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Newton é brasileiro. E daí?

Por
Adonai S. Sant'Anna
Existem aqueles que se integram ao ambiente se entregando a ele. E
existem indivíduos que parecem ter uma aura cujo alcance e
magnitude são fortes o bastante para transformar o ambiente em
que vivem. O Professor Newton da Costa se enquadra na segunda
categoria.

Se o Curriculum Vitae do Professor Newton (como é conhecido por


discípulos e colegas) impressiona por sua vasta e expressiva
experiência acadêmica, por outro lado ele reflete o espírito de um
sobrevivente da selva brasileira, que conseguiu produzir alguns oásis
de saber em nosso país.

A realidade das universidades brasileiras é assustadora. As


universidades federais, por exemplo, não contam com políticas
científicas sérias e não têm autonomia para contratação ou demissão
de professores. Mesmo nos raros momentos em que minguadas vagas
são ofertadas pelo Governo Federal para fins de realização de
concursos públicos, todos os docentes são tratados como iguais. Não
há a possibilidade de negociar salários ou benefícios que possam servir
de incentivo aos mais competentes. E aqueles que cumprem apenas o
mínimo necessário, recebem o mesmo tratamento e salário que seus
colegas mais produtivos. O plano de carreira das universidades
federais está longe de ser suficiente como forma de estímulo. Afinal,
um professor que ganha trinta, quarenta ou cinqüenta por cento a
mais do que seu colega, por conta de titulação ou outras manobras
de relevância questionável, pode estar realizando um trabalho

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acadêmico incomensuravelmente superior em termos de qualidade e
relevância (a qual se avalia inicialmente por repercussão).

O tratamento igualitário, comunismo intelectual que é (a bandeira


da isonomia salarial erguida por sindicalistas), cria um ambiente com
uma inércia pouco estimulante. Um espírito verdadeiramente
empreendedor como o do Professor Newton certamente deve sentir,
mesmo que inconscientemente, os efeitos dessa inércia que se
refletem não apenas em superficiais indicativos salariais, mas até
mesmo nas políticas institucionais.

As universidades privadas, em geral, evitam a contratação de


professores seriamente comprometidos com pesquisa, pois isso pode
assustar seus alunos. Professores de instituições privadas de ensino
superior, salvo raríssimas exceções, não podem exigir demais de seus
pupilos. Alunos academicamente pressionados são futuros
inadimplentes em potencial, o que implica em um risco inaceitável a
qualquer empresário brasileiro na área de educação. Além disso,
professores doutores custam mais caro para as instituições privadas,
as quais comumente contam com ilusórios planos de carreiras.
Interessam prioritariamente os profissionais menos qualificados,
principalmente no que tange à prática da pesquisa científica. É claro
que há exceções, como a Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, na qual há uma massa crítica tolerável de seriedade
acadêmica. Mas exceções, por aqui, não são suficientes para se
tornarem regra em nosso imenso território nacional. Este problema,
aliás, não é algo inerente à iniciativa privada, como muitos tentam
ingenuamente argumentar. Isso porque nos Estados Unidos as
melhores universidades são privadas. Nossa mediocridade escolar e
acadêmica demonstra ter raízes sociais e culturais muito mais

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profundas do que questões econômicas.

Entre as universidades estaduais, as mais toleráveis são as paulistas.


Elas conseguem, dentro de certos limites políticos e orçamentários,
oferecer um suporte a pesquisadores. Mas não chega a ser um apoio
de caráter competitivo e de valorização profissional como o que
acontece nas melhores universidades norte-americanas, aquelas que
são responsáveis pela maior e mais relevante massa de contribuição
científica do mundo.

Diante desse quadro, talvez não seja tão surpreendente o fato de não
haver um único ganhador do Prêmio Nobel lecionando em qualquer
universidade brasileira.

Mesmo assim, o Professor Newton conseguiu se manter incólume no


Brasil, realizando pesquisa de ponta em lógica-matemática e áreas
correlatas e ainda formando profissionais e pesquisadores que
conseguem pouco a pouco alcançar respeitabilidade no cenário
acadêmico global. E a pergunta natural que me aflige há muito
tempo é a seguinte: Como ele conseguiu fazer isso?

A resposta, após muita reflexão, me parece agora sensata, válida e


até óbvia: estratégia.

Sob o enfoque pessoal, o Professor Newton tem uma força individual


absolutamente incorruptível diante das inúmeras forças de soma não
nula que servem de desestímulo a qualquer pessoa que se proponha a
transformar de maneira positiva o ambiente em que vive. Sob outro
prisma, ele simplesmente não dedicou toda a sua carreira a uma só
instituição de ensino superior.

