Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Mossoró
2013
EDIGLEUSON COSTA RODRIGUES
MOSSORÓ
2013
Catalogação da Publicação na Fonte.
UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA
BANCA EXAMINADORA
Ao Prof. Dr. Leonardo Martins, pela honra de tê-lo como meu orientador, pelo respaldo
intelectual, orientação, paciência e compreensão.
Aos professores examinadores, Jose Orlando Ribeiro Rosário, Gleydson Kleber Lopes de
Oliveira e Paulo Afonso Linhares, pela honra de suas participações nas bancas, pelas críticas,
elogios e sugestões que muito engrandeceram o presente trabalho.
À UFRN e à UERN, por seus professores e técnicos que viabilizaram essa conquista.
Ao magistrado e colega professor, José Herval Sampaio Júnior, pelo apoio e livros
emprestados de seu gabinete.
À minha esposa, Mércia, pela paciência e pelas doses de estímulo em todas as horas.
RESUMO
A presente dissertação trata da função social do contrato, à luz dos princípios constitucionais,
notadamente aqueles relativos aos direitos fundamentais. A função social do contrato
(cláusula geral) vem descrita no Código Civil de forma propositalmente genérica, sem
critérios precisos que a definam. Por conta da fluidez desse princípio, justifica-se o seu estudo
mais aprimorado, buscando aferir as suas várias acepções e procurando afastar a insegurança
jurídica que uma imprecisão conceitual ilimitada pode ocasionar. A função social do contrato
decorre de uma transformação vivenciada no direito privado, a partir dos influxos recebidos
do Direito Constitucional, fruto de um processo evolutivo por qual passou a estrutura estatal,
deixando as bases clássicas do Estado liberal e passando a adotar uma visão orientada pelos
valores humanos existenciais que dão a tônica do Estado Social. Surgiu, então, a preocupação
com a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, onde se estuda, a
partir da inaplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações privadas (doutrina americana
do State action), passando-se à análise da Teoria da eficácia horizontal indireta dos direitos
fundamentais (de criação e aceitação majoritária alemã), chegando à Teoria da eficácia
horizontal direita dos direitos fundamentais, predominante na doutrina e jurisprudência
brasileira. Investigam-se ainda os fundamentos da função social do contrato, apontando-se
que, além dos dispositivos constantes na legislação infraconstitucional, que dão base para o
princípio em tela, verifica-se também alicerces na Constituição Federal, em dispositivos como
o do art. 1º, III, sendo a dignidade da pessoa humana o norte principal da relação entre os
contratantes. Também o art. 3º, I da CF/88 fundamenta a visão social das avenças,
instrumentalizando-a para a implementação da solidariedade social, como um dos objetivos
fundamentais da República. Ainda o art. 170 da Constituição é visto como um locus de
fundamentação da função social do contrato, na manutenção da ordem econômica. Estuda-se,
ainda, os aspectos interno e externo da função social do contrato, sendo a primeira vertente
aquela que considera a exigência de respeito à lealdade contratual, por meio da boa-fé
objetiva, como decorrência de que a dignidade de um contratante não pode ser ofendida pelo
outro através do contrato. Já a faceta externa da função social do contrato, na linha do
mandamento constitucional da solidariedade, indica a necessidade dos contratantes
respeitarem os direitos da sociedade, a saber, os difusos, coletivos e de terceiros
individualizados. Neste aspecto externo, toca-se ainda na noção de tutela externa do crédito,
abordando o dever de respeito da sociedade para com o contrato. Mostra-se algumas noções
da função social do contrato no direito comparado. Em seguida, investiga-se o conteúdo do
princípio em estudo, através de suas inter-relações com outros preceitos do direito privado e
constitucional, a saber, igualdade, boa-fé objetiva, autonomia privada e a dignidade da pessoa
humana. Estuda-se a aplicação da função social contratual nas redes contratuais, bem como a
orientação de conservação dos contratos, notadamente naqueles denominados contratos
cativos de longa duração, considerando-se a teoria do adimplemento substancial, finalizando
com uma análise da função social do contrato no Código de Defesa do Consumidor.
This dissertation deals with the social function of the contract, based on constitutional
principles, especially those relating to fundamental rights. The social function of the contract
(general clause) is described in the Civil Code so intentionally generic, no precise criteria to
define it. Because of the fluidity of this principle, it is justified its closer study, seeking to
assess its various meanings and looking away from the legal uncertainty that an unlimited
conceptual vagueness can cause. The social function of the contract arises from a
transformation experienced in private law from the inflows received from the Constitutional
Law, the result of an evolutionary process by which it became the state structure, leaving the
foundations of the classical liberal state and moving toward a vision guided by existential
human values that give the keynote of the Welfare State. Arose, then the concern about the
effectiveness of fundamental rights in relations between individuals, which is studied from the
inapplicability of fundamental rights in private relations (U.S. doctrine of State action),
passing to the analysis of the Theory of indirect horizontal effect of fundamental rights (of
German creation and majority acceptance), reaching the right horizontal efficacy Theory of
fundamental rights, prevailing Brazilian doctrine and jurisprudence. It has also been
investigated the foundations of the social contract, pointing out that, apart from the provisions
of the constitutional legislation, that base the principle on screen, there have also been noticed
foundations in the Federal Constitution, in devices like the art. 1, III, the dignity of the human
person is the north of the relationship between contractors. Also art. 3rd, I CF/88 bases the
vision of social covenants, equipping it for the implementation of social solidarity, as one of
the fundamental objectives of the Republic. Still on art. 170 of the Constitution it is seen as a
locus of reasoning in the social function of the contract, the maintenance of the economic
order. It is also studied the internal and external aspects of the social function of the contract,
being the first part the one that considers the requirement of respect for contractual loyalty,
through the objective good faith, as a result of the dignity of the hirer may not be offended by
the other through the contract. On the other hand, the external facet of the social function of
the contract, in line with the constitutional mandate of solidarity, indicates the need for
contractors to respect the rights of society, namely the diffuse, collective and individual third
party. In this external appearance, it is also pointed the notion of external credit protection,
addressing the duty of society to respect the contract. There has been shown some notions of
the social contract in comparative law. Then, there has been investigated the content of
principle study, through their interrelationships with other provisions of private and
constitutional law, namely equality, objective good faith, private autonomy and dignity of the
human person. We study the application of the social contract in contractual networks as well
as the guidance of conservation of contracts, especially those denominated long-term captive
contracts, considering the theory of substantive due performance, concluding with an analysis
of the social contract in code of Consumer Protection.
Keywords: Fundamental rights. Private law. The social function of the contract.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................10
do state action...........................................................................................................................27
FUNDAMENTAIS...................................................................................................................28
FUNDAMENTAIS...................................................................................................................31
CONTRATO.............................................................................................................................33
CONTRATUAIS......................................................................................................................79
4.4 O PRINCÍPIO DA CONSERVAÇÃO DOS CONTRATOS COMO DECORRÊNCIA DA
duração......................................................................................................................................86
DO CONSUMIDOR.................................................................................................................95
5 CONCLUSÃO....................................................................................................................110
REFERÊNCIAS....................................................................................................................116
10
1 INTRODUÇÃO
contrato (cláusula geral) vem descrita no Código Civil de forma propositalmente genérica,
sem critérios precisos que a definam. Por conta da fluidez desse princípio, justifica-se o seu
estudo mais aprimorado, buscando aferir as suas várias acepções e procurando afastar a
fundamentais e sua interação com o direito privado, através da crescente utilização, em nível
indeterminados.
particulares, onde se aborda a inaplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações privadas
(doutrina americana do State action), bem como a Teoria da eficácia horizontal indireta dos
brasileira.
No Capítulo 4, está o cerne do nosso trabalho. Ali discorremos sobre a função social
do contrato como concretização de direitos fundamentais nas relações privadas. Para tanto,
11
inicialmente abordamos a função social do contrato em seus aspectos interno e externo. Então,
feita uma abordagem sobre a aplicação da função social e as redes contratuais. No mesmo
método dedutivo, sistema que se baseia em teorias gerais e leis gerais para a análise de
fenômenos particulares.
método comparativo entre esses dados levantados, a fim de levantar comparações possíveis,
Faremos uso também do método casuístico, com destaques para casos reais similares
Por fim, quanto aos métodos de investigação, será utilizado o método bibliográfico,
computadores.
12
O Código Civil, em seu artigo 421, estabelece que: “a liberdade de contratar será
exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Essa norma provoca várias
discussões, dentre elas, o que seria efetivamente essa função social do contrato e quais seriam
ao direito contratual, revela que a função social do contrato tem a natureza de um princípio
Mas convém enfatizar que a função social do contrato vem descrita no Código Civil
apenas de forma genérica, sem critérios precisos que o definam. Em certa medida, essa
imprecisão é favorável sendo, inclusive, uma característica da natureza de uma cláusula geral,
a qual contém norma de conteúdo aberto, a fim de possibilitar sua integração com outros
Até por conta dessa característica fluida do princípio da função social do contrato,
justifica-se o estudo mais aprimorado de tal instituto jurídico, buscando aferir as várias
acepções que a função social do contrato pode tomar e procurando afastar a insegurança
Então, se mostra interessante perquirir sobre os contornos dessa função social, porta de
fundamental. Dentro dessa temática surgem muitas implicações e vertentes explicativas que a
doutrina tem investigado, relacionando a função social do contrato com vários temas, como a
relatividade dos efeitos do contrato1, a frustração pelo fim do contrato2, além de outros temas
Para melhor situar o tema, convém traçar um breve escorço histórico sobre a evolução
do direito contratual.
O conceito clássico continha fortes traços individualistas, marcado por uma igualdade
apenas formal (igualdade perante a lei) sem preocupação com igualdade substancial,
econômica ou social. Esse conceito clássico de contrato influenciou no Brasil o Código Civil
de 1916.
O modelo clássico contratual contentava-se com a máxima dos interesses opostos dos
O voluntarismo (a vontade como poder jurígeno) era visto como garantia de justiça. A
justiça contratual era igualdade formal (perante a lei) e liberdade para contratar.
A intangibilidade do contrato era uma marca muito forte, porque o contrato somente
poderia ser alterado por outro contrato, não cabendo alteração unilateral, ainda que por via
Com base no Pacta sunt servanda (assertiva de que os contratos devem ser mantidos)
apenas o prejudicado pela inadimplência contratual poderia se valer do Estado para exigir o
1
MAZZEI, Rodrigo. O princípio da relatividade dos efeitos contratuais e suas mitigações. In: HIRONAKA,
Giselda Maria Fernandes Novaes; TARTUCE, Flávio (Coords). Direito contratual: temas atuais. São Paulo:
Método, 2007, p. 189-222.
2
RUZZI, Marcos Hoppenstedt. Resolução pela frustração do fim do contrato. Ibid., p. 493-515.
14
cumprimento do que foi acordado. Não era comum uma intervenção do Estado para revisar o
contrato.
Pelo princípio da relatividade do contrato, esse era visto como uma transação de
natureza patrimonial entre dois sujeitos, ligados apenas entre si, sem qualquer relação com o
Cabia ao Estado apenas exigir o cumprimento dos contratos já esse era considerado
justo porque realizado por pessoas livres e iguais. Tal distanciamento do Estado em relação ao
contrato tinha relação, na época pós Revolução Francesa, com o rompimento em relação ao
Até a metade do Século XX, o estudo do contrato foi apenas estrutural, sem
questionamento a respeito de qualquer outra função do contrato que não fosse a realização das
vontades das partes contratantes. Não se analisava o contrato no contexto valorativo e social.
vistas como sempre entre dois contratantes paritários, no conceito contemporâneo de contrato
os destinatários do contrato são variados, até a própria coletividade passa a ser destinatária
dos contratos, os sujeitos são múltiplos e pessoas não expressamente previstas no contrato
também estão incluídas como seus destinatários. Um dado marcante é o contrato de massa,
onde as cláusulas são previamente definidas e o outro contratante somente possui a faculdade
segurança jurídica do contrato, mas com o valor justiça contratual ou equidade do contrato,
passando a não mais ser suficiente a noção de igualdade formal (perante a lei), buscando-se
uma igualdade fática substancial, que forneça aos contratantes a real paridade para decidir as
cláusulas do contrato.
Antes, era aceitável, com base na liberdade contratual, que o resultado do contrato
fosse vantajoso para uma parte e danoso para o outro contratante. Na visão contemporânea,
isso é inadmissível, tendo em vista que o contrato, hoje, baseia-se na ideia de confiança,
Na senda atual, passou-se a exigi-se a boa-fé dos contratantes, bem como o dever de
cooperação, em lealdade, pois o contrato não pode servir para o alcance de fins escusos,
fundamentais.
A denominada igualdade formal (perante a lei) se mostrou cada vez mais insuficiente
nos contratos, sobretudo, após a Revolução Industrial e o surgimento dos contratos de massa,
de forma que se mostrou cada vez mais desigual a relação entre patrão e empregado, bem
contratos injustos, seja por meio da lei, seja pela intervenção judicial.
16
com base na chamada Teoria da Imprevisão, admitindo-se a revisão contratual, desde que
originalmente acertadas.
revisão contratual, mesmo nos casos onde não houvesse surgimento de fato novo imprevisível
de desequilíbrio do contrato. Nesta ótica o desequilíbrio era visto como originário, assim
embora constasse das cláusulas contratuais, a avença não poderia prosperar inalterada, pois
acrescenta que também nos contratos formalmente paritários (de direito civil em geral) a
Código Civil, no art. 4784, tratando da resolução por onerosidade excessiva, exija os
requisitos da Teoria da Imprevisão. A jurisprudência, nesse caso, tem entendido que, mesmo
nos contratos de direito civil (não consumeristas) a revisão pode ser feita com base apenas na
3
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Reconstrução do conceito de contrato: do clássico ao atual. In:
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; TARTUCE, Flávio (Coords). Direito contratual: temas
atuais. São Paulo: Método, 2007, p. 19-40.
4
Art. 478 do Código Civil: Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes
se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos
extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a
decretar retroagirão à data da citação.
17
contrato e a boa-fé.
Civil de 2002, observa-se que a função social é decorrente de premissa mais abrangente,
Civil, assevera que a função social do contrato consiste no “princípio condicionador de todo
Noutro passo, passemos neste momento para a análise dos fundamentos da função
social do contrato.
como fundamento de validade, poder-se-ia apontar que a função social do contrato tem
fundamento específico na Constituição, por exemplo, no artigo 1º, inc. III, ou seja, na
dignidade da pessoa humana, uma vez que a função social do contrato busca justamente
humanizar o contrato, de forma que a liberdade contratual não venha a anular a dignidade do
Nesse sentido, Flávio Tartuce6 assevera que “inicialmente, a função social do contrato
está ligada à proteção dos direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, amparada no
5
BRASIL. CÓDIGO CIVIL: exposição de motivos e texto sancionado. Brasília: Senado Federal, Secretaria
Especial de Editoração e Publicações, 2005, p. 40.
6
TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de
2002. Método, 2007, p. 250.
18
Ainda o artigo 3º, inc. I da Constituição também serve de base para a função social do
contrato, pois o contrato deve estar inserido dentro de uma sociedade livre, justa e solidaria.
Por analogia, poderia se falar na extensão do princípio esculpido no art. 5º, XXIII e
art. 170, III da Constituição, já que a função social (ainda que no texto constitucional seja
Nesse sentido, Miguel Reale7, entende que a função social do contrato decorre da
versa.
Flávio Tartuce8, argumenta que a função social do contrato também pode ser
fundamentada nos arts. 170, caput, da Constituição, tendo em vista que a justiça social é um
dos objetivos da República, podendo ainda, segundo o autor, a função social do contrato ser
entendimento de que a função social tem eficácia interna e externa, ou seja, tanto entre as
partes como em relação a terceiros, de forma que o contrato nunca sirva para atingir a
dignidade do ser humano, seja o contratante, seja o terceiro, que pode ser alcançado pelos
efeitos do contrato.
