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O Carnaval Devoto nas margens do Círio de Nazaré

Muitos de nós sabemos do caráter abrangente da Festividade de Nossa Senhora de


Nazaré, que emana de seu centro: a procissão matinal do segundo domingo de outubro. Mas é
surpreendente observar a cada vez mais forte expansão da efervescência do evento religioso
para as fronteiras não propriamente religiosas da festa.

O Círio é composto de cerimônias religiosas, procissões e romarias, que conformam seu


núcleo devocional. Ele é, porém, uma festividade em movimento, tanto no caso do
deslocamento de pessoas quanto na reformulação constante de seu calendário de atrações
populares. Esta tendência torna o Círio, cada vez mais, uma festa ampla no cenário urbano da
Região Metropolitana de Belém, mobilizadora das áreas em torno da capital do estado e de
diferentes instâncias sociais da cidade. É o caso da economia local, por exemplo, marcada por
crescimentos importantes no consumo de alimentos, vestuário, turismo, conforme dados
anualmente atualizados pelo DIEESE.

As amplas repercussões sociais do Círio, para além do evento especificamente religioso,


são as forças que definem seu poder de abrangência e de mobilização social. É por isso que a
Festa de Nazaré altera substancialmente o cotidiano dos moradores da cidade, católicos ou não
católicos, devotos ou não devotos. O fato é que existem forças sociais mais amplas em torno do
evento que movimentam toda a sociedade, como ocorre com outras grandes festas nacionais,
como o carnaval.

Parece estranho comparar uma festa religiosa com outra não religiosa, marcada por um
sentido inverso. Mas a comparação é de longa data e remonta à percepção do maior romancista
da Amazônia de todos os tempos: Dalcídio Jurandir. Em uma de suas obras-primas, o romance
“Belém do Grão-Pará”, Dalcídio, na voz de seu protagonista, o garoto Alfredo, define o Círio
como um “Carnaval Devoto”. Sagrado e profano, ao mesmo tempo. Este entrelaçamento era
identificado pelo personagem exatamente na procissão matinal, em que a massa devota conduz
os carros alegóricos que acompanham a berlinda.

Vale notar que, até os dias de hoje, a procissão principal da Festa de Nazaré é composta
por doze carros alegóricos: Barco dos Escoteiros, Barca Nova, Barca com Velas, Carro do Anjo
Protetor da Cidade, Barca Portuguesa, Barca com Remos, Carro dos Milagres, Carro do
Caboclo Plácido e quatro Carros dos Anjos. Estes carros foram sendo acrescidos à procissão ao
longo do tempo desde o primeiro Círio, isto ocorrendo até nos Círios mais recentes (por
exemplo, com a inserção do Carro do Caboclo Plácido no Círio de 2000).

O sentido “carnavalesco” da festa, dito assim de modo metafórico, está na forma


exterior dessas alegorias devocionais. Isto, na verdade, ocorre nas festas religiosas brasileiras
desde o período colonial, nas quais cortejos e procissões vinham sempre acompanhados de
danças, fantasias e carros alegóricos. Assim, devoção e carnavalização não parecem se opor,
mas ao contrário, se aliam num contínuo que marca momentos da mesma festa com ênfases
diferentes.

Com isso é possível explicar a crescente popularidade de eventos como o Auto do Círio
e a Festa da Chiquita. Embora eles não componham o calendário oficial da festividade, ambos
têm se destacado cada vez mais pela força atrativa de público (local e turístico) e pelo
atrelamento às margens do espírito festivo religioso, apesar dos eventos nada terem de
devocional. Para quem não conhece, o Auto do Círio é um espetáculo teatral encenado em
movimento nas ruas do bairro da Cidade Velha, dois dias antes da procissão principal e que faz
uma paródia carnavalizada do Círio. Já a Festa da Chiquita é realizada na véspera da procissão
principal e num trecho do seu percurso (Rua da Paz, em frente ao Teatro da Paz, à margem da
Avenida Presidente Vargas), na noite do sábado para domingo. É um evento voltado
principalmente ao público homossexual, em que ocorrem apresentações de cantores regionais,
de grupos folclóricos, shows de travestis, dentre outros.

Mas o sentido de carnavalização do Círio não para por aí. Diversas festas de vizinhança
pululam nos bairros periféricos da cidade na véspera e após a procissão principal. Trata-se de
eventos com motivações particulares, que celebram os laços de amizade e parentesco de
moradores de ruas estreitas e vilas da periferia, numa espécie de “almoço dançante e musical”
do Círio de Nazaré. Tais festas, aliás, ocorrem com o cenário típico dos bailes dançantes da
cidade sonorizados por aparelhagens: mesas e cadeiras nas portas de casas ou na rua,
iluminação especial, venda de comidas e bebidas, ruas fechadas em alguns casos.

Apesar do feitio comercial dessas festas de vizinhança, elas possuem, de fato, uma
função de reforço dos laços sociais (de amizade, de parentesco) dos moradores desses pequenos
trechos da cidade. Lembro de um fato que me chamou a atenção quando da pesquisa de campo
antropológica que fazia em 2002. Ao visitar uma festa de vizinhança no bairro do Guamá e
perguntar a um participante sobre a motivação do evento, surpreendeu-me o ato falho na
resposta que afirmava se tratar aquela da “comemoração de Natal” dos moradores. Logo em
seguida a resposta foi corrigida, mas nada alterou o sentido de equivalência de conteúdo festivo
entre Círio e Natal.

Assim como o Natal, o Círio tem um forte poder aglutinador de pessoas, no sentido de
celebração dos laços sociais. É por isso, certamente, que ele possui essa faceta carnavalizante: as
festas particulares têm sempre maior flexibilidade no trânsito entre a seriedade ritualística e a
descontração dos momentos de recreação.

Aliás, podemos incluir neste caso até mesmo festas particulares que têm um sentido
comercial preponderante. Os promotores de festas de aparelhagem, por exemplo, aproveitam
este momento oportuno para realizar Festas de Romeiros do Círio, de chegada e despedida.
Não que se trate de festas unicamente direcionadas a um hipotético público de romeiros vindos
à cidade. A marca “festa de romeiros” é uma atualização temática do circuito de atividade das
aparelhagens que inclui, no calendário diverso de eventos da cidade, seus bailes da saudade e
suas festas de tecnobrega. A nova marca acompanha o espírito festivo do público, que orbita
neste período em torno do Círio.

É por conta deste elã, desta energia e entusiasmo festivo no ar, que ocorre no mês de
outubro em Belém, que se espalham pela cidade faixas e mais faixas nas esquinas anunciando
festas de aparelhagens por toda a região metropolitana e no entorno ribeirinho de Belém. As
expressões festivas não-religiosas que gravitam em torno do Círio transbordam em muito (e já
faz tempo!) o espaço restrito do arraial. Diferentemente das festas interioranas da Amazônia do
catolicismo devocional-popular, limitadas ao arraial, o Círio de Nazaré se espacializa por toda a
cidade e além, num formato de espetáculo e de evento recreativo, como variações sempre novas
e recriadas do Carnaval Devoto.

Autor: Maurício Costa; Antropólogo; Professor da UFPA; autor do livro “Festa na Cidade: o
circuito bregueiro de Belém do Pará” (EDUEPA, 2009).

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