosas. Fora, portanto,
com o ponto de vista supra-histórico, porque nele “a metafísica pode retomá-lo por sua conta
e, fixando-o sob as espécies de uma ciência objetiva, impor-lhe seu próprio ‘egipcianismo’”
(FOUCAULT, 2005, p. 271).
Não podemos, portanto, embalsamar as coisas em formas estáticas. O devir é implacável
com a geografia de uma paisagem – como mostram os cânions ou os desertos, por exemplo –
tanto quanto é com o tempo e suas transformações. Por isso é que a gramática geral não é a
mesma coisa que filologia; a análise das riquezas não é economia política; nem tampouco a
história natural é biologia. Ainda que tratem, porventura, de objetos semelhantes, o discurso
sobre esses objetos é diferente. Ao dissecar um cadáver, um homem da idade clássica
certamente não verá o mesmo corpo que um moderno.
Questionamo-nos com esse fato o seguinte: qual corpo é o verdadeiro? Aquele exposto
na mesa de madeira do século XVII ou o recostado no frio metal da mesa de dissecação do
XIX? Veríamos o mesmo Aris Kindt, com sua mão esquerda aberta pelas mãos do doutor Tulp,
com os mesmos olhos que os presentes na sala devoravam o morto?2
Poderíamos supor que com os avanços do conhecimento da biologia estaríamos seguros
de afirmar que o segundo é mais verdadeiro do que o primeiro. Afinal de contas, vemos com
mais acuidade aquilo que os mais antigos não conseguiam. Temos o microscópio! Ora, quem
ousaria dizer que isto não é uma vantagem?
É Paul Veyne (2011, p.26) quem nos lembra algo importante sobre nosso
questionamento: “A originalidade da busca foucaultiana está em trabalhar a verdade no tempo”.
Ora, se a história não possui um telos que dê um sentido único e linear, será que vale a pena
falarmos em verdade com “v” maiúsculo? Entstehung ou Ursprung? Avancemos até 1971 aqui.
Foucault já fala de genealogia, e aos poucos vai abandonando o conceito de arqueologia. Mas

2
Referimo-nos, aqui, ao quadro de Rembrandt: “A Lição de Anatomia do Dr. Tulp”
pelo que entendemos, ambas procuram diferenciar a origem, entendida enquanto Entstehung
daquela referida como Ursprung. Esta é a busca pela essência das coisas, por aquilo que está
além de qualquer intervenção do devir: estamos no reino da identidade e do absoluto. Tudo o
que não contribui para o desvelamento da Verdade é acidente, erro, ilusão. O outro significado
é marcado por um contexto totalmente diverso: o “começo”, aqui, não é em absoluto único.
Deve-se levar em conta que Entstehung é a busca pelos primórdios: multifários, por vezes
contraditórios, diferentes, mas nunca únicos. Por trás de todo essencialismo o que Foucault acha
é uma casca vazia que de nada corresponde ao que ele tenta inteligir. Não há um ponto zero,
um big bang histórico. O que há são descontinuidades.
Retomemos a pergunta: qual corpo é o verdadeiro? O do Dr. Tulp ou o do microscópio?
Se pensarmos com Foucault, a questão fica sem sentido. Um corpo é, em cada época, diverso
do que é em outra. Queremos encontrar O Corpo? Vagaremos por toda nossa existência a
procura desse objeto puro e verdadeiro. A verdade, se se deve ser buscada no tempo, têm sua
existência permeada pela finitude. Ela nasce (não como Ursprung, afinal), se desenvolve e
morre. Duro golpe no orgulho da metafísica que não tem a modéstia da genealogia nietzschiana-
foucaultiana. Lembremos que o francês3 não construiu uma história da Modernidade, no sentido
de encontrar as principais similitudes de uma época. Ele não queria, parece-nos, tentar ver o
século XIX como o desenvolvimento iminente de um pensamento anterior. Pelo menos não
como sua sucessão necessária, como uma árvore é o desenvolvimento da semente. Por isso não
há uma verdade em relação ao corpo, mas sim verdades. E cada qual pertence a um discurso
preciso, a uma forma de perceber e compreender tudo o que há ao redor, e também de falar
sobre essa realidade histórica. Afirmar que nosso corpo é mais verdadeiro do que aquele do
século XVII é desconsiderar essa característica do devir, pois a verdade, nesse caso, só tem
sentido para o tempo no qual ela está. É nesse aquário temporal, nos dizeres de Veyne, é que
nadam os conceitos, os discursos, as morais, as leis, os comportamentos e ações de uma
determinada época. As verdades deslizam por essa água, sem saberem que são peixes num