7
REALE, Miguel. Função social do contrato. Disponível em:
<http://www.miguelreale.com.br/artigosqfunsoccont.htm>. Acesso em: 20 abr. 2013.
8
TARTUCE, loc. cit.
9
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002,
p. 32.
19
Uma ressalva, porém, é importante ser feita: a função social como decorrência de
mandamentos e princípios constitucionais não pode ser vista como uma constitucionalização
ilimitada do direto do direito privado. Deve-se ter em mente que direito constitucional e
matérias que apresentam suas características e naturezas próprias. Por isso, deve ser
respeitado um espaço mínimo para a autonomia do direito privado no que lhe é peculiar, ou
nos espaços não ocupados pelas normas de caráter constitucional propriamente dito.
desmedida do direito civil, pois isso levaria a uma confusão entre os objetos e o parâmetro de
principiologia da função social do contrato, através de outras cláusulas gerais como a boa-fé,
Entre os países nos quais se pode vislumbrar a função social do contrato, através da
1917, art. 27, e Weimar (Alemanha, 1919), art. 153, seguidas, depois, pela Constituição
10
MARTINS, Leonardo. Liberdade e estado constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa
relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p. 113.
11 MEZZOMO, Marcelo Colombelli; COELHO, José Fernando Lutz. A função social da propriedade nos
contratos agrários. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 66, 1 jun. 2003. Disponível em:
<http://jus.com.br/revista/texto/4125>. Acesso em: 16 maio 2013.
20
pode-se constatar a Constituição da Espanha (1978), em seus arts. 148 e 149, bem como a
Constituição Alemã de 1949 (art. 74, n. 24); Na Itália, a lei n. 394/86 (art. 5º, 3). Bem como
função social do contrato, embora sem conhecer expressamente a nível nacional a positivação
legislativa expressa de tal instituto. Leonardo Martins13ilustra, quando se refere a uma decisão
Deve-se salientar que todos os outros conceitos gerais (boa-fé, probidade, usos, e bons
costumes) contidos no Código Civil brasileiro, os quais, entendemos que servem, em sua
maioria, como “preceitos de ordem pública, estabelecidos para assegurar a função social do
contrato” (art. 2.035, parágrafo único), já gozam de uma longa tradição no direito alemão,
podendo ser encontrados no Código Civil alemão (BGB), que serviu de lastro para a
dos estados membros alemães, informa que a Constituição do Estado Livre da Baviera possui
disposição textual expressa sobre a função social do contrato. Trata-se do artigo 151 da
12
MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros. 7. ed., 1998, p. 46.
13
MARTINS, Leonardo. Liberdade e estado constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa
relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p. 113.
14
MARTINS, Leonardo. Liberdade e estado constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa
relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p.114.
15
MACEBO, Rafael Chagas. A função social do contrato. São Paulo: Quartier latin, 2005, p. 155.
21
ordenamento estrangeiro que traz norma expressa sobre a noção de função social do contrato.
a autora refere-se ao Código Civil italiano, que em seu artigo 1.322, proclama claramente o
valor da função social do contrato. Tal dispositivo legal, na tradução disponibilizada pela
contrato. Segundo esse dispositivo, a liberdade de iniciativa privada é protegida, desde que
“não seja contrária à utilidade pública” ou exercida “de uma forma que possa prejudicar a
16 SALGADO, Gisele Mascarelli. Função social do contrato: e a teoria do direito de Miguel Reale. Conteúdo
Jurídico, Brasilia-DF: 16 abr. 2012. Disponivel em:
<http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.36481&seo=1>. Acesso em: 16 mai 2013.
17
MACEBO, Rafael Chagas. A função social do contrato. São Paulo: Quartier latin, 2005, p.150.
22
liberdade de iniciativa privada aos “fins sociais, para a qual são coordenadas e endereçadas
Podemos ainda dizer que o Código Civil italiano ainda fomenta a função social do
contrato em outros artigos como aqueles que tratam da boa-fé na conduta negocial (arts.
1.479, 1.706, 1.776), bem como na interpretação judicial (art. 1.366), além da boa-fé objetiva
Quanto ao Direito francês, pode-se dizer que a expressão “função social do contrato” é
de origem doutrinária francesa, segundo a teoria de León Duguit20, o qual entendia que a
“solidariedade era uma causa social que originava o direito”. Contudo, Miguel Reale entende
francês, convém destacar o art. 1.108 do Código de Napoleão, o qual restringe a validade das
convenções a certas condições, dentre elas, à “... causa lícita na obrigação”. Tal sentido de
função social abstraído desse artigo é ratificado pelo art. 1.131 do mesmo Código, a qual
assevera que “a obrigação sem causa, ou com uma falsa causa, ou com uma causa ilícita,
não pode ter qualquer efeito”. O artigo 1.133 complementa o raciocínio da ligação entre a
causa do negócio e a função social do contrato, quando vincula a licitude causa do contrato
Código Civil Francês ainda prevê algumas cláusulas gerais o que se aproxima dos
deveres anexos disciplinados em nosso Código Civil, quando, no artigo 1.135 estabelece que
“as convenções obrigam não somente ao que está nelas expresso, mas ainda a todas as
18
Ibid., p. 150-151.
19
Ibid., p. 151.
20
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 83.
21
MACEBO, Rafael Chagas. A função social do contrato. São Paulo: Quartier latin, 2005, p. 140.
23
consequências que a equidade, o uso ou a lei derem à obrigação de acordo com a sua
natureza”.
24
Para Professor Leonardo Martins, “O art. 421 do Código Civil brasileiro promulgado
em 2002 trouxe certamente o conceito mais aberto do qual se tem notícia...”.22 O doutrinador
e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte ainda enfatiza que o citado
dispositivo “... oferece não somente uma „porta‟, mas sim um „largo portão de entrada‟ do
Segundo Martins24, essa dogmática é bem explicada por uma alegoria de feixes de luz,
que conduzem os diretos fundamentais para além de seus limites constitucionais e entram no
direito privado por meio de frestas que seriam cláusulas gerais existentes no direito privado.
Dessa forma, a função social do contrato funcionaria como uma dessas brechas por
Dentro desse contexto, abrem-se duas principais teorias sobre a aplicação dos direitos
fundamentais nas relações privadas: uma defendendo uma aplicação imediata dos direitos
dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, ou também chamada de eficácia
22
MARTINS, Leonardo. Liberdade e estado constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa
relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p. 111.
23
Ibid., p. 111.
24
Ibid., p. 101.
25
apanhado da situação (ainda que não aprofundado), visto que tal assunto relaciona-se
dos direitos fundamentais. Nesse sentido, deve-se entender que os direitos fundamentais
possuem primeiramente uma eficácia vertical, ou seja, o dever do Estado (que está acima)
respeitar e promover os direitos dos indivíduos (que estão abaixo). Daí a noção de
Isto constitui o efeito vertical dos direitos fundamentais que se manifesta nas
relações caracterizadas pela desigualdade entre o “inferior” (indivíduo) e o
“superior” (Estado), que detém, privativamente, o poder de legislar e um enorme
potencial de violência organizada.
fundamentais serem invocados, não contra o Estado (na verticalidade), mas sim a utilização
dos direitos fundamentais por um particular em face de outro, ou seja, no plano horizontal.
sua eficácia vertical, ou seja, como garantias dos indivíduos contra o arbítrio estatal.
particular, tem como lide case a clássica decisão “Lüth”26, proferida pelo Tribunal
25
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3. ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 103.
26
Essa decisão pode ser encontrada em suas partes principais, traduzida e comentada em MARTINS, Leonardo.
(Org.). Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Montevidéu:
Fundação Konrad Adenauer, 2005, p. 379-395.
26
contra o cineasta Veit Harlan e contra o filme “Unsterbliche Geliebte” (a amante imortal) que
este ele estava para estrear. Lüth justificava o boicote contra Harlan em razão desse ter sido,
notadamente o filme “Jud Suβ”, de 1941, o qual incentivava o ódio e a violência contra
judeus.
A produtora e a distribuidora do filme que estava sendo dirigido por Harlan ajuizaram
uma ação contra Luth, baseando-se no § 826 do Código Civil Alemão (BGB), segundo o qual
quem, contrariando os bons costumes, causar dano a outrem, dever ser condenado a uma
obrigação de não fazer (na espécie, não convocar ao boicote) e, em caso de descumprimento,
A ação contra Lüth foi julgada procedente pelo juízo cível e o réu foi condenado a não
incitar ao boicote, pois a justiça ordinária alemã entendeu, com base no §826 do BGB, que a
juízo cível, entendendo que aquela decisão não considerou o comportamento de Lüth como
paradigma do TCF, também alcança o caso em que o direito fundamental a livre expressão do
Constitucional Federal alemão, o caso considerado como divisor de águas quanto à eficácia
Cabe ainda ressaltar que a eficácia horizontal dos direitos fundamentais não é uma
unanimidade nos ordenamentos jurídicos. Há países que não admitem, em regra, tal eficácia,
como se tem o exemplo emblemático dos Estados Unidos, com a doutrina State action.
27
Mesmo entre os que admitem a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, há também a
divergência a respeito de como se dá essa eficácia, tendo como principais correntes a teoria da
geral, no direito norte americano, com algumas exceções. Lá, a cultura individualista
americana entende que os direitos fundamentais devem regular as relações do particular com
o Estado e não os conflitos dos indivíduos entre si. É a chamada State action. Um dos
Constituição americana, a qual direciona em face dos poderes públicos as normas de direitos
fundamentais.
muito cara para os valores da cultura americana, de traço marcantemente individualista. Outro
argumento para a não eficácia horizontal dos direitos fundamentais nos Estados Unidos é o
federalismo, pois lá somente os Estados (e não a União) podem legislar sobre direito privado.
Dessa forma, os defensores da State action concluem que a Constituição Americana não
poderia versar sobre matéria cível, já que é elabora pela União, sem competência neste ramo
do direito.
27
SARMENTO, Daniel. A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais: o debate teórico e a
jurisprudência do STF. Disponível em: <http://www.danielsarmento.com.br/wp-content/uploads/2012/09/a-
vinculacao-dos-particulares-aos-direitos-fundamentais-na-jurisprudencia-do-STF-e-no-direito-comparado.pdf>.
Acesso em: 8 abr. 2013.
28
emenda, que aboliu a escravidão, já que esta norma de direito fundamental também é dirigida
aos particulares.
Em resumo, a crítica que se faz a State action é contra a ideia de que os direitos
se dá a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Para uns, essa eficácia horizontal é
direta (imediata). Já para outros, esse efeito dos direitos fundamentais entre os particulares
FUNDAMENTAIS
O que seria eficácia horizontal direta e eficácia horizontal indireta dos direitos
fundamentais? Por eficácia horizontal direta dos direitos fundamentais, entende-se a aplicação
caso.
28
SOMBRA, Thiago Luís Santos. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. São Paulo:
Atlas, 2011, p. 93.
29
respaldo no vínculo do Judiciário aos direitos fundamentais, vinculo esse que impõe ao
interpretar e, por vezes, afastar normas infraconstitucionais que, embora em tese sejam
constitucionais, podem ter sua aplicação tida como inconstitucional, quando essa aplicação
não levar em conta direitos fundamentais de um particular contra outro particular, surgindo
nesses casos um dever de “proteção ativa” pelo Estado-juiz, contra a agressão a alguns
direitos fundamentais, partidas de particulares, em casos nos quais a autonomia privada carece
tal concretização? O problema é que uma coisa é aplicar os direitos fundamentais em face do
Estado, que não é sujeito titular direitos fundamentais. Outra coisa é invocar direitos
fundamentais. Colocar o cidadão no lugar do Estado pode comprometer sua liberdade, sua
fundamentais entendem que para possibilitar maior segurança jurídica e maior liberdade ao
cidadão, a aplicação dos direitos fundamentais em face do particular deve ser intermediada
pela legislação infraconstitucional, até como forma de respeitar a democracia, por meio da
29
MARTINS, Leonardo. Liberdade e estado constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa
relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p.117-118.
30
Segundo Düring, os direitos fundamentais são uma ordem objetiva de valores que se
irradiam por todo ordenamento jurídico, mas, para incidirem sobre as relações privadas,
direito brasileiro da eficácia horizontal indireta dos direitos fundamentais podemos citar
Poderíamos, então, dizer que, à luz da teoria da eficácia horizontal indireta dos direitos
fundamentais, a função social do contrato seria uma dessas “portas de entrada” dos direitos
dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF), a solidariedade (art. 3º, I da CF), bem como a
30
SARMENTO, Daniel. A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais: o debate teórico e a
jurisprudência do STF. Disponível em: <http://www.danielsarmento.com.br/wp-content/uploads/2012/09/a-
vinculacao-dos-particulares-aos-direitos-fundamentais-na-jurisprudencia-do-STF-e-no-direito-comparado.pdf>.
Acesso em: 8 abr. 2013.
31
CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Coimbra: Almedina, 2006 p. 29.
32
MARTINS, Leonardo. Liberdade e estado constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa
relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p. 111.
33
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3. ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 108.
31
FUNDAMENTAIS
Sarmento34 tal doutrina se amolda mais às características brasileiras, uma vez que a nossa
entre os particulares justifica a necessidade de aplicação direta dos direitos fundamentais entre
os particulares, mesmo nos casos em que não houver legislação infraconstitucional regulando
particulares deve ser revestida de cautelas, pois tal situação geralmente envolve a mitigação
do direito fundamental de uma parte em favor do direito fundamental de outra. Nesse sentido,
por exemplo, a exigência de isonomia entre particulares deve ser vista com reservas, pois os
linha, não seria razoável exigir que a pessoa não pudesse fazer certas escolhas (e aí, certas
que se alinhem mais com a personalidade daquele que contrata, v.g, escolher um empregado
doméstico que professe sua mesma religião, em detrimento de outro de religião diversa, ou
que possua a sua mesma orientação sexual, ao invés de outro que possua outra opção sexual,
pois isso faz parte das escolhas existenciais do indivíduo, as quais também são protegidas pela
34
SARMENTO, Daniel. A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais: o debate teórico e a
jurisprudência do STF. Disponível em: <http://www.danielsarmento.com.br/wp-content/uploads/2012/09/a-
vinculacao-dos-particulares-aos-direitos-fundamentais-na-jurisprudencia-do-STF-e-no-direito-comparado.pdf>.
Acesso em: 8 abr. 2013.
32
Constituição, como decorrência do direito à liberdade, na forma dos arts. 3º, I e 5º, caput da
CF, como parte dos requisitos para o livre desenvolvimento da pessoa humana.
33
CONTRATO
entenda que a função social do contrato somente tem eficácia interna entre as partes 35. Por
outro lado, há aqueles que apenas aceitam a eficácia externa (ou para além dos contratantes)
da função social do contrato.36 Grande parte da doutrina considera que a função social do
Filio-me a essa corrente, a qual entende que a função social do contrato apresenta uma
Cabe registrar que há na doutrina quem não reconheça qualquer eficácia (seja interna,
seja externa) à função social do contrato, entendo que a função social limita-se à causa
contratual38.
A função social interna do contrato não é consenso na doutrina, visto que essa aceita
de forma mais pacífica a função social externa do contrato. Contra a consideração da função
social do contato em seu âmbito interno, podemos citar Humberto Theodoro Neto, para quem
35
Nesse sentido: SANTOS, Antônio Jeová dos. Função social do contrato. Lesão, imprevisão no CC/2002 e
no CDC, 2ª ed., São Paulo: Método, 2004, passim; NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e os seus
princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994, passim.
