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Os negros, a educação e as políticas de ação

afirmativa*

Ana Lúcia Valente


Universidade Federal do Mato Grosso do Sul
Programa de Pós-Graduação em Educação

Introdução das idéias do sincretismo sempre presentes na retóri-


ca oficial” (Munanga, 1999, p. 126). Meu argumento
A proposta de se discutir os rumos da democra- é que nada impede que manifestações singulares ou
cia, da educação e de políticas públicas que, em con- específicas possam ser mais bem iluminadas quando
traposição à lógica hegemônica, voltem-se para o aten- referidas a uma dimensão universal, capaz de apreen-
dimento de iniciativas populares e da sociedade civil der o movimento da realidade.
impõe uma reflexão que considere as expressões con- Nessa apreensão, duas vertentes podem ser defi-
cretas e, portanto, históricas da organização social pre- nidas. Em primeiro lugar, no que diz respeito à temá-
sente, deixando de lado o terreno das abstrações. Quan- tica desse seminário, considera-se a importância de
do se trata de discutir políticas de ação afirmativa para empreender ações mais concretas de garantia de exer-
os negros, essa reflexão parece mais complexa devi- cício da cidadania, analisando-se a pertinência de se
do ao “componente racial” que chamaria a atenção pensar uma proposta educacional que contemple o con-
para a diversidade, para a especificidade. traditório processo de criação/significação da diversi-
Venho defendendo uma perspectiva universal de dade cultural para uma educação igualitária ou para
compreensão da diversidade – contrariando o comba- a cidadania paritária. Uma proposta que tenha, sobre-
te ao universalismo feito pelos movimentos negros, tudo, o compromisso de desvelar os usos sociais dos
que passa a ser recuperado “através da mestiçagem e conhecimentos transmitidos que, enquanto criações
humanas, são passíveis de serem transformados (Va-
* Trabalho apresentado no Seminário Nacional “Democra-
lente, 1999b). Se se advoga a necessidade de salva-
cia e Educação no Pensamento Educacional Brasileiro”, promo- guardar os princípios da cidadania, é preciso, em
vido pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universi- contrapartida, estabelecer limites ao relativismo cul-
dade Federal Fluminense e realizado em Niterói (RJ), de 14 a 17 tural, alertar para os perigos de um multiculturalismo
de maio de 2001. absoluto, pleno de recusa do outro, que promove a

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fragmentação do espaço político e a degradação da vista no Art. 1° da Convenção 111 e no Art. 6° da


democracia, e buscar a articulação dos valores uni- Convenção contra todas as formas de discriminação
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versais e das especificidades culturais. racial” (p. VIII-IX). De fato, essas duas convenções,
Essa conjunção do singular, do particular e do assim como a Convenção relativa à luta contra a dis-
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universal poderia potencializar um novo modelo de criminação no campo do ensino, podem oferecer ar-
integração, supondo idealmente que cada um se reco- gumentos importantes para a implementação de polí-
nheça numa visão política comum, para além das di- ticas de ação afirmativa para os negros no campo
ferenças individuais e de grupo; porque a democracia educacional. Desde que também sejam devidamente
não é possível senão quando um direito comum regu- contextualizadas, uma vez que o ordenamento jurídi-
la a coexistência das liberdades individuais e particu- co não pode ser dissociado de necessidades sociais
lares. Assim, a passagem da educação intercultural à construídas historicamente.
educação para a cidadania exige reflexões que ultra- A segunda vertente de apreensão da realidade
passam os campos da antropologia e da educação, conduz ao paradoxo de que o reconhecimento da di-
ocupando o espaço de discussões jurídicas e das teo- versidade pode sustentar a intolerância e o acirramen-
2
rias do Estado. Nesse caso, menos do que demarcar to de atitudes discricionárias, especialmente quando a
fronteiras do conhecimento sabidamente artificiais, diferença passa a justificar um tratamento desigual
importa estabelecer uma linha de reflexão teórica que (Valente, 1999a). Além disso, esbarra-se no equívoco
recupere a totalidade histórica definida pela organiza- de “educadores pós-modernos”, de a temática da di-
ção social dominante. ferença cultural ser percebida como “novidade”,
No Brasil, ao que parece, ainda pouco foi siste- recolocando-se a importância da tarefa de recuperar a
matizado no campo do direito. O caráter preliminar e história e a luta dos povos oprimidos e, com ela, a
inicial desse tipo de debate e preocupação pode ser própria história do multiculturalismo (Gonçalves &
atestado pelas dificuldades que advogados, militantes Silva, 1998), sem deixar de inseri-la num contexto
e estudiosos das relações interétnicas têm enfrentado mais amplo de compreensão.
para criminalizar o racismo no país, através dos ca- No trabalho As políticas de ação afirmativa e o
nais legais existentes. Como lembra Hédio Silva Jr., obstáculo epistemológico, apresentado na reunião da
analisando a intersecção entre direito e relações ra- ANPEd, realizada em 2000, procurei recuperar idéias,
ciais no país, “a inscrição do princípio da não-discri- há muito discutidas por estudiosos e militantes, que
minação e as reiteradas declarações de igualdade têm norteiam a discussão sobre as políticas de ação afir-
sido insuficientes para estancar a reprodução de práti- mativa específicas para os negros. Tentei demonstrar:
cas discriminatórias na sociedade brasileira” (1988, 1) a necessidade de se legitimarem, teórica e pratica-
p. VI). De qualquer maneira, a coletânea de leis brasi- mente, as políticas de discriminação positiva, no Bra-
leiras anti-racistas, organizada por esse autor, buscou sil, considerando seu sistema de relações raciais, di-
“explorar outras respostas disponíveis no ordenamento ferente daqueles historicamente construídos em outros
para a violação do direito à igualdade, a exemplo da países; 2) os limites do conceito de afrodescendência,
responsabilidade civil objetiva por discriminação pre- que não supera a ambigüidade do conceito de identi-

