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Pandora inesgotável

Leandro Fortes 15 de outubro de 2010 às 10:41h

As investigações do esquema do governo Arruda no Distrito Federal prosseguem. Na mira da PF, os senadores
Agripino Maia (direita) e Sérgio Guerra (esquerda). Por Leandro Fortes. Fotos: Ana Amara/DN e William Volcov/
AE

Em 27 de novembro de 2009, o delegado Wellington Soares Gonçalves, da Diretoria de Inteligência da


Polícia Federal, deu uma batida no gabinete de Fábio Simão, então chefe de gabinete do governador do
Distrito Federal, José Roberto Arruda, do DEM. A ação, autorizada pelo ministro Fernando Gonçalves, do
Superior Tribunal de Justiça (STJ), fazia parte da Operação Caixa de Pandora, realizada em conjunto
com o Ministério Público Federal, responsável pela desarti-culação de uma quadrilha montada no governo
local movida a corrupção pesada e farta distribuição de propinas.

Na sala de Simão, a equipe de policiais federais encontrou um CD com a seguinte inscrição: “Dist. De
Dinh. Da Qualy, 8/10/2005”. Levado à perícia, o disco se revelaria um indício comprometedor contra dois
dos principais líderes da oposição no Congresso Nacional, os senadores Agripino Maia, do DEM do Rio
Grande do Norte, e Sérgio Guerra, do PSDB de Pernambuco. Guerra ocupa também a presidência
nacional do partido e coordena a campanha de José Serra à Presidência.

Feita a análise pela Divisão de Contra-inteligência da PF, descobriu-se que o CD possuía um único e
extenso arquivo de áudio e vídeo, de 42,4 megabytes, com 46 minutos e dois segundos de duração. Nele
estava registrada a conversa entre um homem não identificado e uma mulher identificada apenas como
Dominga.

A investigação dos federais revelou que Dominga era auxiliar de serviço -geral de uma companhia
chamada Inteco, depois contratada pela Qualix Serviços Ambientais, empresa de coleta de lixo do Distrito
Federal apontada como um dos sorvedouros de dinheiro público do esquema de corrupção do DEM em
Brasília e parte de uma disputa política na qual se contrapõem Arruda e o também ex-governador
Joaquim Roriz, do PSC. O chefe de Dominga era Eduardo Badra, então diretor da Qualix, para quem ela
organizava a agenda, fazia depósitos bancários e “serviços particulares”. Na conversa com o amigo
desconhecido, Dominga explicou que serviços eram esses.

O trabalho da secretária era o de, basicamente, telefonar para os beneficiários de um esquema de


propinas montado na casa de Badra e, em seguida, organizar a distribuição do dinheiro. De acordo com
as informações retiradas do CD apreendido no gabinete de Simão, as pessoas para quem Dominga mais
ligava eram, justamente, Agripino Maia, Sérgio Guerra e Joaquim Roriz.

Também recebiam ligações da secretária Valério Neves, ex-chefe de gabinete de Roriz, e dois dirigentes
da Belacap, estatal responsável pelo serviço de ajardinamento e limpeza urbana do Distrito Federal: Luís
Flores, diretor-geral da empresa, e Divino Barbosa, diretor operacional. Flores é primo de Weslian, mulher
de Joaquim Roriz, alçada pelo marido candidata do PSC ao governo do DF depois que ele desistiu da
disputa, temeroso de ver sua candidatura cassada por ficha suja.
Segundo Dominga, quando a Qualix estava para receber valores de contrato da Belacap, Badra a
obrigava a dar telefonemas “dia e noite”, não sem antes entrar em contato com um doleiro identificado
como Faied, para saber quando ele poderia entregar o dinheiro, tanto em dólar quanto em real. De acordo
com as informações da secretária, as propinas eram acomodadas em caixas de arquivos de papelão com
montantes de 50 mil reais a serem distribuídos entre quadras de Brasília ou no estacionamento do
restaurante Piantella, um dos mais tradicionais da capital federal, frequentado por políticos e jornalistas,
de propriedade do advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay. Lá, entre acepipes e vinhos
caros, os interessados jantavam e decidiam como e quando seriam feitas as partilhas.