36
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato. Novos paradigmas 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006; SILVA,
Luis Renato Ferreira da. A função social do contrato no novo código civil e sua conexão com a solidariedade
social. In: SARLET, Ingo (Org.) O novo Código Civil e a Constituição.
37
Nesse sentido: TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao
Código Civil de 2002, São Paulo: Método, 2007, p. 248; NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em
busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006; GODOY, Cláudio Luiz
Bueno de. Função social do contrato. São Paulo: Saraiva, 2004.
38
RENTERIA, Pablo. Considerações acerca do atual debate sobre a princípio da função social do contrato. In:
MORAES, Maria Celina Bodin (Coord). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar.
2006.
34
o termo “função” pode se referir ao âmbito interno e externo do contrato, mas a expressão
“social” somente pode ter aplicação fora das partes contratantes, referindo-se à coletividade39.
Nessa mesma linha, Luis Renato Ferreira da Silva40 considera que o binômio
social do contrato manifesta-se apenas na relação dos contratantes para com terceiros.
Segundo ele, a função social do contrato aborda sobre os reflexos da liberdade contratual
sobre a sociedade, enquanto a boa-fé fica restrita ao relacionamento travado entre os próprios
como o princípio segundo o qual o contrato deve servir à finalidade lícita para a qual foi
celebrado. Daí decorre que as partes devem se esforçar para não se desviarem da finalidade
contratual, usando de lealdade recíproca, a fim de que a avença não seja um instrumento de
juros de 100% ao ano, esse contrato estaria desnaturado da compra e venda, tornando-se um
mútuo explicitamente abusivo. Daí perderia sua função social interna, ou seja, sua finalidade
39
THEODORO NETO, Humberto. Efeitos externos do contrato: direitos e obrigações na relação entre
contratantes e terceiros. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 154.
40
SILVA, Luis Renato Ferreira da. A função social do contrato no novo Código Civil. In: SARLET, Ingo
Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constituição, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 133.
41
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 29.
42
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Reconstrução do conceito de contrato: do clássico ao atual. In:
HIRONAKA, Giselda; TARTUCE, Flávio (Coord). Direito contratual: temas atuais. São Paulo: Método, 2007,
p. 33.
35
Sobre esse aspecto interno da função social do contrato, Godoy assevera que a função
social ocorre “primeiro entre as partes, de maneira a assegurar contratos mais iguais, com o
Conselho de Justiça Federal: “O princípio da função social dos contratos também pode ter
dignidade dos contratantes, a fim de se evitar que um dos celebrantes tenha sua dignidade
Flávio Tartuce aponta vários artigos do Código Civil, os quais entende como exemplos
mínimos, como sendo uma forma de proteger o comprador carente de recursos, que não pode
custear as despesas da escritura pública; b) art. 157 do CC, quando estipula a possibilidade de
anulabilidade do contrato, quando ocorrer a lesão, que seria um vício da vontade com
repercussões no contrato, nas hipóteses em que houver por um dos contratantes “premente
art. 170 do CC, o qual se relacionando com o princípio da conservação dos negócios jurídicos
responsabilidade civil por abuso de direito dentro do contrato; e) arts. 317 e 478 do CC,
43
GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A função social do contrato. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 131.
44
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de (Coord). Jornadas de direito civil I, III, IV e V: enunciados aprovados.
Disponível em <http://www.jf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-
de-direito-civil/compilacaoenunciadosaprovados1-3-4jornadadircivilnum.pdf/view>. Acesso em: 04 jun. 2013.
45
TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de
2002. São Paulo: Método, 2007, p. 251/252.
36
excessiva; f) art. 406 do CC, limitando a taxa de juros legais de mora; g) art. 413 do CC,
possibilitando a redução da cláusula penal pelo juiz, quando essa se mostrar desproporcional,
medida relacionada com o princípio constitucional da igualdade e que busca evitar o desvio
de finalidade do contrato, que não pode se torna objeto para o enriquecimento sem causa; h)
art. 423 do CC e art. 47 do CDC , que, para os contratos de adesão e contratos de consumo,
prevê a interpretação mais favorável ao aderente e ao consumidor; i) art. 424 do CC, que
Podemos dizer, sem sombra de dúvidas, que todos esses artigos buscam promover a
função social do contrato, que, na linha do Código Civil, seria um verdadeiro princípio geral
do direito contratual, construído pelos demais princípios como os previstos nos artigos citados
O art. 2.035, Parágrafo único, do Código Civil (o qual estabelece que “Nenhuma
por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”) reforça a
ideia de que vários princípios do Código Civil, descritos nos mais diversos artigos desse
Código, servem para efetivar a função social do contrato, funcionando como “preceitos de
No aspecto externo, a função social do contrato vai além das partes envolvidas. Sob
esse ângulo, se analisa se o contrato é útil à coletividade ou se, pelo menos não causa prejuízo
à terceiros.
46
ROSENVALD, Nelson. A função social do contrato. In: HIRONAKA, Giselda; TARTUCE, Flávio (Coords.).
Direito contratual: temas atuais. São Paulo: Método, 2007, p. 94.
37
sustenta que a função social do contrato serve para substituir a visão individualista do vínculo
Essa é a noção mais aparente da função social do contrato. Jorge Cesar Ferreira da
Silva entende a função social do contrato nesse aspecto, como “princípio de normatividade
exógena”, quando fala da necessidade de atenção para com terceiros não integrantes da
iniciativa (art. 1º, IV da Constituição), com a função social da propriedade (arts. 5º, XXIII e
170, III da CF), também atentando para a preocupação constitucional do abuso do poder
econômico (art. 173, § 4º da CF), além do princípio constitucional da solidariedade (art. 3º, I
da CF).
função social do contrato em seu âmbito externo: a) arts. 436 a 438 do CC, que tratam da
estipulação em favor de terceiros, como uma das hipóteses de exceção à relatividade dos
contratos; b) arts. 439 a 440 do CC, que tratam da promessa de fato de terceiro, também como
exceção à relatividade dos efeitos dos contratos; c) art. 608 do CC, tratando da chamada tutela
externa do crédito e prevendo uma sanção legal para o terceiro que estimula o
descumprimento contratual pelo devedor, quando o terceiro aliciar o devedor para que esse
celebre com aquele outro contrato, inviabilizando o cumprimento da avença com o credor do
pacto original. Neste aspecto, vide comentários que fizemos a respeito de um caso
47
SILVA, Jorge Cesar Ferreira da. Princípios de direito das obrigações no novo Código Civil. In: SARLET,
Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.
107.
48
TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de
2002. São Paulo: Método, 2007, p. 252.
38
Professora Judith Martins-Costa49, no qual restou consignado que a fusão de empresas deve
Segundo a orientação acima, a autora defende que a função social do contrato deve
interpretação sistemática, conciliando a regra do art. 421 do Código Civil, com os dispositivos
constitucionais sobre a livre concorrência e as regras relativas aos arranjos empresariais, bem
também deve ser observado o mandamento constitucional insculpido no art. 173, § 1º, I da
eficácia perante os adquirentes do imóvel”. Sobre essa questão, vide os comentários que
tercemos no tópico 4.2 desse trabalho, quando tratamos da exigência da boa-fé em todas as
fases do contrato.
Ainda na linha do efeito externo da função social do contrato, também no tópico 4.2,
combustíveis).
49
MARTIN-COSTA, Judith. Reflexões sobre o princípio da função social dos contratos. Revista Direito GV 1,
São Paulo, ano 1, n. 1, mai. 2005. Disponível em: <http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/JudithMC.pdf >.
Acesso em: 15 ago. 2013.
50
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 308. Segunda Seção. J. 30.03.2005. DJU. 25/04/2005 p. 384.
Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp>. Acesso em : 15 ago. 2013.
39
Do que foi exposto, resta evidente que o contrato não mais pode ser entendido como
ilhado pelo princípio da relatividade contratual. Ao revés, surte efeitos para além das partes e,
por isso mesmo, deve obediência ao princípio da solidariedade, o qual se apresenta como
A função social do contrato é formada por vários outros preceitos que servem para
dar-lhe conteúdo. Tal assertiva é corroborada pelo art. 2.035, Parágrafo único do Código
Civil, o qual informa que “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem
pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da
servem para assegurar a função social dos contratos. E não somente os preceitos do Código
Civil garantem a função social do contrato, mas também outros princípios contidos no Código
tese do diálogo das fontes, de autoria de Erik Jayme, apresentada no Brasil por Cláudia Lima
Marques.51
E quais seriam então esses preceitos que dão conteúdo à função social do contrato?
pessoa humana), que acreditamos terem essa característica, estudando a relação de tais
moldes entabulados no art. 421 do Código Civil, Segundo Martins52, serve de porta de entrada
dos direitos matrizes „liberdade e igualdade”, proclamados no art. 5º, caput da CF.
noção de igualdade ganhou grande relevo no cenário mundial. Não obstante, a idéia de
igualdade sofreu evolução, passando da simples noção de igualdade perante a lei (igualdade
igualdade em sua acepção fática (igualdade substancial), qual seja a igualdade alcançada
menos favorecidos53.
Ainda segundo Novaes, “a igualdade perante a lei” era “suficiente” para o Estado
52
MARTINS, Leonardo. Liberdade e estado constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa
relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p. 111.
53
NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da república portuguesa. Coimbra:
Coimbra Editora, 2004, p. 101.
54
Ibid. p. 103.
41
“todos os cidadãos têm igual dignidade que devem ser tratados como iguais”.
Assim, chega-se a conclusão de que, enquanto no, Estado liberal, a igualdade formal
significava tratar a todos indistintamente, no Estado social, a igualdade passa a ser entendida
na “exigência de tratamento igual daquilo que é igual e tratamento desigual daquilo que é
desigual”.55
substancial. Já vem sendo sentido em algumas normas específicas como aquelas que conferem
educação e mercado, isenção de tributos para aquisição de certos bens, descontos ou isenção
tratamento diferenciado para que efetivamente tenha garantida a sua dignidade, através de
55
Ibid. p. 104.
42
Tal igualdade substancial pode ser enxergada sob a ótica do Estado para com os
particulares e, por outro lado, também sob o prisma das relações dos particulares entre si.
igualdade substancial parece bastante razoável, visto que a satisfação do interesse público é
um dos objetivos do Estado, através da redução das desigualdades entre os indivíduos, por
Ainda sob a ótica do Estado para com os particulares, podemos citar como exemplo as
normas que determinam a reserva de vagas no serviço público para pessoas portadoras de
deficiências, conforme estabelecido na Constituição Federal, art. 37, VIII, regulamentada pela
Regulamentar 3.298/99, o qual, regulamentando o art. 2º, III, alínea “d” da Lei 7.853/99 e o
art. 37, VIII da Constituição Federal, estabeleceu a reserva de vagas para deficientes, no
percentual mínimo de cinco por cento do total de vagas ofertadas para cargos e empregos
Quanto à reserva de vagas para deficientes na iniciativa privada, também foi garantido
através do art. 93 da Lei 8.213/91 essa prerrogativa para as pessoas portadoras de deficiência,
variando a quantidade de vagas do percentual mínimo de 2%, para empresas de até 200
aponta na direção dos ditames constitucionais de igualdade substancial, uma vez que caminha
na linha do mandamento insculpido no artigo 170, caput e inciso VII da Constituição Federal,
43
Entretanto, a interpretação literal dos citados dispositivos legais ainda não proporciona
uma igualdade material, haja vista que deixa fora de sua abrangência de proteção pessoas que
É o caso daqueles que sofrem de visão monocular e também dos que são acometidos
de perda auditiva unilateral. Pessoas com essas moléstias são consideradas, pela literatura
tem interpretado de forma extensiva as regras que definem a deficiência visual e auditiva para
Nesse sentido, com relação à visão monocular, o Superior Tribunal de Justiça editou a
Súmula 377, estendendo a possibilidade de reserva de vagas no serviço público também aos
Justiça, vem decidindo reiteradas vezes pela extensão do conceito de deficiente auditivo,
56
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. O portador de visão monocular tem direito de concorrer, em concurso
público, às vagas reservadas aos deficientes. Enunciado de Súmula 377. Relator: Ministro Arnaldo Esteves de
Lima. Julgado em 22/04/2009, RSSTJ vol. 34 p. 81.
44
entre si, por vezes, a concretização desse direito fundamental entra em tensão com outro
Dessa forma, chega-se a conclusão de que, além da norma legal que promova
discriminação positiva, deve existir ainda o trabalho do julgador que, analisando caso-a-caso,
positiva, quando, em casos difíceis, a simples aplicação direta da lei de políticas afirmativas
Maria Celina Bodin de Moraes chama atenção para um novo conceito, que seria ainda
mais avançado que a própria igualdade substancial. Ela entende ser mais consentâneo com a
A mesma autora ressalta ainda que a atual conjuntura social reclama um direito cada
57
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Desprovimento de Recurso. AgRg no AREsp 22688/PE. Relator:
Ministro Arnaldo Esteves Lima. Brasília, DF, Diário da Justiça da União, Brasília, DF, Seção 3, 02 de maio de
2012.
58
MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo
normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 124.
45
plúrima, sempre tendo como base de resolução dos embates a idéia de reconhecimento das
igualdade, segundo o qual toda igualdade jurídica implica uma desigualdade fática e toda
encontra maiores dificuldades, haja vista a proteção também ofertada pela Constituição à
princípio geral da igualdade não pode ser estabelecer uma igualdade material sem
exceções”.62
59
Ibid., p. 125.
60
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales; 2001.
61
MAC CRORIE, Benedita Ferreira da Silva. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais.
Coimbra: Almedina, 2005, p. 44.
62
Ibid. p. 44.
46
ensinamento de Mello63, segundo o qual a lei não pode legitimar regalias desarrazoadas nem
retaliações imotivadas, mas, sim deve ser um mecanismo de regulação social, tratando de
benefício desarrazoado para uma só pessoa; b) as pessoas desniveladas pela lei devem ser
sejam realmente diferentes entre si; c) deve existir de forma abstrata uma relação lógica entre
os fatores de distinção e a situação jurídica criada pela implantação desses fatores; d) o nexo
Não se pode esquecer que o ser humano tem o direito de fazer suas escolhas pessoais,
prerrogativas, por meio da imposição irrestrita de isonomia entre particulares, pois o cidadão
meios empregados e a finalidade perseguida) como critério para aferição de quando deva
O mesmo autor aponta que o STF (vide ADI 1.326-SC, relator Min. Carlos Veloso)
entende no mesmo sentido, segundo o qual a proporcionalidade deve ser usada como critério
63
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ed., 14tir., São Paulo:
Malheiros, 2006. p.21.
64
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros
Editores, 2004, p. 238.
47
existentes.65
tratamentos desiguais em casos difíceis, segundo uma metodologia dividida em quatro fases.
se sobre a existência de alternativas igualmente adequadas, mas que acarretem menos ônus
material.66
Assim, verifica-se que a aplicação da igualdade material deve ser aferida à luz do
considerações.
Alemão, que passou a entendê-la como decorrente da substância dos direitos fundamentais,
65
Ibid. p. 239.
66
MARTINS, Leonardo. Liberdade e estado constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa
relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012. p. 59.
67
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. São Paulo: Celso
Bastos Editor. 2001. p.72.
48
constitucionalidade, pois aquele princípio não revela nada sobre os limites interventivos de
segundo o sentido de princípio traçado por Robert Alexy. Entendem aqueles doutrinadores
proporcionalidade pode ser dividida em duas noções: uma acepção lata e outra estrita. Com
sentido lato, a proporcionalidade seria a regra fundamental a que a que devem obedecer tanto
68
GRABITZ, Eberhard. 1973, p. 568-581 apud DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos
Direitos Fundamentais. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p.170.