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Foi professor, pesquisador ou conferencista em diversas instituições
brasileiras federais, estaduais e privadas, bem como de instituições
públicas e privadas de países da América do Sul, América do Norte,
Europa e Oceania. A minha tese é a de que essa diversidade
institucional e cultural sempre viabilizou uma permanente
revitalização profissional e até pessoal do Professor Newton. Onde
quer que ele estivesse, seu trabalho e carisma imediatamente
despertavam a atenção de jovens estudantes ou experientes
pesquisadores. E algumas dessas pessoas acabaram se tornando
colaboradores ou discípulos. Diversidade sempre foi um ingrediente
fundamental em processos evolutivos.

A atuação do Professor Newton em nosso país sempre foi estimulante


àqueles que o conheceram de perto. Freqüentemente eu me sentia
desanimado, trabalhando no Paraná. Ao viajar para São Paulo,
principalmente nos anos 1990, retornava ao lar e à minha
universidade com ânimo o bastante para manter meu trabalho de
ensino e pesquisa por longos períodos de tempo. E nunca ouvi dele
frases do tipo “Anime-se!” ou “Continue, que vale a pena!”. Isso
simplesmente não faz sentido, pois viola sua natureza, além de não
ser o suficiente para convencer alguém que tenha um mínimo de
inteligência. O que me animava nos contatos pessoais com esta
extraordinária figura era o exemplo de paixão, garra e apurado senso
crítico investidos na prática da ciência. Nada opera de maneira mais
significativa para fins de aprendizado do que exemplos. Não há
discurso que supere ou conteste a prática. Isso porque discursos
podem ser verdadeiros ou falsos. E sempre devemos lembrar que o
conceito de verdade é muito flexível, conforme a filosofia da ciência
nos tem ensinado. Quanto à prática, esta se resume a fatos. Não há

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como contestar fatos (apesar de alguns ainda tentarem).

É claro que a capacidade individual do Professor Newton para vencer


obstáculos deve tê-lo ajudado bastante. Mas não acredito que tenha
sido o único fator. A melhor das sementes não consegue crescer em
terreno de pouca fertilidade, como ele sempre insistiu em conversas
pessoais e palestras. Para melhorar as chances de crescimento, o solo
deve ser renovado. E foi isso o que o Professor Newton fez. Não sei se
foi intencional. O fato é que funcionou bem, apesar de ele ter
priorizado o Brasil em suas peregrinações pelo mundo.

Em conversas pessoais, o Professor Newton sempre deixou claro que


instituições como a Universidade de São Paulo e a Universidade
Estadual de Campinas o receberam e o trataram muito bem.
Portanto, tudo o que escrevo aqui se refere apenas às minhas
impressões pessoais. De forma alguma deve o leitor entender que meu
texto reflete qualquer opinião pessoal do Professor Newton. Mas o
fato é que tenho certa experiência acadêmica. E inevitavelmente
acabo pensando na questão: Como ele conseguiu e como ainda
consegue, mesmo depois dos oitenta anos de idade?

Entendo que uma universidade como a de São Paulo tem uma


estrutura muito melhor do que qualquer outra instituição de ensino
superior do Brasil. Mas garanto que não faz sentido a promoção de
qualquer comparação entre ela e universidades como Stanford, Yale,
Harvard, Sorbonne. Se o leitor duvidar, convido-o a passar uma
temporada olhando de perto como funcionam as grandes
universidades norte-americanas, européias e asiáticas.

Para mim parece muito deprimente a idéia de se aposentar em uma

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universidade brasileira. Isso porque, após a festa de despedida do
aposentado, todos imediatamente o esquecem. Os problemas do dia-
a-dia na universidade se sobrepõem a qualquer noção de
continuidade de uma obra. Uma universidade como a Estadual de
Campinas criou o Museu Newton da Costa. É uma forma de recordar
e homenagear, ainda que seja uma iniciativa de pouca dinâmica para
conseqüências relevantes no futuro. A Universidade Federal do
Paraná (citando outro exemplo) concedeu o título de Doutor Honoris
Causa. É outra forma de reconhecimento e lembrança.

Mas, no caso do título concedido pela Universidade Federal do


Paraná, na qual trabalho há quase duas décadas, vale lembrar que
não existe a cadeira Newton da Costa. Não existe qualquer senso de
continuidade à obra iniciada por esta importante figura do cenário
científico internacional. E ainda assim a UFPR se vangloria de ser a
mais antiga universidade do país, como se isso tivesse alguma
relevância à população acadêmica brasileira.