3
Também Nietzsche, ao escrever seu livro Genealogia da Moral, não intentava encontrar a origem de todos os
valores, ou seja, o fundamento da moral mesma. Seu objetivo não era, como o de Aristóteles, por exemplo, de
evidenciar os fins das ações morais, mas sim de compreender como uma moral pode surgir e se configurar como
válida em uma determinada época ou doutrina. “Deveríamos, com todo o rigor” – assim sugere Nietzsche no
parágrafo 186 de Além do Bem e do Mal – “admitir o que se faz necessário por muito tempo, o que unicamente
se justifica por enquanto: reunião de material, formulação e ordenamento conceitual de um imenso domínio de
delicadas diferenças e sentimentos de valor que vivem, crescem, procriam e morrem”
Certamente não seria prudente procurar uma origem única aqui, uma vez que existem tantas morais quanto
existem justificativas de seus fundamentos. Obviamente, ademais, a genealogia da moral não é a busca pela
origem do fundamento último, e seria no mínimo risível se autorizar a dizer que “este ou aquele” valor é o mais
fundamental de todos, pois nada justifica a verticalidade nesse caso.
oceano bem delimitado. E pode ocorrer – como realmente ocorre – que outros receptáculos,
com águas e peixes diferentes, venham a ocupar o lugar que o aquário anterior ocupava.
Em suma: para Foucault, a história é a busca pelas origens de um tipo de discurso que
procura definir-se como verdadeiro, mas que só o é num intervalo de tempo. Não há, no curso
do devir, nenhuma metafísica, nenhuma teleologia. Portanto, o vir-a-ser deve ser compreendido
como o que ele é: portador de saberes que mudam constantemente e, longe de permitir uma
avaliação vertical de sua veracidade, apenas pode ser colocado na posição horizontal, junto com
tantos e diferentes saberes.
O que, para Foucault, diferencia uma idade de outra? Em 1966, o esforço do filósofo
(seria, talvez, indelicado chamá-lo assim?) se direciona para evidenciar as diferentes epistemes
de cada período histórico. Mas o que ele quer dizer, afinal, com esse termo? Certamente não
poderemos compreendê-lo dentro de uma teoria do conhecimento propriamente dita. Foucault
não parece querer se adentrar na discussão epistemológica sobre a extensão do conhecimento
humano. “O que posso conhecer?” não pode ser incluído nas preocupações da arqueologia
foucaultiana. Não é com o conhecimento em si que Foucault se ocupa, mas com as condições
nas quais é possível um determinado discurso sobre as coisas, determinados saberes e práticas
autorizadas e consentidas (consciente ou inconscientemente) por uma certa época.
Mas então, o que é esta episteme da qual nos fala Foucault? Ou melhor, o que faz com
que esta palavra venha sempre acompanhada de um “s”? Sempre no plural? É preciso
lembrarmos do que já afirmamos anteriormente: não há uma verdade absoluta, mas verdades
que fazem sentido num determinado momento da história. É por este motivo que há em As
Palavras e as Coisas uma episteme do Renascimento, outra da Idade Clássica e também uma
Moderna.

Considerada um dos conceitos fundamentais no livro As Palavras e as Coisas,


épistémè designa as condições históricas a partir das quais filosofias e saberes
empíricos, científicos ou não, são apreensíveis ao conhecimento. Trata-se da
rede, do campo aberto no qual as múltiplas discursividades se relacionam entre
si (CANDIOTTO, 2009, p. 17)

