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A sociedade tolera agressão sexual às mulheres?

Sim

RENATO JANINE RIBEIRO


05/04/2014 03h00

O OVO DA SERPENTE

A sociedade brasileira é pouco politizada. Tem razão a "Economist" quando nos


dá uma nota boa em democracia, só que maior no que diz respeito às instituições do que
à cultura política.

Ao menos desde o período Juscelino Kubitschek, nos saímos melhor nos


costumes do que na política. Não sei como foi antes do presidente bossa-nova. A
ditadura militar teve de tolerar, de bom ou mau grado, uma juventude que rompia com
as convenções nas artes, no relacionamento amoroso e de modo geral nos costumes
(aquilo que a mídia hoje chama de "comportamento"). Enquanto o Estado, sequestrado
pelos golpistas, reprimia e matava, a sociedade florescia. Esse avanço beneficiou o que
era alternativo, tendo inclusive, nos anos 70 e 80, forte apoio desta Folha.

Assim, melhorou a condição feminina. Quem dos mais novos imagina que na
década de 1980 existia um "movimento machista mineiro", que defendia o direito do
"macho" a matar a mulher, ante a mera suspeita de que ela o traísse? Quem lembra que
foi preciso pichar paredes com o slogan "Quem ama não mata" para não só penalizar o
assassinato que era denominado "legítima defesa da honra", como também e sobretudo
para educar os homens a respeitar as mulheres? Em tudo isso, avançamos.

No entanto, nos últimos anos, com a tolerância e por vezes até algum estranho
prazer de secções da mídia, e o decidido engajamento de umas confissões religiosas,
tem havido uma reação a essas conquistas –que não são apenas das mulheres. Porque
toda repressão às chamadas minorias é na verdade uma forma do repressor recalcar, nele
mesmo, as condutas mais livres, liberais ou libertárias que ele inveja no grupo
minoritário.
Uma questão relevante, o direito ao aborto, foi praticamente excluída do
horizonte do viável, devido a uma manipulação propagandística nas últimas eleições
presidenciais. Pior, cresce a ideia de que certas mulheres são culpadas por excitarem
homens sexualmente, o que justificaria, pelo menos em parte, as agressões de que são
vítimas.

No Brasil, muitos acreditam que pode ser atacada uma mulher que se veste de
modo provocante, segundo pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada). Na Arábia Saudita, país que crucifica e degola seus presos, a culpa é das
mulheres que se maquiam: 86,5% dos homens acham isso (sério, veja em
tinyurl.com/mjdwfql).

Deixando claro: há mulheres, sim, que têm prazer em excitar um desejo sexual e,
depois, têm novo prazer em não o satisfazer. Essa não é uma conduta elogiável –mas
não autoriza ninguém a estuprá-las ou sequer assediá-las. Podemos discutir o que leva
uma mulher a ser "allumeuse", aquela que acende o desejo só pelo gosto de acender.
Faz parte do debate sobre a dificuldade atual com os laços humanos. Mas entender o
narcisismo não é justificar a agressão. Se um homem se sente provocado, que se
controle.

Na verdade, o sinal de um recuo nos costumes não está ainda sendo dado no
campo das mulheres, mas no trato com os homossexuais. Só que políticos que pregam
contra os gays também condenam mulheres independentes. Crimes de ódio contra os
homossexuais crescem. Contam com a simpatia, às vezes travestida de compreensão, de
colunistas.