Quando um professor pede exoneração, se aposenta ou falece, apenas


sua vaga fica disponível. É uma vaga, não uma cadeira ou cátedra.
Novos concursos realizados acabam simplesmente preenchendo vagas.
Não há cátedras, não há continuação, não há tradição acadêmica. É
claro que isso não é culpa da universidade, que não tem autonomia
administrativa para fazer ou até propor algo diferente, apesar de o
Governo Federal afirmar documentalmente que tem. Mas o fato é
que esse tipo de postura acaba fomentando um ambiente de
esquecimento, voluntário ou não. Não é uma cerimônia assistida por
poucos e ignorada pela maioria que vai resgatar de maneira
significativa a memória do Professor Newton e de suas contribuições,
bem como de qualquer outro pesquisador ou cientista.

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Reconheço que muitos nas universidades fazem o melhor que podem,
às vezes indo muito além. Não estou criticando pessoas ou instituições
específicas nos últimos parágrafos. Estou criticando a existência de
uma intrincada rede no seio social brasileiro que dificulta a
transformação do ambiente acadêmico em um lugar que realize
pesquisa de ponta e educação de qualidade. Talvez essa rede exista
por pura ignorância. É possível que nossos dirigentes simplesmente
não tenham a menor idéia de como administrar o ensino superior
brasileiro e sua inseparável pesquisa científica. E para o povo é
possível que baste um carro na garagem e uma casa na praia, ou
carnaval e futebol, para que se alcance a felicidade individual ou
qualquer noção arbitrária de justiça social.

O Professor Newton poderia ter encontrado um ambiente muito


mais propício à pesquisa em uma boa universidade norte-americana
ou européia. Ele preferiu ficar no Brasil. Um dos resultados disso foi a
formação de graduados, mestres e doutores que também lutam para
fazer a diferença em nosso país ou mesmo no exterior. São vários os
ex-alunos do Professor Newton que se destacaram e se destacam pela
qualidade de suas pesquisas e pelo exemplo de suas aulas.

O espírito renovador do Professor Newton não se mostra apenas


diante do fato de ele ter trabalhado em muitas instituições de
significativo porte acadêmico. Percebe-se isso também em suas obras
publicadas, que concatenam de maneira surpreendentemente
harmoniosa disciplinas como lógica, matemática, física, economia,
filosofia.

Ele é conhecido mundialmente como o criador das lógicas

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paraconsistentes, que uma importante rede de televisão brasileira
chegou a chamar de lógica paraconsciente, evidenciando mais uma
vez o insistente descaso com ciência e cultura. Apesar de sua pesquisa
ter motivações puramente matemáticas, a lógica paraconsistente
rendeu inúmeras aplicações em engenharia de produção, engenharia
aeronáutica, robótica, inteligência artificial e até medicina.

Ele também resolveu, em parceria com o Professor Francisco Doria,


diversos problemas relativos aos fundamentos da física. Esses
trabalhos mereceram citações na revista inglesa Nature e no
livro Mathematics: Frontiers and Perspectives, editado pelo grande
matemático russo Vladimir Arnol'd, em parceria com colaboradores,
e publicado em 2000 pela Sociedade Americana de Matemática,
uma das mais influentes instituições da área. Este livro, de leitura
obrigatória para qualquer um que se julgue interessado por
matemática, aponta para as tendências desta ciência no século 21.
Em outras palavras, a pesquisa do Professor Newton demonstra ter
impacto de extrema significância científica aqui e no exterior, mesmo
sob perspectivas futuristas feitas por grandes nomes da matemática
mundial.

Tendo isso tudo em vista, é de causar grande estranheza que o


Professor Newton não seja membro da Academia Brasileira de
Ciências. Se essas conquistas não o qualificam, eu gostaria de saber o
quê o qualificaria?

No campo da filosofia o Professor Newton também demonstra


relevância, uma vez que é membro da Academia Internacional de
Filosofia da Ciência, em Bruxelas, Bélgica, e é o único brasileiro
membro do Instituto Internacional de Filosofia, sediado em Paris,

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França. O fato de ele ter sido eleito membro deste último por
unanimidade não foi por acaso. Sua prática de filosofar é no sentido
de ter e desenvolver uma linha própria de pensamento na qual ele
qualifica com grande rigor e originalidade o que é o conhecimento
científico. A filosofia do Professor Newton, se contrapondo às idéias
de autores como Karl Popper, se apóia em grande parte no conceito
de quase-verdade. Esta é uma generalização de idéias anteriormente
propostas pelo grande lógico polonês Alfred Tarski, que ele teve a
oportunidade e honra de conhecer pessoalmente.