Procurados por CartaCapital, os senadores Maia e Guerra responderam por meio de assessores de
imprensa. Guerra, ponta de lança da ofensiva udenista montada pelo PSDB para atacar a candidata do
PT, Dilma Rousseff, foi eleito deputado federal pelo PSDB de Pernambuco em 3 de outubro. Ele admite
ser amigo de Badra há 30 anos, desde que se conheceram em uma exposição agropecuária. Segundo
ele, o vídeo apreendido pela PF cir-cula por Brasília desde 2006 e, garante, trata-se de uma armação
contra ele e outros políticos. “Entre mim e o Eduardo nunca houve outro relacionamento senão o de
amizade, que vai continuar”, avisa.

Maia foi ainda mais econômico com as palavras. Garante não ter nenhuma relação com Badra, de quem
só se lembra de ter encontrado, “anos atrás”, para tratar de uma proposta da Qualix para se instalar no
Rio Grande do Norte. O senador do DEM afirma ter sido procurado por outros órgãos de imprensa para
falar sobre o mesmo assunto, mas que estes teriam se desinteressado logo depois de confrontados com
a versão apresentada por ele.

Nas redações de Brasília, a história é outra: nada foi publicado por pressão da campanha de Serra, em
abril deste ano, para que a candidatura do tucano não se iniciasse com um escândalo envolvendo o
presidente do partido e um líder do principal partido aliado, o DEM. Temiam, os tucanos, uma sinistra
repetição da circunstância que, em 2005, derrubou do mesmo cargo o senador Eduardo Azeredo, mentor
do “mensalão” do PSDB de Minas Gerais, ao lado do publicitário Marcos Valério de Souza, mais tarde
flagrado no mesmo serviço de alimentação de caixa 2 para o PT.

O esquema denunciado pela secretária Dominga é cheio de detalhes e, ainda hoje, surpreende a PF pelo
grau de ousadia. As caixas eram colocadas em porta-malas de carros da quadrilha e, em seguida,
repassadas pessoalmente por Badra a quem de direito. Nessa empreitada, revelou Dominga, ajudavam
outros dois diretores da Qualix, Pedro Gonzales Campoamor, de Brasília, e Roberto Medeiros, de São
Paulo. A secretária cita como origem dos recursos duas agências bancárias situadas no Setor Comercial
Sul de Brasília, uma do Bradesco, outra do Banco de Brasília (BRB).

De acordo com a investigação da PF, o dinheiro distribuído aos personagens citados no CD, entre os
quais brilham Guerra e Maia, apelidados por Dominga de “pessoal da Belacap”, chegou a mais de 300 mil
reais. Parte dos pagamentos, segundo a gravação obtida no GDF, ia para personagens identificados
como criadores de cavalos registrados na conversa, alguns, como a própria secretária, sem registro de
sobrenome. Entre eles, Mário de Andrade, Ana Lúcia Fontes, Ana Lúcia Junqueira e Alberto. Também
aparecem nomes sem especificação como Marci Bagarolli, Carlos Junqueira, Gilda, Ana Jatobá, Antonio
Clareti Zandonait e Daniel.

A ação da Polícia Federal foi feita de surpresa na residência oficial de Águas Claras, onde Simão
mantinha um gabinete pessoal. Ao chegar ao lugar, os agentes verificaram que todas as portas estavam
abertas,- inclusive a de acesso ao prédio principal, com exceção daquela do gabinete de Simão. Por volta
das 6h30, a PF acionou o serviço de um chaveiro para abrir a porta do auxiliar de Arruda, mas um
funcionário anunciou que iria pegar as chaves. Em vão. Nenhuma delas abria a porta do chefe de
gabinete. Foi preciso arrombar uma janela para que, então, os federais pudessem entrar no local, por
volta das 7 horas.