As epistemes não convivem juntas. Pelo contrário, cada uma possui um tempo
delimitado, onde se instauram os saberes e as verdades referentes ao período. Cada cultura é
marcada por uma ordenação bem particular. E é somente dentro da ordem criada é que é
compreensível um determinado tipo de discurso e de saber. É por essa razão que o corpo do Dr
Tulp não é o mesmo do visto pelo biólogo moderno. Só conseguimos enxergar a idade clássica
através de nossos olhos modernos. Há aí uma constatação: não temos como vivenciar
perfeitamente uma época que não é a nossa. Nosso pensamento está limitado pelo nosso tempo.
A impossibilidade de viver efetivamente uma outra época nos impede, assim, de julgarmos as
epistemes.
Ponto importante: o fato de descrever epistemes não significa que Foucault compartilha
com uma racionalização exacerbada do percurso histórico. É preciso fazer a diferença entre a
ideia de uma evolução racional das epistemes e uma outra, mais modesta, que insere esses
saberes. A sucessão das epistemes não segue uma lógica causal, muito menos final, e podemos
pensar que as transições entre elas (bruscas, por sinal) se dão de forma arbitrária, sem um
sentido preciso, um norte que as conduza. Cabe a arqueologia identificar na epistemes o que é
permitiu que algumas práticas, saberes e discursos conseguiram, afinal, se desenvolver e outros
não.
A ordenação de uma episteme, ainda que justificada tanto pelo seu comportamento
inerente, quanto pelas ideias gerais que tentam a todo custo salvaguardas sua existência, não é
a única possível. Podemos afirmar que há uma ordem numa episteme, claro. Mas a nós é vedado
o direito de dizer que há apenas uma estrutura possível.
Somos inevitavelmente conduzidos ao texto de Borges referido no prefácio de As
Palavras e as Coisas. A Enciclopédia Chinesa causa risos ao autor, claro. Quem não riria,
afinal, de uma ordenação como a que faz o Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos
(benévolos para quem, afinal?). Nele, os animais são agrupados em classes tão pitorescas que
um entomólogo, por exemplo teria uma síncope. Os pobres animais caem em categorias que
aos nossos olhos, acostumados com o rigor metodológico de nossa ciência, são desarrazoadas,
injustificáveis, impensáveis. Ora, quando, onde e por quê haveria de existir uma classificação
onde os bichos são jogados de um lado para o outro, aparentemente de forma aleatória, nas
alcovas da Enciclopédia Chinesa? Nela temos, por exemplo, os animais: (a) pertencentes ao
Imperador, (b) embalsamados, (c) amestrados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) cães
soltos, (h) incluídos nesta classificação, (i) que se agitam como loucos, (j) inumeráveis (k)
desenhados com um finíssimo pincel de pêlo de camelo, (l) etcétera, (m) que acabam de quebrar
o vaso, (n) que de longe parecem moscas.
Imaginemos novamente o infeliz entomólogo a quem nos referimos anteriormente:
temos atualmente mais de um milhão de espécies de insetos no mundo! Como não haveria de
se desesperar este cientista com uma classificação dessa natureza? Que arbitrariedade! Que
desmedidas em considerar este ou aquele animal pertencente a uma mesma ordenação! E por
mais que seja desesperador, uma tal classificação, ainda que em Borges seja fictícia, é possível
de ser admitida.
O riso de Foucault talvez esconda o horror que uma tal enciclopédia suscita em nós,
modernos. A dificuldade de conceber a estranha classificação é oriunda, em certa medida, dessa
crença na linearidade, na racionalidade temporal, na causalidade e na finalidade.

Assim é que a enciclopédia chinesa citada por Borges e a taxinomia que ela
propõe conduzem a um pensamento sem espaço, palavras e categorias sem
tempo nem lugar mas que, em essência, repousam sobre um espaço solene,
todo sobrecarregado de figuras complexas, de caminhos emaranhados, de
locais estranhos, de secretas passagens e de imprevistas comunicações;
haveria assim, na outra extremidade da terra em que habitamos, uma cultura
votada inteiramente para a ordenação da extensão, mas que não distribuiria a
proliferação dos seres em nenhum dos espaços onde nos é possível nomear,
falar, pensar (FOUCAULT, 1999, p. XV).

O lugar da Enciclopédia Chinesa não é o mesmo da Encyclopedia Britannica, e não


haveria como ambas coexistirem, uma vez que a ordenação de cada uma é totalmente diferente.
Poderíamos supor que a segunda é composta de uma maior cientificidade que a primeira, claro.
Mas isto de nada invalida a existência da primeira. Em todo o caso, poderíamos supor que
haveria uma cientificidade também no Empório, mas que estaria longe de ser a que conhecemos.
Mas isto é apenas uma suposição.
Foucault não ignora este fato e o aprofunda: “Em que ‘tábua’ segundo qual espaço de
identidades, de similitudes, de analogias, adquirimos o hábito de distribuir tantas coisas
diferentes e parecidas?” (FOUCAULT, 1999, p. XV). A pergunta não é banal. Em cada
episteme, a ordem é diferente, os saberes – que se proliferam como uma rede de veias e artérias
ligando os campos de uma cultura – são únicos, e a verdade se fortalece em cada estandarte
erguido dentro de uma época específica. Ora, se a força que estrutura o período é abastecida
internamente, então a lógica da ordenação também só pode ser buscada no mesmo lugar. As
pessoas da idade clássica são consideradas afásicas pelos modernos. Mas estes também seria,
se o ponto de vista fosse o dos primeiros. Aparentemente, a meada de lã é a mesma. O que
muda é o modo com a classificamos.