69
MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. São Paulo:
Saraiva, 1990. p. 43
70
MÜLLER, Pierre. Le príncipe de la proportionnalité. Zeitschrift für schweizerisches Recht, Basel, v.97, fasc.
3, p. 1978, p. 531 apud BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros,
2011. p. 393.
49
da constituição”.
mais aceita que entende haver três elementos no princípio da proporcionalidade, a saber,
Böckenförde e Schlink, que retira a proporcionalidade em sentido estrito; 3) por fim, a que
verificação “se determinada medida representa „o meio certo para levar a cabo um fim
proporcionalidade em sentido estrito, a qual se verifica, segundo Pierre Muller, citado por
71
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. São Paulo: Celso
Bastos Editor. 2001. p. 63.
72
BONAVIDES, op. cit. p. 396.
73
BRAGA, Valeschka e Silva. Princípio da proporcionalidade & da razoabilidade. Curitiba: Juruá. 2009. p.
109.
74
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 396/398.
75
Ibid., p. 397.
50
Bonavides, quando “a escolha recai sobre o meio ou os meios que, no caso específico,
exagero.77
estrito, Dimoulis e Martins não entendem aceitável esse terceiro elemento e se filiam a
direitos fundamentais são heterogêneos, o que impede um sopesamento. Sustentam ainda que,
do ponto de vista formal, não há como haver hierarquia entre os direitos fundamentais, já que
os direitos fundamentais possuem a mesma força jurídica. Dessa forma arrematam, dizendo
que o aplicador do direito ao caso concreto judicial deve se satisfazer e finalizar o exame de
constitucionalidade da norma, quando verificar que essa atende aos critérios da adequação e
da necessidade.
76
Ibid., p. 398.
77
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 3. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011, p.171.
78
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. São Paulo: Celso
Bastos Editor. 2001, p. 70.
51
defendem serem princípios distintos, embora que semelhantes, destacasse aqui o trabalho da
Professora Valeschka e Silva Braga, que reúne seis critérios diferenciadores entre esses
79
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 3. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011, p. 215.
80
BRAGA, Valeschka e Silva. Princípio da proporcionalidade & da razoabilidade. Curitiba: Juruá. 2009. p.
109. p. 182/185.
52
objetividade, uma vez que se relaciona com circunstancias de tempo e lugar, a depender do
Por fim, no que se refere às funções, salienta que a proporcionalidade tem utilidade de
declara que a proporcionalidade existe de forma não expressa, mas sim esparsa no texto
implicitamente, a saber, no direito eleitoral constitucional (art. 45, § 1º), quando fala da
e XXV, a respeito dos direitos e deveres individuais e coletivos; no art. 7º, IV, V XXI, quanto
81
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 434/436.
53
a direitos sociais; no art. 36, § 3º, no que se refere à intervenção da União nos demais entes
federados; no art. 37, inciso IX, quanto à regras gerais da administração pública, dentre outros
tópico.
enquanto princípio constitucional geral idôneo para inibir a arbitrariedade estatal, está
constitucional.
global” decorre ainda do espírito do artigo 5º, § 2º, que se refere aos direitos fundamentais
não escritos na Constituição, sendo então algo que emana da “natureza do regime”, do Estado
Nesse sentido, Guerra Filho82 alerta para o que se chama na doutrina alemã de
82
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. São Paulo: Celso
Bastos Editor. 2001, p.85.
54
como por meio de decisão judicial sujeita a um amplo debate, segundo o devido processo
legal substancial.
doutrinador seja um ferrenho defensor desse princípio, chama a atenção para o que os alemães
transforma o princípio em uma “fórmula vazia” (Leerformel), que afrouxa a lei, retirando-lhe
a normatividade.
Dimoulis e Martins84 entendem que, no caso de não haver critério constitucional para solução
não haveria espaço para a ponderação judicial, mas apenas analisar se o legislador descumpriu
uma norma constitucional, sem poder haver a substituição do legislador pelo juiz:
83
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 430/433.
84
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 3. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011, p. 218/219.
85
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 3. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011, p. 218/219.
55
Em suma, as críticas são dignas de reflexão, porém não podem ser vista como algo
de direitos fundamentais.
apura-se que, conforme aduziu Larenz, em alguns casos, a igualdade deve ceder lugar à
Entretanto, tal solução deve sempre ser averiguada no caso concreto, mediante a
determinado caso deve ser realizada analogicamente, além dos casos expressamente previstos
determinados casos, a fim de se evitar, por outro lado, o cometimento de injustiças, através da
ofensa à dignidade de um outro indivíduo ou grupo social que, em um caso concreto, tenha
desproporcional.
Agora, analisemos outro princípio que também serve como um preceito de ordem
A boa-fé veio prevista expressamente no Código Civil, nos arts. 422, 113 e 187. Nessa
esteira, passou-se a reconhecer que as partes deveriam substituir o antagonismo clássico pela
86
LARENZ, Karl. Derecho justo: fundamentos de ética jurídica. Madrid: Civitas, 1985. p. 139.
56
busca de satisfação das legítimas expectativas, umas para com as outras no contrato, segundo
âmbito do contrato, dizer que um contratante agia de boa-fé equivalia apenas a dizer que ele
boa-fé subjetiva.
outra pessoa ou a determinado bem. Flávio Tartuce87 aponta que a exigência da boa-fé, sob o
prisma subjetivo, pode ser observada, por exemplo, em institutos do direito possessório, como
no art. 1.201 do Código Civil, segundo o qual o possuidor de boa-fé é aquele que “ignora o
vício ou obstáculo que impede a aquisição da coisa” ou que detém a posse como fundamento
em justo título.
Porém, outra noção mais recente da boa-fé é aquela que se preocupa, não apenas com
a intenção, mas sim meramente com a conduta do agente. No Código Civil Alemão (BGB), o
boa-fé objetiva, a saber, o art. 1.175, o qual estipula que tanto o credor quanto o devedor
devem agir segundo a regra de correção. Aqui também se denota a exigência da boa-fé
87
TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de
2002. São Paulo: Método, 2007. p. 197.
88
ENCINAS, Emílio Eiranova. Código Civil alemán comentado- BGB. p. 119.
57
objetiva, pois não se refere à intenção, mas à atitude das partes no cumprimento da obrigação:
A boa-fé foi prevista no art. 4º, III do Código de Defesa do Consumidor89. No referido
norma fala de boa-fé, não apenas nas intenções das partes, mas sim nas relações, nas condutas
No Código Civil, o art. 422 traz o dispositivo mais emblemático sobre a boa-fé, em
sua acepção objetiva. “Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na
artigo mais uma vez, dispensa a análise da intenção das partes contratuais e volta a atenção
aponta que tal princípio decorre do Princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art.
Podemos dizer que a exigência de boa-fé alcança as várias fases do contrato, a saber,
pequenos agricultores do Rio Grande do Sul. Na hipótese, a referida indústria, durante algum
tempo, mesmo sem contrato prévio, distribuía sementes aos agricultores, que depois vendiam
a safra de tomates para a CICA. Tal situação se repetiu durante vários períodos de colheita,
89
Art. 4º da Lei 8.078/90: A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das
necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses
econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de
consumo, atendidos os seguintes princípios: (...) III - harmonização dos interesses dos participantes das relações
de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e
tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição
Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;
90
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 117.
58
até que em determinado momento a empresa não comprou os tomates dos produtores, muito
embora tivesse distribuído as sementes aos mesmos. Tal situação gerou efetivo prejuízo aos
plantadores, que só plantaram em razão da justa expectativa de que a produção seria adquirida
prejuízo.
O caso foi levado ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que condenou a CICA
com a conduta que dela legitimamente se esperava, qual seja, que a empresa comprasse os
Entretanto, essa questão deve também ser analisada sob outra ótica. Deve-se levar em
quanto à real capacidade do devedor arcar com sua obrigação. Ademais, não há informação
suficiente (nem do Estado nem da iniciativa privada) sobre uma política de educação
necessidade (ou até da ambição) das pessoas para lhes seduzirem a contrair empréstimos sem
que esses particulares preencham um padrão mínimo de condições econômicas para tanto,
91
RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça, EI 591083357, Relator: Juiz Adalberto Lisbório Barros, 1991.
59
sendo levados a comprometer um grande percentual de sua renda e a pagar juros exorbitantes
Nesse sentido, não se pode esquecer que a liberdade contratual deve ser entendida
Leonardi92, é formada por “limites positivos (v.g. arts. 1º., III e 170, caput” da CF)” bem
Nesse contexto, o Estado, como agente regulador da liberdade contratual, a fim de que
essa seja utilizada para desenvolvimento da personalidade, deve portar-se de forma ativa, não
apenas através da atuação do Estado-Juiz, com revisão judicial de cláusulas abusivas, mas
produzindo normas que visem a coibir o oferecimento leviano de crédito. O Executivo, por
estipuladas em lei.
financeira, alertando que o crédito irresponsável constitui-se em algo perigoso, tais quais as
Outra medida interessante também seria uma política legislativa que instituísse a
obrigatoriedade do ensino de educação financeira nas escolas, tendo em vista que a idade
objetiva, para promoção da função social do contrato foi um caso envolvendo o cantor Zeca
92
LEONARDI, Felipe Raminelli. As operações econômicas em mercado e a realidade da liberdade contratual.
In: HIRONAKA, Giselda; TARTUCE, Flávio (Coords). Direito contratual: temas atuais. p. 306.
93
Nesse sentido, também ROCHA, Amélia Soares da; FREITAS, Fernanda Paula Costa de. O
superendividamento, o consumidor e a análise econômica do Direito. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2564,
9 jul. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/16949>. Acesso em: 27 maio 2013.
60
cervejaria (a qual comercializava a cerveja Nova Schin), o sambista celebrou outro contrato,
com uma cervejaria concorrente da primeira contratante, desta feita para promoção da Cerveja
Brahma, onde entoou o seguinte verso: “fui provar outro sabor, eu sei. Mas não largo meu
amor, voltei.”
Nesse caso, temos uma hipótese de ofensa à boa-fé objetiva, além da quebra de
contrato, podendo essa última ser punida por meio de cláusula penal, caso haja. A questão
mais marcante nesse fato é que, segundo as regras de boa-fé objetiva, jamais a cervejaria
O contrato tem uma função social interna, segundo a qual os contratantes devem
comporta-se com lealdade recíproca. É o que se subentende dos chamados deveres anexos,
que, mesmo não estando expressos no contrato, fazem parte de um conjunto de princípios
da proposta constitucional de uma sociedade justa e solidária, nos termos do art. 3º, I da
Constituição Federal.
danos morais e materiais causados à cervejaria com quem primeiro pactuou contrato de
publicidade.
Mas essa situação desperta também outro questionamento: a cervejaria que foi
prejudicada pela quebra de contrato não deveria ser indenizada também pela concorrente que
94
ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no direito civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 80.
61
Nesse ponto, ressalte-se que a função social do contrato impõe que as partes através do
contrato não prejudiquem direitos da sociedade, mas também, de forma reflexiva, exige que a
Saliente-se, que os terceiros não estão vinculados aos termos da avença, em razão do
princípio da relatividade dos efeitos contratuais, princípio esse que (mesmo tendo sofrido
Junqueira Azevedo, nessa mesma linha, reforça que “os terceiros não podem se
anterior do devedor, celebra com esse avença posterior que inviabiliza a primeira com o
credor originário.
Nelson Rosenvald entende que a responsabilidade deve ser solidária entre o devedor e
o terceiro que inviabilizou o contrato.97 Entretanto, não concordamos com tal posicionamento,
95
NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 462.
96
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado.
Revista dos tribunais, v. 750, p.116. abr. 1998.
62
visto que a solidariedade não se presume, pois só pode decorrer da lei ou do contrato, termos
visto que o terceiro não faz parte do pacto original. Também não pode a solidariedade entre o
Assim, o prejudicado poderá ser indenizado (tanto pelo devedor quanto pelo terceiro
que participou desse descumprimento) em razão dos danos materiais e morais sofridos em
responsáveis.
O Código Civil, no art. 608, prevê a possibilidade de punição (com uma pena
pecuniária) para o terceiro que alicia o devedor a descumprir um contrato, inclusive, estipula
o valor da multa a ser paga pelo aliciador, tendo como parâmetro o montante econômico do
Tal art. 608 do Código Civil protege a função social do contrato no aspecto externo,
no que tange à obrigação dos terceiros, indicando que a função social externa do contrato é
uma via de mão dupla, impondo tanto o dever de o contrato respeitar a sociedade (v.g. tutela
dano, por meio de estipulação de uma cláusula penal, podendo ou não haver indenização
suplementar, conforme fique ou não estipulado em contrato essa possibilidade, conforme art.
416, parágrafo único do Código Civil. Tal norma ordinária configura-se como uma
constitucionalmente garantidos.
97
ROSENVALD, Nelson. A função social do contrato. In: HIRONAKA, Giselda; TARTUCE, Flávio (Coords.).
Direito contratual: temas atuais. São Paulo: Método, 2008. p. 107.
63
terceiro, o devedor poderá ou não responder além dos limites da cláusula penal, conforme o
for estipulado nesse sentido, presume-se que a cláusula penal abrange todos os prejuízos, ou
pelos prejuízos efetivamente comprovados, o que pode ser mais ou pode ser menos que o
A indenização deve ter como limite o dano efetivamente sofrido, a fim de evitar que o
dano ilícito reste impune. Assim, o artigo 608 do Código Civil serve como parâmetro mínimo
efetivamente causado.
Note-se que em relação ao terceiro não há qualquer negócio jurídico anterior limitando
o valor da indenização, diferentemente do que acontece entre as partes, por meio da cláusula
penal.
Como o credor não pode ser indenizado duas vezes pelo mesmo prejuízo, a
indenização haverá de ser partilhada entre o devedor e o terceiro, devendo haver a distribuição
do montante da indenização entre as partes pelo juiz, contudo, não havendo a possibilidade do
Portanto a boa-fé objetiva também se exige dos terceiros para com o contrato, durante
a sua vigência.
98
Neste sentido: ROSENVALD, Nelson. A função social do contrato. In: HIRONAKA, Giselda; TARTUCE,
Flávio (Coords.). Direito contratual: temas atuais. São Paulo: Método, 2008. p.108.
64
distribuidora, que consiste nas cores e logomarca da fornecedora, que são caracterizadas na
terceiros não exigem a extinção do contrato anterior, vendendo combustível para quem ainda
ofende o contrato, pois, apesar de estranho à relação contratual, o terceiro porta-se de forma
afrontosa para com à avença original, induzindo o posto de combustível à quebra da obrigação
para construir o imóvel, ficando esse bem como garantia hipotecária. Depois, o mesmo
prédio e recebe os valores das prestações mensais desses pretensos adquirentes, sem, contudo,
99
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado,
direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento, função social do contrato e responsabilidade
aquiliana do terceiro que contribui para inadimplemento contratual. In: Revista dos Tribunais , nº 750. São
Paulo: Revista dos Tribunais, abr. 1998, p. 113-120.
100
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 308. Segunda Seção. J. 30.03.2005. DJU. 25/04/2005 p. 384.
Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp. Acesso em : 15 ago. 2013.
65
perante o a instituição financeira não pode gerar efeitos contra os compradores do imóvel, ou
seja, o banco não poderá utilizar o direito de sequela decorrente da garantia hipotecária sobre
o imóvel contra os promitentes compradores do mesmo imóvel, pelo qual vêm pagando de
boa-fé, apesar de haver cláusula contratual prevendo a possibilidade de perda do imóvel pelos
do empreendimento.
parecer101, entende que o direito real de garantia (hipoteca previamente constituída) deve
citado doutrinador ressalta o caráter absoluto dos direitos reais, através de sua eficácia erga
autor defende ainda que o financiador (credor hipotecário), nessas hipóteses não estaria
consumidor adquirente, a natureza de risco da atividade bancária e ainda o dever que tem o
futuros prejuízos para o banco e para os consumidores que não deram causa à inadimplência
da construtora.