Às 7h15, segundo relato da PF, a mulher do governador, Flávia Arruda, chegou ao local para tomar
conhecimento do mandado de busca e apreensão, mas em seguida foi embora, após informar que não
tinha interesse em acompanhar a ação policial. A primeira coisa encontrada pelos agentes foi uma bolsa
preta, escondida atrás de uma mesa, com cédulas de reais e dólares. Às 8h50, chegou José Gerardo
Grossi, advogado de Arruda, também para verificar os termos do mandado e acompanhar a busca.
A PF decidiu investigar a vida de Simão porque ele foi denunciado pelo ex-secretário distrital de Relações
Institucionais Durval Barbosa, delator do chamado “mensalão do DEM”. Em um vídeo entregue ao
Ministério Público Federal por Barbosa, ele mantém uma conversa com o representante de empresas de
informática Agenor Damasceno Beserra. Os dois tratam de detalhes de uma licitação, estabelecem quem
deve ganhar a disputa e como deve ser feito um aditivo de 4 milhões de reais. No diálogo, Beserra
confirma ser Simão, chefe de gabinete de Arruda, o principal interessado na liberação do contrato e no
aditivo.

De acordo com o relatório da PF, o exe-cutivo Badra mora em São Paulo. Em Brasília, costumava se
hospedar em um hotel no Setor Hoteleiro Sul. Mas, por causa da conversa gravada entre Dominga e o
amigo, descobriu-se que ele chegou a alugar uma casa no Lago Sul de Brasília para promover “reuniões
mais privadas”. Era lá que Dominga trabalhava. Badra também utilizava um apartamento do diretor da
Qualix Pedro Campoamor, no bairro do Sudoeste. Em abril de 2009, relata a PF, a casa de Campoamor
foi assaltada, os ladrões levaram 100 mil reais, mas nenhuma ocorrência foi feita na polícia.

CartaCapital teve acesso aos documentos produzidos pela Polícia Federal e pelo Ministério Público
Federal na semana passada, quando os envolvidos acreditavam que o assunto estava enterrado pela
burocracia. A Operação Caixa de Pandora, responsável pela prisão de Arruda e pela exposição do mais
explícito espetáculo de corrupção da história do País, graças aos vídeos do delator Durval Barbosa,
segue a todo vapor. Desde novembro de 2009, quando o CD de Dominga foi apreendido, um grupo de
investigadores da Divisão de Inteligência da PF trabalha nos desdobramentos da operação. Os federais
estão de olho, sobretudo, na guerra iniciada, há dez anos, em torno dos contratos de coleta de lixo no
Distrito Federal.

A Qualix faz parte desse pacote de investigações. A empresa, terceirizada a partir do governo Roriz,
deteve praticamente o monopólio da coleta de lixo do DF entre 2000 e 2006, embora “quarteirizasse”
serviços a outras duas empresas, a Nely Transportes e a Construtora Artec, de propriedade de César
Lacerda, ex-deputado -distrital do PSDB, ligado à ex-governadora tucana Maria de Lourdes Abadia.
Candidata derrotada ao Senado nas últimas eleições, Abadia assumiu o governo do DF em junho de
2006, quando Roriz renunciou para se candidatar à mesma Casa. Acabou eleito, mas foi obrigado a
renunciar ao mandato para não ser cassado por corrupção.

A rápida passagem de Abadia pelo governo distrital serviu para iniciar a guerra pelo controle dos
contratos de lixo na capital federal e nas cidades-satélites. Não é por menos. Na última década, os cofres
públicos distritais despejaram mais de 2 bilhões de reais nesses contratos, quase todos suspeitos e
cheios de vícios. Abadia, aliada a Roriz, conseguiu quebrar o monopólio da Qualix, defendida pela turma
de Arruda e do ex-secretário de Saúde Augusto Carvalho, deputado federal pelo PPS. Assim, dividiu o
bolo do lixo com a Artec e mais duas outras empresas, ambas de Brasília, a Caenge Engenharia e a Valor
Ambiental.

Essa partilha contou com a participação de dois representantes do Ministério Público Distrital, os
promotores Leonardo Bandarra, então procurador-geral de Justiça, nomeado por José Roberto Arruda, e
Deborah Guerner, por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Em depoimento ao
Ministério Público Federal, Barbosa acusou a dupla de ter facilitado a vida das empresas de lixo, além de
ter recebido 1,6 milhão de reais para vazar informações, em 2008, sobre ações de busca e apreensão da
Operação Megabyte, da Polícia Federal, realizada contra empresas de informática contratadas pelo
governo. Em 7 de junho deste ano, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) instaurou, por
unanimidade, um processo administrativo disciplinar contra Bandarra e Deborah Guerner para investigar o
envolvimento de ambos no esquema.