A ordem é ao mesmo tempo aquilo que se oferece nas coisas como sua lei
interior, a rede secreta segundo a qual elas se olham de algum modo umas às
outras e aquilo que só existe através do crivo de um olhar, de uma atenção, de
uma linguagem; e é somente nas casas brancas desse quadriculado que ela se
manifesta em profundidade como já presente, esperando em silêncio o
momento de ser enunciada. (FOUCAULT, 1999, p. XVI)
Essa ordem é presenciada em dois extremos de uma cultura. Em primeiro lugar, naquilo
que Foucault denomina de “ordens empíricas”: aqueles códigos que se encontram nas práticas,
na linguagem, nos valores, nas técnicas, entre tantas outras coisas que fazem parte do
comportamento próprio de determinada cultura. No outro patamar, estão as ciências e filosofias.
Estas são responsáveis por encontrar as leis gerais, os fundamentos que justificam as coisas
como são. Nossos comportamentos cotidianos não são mais reflexivos do que os de um outro
animal qualquer. Julgamos, valoramos, carregamos nossa visão do mundo de conceitos que há
muito estão arraigados em nosso espírito – talvez possamos denominar isso de nossa
“normalidade”: aquilo que é tão evidente que não precisa de uma explicação profunda. De certa
forma, para nós todas essas coisas são verdades evidentes, assim como a distância entre dois
pontos é uma reta. Simplesmente não problematizamos tais “evidências”. Contudo, o espírito é
grande o suficiente para que nele haja luz, e é esta luz, este esclarecimento que reflete sobre
nossa normalidade em busca de suas contradições. O pensamento filosófico e o científico busca,
portanto, dissipar esse primeiro grilhão em busca de liberdade. Vão esforço. Se se encontra
alguma libertação, ao mesmo tempo entra-se numa alcova: a das verdades universais, dos
conceitos.
Mas estamos aqui falando de extremos. Entre eles há tantas coisas quanto entre as
extremidades de uma linha reta. É preciso sair dos pontos em direção ao intermezzo, este
espetáculo menos valorizado em que muitos não assistem por acreditar que a beleza se encontra
antes ou depois de sua execução.
Ao que tudo indica, Foucault permanece sentado em sua poltrona, assistindo a cada nota
improvisada dos instrumentos. Foucault, o espectador dos interlúdios, para o qual as óperas são
apenas aperitivos.

Assim, entre o olhar já codificado e o conhecimento reflexivo, há uma região


mediana que libera a ordem no seu ser mesmo: é aí que ela aparece, segundo
as culturas e segundo as épocas (...) De tal sorte que essa região “mediana”,
na medida em que manifesta os modos de ser da ordem, pode apresentar-se
como a mais fundamental (FOUCAULT, 1999, p. XVII).

A essa região, Foucault chama de “experiência nua da ordem e de seus modos de ser”.
Essa experiência, esse intermezzo, é o que está entre as palavras e as coisas. É o que faz ser
inteligível num espaço e num tempo o que fazemos e o que dizemos, nossa linguagem e nosso
modo de ser. Portanto, não são as teorias gerais nem os comportamentos aquilo que molda a
região mediana (entre aspas, pois é mais fundamental), mas o contrário. Todo o significado,
todo o esforço em erigir algum sentido da vida em algum espaço de tempo se consegue a partir
dela.
É justamente a análise dessa experiência o objetivo de Foucault. A arqueologia quer
despir as vestes que cobrem os discursos, mostrar as positividades que preenchem a realidade
de cada episteme. Quais as pedras o nosso então arqueólogo – pois que a genealogia ainda é um
embrião em sua cabeça reluzente – irá encontrar? Saberá ele onde cavar? Em que ruinas deve
se dirigir para realizar seu trabalho modesto? Não é a virtude que Nietzsche já havia anunciado
para os novos homens do futuro? Modéstia, porque a universalidade não é mais universal, mas
apenas um particular modo de pensar de uma época. A arqueologia, se aqui nos permitimos
uma analogia, é o instrumento que visa a terra, não o céu. Deixemos o azul para Kant, agora
necessitamos do cinza, ou seja: “da coisa documentada, o efetivamente constatável, o realmente
havido, numa palavra, a longa, quase indecifrável escrita hieroglífica do passado”4.
Temos boas razões para crer que o solo da arqueologia não seja tão duro a ponto de
quebrar os instrumentos de escavação. Pensamos que os achados arqueológicos sejam mais
arenosos, maleáveis. Deforma que sua disposição seja plástica o suficiente para prever que a
busca de Foucault se daria numa praia. Quem sabe não seria cômodo a imagem do arqueologista
passeando nas areias de uma das orlas francesas, com seus equipamentos de escavação? É certo
que as coisas que encontraria talvez fossem figuras de areia, prontas para serem engolidas pelo
mar, desvanecendo-se em novos formatos e ordenações. E nesse solo arenoso da modernidade,
entre as formas que Foucault vai observando na praia, ele encontra o homem, uma escultura de
areia pronta para ser engolida pelas águas salgadas de algum oceano do tempo.