101
ALVIM, Arruda. Direito Privado. Vol. 1. In: Coleção Estudos e Pareceres II. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 169-226.
66
uma interpretação cada vez mais social do atual Código Civil, afastando a contratualidade
Noutro passo, com relação à boa-fé objetiva na fase pós-contratual, podemos citar o
Ainda nessa seara da exigência da boa-fé objetiva na fase pós-contratual podemos citar
a obrigatoriedade de o fornecedor manter uma conduta ética de resguardo quanto ao uso dos
dados pessoais fornecidos pelos consumidores, por ocasião da realização de negócios entre as
bancos de dados sobre consumidores, o que se verifica como uma ofensa ao direito
consumo, justamente pelo fato da exigência de boa-fé também existir nas relações ditas
paritárias.
Pela função interpretativa dos contratos, a boa-fé objetiva indica que a interpretação
dos contratos busque sempre o sentido mais próximo da honestidade e lealdade, entre as
Tal função da boa-fé objetiva é extraída do artigo 113 do Código Civil, o qual
estabelece que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do
tem por finalidade evitar o abuso de direito na relação contratual, diferenciando entre o
exercício regular e o irregular do direito previsto em uma avença. Essa função da boa-fé vem
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes.
criadora de deveres anexos à prestação principal. Tal função visa evitar comportamentos
incompatíveis com o contrato, embora que inexista regra contratual expressa, vedando uma
celebrado. Há certos comportamentos que em todos os casos são naturamente esperados dos
contratantes, por exemplo, lealdade, honestidade, cooperação e informação, dentre outros, são
102
TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no
novo Código Civil. In: FARIAS, Cristiano Chaves de (Coord.). Leituras Complementares de Direito Civil.
Salvador: Jus PODIVM, 2007, p.215.
68
tidos como deveres anexos que acompanham a boa-fé objetiva na busca pela consolidação da
Portanto, não resta dúvida de que há uma forte relação entre a boa-fé objetiva e a
função social do contrato, pois a conduta proba e leal do contratante é essencial para que o
contrato atinja sua finalidade, desenvolva sua função, atendendo a dignidade das partes e dos
autonomia privada. A nota mais marcante da função social do contato é, sem dúvida, sua
Um outro aspecto (o positivo) da autonomia da vontade deve ser ressaltado. Por essa
ótica, o Estado deve não apenas observar (não obstar) a autonomia da vontade, mas também
proteger essa mesma autonomia, através da intervenção estatal necessária para possibilitar a
liberdade de contratar não prejudique o próprio titular dessa liberdade, através da celebração
de negócios que venha a conduzir o contratante a uma condição de miserabilidade, por meio
103
MARTINS, Leonardo. Liberdade e estado constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa
relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012. p. 106 (nota de rodapé).
69
da lesão, o qual se vislumbra como um instrumento para conferir a função social interna do
avença.
prestação oposta.” for decorrente de “premente necessidade” de uma das partes. A outra
modalidade de lesão, segundo a dicção do art. 157 do Código Civil, seria quando a
contratantes.
social do contrato protege o direito fundamental à liberdade, pois quem celebra um contrato
por “premente necessidade” tem sua liberdade comprometida pela necessidade, dando
104
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Art. 157. Ocorre a lesão quando
uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente
desproporcional ao valor da prestação oposta. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm. Acesso em: 12. ago. 2013.
70
margem a suportar prestações desproporcionais, que não aceitaria em uma situação normal,
função social do contrato visa proteger o direito fundamental a igualdade, melhor dizendo, a
que uma das partes não tenha condições de aquilatar as reais dimensões da desproporção entre
as prestações poderá ser anulada, através da promoção da função social do contrato como
ideias que estão em sintonia com a função social do contrato tutelando os direitos
abertura de conta corrente de seu pai junto a uma instituição financeira, afiançando a dívida
contraída por seu pai até o imite de 100 mil marcos, acrescidos de juros e correção monetária.
Leonardo Martins aponta que o julgado destaca que a jovem, na época do contrato não
valor pelo qual se obrigou como fiadora. O citado doutrinador informa que a jovem ajuizou
uma ação declaratória de nulidade da cláusula de fiança, ação na qual restou sucumbente
perante a Corte Federal de Justiça (BGH). Daí então, após o esgotamento das vias ordinárias,
105
MARTINS, Leonardo. Liberdade e estado constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa
relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012. p. 107.
71
corroboram a tese de que a função social do contrato serve também para concretizar o direito
à liberdade e à igualdade.
protegida entre nós pelo instituto da “lesão”, na forma apresentada pelo art. 157 do Código
Civil, quando fala na desproporção entre a prestação assumida e a vantagem recebida que,
para a fiadora, foi inexistente, visto que o proveito não foi da fiadora e sim de seu pai. Neste
prestação oposta”.
contrato, por meio da ocorrência de lesão que compromete a igualdade contratual, ante a
106
MARTINS, Leonardo. Liberdade e estado constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa
relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012. p. 108.
72
autonomia privada, tem no Código Civil, art. 157, o instrumento da “lesão” como forma de
concretização dos direitos fundamentais à liberdade e à igualdade, nos casos em que houver
desproporção das prestações, seja por “necessidade premente”, seja por “ignorância” de uma
das partes.
Entretanto, essa liberdade tem se tornado algumas vezes danosa ao seu próprio titular, outras
Nesse contexto, a função social do contrato é útil para corrigir distorções decorrentes
exercida sem critérios pode retirar a função social do contrato. Dentre essas hipóteses, o
pensão;2) ajuste contratual simulado para prejudicar terceiro; 3) contratação que importe
sexual, contrabando ou imigração ilegal. Nessas situações, pode-se claramente perceber que
ocorre o desvio da finalidade original desses contratos, desvirtuando sua função social para
107
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 57/58.
73
jurídico vem sendo dotado de diversos instrumentos para coibir ou anular essas práticas e
ainda servir de orientação na interpretação dos pactos e até mesmos da própria lei.
Tartuce108 elenca alguns dispositivos do Código Civil que servem para orientar a
autonomia contratual, com o escopo de conduzi-la no eixo da função social. Entre os artigos
apontados estão o art. 426 do Código Civil, que veda negociação sobre herança de pessoa
viva, chamado de pacto sucessório ou pacta corvina. Também o art. 424 do CC, que veda, em
celebrado. Ainda o art. 166, II do CC, o qual estabelece a sanção de nulidade do negócio cujo
objeto for ilícito. Quanto a esse último artigo, entendo-o como um princípio geral, o qual é
Deve-se ter em mente que a função social do contrato não é incompatível com a
trocas recíprocas. Esse entendimento é também reforçado por Nelson Nery Jr109, o qual aduz a
Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, onde foi editado o Enunciado 23, o
“a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina
o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio,
quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à
dignidade da pessoa humana”.
108
TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de
2002. São Paulo: Método, 2007. p. 174/175.
109
NERY JÚNIOR, Nelson. Contratos no Código Civil: Apontamentos gerais. In: MARTINS FILHO, Ives
Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira; FRANCIULLI NETTO, Domingos (Coords.). O Novo Código
Civil: Estudos em homenagem ao professor Miguel Reale. São Paulo: LTr, 2003. p. 421.
74
Pode-se dizer que a autonomia privada atua dentro de espaços reservados pela
Constituição, de forma residual, preenchendo lugares não ocupados por outros princípios
entendem que o direito reserva espaços de liberdade para a autonomia privada. Tais espaços
entendida como algo exercido dentro dos limites impostos pelo ordenamento jurídico, em
Analisemos agora a relação da função social do contrato com outro princípio de direito
“dignidade” própria, cuja base (lógica) é o universal direito da pessoa humana a ter
direitos”113.
Conforme Kant (citado por Moraes), existem duas categorias de valores: o preço
(preis) e a dignidade (Würden). Enquanto as coisas têm preço, as pessoas têm dignidade.114
Será, então, desumano, ou contrário à dignidade humana, toda vez que a pessoa (sujeito de
110
CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2001.
p. 1231.
111
NALIM, Paulo. Do contrato: conceito pós moderno. Em busca de sua formulação na perspectiva civil-
constitucional. P. 173 e 255 apud COUTINHO, Aldacy Rachid. A autonomia privada: em busca da defesa dos
direitos fundamentais dos trabalhadores. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos
fundamentais e direito privado. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 171.
112
MORAES, Maria Celina Bodin de. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Coord.). Constituição direitos
fundamentais e Direito Privado. p. 115.
113
Ibid., p. 116.
114
Ibid., p.117.
75
ordem moral, ganhou reconhecimento jurídico, notadamente com a Declaração Universal dos
direitos humanos pelos regimes nazista e fascista, durante a Segunda Guerra Mundial.
Unidas, proclamou em seu artigo 1º: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade
e direitos.”
entre seus princípios que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade e são iguais perante a
lei”. A Lei Fundamental de Bonn (Alemanha, 1949) proclamou em seu art. 1, 1 que “A
estatais. Portugal estabeleceu em sua Constituição de 1976, em no art. 1º: “Portugal é uma
Também a Espanha, através da constituição Espanhola de 1978 adota, em seu art. 10, 1, a
dignidade da pessoa humana, dentre outros, como fundamento da ordem política e da paz
social.
Constituição Federal de 1988, pode ser utilizada como fundamento da função social do
contrato, principalmente em seu aspecto interno, ou seja, no dever das partes contratantes
tratarem-se reciprocamente com lealdade, evitando que o contrato seja instrumento para que
vertentes. Uma refere-se ao um aspecto negativo, ou seja, o respeito devido ao fim máximo
115
FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a
liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1996. p. 45/50.
76
desse princípio: a pessoa humana. Já o outro prisma pelo qual é enxergado esse princípio é o
lado positivo, prestacional, segundo o qual se deve proporcionar meios para que o indivíduo
Sobre essa faceta positiva da dignidade da pessoa humana, ensina Ana Paula
Barcelos116 que se deve reconhecer a exigibilidade judicial direta pelo menos das prestações
que formam o “conteúdo mínimo existencial”, formado pela educação fundamental, saúde
básica, assistência aos necessitados e acesso ao Judiciário, sem os quais diz não ser possível
No âmbito do contrato, a realidade brasileira convive com uma prática que desafia a
humano. É o que ocorre nas chamadas “pegadinhas”, em que o sujeito é exposto ao ridículo,
direito ao lazer dos telespectadores, bem como o direito ao livre exercício de atividade
vantagem pelo seu vexame, não retiram o caráter atentatório à dignidade da pessoa humana e
o contrato celebrado entre o produtor do programa e a vítima não deve servir de meio para
Nelson Rosenvald117 aduz que a liberdade do ser humano tem como limite a sua
própria dignidade, sendo essa um valor universal enquanto aquela é um valor individual, daí
porque a dignidade da pessoa humana seria irrenunciável. Nas palavras do próprio autor:
116
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: o Princípio da Dignidade
da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 105.
117
ROSENVALD, Nelson. A função social do contrato. In: HIRONAKA, Giselda; TARTUCE, Flávio
(Coords.). Direito contratual: temas atuais. São Paulo: Método, 2008. p. 93.
77
...a dignidade não pode ser aferida por padrões individuais, pois não basta que o
indivíduo seja livre, mas que pertença, por essência, à humanidade. Enquanto o
valor liberdade se conecta imediatamente com as nossas expectativas individuais, a
dignidade nos remete a tudo aquilo que concerne ao gênero humano.
Em decorrência disso, é certo afirmar, como Maria Celina Bodin de Moraes 118, que
todas as vezes que houver um conflito entre um direito de natureza patrimonial e um direito
de caráter existencial, este deve prevalecer, obedecendo ao sistema constitucional que elegeu
170 da Constituição Federal. Realiza-se a mudança de base, a qual se transfere do “ter” para o
“ser”.
Pode-se ainda dizer que o tripé de fundamento do direito privado: propriedade, família
e contrato, passam por uma nova ótica, deixando o prisma o patrimonial e individualista para
jurista alemão Dürig, segundo a qual o princípio da dignidade da pessoa humana restará
118
MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo
normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p.140.
119
MEIRELLES, Jussara. O ser e o ter na codificação civil brasileira: do sujeito virtual à clausura patrimonial.
In: FACHIN, Luiz Edson. (Coord.). Repensando fundamentos do Direito Civil brasileiro contemporâneo.
Rio de Janeiro: Renovar, 1988. p. 87/114.
120
NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa. Coimbra:
Coimbra Editora, 2004. p. 58.
78
ofendido toda vez que o indivíduo for injustificadamente reduzido à mera condição de objeto
O referido autor defende também que o próprio conteúdo da dignidade deve ser
determinado pelo titular dessa dignidade, uma vez que determinada conduta que possa ser
considerada atentatória à dignidade de uma pessoa, pode ser entendida consentida por outra,
que sugere ser algo aferível de forma objetiva, independente do conteúdo concebido pelo
conceituação elástica e que contém várias abordagens, conforme o prisma pelo qual seja
interdependência entre a dignidade da pessoa humana e a função social do contrato, uma vez
através da autonomia privada, ao mesmo tempo em que utiliza a dignidade da pessoa humana
como critério para impedir que a própria liberdade contratual do sujeito sirva de instrumento
para “coisificá-lo”, ou seja, fazer com que ele deixe de ser um fim em si mesmo e passe a ser
121
NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa. Coimbra:
Coimbra Editora, 2004. p.61.
122
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 3. ed. Tomo IV. Coimbra : Coimbra Editora. 2000. p.
180.
79
da função social do contrato, no que se refere à extensão dos pactos para atingir partes não
diretamente ligadas à avença original, mas muitas vezes, celebrantes de outro liame
Para Orlando Gomes123, “Os contratos coligados são queridos pelas partes contratantes
como um todo. Um depende do outro de tal modo que cada qual, isoladamente, seria
relacionados que podendo vincular pessoas diversas, podem bem fazer-lhes oponível um
contrato de que não fizeram parte. Varela125, por sua vez, destaca, entre as características dos
contratos coligados, o fato de que pactos individuais, mas não autônomos, estão vinculados
comparado:
123
GOMES, Orlando. Contratos. Atualizadores Antonio Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo de Crescenzo
Marino. Coord. Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 26ª Edição, 2007, p. 121.
124
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função social do contrato. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 147.
125
VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. Coimbra: Livraria Almedina, 1990. p.
281/284.
126
GODOY, op. cit., p. 147.
127
ROSENVALD, Nelson. As redes contratuais. Disponível em
<http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/as-redes-contratuais/7577>. Acesso em: 05.05.2013.
80
expressa do Código Civil, mas decorrem da autonomia privada que têm as partes para
estabelecerem contratos atípicos. Quanto à essa liberdade para celebração de contratos que
não estejam literalmente tipificados no Código Civil, o próprio Código disciplina ao menos
contratuais, entre as quais entendemos que estão incluídos os princípios instrutores lei civil
Dessa forma, estabelece o art. 425 do Código Civil: “É lícito às partes estipular
Tal dispositivo deve ter interpretação extensiva, considerando-se que, além das normas
gerais fixadas no Código Civil, a elaboração de contratos atípicos também deve observância
muitas vezes poderão dar contornos a essa liberdade contratual, de forma que em alguns
deverão ser realizados alguns ajustes contratuais, reequilibrando as partes na avença. Por fim,
deverá prevalecer sobre outra garantia fundamental, que, embora possa ser plenamente
oponível contra o Estado, não poderá em algumas hipóteses ser exigida em face do particular,
jurisprudência contém vários casos de aplicação dessa teoria para o fim de promover função
social ao contrato.