É aí que está sendo chocado o ovo da serpente. Ou difundimos uma educação


democrática, que respeite os modos de ser diferentes, ou vamos perder as conquistas,
em termos de liberdade pessoal, das últimas décadas. As agendas de direitos humanos
estão sendo sacrificadas a acordos políticos. Não podemos aceitar o retrocesso que paira
no ar. O momento é decisivo.
RENATO JANINE RIBEIRO, 64, é professor titular de ética e filosofia política do
Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. É autor de "República", entre outras
obras

A sociedade tolera agressão sexual às mulheres? Não

ALBA ZALUAR
05/04/2014 03h00

REAÇÃO CONSCIENTE

O problema é grave. A violência contra as mulheres é fenômeno mundial que


deixa sérios efeitos, visto que pode levar logo a traumatismos, incapacitações e óbitos,
mais tarde a mudanças fisiológicas e psicológicas induzidas pelo estresse decorrente do
trauma. As mulheres que sofreram abusos têm altas taxas de gravidez não desejada,
abortos, desfechos neonatais e infantis adversos, infecções sexualmente transmissíveis e
transtornos mentais.

No Brasil, mudanças no aparato institucional já foram feitas. A legislação foi


mudada com a Lei Maria da Penha e a de notificação compulsória. Já contamos com
delegacias especiais para atender as mulheres agredidas. Existem em número crescente
serviços que dão assistência às que sofrem violências.

A reação imediata de mulheres pelo país afora aos resultados da pesquisa do


Ipea que revelou que um quarto da população acha que a mulher que exibe seu corpo
merece ser atacada, afirmando publicamente que seu modo de vestir é uma escolha livre
e não a justificativa para o estupro, demonstra o quanto estão mais conscientes e
organizadas. De fato, há também associações mais ou menos informais de proteção
interna ao gênero funcionando há tempos, embora timidamente.
Mas a aplicação de leis e políticas para mulheres em todo o país é irregular e,
principalmente, persistem preconceitos e covardias. Falta assegurar que a intolerância à
violência contra as mulheres, duplamente covarde, chegue a todos os rincões e,
sobretudo, nos corações e mentes de homens jovens instilando-lhes a vergonha de agir
violentamente contra as mais desprotegidas entre as mulheres.

Os programas de prevenção primária que levem em conta a desigualdade de


gênero ainda são poucos. Como afirmou Ban Ki-moon, secretário-geral da ONU: "Peço
aos governos que aproveitem as ideias e a liderança dos jovens para nos ajudar a pôr fim
a essa violência pandêmica. Só então teremos um mundo mais justo, pacífico e
equitativo".

E já sabemos onde e com quem intensificar tais ações. As zonas onde há mais
coesão social por causa da homogeneidade étnica, religiosa e social, onde a moradia é
de longa data e os vizinhos desenvolveram relações de confiança e ajuda mútua, onde
há mais associações, essas zonas são as que apresentam taxas de criminalidade mais
baixas, escolas mais eficazes, bem como adultos mais responsáveis que socializam os
mais jovens segundo os valores e regras de convivência claros, aprovados socialmente
pelos locais, aí incluídos a proteção dos mais frágeis: mulheres, crianças e idosos.

Ao contrário, as mulheres –especialmente as que migram sozinhas e não são


casadas– perdem a proteção dos seus parentes mais próximos e não têm tempo
suficiente para desenvolver relações de confiança e de solidariedade com os vizinhos
onde elas vivem. Isso as atinge justamente na faixa de idade de maior produtividade no
trabalho e também de maior fecundidade, ou seja, dos 15 aos 35 anos de idade.

O meu "não", portanto, deve ser entendido como cautela em interpretar os


percentuais de aprovação constados na pesquisa do Ipea, como aposta na capacidade de
denúncia e reação das mulheres e suas organizações, como esperança de que o aparato
institucional existente torne-se mais eficaz em deter abusos e agressões contra as
mulheres. Nunca como uma subestimação do problema que tais violências provocam.

Esse tipo de pesquisa que afirma respostas e pede para confirmar têm um viés.
Suscitam o espelhamento mais do que o julgamento dos entrevistados. Estes
manifestam a tendência em concordar com o que diz o pesquisador. Os números estão
provavelmente exagerados.

Mãos e mentes à obra!

ALBA ZALUAR é professora titular de antropologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos


da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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