II

O que pode ser mais antigo do que as reflexões acerca do homem? Talvez a busca pela
arché venha primeiro, nada mais justo em considerar assim! O medo e o espanto pela Natureza
é algo avassalador e causa impressões na alma dos seres humanos que os fazem esquecer de si
mesmos.
Porém, desde Sócrates pelo menos o homem surge como centro de investigação. Éticas,
classificações da natureza humana, investigações sobre a razão – sua origem, seus alcances.

4
NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. São Paulo: Cia das Letras, 2009, p. 13.
Quantas avaliações desse corpo onde a razão ocupa um lugar privilegiado não foram feitas! E
ainda assim, um certo francês vem e diz que o homem é uma invenção moderna. Ora, que
injustiça para com Sócrates. Que espírito maligno que ignora Descartes e nem sequer tem
compaixão por todo o Renascimento.
Guardemos aqui nossa cólera contra Foucault por enquanto. Daremos a ele o benefício
da dúvida sobre ser culpado de macular a imagem do homem que vem sendo construída por
mais de dois mil anos e vejamos o que ele tem a dizer sobre o “nascimento” tardio do homem
num mundo onde ele contraditoriamente já habita há muito tempo.
“O modo de ser do homem, tal como se constituiu no pensamento moderno, permite-lhe
desempenhar dois papéis: está, ao mesmo tempo, no fundamento de todas as positividades, e
presente (...) no elemento das coisas empíricas” (FOUCAUT, 1999, p. 475). É na modernidade
que o homem se torna um ser ambíguo: por um lado, ele existe como sujeito; por outro, como
objeto do saber. Agora o homem ocupa um lugar privilegiado até mesmo nas ciências, como
algo a ser estudado seriamente. O advento das ciências humanas é um dos corolários que
atestam esta configuração moderna acerca dos saberes.
A arqueologia percebe sob os escombros da idade clássica essa semente, essa nova
positividade que fertilizará a ordenação moderna. Biologia, Filologia, Economia Política: são
campos que privilegiam o homem como núcleo de conhecimento, de especulação. Mas o que
diferencia esses saberes do que havia antes? Ou melhor, o que havia anteriormente que
diferencia tanto assim as epistemes clássica e moderna?
Palavra de ordem da episteme clássica: Representação. Segundo Foucault (1999, p. 74),
a idade clássica se caracteriza por um saber que precisa ser ordenado segundo identidades e
diferenças. Todas as coisas, todos os seres devem ser classificados através dessa ordenação. Há,
portanto, uma táxis, um arranjo universal e é por este que as coisas são representadas. Há
também uma mathesis universalis, método universal de ordenação. “O que torna possível o
conjunto da epistémê clássica é, primeiramente, a relação a um conhecimento da ordem”
(FOUCAULT, 1999, p. 99).
Todo o saber clássico, portanto, estará preenchido por uma “Ciência geral da ordem”,
que se preocupa em determinar diferenças e identidades das coisas. A representação é
justamente a comparação que permite essa ordenação.
Para Foucault, a episteme clássica pode ser observada na tríade de saberes que ele
analisa dessa época. A forma com que esses saberes – a gramática geral, a história natural e a
análise das riquezas – se comportam em relação ao seu objeto é o mesmo: através de uma
representação ordenada. Despem-se, através da arqueologia, essas experiências. Em sua nudez,
portanto, se configuram como a razão de ser da episteme em questão, são seus modos de
existência. Las Meninas consegue representar aquilo que Don Quixote apenas acredita perceber
como o real aquilo que vê.

Analisando as representações, ordenando-as, decompondo em simples as mais


complexas e determinando suas relações, a gramática geral busca estabelecer
um quadro ordenado de formas verbais em relação com a simultaneidade do
pensamento. A história natural, por sua parte, dispõe o quadro ordenado dos
seres vivos de acordo com a forma de seus elementos, sua qualidade, a
maneira em que se distribuem e suas dimensões relativas. E a análise das
riquezas concebe a moeda como instrumento representativo para ordenar,
precisamente, as riquezas (CASTRO, 2014, p. 39).