Comum e a Justiça do Trabalho, julgou um caso em que ocorriam dois contratos: o primeiro
81
consistia num contrato de trabalho, entre um jogador e um clube de futebol; o outro contrato
julgamento das ações referentes aos dois contratos, afirmando expressamente tratar-se de
então, o contrato de imagem como um pacto acessório, o qual deve ser analisado à luz da
O fato de poderem existir nos contratos coligados (como o próprio nome sugere) a
junção de vários tipos contratuais distintos gera a necessidade de se utilizar regras gerais que
sirvam para resolver problemáticas em razão da falta de regra expressa que se aplique a todos
função social dos contratos, bem como para os fins sociais da norma e do bem comum.
gerais para solucionar controvérsias surgidas a partir de contratos coligados não se trata do
uso de casuísmos sem critérios ou (como diz o autor) “criar solução jurídica ad hoc para um
problema isolado”, mas sim se deve atentar que “essa concretização é feita sempre a partir
128
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Conflito de Competência. Clube esportivo. Jogador de futebol.
Contrato de trabalho. Contrato de imagem. Celebrados contratos coligados, para prestação de serviço como atleta
e para uso da imagem, o contrato principal é o de trabalho, portanto, a demanda surgida entre as partes deve ser
resolvida na Justiça do Trabalho. Conflito conhecido e declarada a competência da Justiça Trabalhista. CC
34504, Luís Mário Miranda da Silva e Juízo da 53ª Vara do Trabalho de São Paulo – SP. Rel. p/ac. Min. Ruy
Rosado de Aguiar, Brasília-DF. j. 12.03.2003, DJU 16.06.2003. Disponível em:
http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=CC+34504&b=ACOR&thesau
rus=JURIDICO#DOC4. Acesso: 29 jun 2013.
129
PENTEADO, Luciano de Camargo. Efeitos contratuais perante terceiros, São Paulo: Quartier Latin,
2007. p. 478.
82
encontrarem três ou mais sujeitos, de contratos diversos, como, por exemplo, na venda com
entre uma loja e o adquirente do bem) e outro contrato de empréstimo (celebrado entre o
adquirente do bem e uma instituição financeira), funcionando o bem adquirido como garantia
do financiamento.
jurisprudência do Superior tribunal de Justiça tem entendido que um não é acessório do outro,
A rede contratual pode ser entendida em torno da marca de um produto, sendo a marca
o elemento comum de causa da rede, que em torno dela se estabelece. Assim, vários contratos
130
VASCONCELOS, Pedro Pais de. Contratos Atípicos, Coimbra: Almedina, 1995. p. 239.
131
KONDER, Carlos Nelson. Contratos conexos: grupos de contratos, redes contratuais e contratos coligados.
Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 113.
132
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. DIREITO CIVIL. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE
VEÍCULO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. CONTRATO ACESSÓRIO. CÓDIGO DE
DEFESA DO CONSUMIDOR. DEFEITO NO PRODUTO. RESPONSABILIDADE DO FORNECEDOR.
1. O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras (Súmula n. 297), mas apenas em
relação aos serviços atinentes à atividade bancária. Por certo que o banco não está obrigado a responder por
defeito de produto que não forneceu tão somente porque o consumidor adquiriu-o com valores obtidos por meio
de financiamento bancário. Se o banco fornece dinheiro, o consumidor é livre para escolher o produto que lhe
aprouver. No caso de o bem apresentar defeito, o comprador ainda continua devedor da instituição financeira.
2. Não há relação de acessoriedade entre o contrato de compra e venda de bem de consumo e o de financiamento
que propicia numerário ao consumidor para aquisição de bem que, pelo registro do contrato de alienação
fiduciária, tem sua propriedade transferida para o credor. 3. Recurso especial conhecido e provido. REsp
1014547/DF, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 25/08/2009, DJe
07/12/2009. Disponível em:
http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=financiamento+ve%EDculo++
defeito&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO#. Acesso em: 13 ago 2013.
83
podem se formar em torno de uma marca, como, por exemplo, os contratos de franquia,
distribuição e venda.
considerando a marca como causa comum de uma rede de contratos, bem como atentando
considerando ainda que, se as filiais brasileiras beneficiam-se da fama mundial dos produtos
responsabilidade civil contratual) para atingir fabricante nacional de um produto que foi
Sobre a questão deve ser ressaltado, como foi no decorrer do voto do relator bem
como nos votos dos demais ministros, que a globalização amenizou as fronteiras, tendo a
133
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. DIREITO DO CONSUMIDOR. FILMADORA ADQUIRIDA NO
EXTERIOR. DEFEITO DA MERCADORIA. RESPONSABILIDADE DA EMPRESA NACIONAL DA
MESMA MARCA ("PANASONIC"). ECONOMIA GLOBALIZADA. PROPAGANDA. PROTEÇÃO AO
CONSUMIDOR. PECULIARIDADES DA ESPÉCIE. SITUAÇÕES A PONDERAR NOS CASOS
CONCRETOS. NULIDADE DO ACÓRDÃO ESTADUAL REJEITADA, PORQUE SUFICIENTEMENTE
FUNDAMENTADO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO NO MÉRITO, POR MAIORIA. I - Se a
economia globalizada não mais tem fronteiras rígidas e estimula e favorece a livre concorrência, imprescindível
que as leis de proteção ao consumidor ganhem maior expressão em sua exegese, na busca do equilíbrio que deve
reger as relações jurídicas, dimensionando-se, inclusive, o fator risco, inerente à competitividade do comércio e
dos negócios mercantis, sobretudo quando em escala internacional, em que presentes empresas poderosas,
multinacionais, com filiais em vários países, sem falar nas vendas hoje efetuadas pelo processo tecnológico da
informática e no forte mercado consumidor que representa o nosso País. II - O mercado consumidor, não há
como negar, vê-se hoje "bombardeado" diuturnamente por intensa e hábil propaganda, a induzir a aquisição de
produtos, notadamente os sofisticados de procedência estrangeira, levando em linha de conta diversos fatores,
dentre os quais, e com relevo, a respeitabilidade da marca. III - Se empresas nacionais se beneficiam de marcas
mundialmente conhecidas, incumbe-lhes responder também pelas deficiências dos produtos que anunciam e
comercializam, não sendo razoável destinar-se ao consumidor as consequências negativas dos negócios
envolvendo objetos defeituosos. IV - Impõe-se, no entanto, nos casos concretos, ponderar as situações existentes.
V - Rejeita-se a nulidade arguida quando sem lastro na lei ou nos autos. REsp 63981/SP, Plínio Gustavo Prado
Garcia e Panasonic do Brasil Ltda. Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Brasília-DF. j. 11.04.2000. DJ
20/11/2000. Disponível em:
http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=63981&b=ACOR&thesaurus=
JURIDICO#DOC3. Acesso em: 29 jun. 2013.
84
aquisição de produtos no exterior se tornado muito mais fácil com o advento dos instrumentos
de informática voltados para o comércio eletrônico. Outro ponto que também foi
individualizado nos votos foi a questão da imagem comum (através da mesma marca e
propaganda), gerando um benefício mútuo para a empresa nacional e para estrangeira. Dessa
forma, foi entendido no referido julgado que os riscos da atividade também devem ser
prejudicada.
A par do exemplo acima, pode-se dizer que a função social do contrato não elimina a
relatividade dos efeitos contratuais, mas ameniza esse princípio, em alguns casos, como bem
A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui
cláusula geral, a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato
em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito.134
Essa extensão dos efeitos do contrato para além das partes foi bem aplicada em
julgado do Superior Tribunal de Justiça, citado por Luciano Camargo Penteado, no qual o
diretamente da vítima contra a seguradora, embora essas partes não tenham celebrado
fundamenta sua decisão com base expressamente na função social do contrato, como se pode
observar.
134
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de (Coord). Jornadas de direito civil I, III, IV e V: enunciados
aprovados. Disponível em: http://www.jf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-
v-jornada-de-direito-civil/compilacaoenunciadosaprovados1-3-4jornadadircivilnum.pdf/view. Acesso em: 04
jun. 2013.
85
para os efeitos da proteção que lhe devida, a denominadas vítimas do acidente de consumo, ou
seja, pessoas que não celebraram um contrato de consumo, mais que foram atingidas por um
reconheçamos que tal regra se aplica de forma mais precisa aos casos de vício pelo fato do
Ainda sobre redes contratuais, confira-se o que foi abordado no tópico 4.2 supra,
quando falamos da boa-fé e trouxemos a lume a questão da Súmula 308 do STJ, a qual analisa
oferecida pelo construtor perante a instituição financeira não tem eficácia contra aqueles que
135
REsp. 444.716/BA, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 11.05.2004. apud PENTEADO, Luciano de Camargo.
Efeitos contratuais perante terceiros, São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 60.
136
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras
providências. Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento.
Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078compilado.htm. Acesso em: 02 abr 2013.
86
Por fim, nos contratos coligados, deve-se, quando necessário, relativizar o relativismo
contratual, como forma de se conferir função social ao contrato, nas hipóteses em que a
simples aplicação das regras dos contratos típicos isoladamente considerados não for
Outra aplicação prática da função social do contrato diz respeito à sua relação com o
aproveitamento, no que for possível, do contrato eivado de algum vício, com vista a se atingir
Nessa linha, Godoy, comentando sobre a conservação dos contratos e sua relação com
Deve-se, pelo papel que desempenha nas relações sociais, procurar o máximo de
eficácia dessa que, afinal, é forma de circulação de riquezas mas, primeiro até,
instrumento da promoção da dignidade humana e do solidarismo social – o
contrato137.
deles é o artigo 170 do CC/02, no qual está disposto que “Se, porém, o negócio jurídico nulo
contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir
137
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função social do contrato. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 167.
138
Cf. BUSSATTA, Eduardo Luiz. Princípio da conservação dos contratos. In: HIRONAKA, Giselda;
TARTUCE, Flávio (Coords). Direito contratual: temas atuais. São Paulo: Método, 2007. p. 151.
87
foi nominalmente qualificado. Assim, conforme Emílio Betti, “um negócio, embora inválido,
pode, não obstante, conservar alguns efeitos correspondentes ao tipo legal de que ele faz
parte”.139
No direito comparado, segundo Bussatta, o Código Civil alemão (BGB) de 1900 foi o
seguinte redação:
Além do art. 170 do Código Civil, em outros momentos o Código atua em prol da
conservação dos contratos, como se pode perceber, por exemplo, no art. 144: “O erro não
Outra regra do Código Civil que também vem inspirada pelo princípio da conservação
dos contratos é o art. 157, § 2º, o qual dispõe que: “Não se decretará a anulação do negócio,
proveito”.
Podemos ainda citar, dentre outros, o artigo 479 do Código Civil, segundo o qual: “A
139
BETTI, Emílio. Teoria Geral do Negócio Jurídico. Trad. Fernando Miranda. Coimbra: Coimbra Ed., 1998.
p. 57.
140
BUSSATTA, Eduardo Luiz. Princípio da conservação dos contratos. In: HIRONAKA, Giselda; TARTUCE,
Flávio (Coords). Direito contratual: temas atuais. São Paulo: Método, 2007. p. 152.
88
do contrato. Com relação à conservação do contrato por meio desse art. 479, Daniel Amorim
Assumpção Neves141 levanta questão de ordem processual, apontando que, nesse artigo, a lei
material criou uma hipótese de pedido contraposto, como instrumento para se pleitear a
conservação do contrato. O doutrinador explica que esse instrumento deverá ser manejado
pelo réu em ação na qual o autor pleiteie resolução contratual, fundada na onerosidade
excessiva da obrigação.
Outra norma que visa à conservação dos contratos é aquela estabelecida no art. 184 do
Tal norma traz uma espécie de conservação contratual, denominada pela doutrina de
redução contratual e, conforme José Ascensão, “sacrifica-se a parte doente para salvar a
restante” 142.
contratual, como se pode observar na redação do art. 51, § 2º, o qual diz que “a nulidade de
uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência,
apesar dos esforços de integração, decorrer um ônus excessivo a qualquer das partes”.
juros ou cláusula penal fixados acima dos limites legais, necessitando de uma intervenção
141
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Pretensão do réu de manter o contrato com modificação de suas
cláusulas diante de pedido do autor de resolução por onerosidade excessiva – pedido contraposto previsto pela
lei material (art. 479, CC). In: HIRONAKA, Giselda; TARTUCE, Flávio (Coords). Direito contratual: temas
atuais. São Paulo: Método, 2007, p. 709/713.
142
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil. Teoria Geral: acções e factos jurídicos. v. 2, Coimbra:
Coimbra Editora, 1997. p. 475.
89
Civil faz clara relação entre a função social do contrato e o princípio da conservação dos
contratos quando diz que “função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código
constitucional trazida no art. 5º, XXXVI da Constituição Federal de 1988, segundo a qual a
lei nova não prejudicará o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido145.
perfeito contra a lei nova, milita no sentido principiológico de estabilidade das relações e na
no art. 1.455, cuja tradução livre exposta por Flávio Tartuce diz que “o contrato não pode ser
Pela teoria do adimplemento substancial, o credor não pode resolver o contrato por
contrato. Tal teoria visa, sem dúvida, à implementação da função social do contrato,
143
BUSSATTA, Eduardo Luiz. Princípio da conservação do contrato. In: HIRONAKA, Giselda Maria
Fernandes Novaes; TARTUCE, Flávio (Coords.). Direito contratual: temas atuais. São Paulo: Método, 2007. p.
157.
144
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de (Coord). Jornadas de direito civil I, III, IV e V: enunciados
aprovados. Disponível em <http://www.jf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-
v-jornada-de-direito-civil/compilacaoenunciadosaprovados1-3-4jornadadircivilnum.pdf/view>. Acesso em: 04
jun. 2013.
145
TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de
2002. São Paulo: Método, 2007. p. 135.
146
TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de
2002. São Paulo: Método, 2007. p. 135.
90
instrumentalizada pela boa-fé objetiva, segundo a qual não faz sentido em razão de um
fiduciária em garantia. Nesses casos, são realizados contratos de financiamento para aquisição
de veículos, os quais são dados em garantia pelo inadimplemento das prestações. Por vezes,
da liminar de busca e apreensão. Passados cinco dias após o cumprimento da liminar de busca
banco.
147
BUSSATTA, Eduardo Luiz. Resolução dos contratos e teoria do adimplemento substancial. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 2008. p. 74.
148
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. ALIENAÇÃO
FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. DECRETO-LEI N. 911/1969. ALTERAÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI N.
10.931/2004. PURGAÇÃO DA MORA E PROSSEGUIMENTO DO CONTRATO. IMPOSSIBILIDADE.
NECESSIDADE DE PAGAMENTO DO TOTAL DA DÍVIDA (PARCELAS VENCIDAS E VINCENDAS). 1)
A atual redação do art. 3º do Decreto-Lei n. 911/1969 não faculta ao devedor a purgação da mora nas ações de
busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente. 2) Somente se o devedor fiduciante pagar a integralidade da
dívida, no prazo de 5 (cinco) dias após a execução da liminar, ser-lhe-á restituído o bem, livre do ônus da
propriedade fiduciária. 3) A entrega do bem livre do ônus da propriedade fiduciária pressupõe pagamento
integral do débito, incluindo as parcelas vencidas, vincendas e encargos. 4) Inexistência de violação do Código
de Defesa do Consumidor. Precedentes. 5) Recurso especial provido. (REsp 1287402/PR, Rel. Ministro
MARCO BUZZI, Rel. p/ Acórdão Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em
03/05/2012, DJe 18/06/2013). Disponível em:
91
prazo legal, realize a purgação da mora, com o pagamento das parcelas vencidas. Segundo
esses julgados, a cláusula de vencimento antecipados das parcelas vincendas afronta o artigo
54, § 2º do código de Defesa do Consumidor, uma vez que não oferece a possibilidade de
vencidas.