Uma semana depois da decisão do CNPM, a Polícia Federal foi à casa da promotora e descobriu,
enterrado no quintal, um cofre com cerca de 300 mil reais. Os agentes saíram ainda com várias caixas
com documentos da Caenge Engenharia e da Valor Ambiental, justamente as duas empresas colocadas
no esquema por pressão da dupla Abadia-Roriz. Há duas semanas, a PF voltou ao jardim de Deborah
Guerner e achou outro cofre enterrado, este recheado de mídias de informática e, para desespero de
muita gente, mais CDs com gravações de áudio e vídeo.

À Corregedoria do Ministério Público, Barbosa afirmou ter participado de uma reunião na casa da
procuradora, onde estiveram presentes Arruda, o ex-vice-governador Paulo Octavio Pereira e Bandarra
para, justamente, acertar os termos da divisão do contrato do lixo. Embora ainda estejam sob
investigação, Bandarra e Deborah Guerner continuam no Ministério Público. A promotora entrou com um
pedido de aposentadoria, ainda não deferido, por conta da sindicância aberta pelo órgão.

A partir de 2006, na transição do governo do PSDB de Abadia para o DEM de Arruda, os contratos do lixo
passaram a ser renovados emergencialmente, sem licitação a cada seis meses. Somente em junho de
2010 o governo conseguiu finalizar uma nova concorrência. Além da Qualix, participaram os suspeitos de
sempre: Construtora Artec, Valor Ambiental, Caenge Engenharia, Nely Transportes e, novata no
esquema, a Delta Construções.

De acordo com informações do Siggo, o sistema de acompanhamento de gastos feito pela Câmara
Legislativa do Distrito Federal, a vencedora do primeiro lote da licitação realizada neste ano foi a Delta
Construções, com o preço de 368,9 milhões de reais. A Qualix ficou em segundo, com 383,1 milhões de
reais. A empresa Valor Ambiental foi a ganhadora do segundo lote, com o preço de 210 milhões reais,
sete milhões de reais a menos que a segunda colocada, novamente a Qualix, com 217,1 -milhões de
reais. No terceiro lote, a vencedora foi a Construtora Artec, com 173 milhões de reais. Em segundo, ficou
a Delta, com 174 milhões de reais. Por meio de liminares, a Qualix tem conseguido suspender as
contratações do primeiro e terceiro lotes.

De acordo com a assessoria de imprensa da Qualix, a empresa mudou de dono, em junho passado,
quando foi comprada pelo fundo privado Arion Capital. No fim de setembro, a empresa se colocou à
disposição da Polícia Federal para abrir suas contas e a contabilidade para qualquer investigação. O
assessor Paulo Figueiredo informa que a empresa realizou uma ampla auditoria nas contas da gestão
passada da Qualix, iniciada em 1998, e não identificou nenhum pagamento ou saída de recursos feita de
forma irregular. A decisão de colaborar com a PF veio, justamente, depois de parte da história sobre
pagamentos de propinas revelados pela secretária Dominga vazar para a imprensa.
Até junho de 2010, a Qualix pertencia ao grupo argentino Macri, quando entrou em situação pré-
falimentar por conta de muitas dívidas.

O Macri chegou a comprometer um terço do faturamento anual da empresa, calculado em 1 bilhão de


reais, para pagamentos de faturas de curto prazo a diversos credores. A empresa tem sede em São
Paulo e mais 11 filiais em várias capitais brasileiras, algumas com problemas graves. Em agosto, o
prefeito de Cuiabá, Francisco Galindo (PTB), encerrou o contrato local com a Qualix pelo fato de a
empresa não ter mais condição de colocar a frota de caminhões na rua. O ex-dono da Qualix, Franco
Macri, está sob investigação da PF, acusado de enviar dinheiro para o exterior de forma ilegal.

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