A partir de meados do século XIX essa episteme começa a ceder e dar lugar a um novo
conteúdo de positividades. São essas novas positividades que darão abertura para o surgimento
do homem como ponto fundamental que caracteriza a idade moderna.
Emergem, então, do embaçamento da idade clássica um novo triedro de saberes. É a pá
de Foucault cavando e verificando o que essa nova era traz consigo. Dos montes de areia surgem
então a Biologia, a Filologia e a Economia Política: saberes empíricos que darão a face da
modernidade. A diferença desses três campos para os seus antecessores é o fato de que não mais
a representação serve como um guia para o seu desenvolvimento, não mais também ela será o
discurso por trás da ordenação tão cara à idade clássica. Assim é que a biologia, por exemplo,
deixa de classificar e ordenar os seres vivos de acordo com suas diferenças e semelhanças. Entra
em cena uma nova visão da vida. Deixa-se de classificar os órgãos por sua forma, tamanho, etc.
Prevalece a observação funcional, onde a classificação leva em conta o conjunto de sistemas,
como no sistema respiratório, em que prevalece a funcionalidade – as brânquias para os seres
da água são como os pulmões para os seres terrestres. Na economia política, a mesma
reviravolta: as coisas deixam de ter um valor em si, no sentido de corresponder a outras coisas,
como visto no sistema da troca. Começa-se a considerar o trabalho como algo relevante para
determinar o valor de uma mercadoria. Esta não vale o que representa – seu signo, mas vale
pela força de trabalho dispendida em sua confecção. Com a filologia acontece também algo
semelhante: na época clássica, as palavras representam as coisas. É possível, através do
discurso, descrever através de signos aquilo que as coisas são. Na modernidade é a linguagem
que aparece: não mais importa representar as coisas por meio das palavras, importa prestar
atenção naquilo que fala – seja ele o homem ou a própria linguagem: Nietzsche versus
Mallarmé.
Não esqueçamos de algo fundamental na modernidade: o homem se percebe finito. “Não
se trata de que a Modernidade tenha inventado nem descoberto a finitude ou a contingência,
mas de que mudou, e radicalmente, a maneira de concebê-la” (2014, p.45). Se antes, apesar de
sua condição finita, o home tinha o infinito salvaguardado com a figura de Deus, com a
modernidade essa segurança de desvanece. O Deus de Descartes parece não ser mais o de Kant.
Se o primeiro conseguia clara e seguramente dialogar com sua parte infinita, buscando nela os
fundamentos de sua existência, com o filósofo de Königsberg já não temos mais esse porto
seguro. O homem tem que se ver consigo mesmo, agora. Deus não é passível de conhecer, no
máximo podemos pensar sua existência, mas isso não conforta mais a modernidade – ou pelo
menos não deveria, como queria Nietzsche.
No horizonte do tempo, o homem é apenas um ponto onde desaguaram tantos outros
acontecimentos em que ele não estava presente. Aquilo que molda o homem moderno – a vida,
o trabalho e a linguagem – flamula incessantemente no seu rosto, como que dizendo que antes
dele haviam tantas outras auroras e que ele não estava lá para contemplá-las.

Todos esses conteúdos que seu saber lhe revela exteriores a ele e mais velhos
que seu nascimento antecipam-no, vergam-no com toda a sua solidez e o
atravessam como se ele não fosse nada mais do que um objeto da natureza ou
um rosto que deve desvanecer-se na história. A finitude do homem se anuncia
– e de uma forma imperiosa – na positividade do saber (FOUCAULT, 1999,
p. 432).

Ora, se então esse rosto um dia veio a ser construído na areia da praia do conhecimento,
então agora é preciso que ele seja visto de uma forma dupla. Até então, o homem era o sujeito
que engendra o conhecimento das coisas, mas com a emergência de sua finitude ele agora é
também objeto desse mesmo conhecimento. A analítica da finitude é esse movimento de
descoberta e de fundamentação do modo de ser do homem. Este é um ser que vive, que trabalha
e que cria signos que significam as coisas. É através desses três pontos que o objeto homem é
estudado na modernidade.
Surgem as ciências humanas. Mas não é como se a elas fossem dadas todas as suas
formas acabadas. Na verdade, elas surgem em meio a um quadro confuso, em que parasitam as
positividades já estabelecidas. É por isso que acreditamos poder afirmar que nelas temos o
homem em três dimensões distintas, mas entrelaçadas entre si: o homem enquanto ser vivente;
o homem enquanto ser que trabalha; o homem enquanto ser que fala. “Trata-se de um fato
indelével, que está ligado, para sempre, à sua disposição própria no espaço epistemológico”
(FOUCAULT, 1999, p. 493).
Essa redisposição do campo epistemológico pode agora dar as caras através do
surgimento das ciências humanas: por um lado, elas tomam de empréstimo o modelo das
ciências empíricas, por outro, elas advogam a universalidade que a analítica da finitude tenta
fornecer. Em ambos os casos, claro, está em jogo o seu objeto: o homem. Atuando de forma
parasitária, as ciências humanas residem na periferia dos triedro de saberes determinado por
Foucault. Sendo assim, elas