Essa última corrente é a que nos parece correta, uma vez que mais afinada com a
contratual como uma das alternativas oferecidas ao consumidor e não como a única solução
prestações vencidas e encargos, está prevista no art. 401 do Código Civil. Tudo isso, indica
uma nova sistemática, que privilegia a continuidade do contrato, como forma de fomentar sua
função social.
Em outros casos, nos quais houve pagamento quase integral do contrato, seguido de
http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=princ%EDpio+da+conserva%
E7%E3o+do+contrato&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO#DOC2. Acesso em: 13 ago 2013.
149
AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO.
PURGA DA MORA. CLÁUSULA DE VENCIMENTO ANTECIPADO DA DÍVIDA. PURGA DA MORA.
Realizado o pagamento ou depósito das parcelas vencidas e das que forem vencendo no decorrer da instrução
processual, há a purgação da mora. CLÁUSULA DE VENCIMENTO ANTECIPADO DA DÍVIDA A cláusula
que prevê o vencimento antecipado da dívida independentemente de qualquer notificação judicial ou
extrajudicial é nula, pois é abusiva, contrariando o disposto no artigo 54, § 2º, do CDC. AGRAVO DE
INSTRUMENTO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO (...). TJ-RS - AI: 70051625861 RS, Relator: Roberto
Sbravati, Data de Julgamento: 22/10/2012, Décima Quarta Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça
do dia 23/10/2012. Disponível em: http://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22533715/agravo-de-instrumento-
ai-70051625861-rs-tjrs. Acesso em: 13 ago 2013.
92
apreensão do veículo. Na hipótese, trata-se do Resp 272739/MG, que teve como relator o
Min. Ruy Rosado de Aguiar, onde foi confirmada decisão que indeferiu liminar de busca e
dívida pelos meios judiciais cabíveis. A decisão ainda salientou que a extinção do contrato em
geralmente é realizado pelo prazo três a cinco anos, espera-se, segundo a premissa da boa-fé
objetiva, que haja uma opção que concilie a cobrança da dívida com a conservação do
contrato, garantindo, assim, um aspecto da função social do contrato, que é o alcance de sua
eventual vício formal; o segundo, quando da aplicação dessas normas, procurando preservar o
nos contratos denominados por Cláudia Lima Marques de “contratos cativos de longa
150
STJ, REsp 272.739/MG, 4ª Turma, rel. Min. Ruy Rosado , j. 1º-3-2001, DJU 2-4-2001.
151
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva,
2002. p. 66-67.
93
duração”152. Entre esses, se pode verificar os contratos de: seguro, plano de saúde,
previdência privada, água, luz, saneamento básico, financiamento da casa própria, educação
particular, etc. Em tais contratos, encontra-se a característica comum do prazo muito longo
Muito desses pactos são ainda caracterizados pela premiação do aderente, à medida
que se torna mais antigo como cliente, como, por exemplo, nos contratos de seguros, nos
contrato, ou por vezes, pela essencialidade dos bens envolvidos, visto que os mesmos
153
relacionam-se com “situações existenciais” do ser humano e, portanto, ligados à sua
dignidade, deve-se conferir a esses contratos uma “tutela qualitativamente diversa”154, com
Tal tutela é possibilitada pela mitigação das cláusulas que imponham obrigações
privada é tutelada por um dirigismo estatal que tem a finalidade de verificar a efetivação da
evidente na Lei 9.656/1998, a qual dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à
saúde. Nessa norma legal, em seu art. 13, encontram-se vários instrumentos para conservação
do contrato, como a proibição de qualquer taxa para renovação de contrato, bem como a
152
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações
contratuais. 5.ed. São Paulo:RT, 2006. p. 97.
153
BUSSATTA, Eduardo Luiz. Princípio da conservação do contrato. In: HIRONAKA, Giselda Maria
Fernandes Novaes; TARTUCE, Flávio (Coords.). Direito contratual: temas atuais. São Paulo: Método, 2007. p.
167.
154
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional; trad. de: Maria
Cristina De Cicco. 1 ed., rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 34.
94
dos critérios para a rescisão unilateral do contrato e ainda a proibição de rescisão durante
REsp 1073595/MG155, onde se entendeu que o aumento das parcelas de seguro de vida,
mediante a simples comunicação ao segurado por meio de notificação com poucos meses de
valor das prestações, conforme novo cálculo atuarial, deve ser realizado de forma escalonada
suave em seu orçamento e uma melhor adaptação, visto que já viera pagando na forma do
155
DIREITO DO CONSUMIDOR. CONTRATO DE SEGURO DE VIDA, RENOVADO
ININTERRUPTAMENTE POR DIVERSOS ANOS. CONSTATAÇÃO DE PREJUÍZOS PELA
SEGURADORA, MEDIANTE A ELABORAÇÃO DE NOVO CÁLCULO ATUARIAL. NOTIFICAÇÃO,
DIRIGIDA AO CONSUMIDOR, DA INTENÇÃO DA SEGURADORA DE NÃO RENOVAR O CONTRATO,
OFERECENDO-SE A ELE DIVERSAS OPÇÕES DE NOVOS SEGUROS, TODAS MAIS ONEROSAS.
CONTRATOS RELACIONAIS. DIREITOS E DEVERES ANEXOS. LEALDADE, COOPERAÇÃO,
PROTEÇÃO DA SEGURANÇA E BOA FÉ OBJETIVA. MANUTENÇÃO DO CONTRATO DE SEGURO
NOS TERMOS ORIGINALMENTE PREVISTOS. RESSALVA DA POSSIBILIDADE DE MODIFICAÇÃO
DO CONTRATO, PELA SEGURADORA, MEDIANTE A APRESENTAÇÃO PRÉVIA DE EXTENSO
CRONOGRAMA, NO QUAL OS AUMENTOS SÃO APRESENTADOS DE MANEIRA SUAVE E
ESCALONADA. 1. No moderno direito contratual reconhece-se, para além da existência dos contratos
descontínuos, a existência de contratos relacionais, nos quais as cláusulas estabelecidas no instrumento não
esgotam a gama de direitos e deveres das partes. 2. Se o consumidor contratou, ainda jovem, o seguro de vida
oferecido pela recorrida e se esse vínculo vem se renovando desde então, ano a ano, por mais de trinta anos, a
pretensão da seguradora de modificar abrutamente as condições do seguro, não renovando o ajuste anterior,
ofende os princípios da boa fé objetiva, da cooperação, da confiança e da lealdade que deve orientar a
interpretação dos contratos que regulam relações de consumo. 3. Constatado prejuízos pela seguradora e
identificada a necessidade de modificação da carteira de seguros em decorrência de novo cálculo atuarial,
compete a ela ver o consumidor como um colaborador, um parceiro que a tem acompanhado ao longo dos anos.
Assim, os aumentos necessários para o reequilíbrio da carteira têm de ser estabelecidos de maneira suave e
gradual, mediante um cronograma extenso, do qual o segurado tem de ser cientificado previamente. Com isso, a
seguradora colabora com o particular, dando-lhe a oportunidade de se preparar para os novos custos que
onerarão, ao longo do tempo, o seu seguro de vida, e o particular também colabora com a seguradora,
aumentando sua participação e mitigando os prejuízos constatados. 4. A intenção de modificar abruptamente a
relação jurídica continuada, com simples notificação entregue com alguns meses de antecedência, ofende o
sistema de proteção ao consumidor e não pode prevalecer. 5. Recurso especial conhecido e provido. REsp
1073595/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23/03/2011, DJe
29/04/2011. Disponível em:
http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=contrato+cativo+longa+dura%
E7%E3o+&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO#DOC2. Acesso em: 14 ago. 2013.
95
contratual deve ser sempre precedida instrumentos que visem à manutenção ou a mudança
gradual do contrato, a fim de evitar prejuízo desarrazoado daquele que mais sofre com o fim
DEFESA DO CONSUMIDOR
A função social do contrato, após ter recebido sua base de valores diretamente da
que o contrato, máxime nas relações de consumo, deve conduzir à sociabilidade e à proteção
capítulo afeto aos “direitos e deveres individuais e coletivos”, mais precisamente no artigo 5º,
inciso XXXII, ser dever do Estado, “promover, na forma da lei, a defesa do consumidor”,
destacando-se ainda a regra esculpida no artigo 170, quando a Carta Magna, tratando da
e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social”, sendo um de seus “princípios” “a defesa do consumidor” (art. 170, V da CF).
relações.
96
normas, mas em um instrumento para o exercício da cidadania, visto que além de ditar normas
igualdade nas contratações; a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, bem como
facilitação da defesa dos seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova no processo
verbis:
evidenciar dos grandes grupos: a) o grupo das normas e leis das mais variadas fontes e tipos,
não apenas as do Código; b) o grupo dos instrumentos institucionais, como, por exemplo, a
156
FILOMENO, José Geraldo Brito. Curso Fundamental de Direito do Consumidor, São Paulo: Ed. Atlas,
2007. p. 65.
97
Comunidade Econômica Européia, não tinha como preocupação principal a função social dos
contratos. Nesse tempo, o objetivo do direito do consumidor era evitar regras díspares que
Nesse sentido, na Comunidade Econômica Européia dos anos 80, a função social do
Mas, nos Estados Unidos, bem antes, em 1911, no campo jurisprudencial, podemos
ilustrar a preocupação com a função social do contrato em relação de consumo, através uma
decisão proferida pelo juiz norte americano Benjamim Cardoso, no caso MacPherson vs.
Buick Motor Co. Na ocasião, o magistrado julgou procedente uma ação de indenização, em
razão de acidente sofrido pelo autor da ação (adquirente do automóvel), motivado por defeito
no carro fabricado pela ré. A defesa alegou que não possuía vínculo contratual com o autor da
157
GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do
anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 19.
158
RIBEIRO, Joaquim de Sousa, Direito dos contratos e regulação do
mercado, In: Direito dos contratos. Estudos. Coimbra, 2007, p. 212.
159
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 65.
98
consumo, sob o fundamento de que “sobre o produtor recaía um dever de diligência para
referentes à relação contratual, que mais tarde iriam ser abraçados pelo Código Civil de 2002,
Essa afirmação pode ser confirmada pelo cotejo de vários artigos do Código
constitucionais, entre tais dispositivos, podemos citar o art. 4º, III, do CDC161.
dignidade da pessoa humana, o qual é um dos fundamentos da República, conforme art. 1, III
(art. 170, CF/88), dentre os quais podemos destacar o mandamento constitucional de que a
ordem econômica busque a conformidade com “os ditames da justiça social” (art. 170,
caput).
quais o art. 4º, III do CDC busca viabilizar, está a função social da propriedade (art. 170, III
da CF), a qual pode ser entendida como um dos fundamentos constitucionais da função social
do contrato, visto que a propriedade é, em sua maioria, transferida por meio do contrato,
160
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função social do contrato. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 145.
161
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras
providências. Art. 4º A Política Nacional de Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das
necessidades dos consumidores, o respeito a sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses
econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de
consumo, atendidos os seguintes princípios: (...) III - harmonização dos interesses dos participantes das relações
de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e
tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição
Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores. Diário Oficial
da União, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078compilado.htm. Acesso em: 14 ago. 2013.
99
exceto em relação á propriedade adquirida por meio da usucapião, a qual se caracteriza por
Ademais, ressalte-se que o Código do Consumidor, na parte final do art. 4º, III,
infere-se tal princípio do sistema constitucional como um todo, tendo esse valor também
parte final do CDC) percebe-se que tal preceito decorre do princípio constitucional da
acepção de que a função social do contrato visa evitar que o contrato sirva de meio para
ofensa a terceiros, seja individualmente, seja coletivamente, como nos casos de ofensa a
direitos difusos163.
Consumidor, está também formada pela preocupação com a ética interna do contrato, através
162
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 66-69.
cf. SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no Código do Consumidor e a defesa do
fornecedor. 5. ed. São. Paulo: Saraiva, 2010. p. 277.
163
THEODORO JÚNIOR. Op. Cit. p. 68.
100
da conduta leal entre os contratantes, inclusive porque o CDC faz menção expressa à
dignidade humana (art. 4º, caput), boa-fé e equilíbrio nas relações (art. 4º, III do CDC), as
quais são cláusulas gerais ou preceitos estabelecidos para assegurar a função social do
contrato, conforme diz o art. 2.035, parágrafo único164 do Código Civil, também na relação
interna do contrato.
e no Código Civil.
dentre outras formas, através do instituto da lesão, o qual exige, contudo, que além da
desproporção entre as prestações, também ocorra uma das duas situações descritas no art. 157
do Código Civil165, quais sejam, uma premente necessidade da parte prejudicada ou a sua
inexperiência.
Tal regime diferenciado justifica-se em razão da relação tida a priori como paritária
alteração do contrato, quando no caso concreto se verificar uma situação que configure uma
ou da ignorância desse.
abusiva e poderá ser rechaçada judicialmente, toda vez que houver desproporção entre as
164
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Art. 2.035. Parágrafo único.
Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este
Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11
jan. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm. Acesso em:
12. ago. 2013.
165
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Art. 157. Ocorre a lesão quando
uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente
desproporcional ao valor da prestação oposta. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm. Acesso em: 12. ago. 2013.
101
prestações e onerosidade excessiva para o consumidor, nos termos do art. 6º, V do Código de
consumo166.
consumidor, uma eventual a conduta maldosa realizada pelo próprio consumidor contra o
fornecedor haverá de ser reprimida com base na boa-fé objetiva, segundo os ditames do art. 4º
privada.
anulação de cláusula contratual abusiva, conforme exposto acima, são exemplos de utilização
da função social do contrato na tutela interna do contrato ( função social interna do contrato),
pela qual se exige uma conduta leal de um contratante para com o outro, com fundamento na
Noutro passo, a partir de agora, analisaremos outra tutela exercida pelo Código de
Defesa do Consumidor, a qual diz respeito à função social do contrato em relação aos efeitos
166
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras
providências. Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) V - a modificação das cláusulas contratuais que
estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem
excessivamente onerosas; Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078compilado.htm. Acesso em: 14 ago. 2013.
102
que as avenças de consumo podem causar à terceiros que não celebraram diretamente o pacto.
Para melhor vislumbramos essa perspectiva da função social do contrato nas relações
quais foram descritos respectivamente no art. 2º, caput; art. 2º, parágrafo único; art. 17 e art.
29167.
O primeiro conceito de consumidor trazido pelo Código diz respeito ao que a doutrina
Tal conceito de consumidor está relacionado com a função social interna do contrato, uma vez
contrato, pois regulam a proteção dos chamados consumidores por equiparação também
serviço do fornecedor, mas que acabaram sendo envolvidos por efeitos indiretos de uma
Voltando ao primeiro conceito de consumidor, cabe enfatizar que o texto legal do art.
2º, ao prescrever: “... aquele que adquire...”, refere-se à aquisição em seu sentido mais amplo
possível, não se cogitando no presente texto normativo sobre exigência de capacidade civil do
adquirente como condição de validade do ato de consumo. Assim, uma pessoa plenamente
167
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras
providências. Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como
destinatário final. Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que
indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo; Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se
aos consumidores todas as vítimas do evento; Art. 29. Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se
aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas. Diário Oficial da
União, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078compilado.htm. Acesso em: 14 ago. 2013.