Mas não podemos ignorar o fato de que o Professor Newton é


também membro titular da Academia Brasileira de Filosofia. Ou seja,
apesar de os filósofos brasileiros terem linhas de pesquisa
radicalmente diferentes, eles não se recusaram a reconhecer o
impacto filosófico da obra deste renomado pesquisador. Certamente
este exemplo deveria ser seguido pela Academia Brasileira de
Ciências. Ciência e filosofia não são atividades intelectuais
incompatíveis. Ao contrário, uma complementa a outra. E se a
percepção do mérito em si não é viável aos intelectualmente menos
capazes, que pelo menos as citações na relevante literatura
especializada sirvam de norte para uma decisão mais do que justa.

É possível que exista correlação entre essa falta de reconhecimento


nosso à obra do Professor Newton e o fato de o Brasil ter um dos
piores desempenhos escolares de ciência e matemática no mundo,
pelo menos do ponto de vista de avaliações internacionais. Há algo
profundamente errado em nossa educação científica e matemática,
em todos os níveis escolares.

Nossas universidades não estão conseguindo produzir docentes que

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cumpram com propriedade seus papéis. Essas mesmas universidades
também não conseguem produzir pesquisadores que conquistem
prêmios como o Nobel ou a Medalha Fields. E foi neste difícil e
contraditório ambiente que um indivíduo como o Professor Newton
conseguiu se integrar sem se entregar. E ele não apenas se integrou,
como integrou jovens também.

Preparar jovens para o mundo significa prepará-los para surpresas.


O mundo é repleto de surpresas a cada instante. E não há livros ou
apostilas que consigam preparar alguém para o imprevisível. Somente
o constante exercício do tirocínio crítico sobre o que se produz e sobre
o que se pretende produzir é que pode trazer luz a um futuro
incerto. Caso contrário, a luz do fim do túnel pode se transformar
em uma locomotiva em nossa direção. E o senso crítico é o que o
Professor Newton mais exige de seus discípulos e colaboradores.

Não conheço discípulo do Professor Newton que não tenha sido


duramente criticado por ele, ainda que apenas no âmbito intelectual.
E mesmo este texto teve que ser escrito sob minha inteira
responsabilidade. Pois estou ciente de que o Professor Newton é
muito mais cuidadoso com suas palavras do que eu. Mas o fato é que
não estou disposto a esperar a velhice chegar para desabafar o que
acho que é certo ou justo.

O justo, o certo, é o trabalho intelectual pesado, exemplo diário tão


bem dado pelo Professor Newton. O justo é a prática do senso crítico,
a capacidade de perceber que não há autor que não cometa erros,
que não há professor que não se engane e cujos erros não sejam até
grosseiros. Afinal, até mesmo a Academia de Ciências de nossa nação
está sujeita a erros.

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Lembro de certa vez em que um rapaz quis argumentar com o
Professor Newton: “Mas foi o senhor quem disse isso!” Ele
imediatamente respondeu ao rapaz que este deveria pensar por si só
e não depender das palavras de outros. O Professor Newton nunca
esteve interessado em provar se ele está certo ou errado. O que ele
sempre exigiu de seus alunos é argumentação, qualificação de
discurso, tirocínio crítico, honestidade intelectual, trabalho duro,
dedicação, paixão pelo que faz, garra.

No Brasil estamos acostumados a viver em uma espécie de paraíso


tropical no qual se acredita haver boas universidades, boas escolas,
bons professores, bons pesquisadores. Mas a esta crença eu remeto
uma frase que inicia algumas conferências do Professor Newton: “Vim
jogar a serpente no paraíso de vocês”.

O Professor Newton é uma espécie de serpente que vive no paraíso


tropical brasileiro. Por sorte, não está sozinho. Mas eu gostaria de ver
o dia em que se forme uma massa crítica de sedentos por ideais que
nos conduzam à nação do futuro que há décadas vem sendo
anunciada e até hoje está longe de ser cumprida.

Não são nossas palmeiras e sabiás que construirão um Brasil


próspero, mais justo, mais seguro, mais saudável, melhor educado. O
Brasil próspero e justo depende de educação feita por profissionais
altamente qualificados. E um bom profissional não é aquele que
conhece centenas de livros e artigos e apenas repete o que outros
disseram. Um bom profissional é aquele que exerce o direito de
questionar aquilo que se crê já estabelecido, é aquele que provoca, que
instiga. Mas para que isso seja feito com propriedade, uma formação

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de real qualidade é fundamental. E enquanto não surgirem
programas sérios de valorização aos profissionais de ensino realmente
qualificados, seremos eternamente todos iguais entre nós e invisíveis
perante o resto do mundo.

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