têm o projeto, mais ou menos protelado, porém constante, de se conferirem


ou, em todo o caso, de utilizarem, num nível ou noutro, uma formalização
matemática; procedem segundo modelos ou conceitos tomados à biologia, à
economia e às ciências da linguagem; endereçam-se, enfim, a esse modo de
ser do homem que a filosofia busca pensar ao nível da finitude radical,
enquanto elas pretendem percorrê-lo em suas manifestações empíricas
(FOUCAULT, 1999, p. 481).

O lócus das ciências humanas está na periferia daquele triedro de saberes, uma vez que
de cada campo elas utilizam algo. A especificidade está no fato de que dentro delas a dimensão
humana deixa de ter relação com outras no tocante aos fundamentos dos saberes. O que vale é
o homem por ele mesmo. Se na idade clássica, os saberes estavam sempre realizando
comparações de semelhança e diferença entre os vários objetos, na modernidade isso se dissipa.
A nova ordenação, e com ela as ciências do homem têm neste a única representação possível.
É por isso que os campos da vida, do trabalho e da linguagem, a partir do século XIX só podem
ser concebidas aquilo que constitui o homem como tal.
Ponto crítico da análise arqueológica: a descoberta da finitude do homem parece não ter
feito com que este tenha saído das amarras do pensamento totalizante. E este é um dos tópicos
delicados das ciências humanas, que asseveram buscar o fundamento do saber moderno no
homem enquanto pertencente às três empiricidades da época.
Com isso, conseguimos compreender a ressalva de Foucault quanto à onda
antropológica que entorpeceu a modernidade. Se com Kant despertamos de um sono – o do
dogmatismo metafísico – por outro lado caímos em outro: a ilusão de que o homem pode, à
revelia da história e das suas relações com o restante da realidade, encontrar o fundamento de
seu modo de ser em si mesmo. Esse movimento é o que Foucault chama de reduplicação do
homem, em que este é o fundamento da própria finitude. Por um lado, busca-se compreender o
que é o homem em sua essência, por outro, intenta-se compreender o homem nas vivências
empíricas. De uma maneira ou de outra, estamos no mesmo sono, repartido em dois mas
mutuamente apoiados. Esse dogmatismo, portanto, é o que delimita o modo de ser do homem.
Podemos pensar nas consequências desse saber delimitador: discursos ideológicos sobre o
homem – sobre seu corpo e sobre seu pensamento; adestramento e redução das potencialidades
do ser humano por meio de justificativas de cunho científico e filosófico, entre tantas outras
delimitações desse tipo. Mas como o Deus de Kant, aqui só podemos pensar, e não propriamente
conhecer, uma vez que a análise que fazemos no momento não nos permite dar um salto a
horizontes mais complexos do pensamento foucaultiano. Ademais, o que a modernidade deixa
de herança como a priori histórico é a certeza de que nesse ínterim, é o homem “a verdade de
toda a verdade”. Riamos, aqui com Foucault:

A todos os que pretendem ainda falar do homem, de seu reino ou de sua


liberação, a todos os que ainda formulam questões sobre o que é o homem em
sua essência, a todos os que pretendem partir dele para ter acesso à verdade, a
todos os que, em contrapartida, reconduzem todo o conhecimento às verdades
do próprio homem, a todos os que não querem formalizar sem antropologizar,
que não querer mitologizar sem desmistificar, que não querem pensar sem
imediatamente pensar que é o homem quem pensa, a todas essas formas de
reflexão canhestras e distorcidas, só se pode opor um riso filosófico
(FOUCAULT, 1999, p. 473).