103
incapaz, uma criança, por exemplo, pode praticar ato de consumo. Nesse sentido, é a ressalva
do professor José Carlos de Oliveira, in verbis: “A aquisição é tomada em sentido amplo não
único do CDC), aqui encontramos o primeiro tipo de consumidor equiparado, o qual milita na
linha da função social do contrato no aspecto externo. Refere-se o dispositivo acima também à
oportunidade conferida pelo legislador à coletividade de consumidores para que essa possa
também de forma conjunta buscar a tutela jurisdicional nas lides de consumo, sendo para
direitos garantidos ao consumidor individual, desde que essa querela coletiva esteja
Ressalte-se também com relação a esse parágrafo único do artigo 2º, a idéia de
legitimação coletiva nas lides de consumo, o que é corroborado pela dicção do art. 81 do
legislador, alcançar a coletividade de pessoas cujos interesses ou direitos são afetados pelo
publicidade falaz, (grupo que se constitui numa coletividade de pessoas, ainda que
anunciante.
168
OLIVEIRA, José Carlos. Código de Proteção e defesa do consumidor: doutrina, jurisprudência, legislação
complementar. 2 ed., Leme: LED, 1999. p. 12.
104
eventum periculum. É suficiente que o anúncio seja apto para induzimento ao erro e restará
protegidos contra a publicidade enganosa, nos termos art. 6.º, IV, do CDC e também contra a
pode concluir da combinação dos arts. 220, II e 221, IV da Constituição Federal. Nessas
hipóteses relativas à propaganda, podemos dizer que há uma aplicação da função social do
Assemelha-se o CDC, nesse ponto, à instituição penal dos crimes de mera conduta,
estampados no Código Penal, onde o agente responde por sua conduta maléfica,
Note-se que aqui não há necessidade do atendimento dos critérios do artigo 2º, caput.
obrigatoriedade (em alguns casos) que esse consumidor equiparado adquirira ou sequer utilize
contratados por seu pai, o dependente de plano de saúde, etc., todos, embora não pactuando
qualquer contrato de consumo, intervêm na relação, fazendo jus à proteção consumerista, nos
qual efetivamente não tomaram parte. É a vítima do evento, acontecimento esse conhecido na
Ocorre que essa vítima do acidente de consumo, a princípio seria um terceiro, que não
teria tomado parte no ato de consumo e, por vezes, nem sequer utilizado o produto ou serviço
conceito de consumidor do art. 2º, caput e também daquele estabelecido no parágrafo único
do mesmo artigo, não veríamos como o terceiro, que não adquiriu, por vezes, nem ao menos
utilizou qualquer produto ou serviço, poderia ser considerado consumidor em caso de prejuízo
Nem mesmo o conceito descrito no art. 2º, parágrafo único, se confunde com esse
entabulado no art. 17. Há, é verdade, semelhança entre os dois conceitos. Contudo, uma
análise mais criteriosa mostrará que os dois dispositivos tratam de figuras diversas, tipos
distintiva, qual seja, se reporta “à coletividade de pessoas,..., que haja intervindo nas relações
de consumo”.
Trata-se de pessoas que, mesmo não tendo efetivamente pactuado determinada relação
de consumo, por vezes, nem mesmo tendo conhecimento desse específico ato de consumo, a
ele já estão interligadas. Em geral, esses terceiros intervenientes são beneficiários, mesmo que
seguro de vida, do aluno em que o pai realiza contrato com a escola, dos dependentes de plano
de saúde, etc.
Já no caso deste art. 17, trata-se de consumidor equiparado que não é, a priori, um
É pessoa que pode ser completamente estranha à relação. É, por exemplo, um indivíduo que,
ao passar próximo a um determinado produto adquirido por outrem, é atingido por uma
Pela dicção desse artigo 17, qualquer vítima de um dano ocasionado por defeito de um
produto ou serviço tem direito à reparação, sendo seu vínculo com o evento danoso, e não
com a relação de consumo, que o eleva a categoria de consumidor. Por isso, o CDC ampliou,
tantos aos passageiros (esses, exemplo de consumidor padrão do art. 2º) quanto aos
transeuntes do local. Esses pedestres atingidos, embora que efetivamente não tenham utilizado
o serviço de transporte que os prejudicara, terão, pela regra do art. 17, o mesmo tratamento
Alinne Arquete Lemos Novais assevera que, se não existisse no ordenamento jurídico
acidente de consumo teria que recorrer às normas tradicionais do Código Civil, ou seja,
provar a culpa do causador do dano, já que não é considerado consumidor stricto sensu.
...Todavia, somente é possível esta solução por causa da equiparação feita pelo art.
17. Se não existisse esta norma no CDC, o terceiro, para ser ressarcido dos danos
sofridos, teria que recorrer às normas tradicionais do Código Civil, devendo
169
comprovar a existência de culpa.
169
NOVAIS, Alinne Arquette Leite. A teoria contratual e o código de defesa do consumidor. V. 17. São.
Paulo: RT, 2001. p.139.
107
Concordamos que se não houvesse essa norma do art. 17 do CDC, realmente a vítima
do acidente de consumo deveria recorrer às regras do Código Civil, uma vez que não
considerada como consumidor em nenhuma das acepções deste termo constante no CDC.
Civil, não necessariamente deveria ser com base na responsabilidade subjetiva, uma vez que o
Código Civil de 2002 prevê a norma do art. 927, parágrafo único (a qual se baseia na Teoria
“...quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua
Vemos, então mais um exemplo de aplicação dos efeitos dos contratos para além das
Esse artigo traz um dos mais interessantes e abrangentes conceitos de consumidor por
Nessa definição, faz-se referência aos fins do capítulo do CDC no qual esse artigo 29
está inserido (capítulo V – das práticas comerciais) e aos objetivos do capítulo seguinte
Para se ter uma idéia da abrangência da equiparação trazida no art. 29 do CDC, basta
observar que os capítulos aos quais esse artigo faz referência (capítulos V e VI do CDC)
(cláusulas abusivas e contratos de adesão). Assim, toda pessoa que, mesmo não sendo
consumidor, se enquadrar em uma das situações acima previstas (“exposta às práticas”) será
equiparado a consumidor e gozará de toda a estrutura do CDC para aduzir sua correlata
pretensão jurídica.
Em relação a essas “às práticas”, Assim diz Maria Antonieta Zanardo Donato:
...as práticas comerciais são técnicas, meios usados pelo fornecedor para
comercializar, vender, oferecer seu produto ao consumidor potencial, atingindo
assim aquele que é pretendido como destinatário final (consumidor/ adquirente).
Estariam, então, abrangidas pelo CDC desde a oferta do produto até sua cobrança,
isto é, da pré à pós venda. 170
em suas relações comerciais), quando se encontrar nos casos previstos pelo art. 29 do Código
Consumidor como norma de proteção, com vista a conferir a esse profissional vulnerável a
tutela contra injustiças práticas mercadológicas, o que, por via reflexa, beneficiará também o
consumidor final, que não terá para si repassados os vícios de uma relação comercial
170
DONATO, Maria Antonieta Zanardo. Proteção ao consumidor: conceito e extensão. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1994. p. 263.
109
capítulos V e VI, por força do art. Do art. 29 do CDC, que amplia o conceito de
consumidor, possibilitando ao judiciário o controle das cláusulas contratuais
abusivas, impostas em contratos de adesão. Cláusula que permite a variação
unilateral de taxa de juros é abusiva porque, nos termos do art. 51, X e XIII,
possibilita variação de preço e modificação unilateral dos termos contratados.
Possibilidade de controle judicial, visando estabelecer o equilíbrio contratual,
reduzindo o vigor do princípio “ pacta sunt servanda” ...Ação declaratória julgada
procedente para anular lançamentos feitos abusivamente. Sentença reformada“. 171
Por aplicações extensivas como essas é que, no dizer de Cláudia Lima Marques, o art.
podemos verificar que essa codificação contém regras que visam garantir a aplicação da
função social do contrato nas fases pré-contratual (ex: oferta, publicidade) contratual (ex:
171
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações
contratuais. 5.ed. São Paulo:RT, 2006. p. 158.
172
Ibid., p. 157.
110
5 CONCLUSÃO
Welfare State, enquanto, mais precisamente à nível nacional, é orientada pela ordem
como na dignidade da pessoa humana, insculpida no art. 1º, III da CF/88 como um dos
fundamentos da República e ainda nos valores de uma existência digna e de justiça social,
A função social do contrato é vista como uma cláusula geral, que serve à eficácia à
Jurisprudência do STF acolhem a teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais para
esvaziar a autonomia dos indivíduos de forma desarrazoada, tendo em vista que essa
pessoa humana.
alemão, para apreciação das questões que envolvam a aplicação dos direitos fundamentais
111
entre particulares, nas hipóteses em que não exista lei concretizando a Constituição, utilizando
faceta indica o dever das partes respeitarem a dignidade da pessoa humana do outro
relatividade contratual, entendo-se o contrato não mais como uma ilha (no que se refere ao
seu isolamento social), mas sim como uma célula do complexo tecido social no qual está
inserido, exigindo-se, portanto que o contrato respeite os direitos da sociedade, tanto na forma
sociedade igualmente não ignore o contrato. Dessa forma, deve responsabilizar-se o terceiro
que ofende o credor contratual, quando celebra pactos com o devedor que inviabilizam o
contrato original.
A função social do contrato não foi uma novidade do ordenamento brasileiro, pois já
expressa, ora em outras roupagens, como a da função social da propriedade, a defesa do meio
estabelecidos, como diz o art. 2.035, parágrafo único do Código Civil, “para assegurar a
Nessa linha, indica-se, em rol não taxativo, princípios como a igualdade, a boa-fé, a
autonomia privada e a dignidade da pessoa humana, como sendo exemplos desses preceitos
O conceito mais atual de igualdade consiste, não mais na igualdade perante a lei, mas,
referente à intenção dos contratantes e a segunda relativa à conduta das partes na avença. O
sentido mais eficaz de boa-fé atualmente é a acepção objetiva, pois é mais viável de ser
aferida.
A boa-fé objetiva deve ser exigida tanto nas fases pré-contratual, quanto contratual e
Na fase contratual, a boa-fé objetiva é exigida, tanto na relação dos contratantes entre
si, como também sob a ótica dos contratantes para com a sociedade e, ainda, sob o enfoque do
práticas do recall, bem como a obrigação dos fornecedores de produtos industriais manterem
desigualdade.
Assim, a autonomia privada resta sem função social, quando o contrato é celebrado
último, ou de sua ignorância, nos termos do art. 157 do CC, o qual trata do instituto da lesão.
pessoas das coisas e por isso mesmo tal princípio tem a finalidade de funcionalizar a liberdade
contratual, orientando as relações contratuais para o tratamento do ser humano como sujeito
regras dos contratos típicos, isoladamente considerados, não for suficiente para dotar as
de bens apreendidos, após a purgação da mora, no prazo legal, com o pagamento das parcelas
em atraso e demais encargos. Tal orientação, apesar de não encampada pelo Superior Tribunal
de Justiça, é acolhida por tribunais de justiça estaduais e é a que mais se coaduna com a
que tratam do adimplemento substancial, representado esse nas hipóteses em que o débito
proporcionalmente mínimo não deve implicar a resolução do contrato, como ocorre nos casos
do bem.
Nessas situações, deve ser buscada uma alternativa de satisfação do credor de maneira
negocial, a fim de se manter a função social do contrato, que, no caso, manifesta-se pela
circulação de riquezas, tudo na linha de uma conduta pautada na boa-fé objetiva esperada na
relação contratual.
instrumentos que assegurem a conservação dos contratos, em face dos bens envolvidos, como
a saúde e a vida. Dessa forma, a interpretação e a elaboração da lei nessas situações, deve ser
plano de saúde.
notadamente em seu aspecto interno, possui traços mais fortes, em razão da natureza desigual
considerados como consumidor, por estarem ligados indiretamente a uma relação de consumo
REFERÊNCIAS
ALVIM, Arruda. Direito Privado. Vol. 1. In: Coleção Estudos e Pareceres II. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002.
AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Introdução ao Direito Internacional Público. São Paulo:
Atlas, 2008.
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil. Teoria Geral: acções e factos jurídicos. v. 2,
Coimbra: Coimbra Editora, 1997.
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São
Paulo: Saraiva, 2002.
BETTI, Emílio. Teoria Geral do Negócio Jurídico. Trad. Fernando Miranda. Coimbra:
Coimbra Ed., 1998.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da
União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 12.
ago. 2013.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 469.577/SC, Rel. Ministro RUY ROSADO DE
AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 25/03/2003, DJ 05/05/2003, p. 310). Disponível
em:<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=46957
7&&b=ACOR&p=true&t=JURIDICO&l=10&i=11>. Acesso em: 15 ago. 2013.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 63981/SP, Plínio Gustavo Prado Garcia e
Panasonic do Brasil Ltda. Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Texeira. Brasília-DF. j. 11.04.2000.
DJ 20/11/2000. Disponível em: <
http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=63981&b=
ACOR&thesaurus=JURIDICO#DOC3>. Acesso em: 29 jun. 2013.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 308. Segunda Seção. J. 30.03.2005. DJU.
25/04/2005 p. 384. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp>. Acesso em :
15 ago. 2013.
BUSSATTA, Eduardo Luiz. Princípio da conservação do contrato. In: HIRONAKA, Giselda
Maria Fernandes Novaes; TARTUCE, Flávio (Coords.). Direito contratual: temas atuais.
São Paulo: Método, 2007.
118
FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a
imagem versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1996.
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função social do contrato. São Paulo: Saraiva, 2004.
LARENZ, Karl. Derecho justo: fundamentos de ética jurídica. Madrid: Civitas, 1985.
MAC CRORIE, Benedita Ferreira da Silva. A vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais. Lisboa: Almedina, 2005.
MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito ambiental. São Paulo: Malheiros, 1996.
MANCEBO, Rafael Chagas. A função social do contrato: de acordo com o novo Código
Civil. São Paulo: Quartier latin, 2005.
MAZZEI, Rodrigo. O Princípio da Relatividade dos Efeitos Contratuais e suas Mitigações. In:
Direito contratual: temas atuais. São Paulo: Método, 2008.
120
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3 ed.,
14 tir., São Paulo: Malheiros, 2006. 48 p.
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 3. ed. Tomo IV. Coimbra : Coimbra
Editora. 2000.
MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e
conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos
fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 105-147.
NERY JÚNIOR, Nelson. Contratos no Código Civil: Apontamentos gerais. In: MARTINS
FILHO, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira; FRANCIULLI NETTO,
Domingos (Coords.). O Novo Código Civil: Estudos em homenagem ao professor Miguel
Reale. São Paulo: LTr, 2003.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Pretensão do réu de manter o contrato com modificação
de suas cláusulas diante de pedido do autor de resolução por onerosidade excessiva – pedido
contraposto previsto pela lei material (art. 479, CC). In: HIRONAKA, Giselda; TARTUCE,
Flávio (Coords). Direito contratual: temas atuais. São Paulo: Método, p. 709/713. 2007.
NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. volume 1. São Paulo: Saraiva, 2003.
121
REALE, Miguel. Filosofia do direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
RENTERÍA, Pablo. Considerações acerca do atual debate sobre o princípio da função social
do contrato. Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
ROCHA, Amélia Soares da; FREITAS, Fernanda Paula Costa de. O superendividamento, o
consumidor e a análise econômica do Direito. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2564, 9
jul. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/16949>. Acesso em: 27 maio 2013.
SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Princípios de direito das obrigações no novo Código Civil. In:
O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 99-
126.
123
SILVA, Luis Renato Ferreira da. A função social do contrato no novo Código Civil e sua
conexão com a solidariedade social. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo código civil
e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. Rio de Janeiro: Forense,
2008.
VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. Coimbra: Livraria Almedina,
1990.