III

Se voltarmos a pensar sobre a questão da origem dentro da arqueologia, o que


percebemos é que o homem na modernidade surge na ambígua formação sujeito/objeto. Essa
reorganização da episteme clássica fez então desvanecer o solo da representação e erigiu um
novo, onde o homem ocupa o lugar privilegiado. Não por acaso, portanto, as ciências humanas
se ocupam em fundar as positividades da modernidade nele. Viver, trabalhar e falar; biologia,
filologia, economia política; psicologia, sociologia, história da literatura; história. Termos que
se unem nesse novo a priori histórico. Ora, mas nada mais justo do que haver uma ciência do
humano. Deveríamos, pois, compreender o que ele é em si mesmo, seja como indivíduo, seja
como parte de uma sociedade, seja por fim criando para si uma significação para as coisas. A
exuberância com que as ciências humanas entram em cena contrasta com a precariedade com
que elas buscam desesperadamente legitimar-se frente às ciências exatas, que já possuíam um
estatuto muito mais sólido. Também a falta de modéstia delas se percebe quando arrogaram
para si o direito de se utilizar da formalidade e da universalidade.
O homem é finito, nós finalmente nos demos conta disso! Mas deve haver lá no fundo
alguma base tão segura e verdadeira do que é o homem. Disto não temos dúvidas! Voltemos a
Nietzsche neste momento. O que significa a morte de Deus? Que os valores eternos e imutáveis
são uma ilusão. Que não há finalidade alguma no mundo. Que tudo o que existe é um constante
vir-a-ser onde as coisas estão a todo o momento se modificando, as próprias disposições daquilo
que estrutura a vida também. E sobre a origem, lemos as palavras de Nietzsche como se elas
ecoassem através dos tempos e chegassem até a pena com que Foucault escrevia:

Não há princípio mais importante para toda ciência histórica do que este (...)
o de que a causa da gênese de uma coisa e sua utilidade final, sua efetiva
utilização e inserção em um sistema de finalidades, difere totó coelho; de que
algo existente, que de algum modo chegou a se realizar, é sempre
reinterpretado para novos fins, requisitado de maneira nova, transformado e
redirecionado para uma nova utilidade, por um poder que lhe é superior; de
que todo acontecimento do mundo orgânico é um subjugar e assenhorear-se,
e todo o subjugar e assenhorear-se é uma nova interpretação, um ajuste, no
qual o “sentido” e a “finalidade” anteriores são necessariamente obscurecidos
ou obliterados.5

O que aprendemos, se concordamos com Nietzsche, é que a história é uma eterna


metamorfose. A origem de uma coisa está lá onde menos se desconfia, e não tem uma origem
divina ou mágica, mas se insere nesse fluxo constante que é o vir-a-ser. O homem das ciências
humanas é justamente essa origem que tem uma história por trás. Enquanto a ribalta da episteme
moderna o sustenta como o protagonista dessa ópera – seria uma comédia, talvez? – a coxia era
preenchida com o discurso ordenador de toda uma época que surgiu não faz muito tempo. Se a
arqueologia, como acreditamos que ocorre, segue os passos – mesmo que ainda precariamente
– do texto nietzschiano, temos boas razões para entender a preocupação de Foucault de
denunciar o sono antropológico em que nos encontramos, pois este nos entorpece a ponto de
nos confundir a respeito do saber de nosso tempo, que não é de forma alguma privilegiado ou
aperfeiçoado pelos anteriores, mas é apenas uma nova abordagem, uma nova interpretação de
coisas que já existiam. Sob este ponto de vista, as descontinuidades seriam essas novas
configurações da qual falava Nietzsche na citação acima. Os discursos sazonais são, assim, a
expressão do assenhoramento e da subjugação de saberes – o que entendemos quando falamos
de justiça, igualdade, loucura, linguagem, ordem? Seriam todas essas palavras as mesmas em
tantas épocas distintas? A descontinuidade encontrada pela arqueologia parece apontar que não.
Ficamos a pensar em que praia o francês e o alemão se encontrariam, contudo é certo
que caminhariam juntos nesse ponto, rumo às figuras esculpidas na areia. Talvez olhassem e
dessem risadas da comédia que vivenciariam naquele momento, em que os espectadores ao

5
NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. São Paulo: Cia das Letras, 2009, p. 60-1.
redor, todos ajoelhados, reverenciavam os dois montes erigidos: um com a figura de Deus e o
outro com a do Homem. Talvez ficassem até o crepúsculo, esperando a maré alta que, com sua
força e tenacidade, arrastaria para o fundo do oceano – e talvez para o esquecimento, quem sabe
– aquelas esculturas acreditadas imutáveis até então. E talvez, apenas talvez, outras figuras
emergissem com o rebentar das ondas na costa.
Referências

CANDIOTTO, C. Notas sobre a Arqueologia de Foucault em As Palavras e as Coisas. Revista


de Filosofia Aurora, Curitiba, v.21, n. 28, p. 13-28, jan/jun. 2009.
CASTRO, E. Introdução a Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas: Uma Arqueologia das Ciências Humanas. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
_______. Ditos e Escritos 2: Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
_______. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1998.
_______. O Corpo Utópico, as Heterotopias. São Paulo: n-1 Edições, 2011.
TERNES, J. Michel Foucault e o Nascimento da Modernidade. Tempo Social, São Paulo, v.7,
n. 1-2, p. 45-52, out. 1995.
VEYNE, P. Foucault: Seu Pensamento, Sua Pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2011.

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