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Universais porque são valores do capitalismo marcados A primeira foi promulgada em 1968, pelo Decreto n. 62.150,
por concepções de mundo antagônicas. de 23 de janeiro, e a outra pelo Decreto n. 65.810, de 8 de dezem-
2
Nesse contexto, ganha relevo a discussão sobre a demo- bro de 1969 (Silva Jr., 1998, p. 10-4 e p. 22-35).
4
cracia, seus limites e possibilidades num Estado cuja conforma- Promulgada pelo Decreto n. 63.223, de 6 de setembro de
ção é também histórica. 1968 (Silva Jr., 1998, p. 15-21).

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dade negra; 3) a possibilidade de construção de uma sistematicamente evitada para além dos grupos negros
identidade mestiça, num contexto plural de negocia- organizados.
ção político-ideológica e 4) as dificuldades para esta- Para Munanga, considerando a insuficiência re-
belecer a clientela, que deve ser definida numerica- tórica dos discursos anti-racistas bem-intencionados,
mente ou em termos populacionais, para a qual seriam “é preciso, pois, incrementar estratégias e políticas
dirigidas as ações discriminatórias positivas. Essa aná- públicas de combate à discriminação nos campos onde
lise permitiu-me afirmar que o “mulato” continua sen- ela se manifesta concretamente, ou seja, nos domí-
do um obstáculo epistemológico para a implementa- nios da educação, cultura, lazer, esportes, leis, saúde,
ção de políticas de ação afirmativa para os negros, mercado de trabalho, meios de comunicação, etc.”
parafraseando o conhecido intelectual e militante ne- (1996, p. 12). Nessa direção, algumas pistas foram
5
gro Eduardo de Oliveira e Oliveira (1974). lançadas, não sem deixar de exprimir a falta de con-
Como já tive a oportunidade de afirmar no refe- senso presente num debate que, no país, foi apenas
rido trabalho, permitindo-me seguir literalmente o tex- iniciado e que, por vezes, polariza-se.
to original, a discussão sobre as políticas de ação afir- De um lado, setores importantes e representati-
mativa, especialmente quando se trata de debater a vos do movimento negro defendem, com intransigên-
proposição de medidas que promovam a valorização cia, a necessidade premente de medidas específicas
dos negros no Brasil, tem sido considerada bastante serem implementadas. Em síntese, essa defesa parte
polêmica, por mobilizar fortes emoções e sentimen- da avaliação de que, historicamente, há dívidas que
tos contraditórios, e não menos necessária. Isso por- devem ser saldadas pelos brasileiros aos negros, re-
que, entre outras coisas, não deixa de ser curioso que montando aos 500 anos do país: além de terem sofri-
sejam recebidas com maior simpatia, pela população do a violência do sistema escravista, continuaram e
em geral, as propostas de educação intercultural bi- continuam a sofrer desvantagens socioeconômicas,
língüe para os índios, inclusive previstas na LDB; de geradas por cumulativas atitudes discriminatórias.
valorização das mulheres, como o aumento percen- De outro lado, parcelas expressivas da sociedade
tual da representação político-partidária; de garantia nacional, com igual veemência, abominam toda e qual-
de mercado de trabalho para os portadores de necessi- quer proposta dessa natureza, mas não pelos mesmos
dades especiais, como a reserva de vagas legalmente motivos. Para alguns, ao reafirmarem o mito da de-
asseguradas em concursos públicos; ou mesmo as rei- mocracia racial, não haveria razão para que fosse ofe-
vindicações de idosos e homossexuais por maior res- recido um “tratamento especial” para os negros. Ou-
peito e espaço de expressão. tros, incluindo algumas tendências da organização
Ao contrário das reações ante as demandas des- negra, acreditando que já existem provas cabais da
ses grupos minoritários – na perspectiva qualitativa existência do racismo entre nós, temem as conseqüên-
das ciências sociais, por enfrentarem maiores dificul- cias futuras geradas pela implementação das políticas
dades ao acesso à riqueza material e espiritual da so- de ação afirmativa.
ciedade, bem como às instâncias de poder –, são reti- Há opiniões matizadas no interior dessas posi-
centes os comentários sobre a situação do negro ções que se antagonizam e, entre elas, vozes ainda não
brasileiro, reafirmando, em última análise, a compro- suficientemente convencidas pela argumentação uti-
vada existência do racismo no país. Contudo, se essa lizada para defender ou negar a pertinência de políti-
conclusão pode ser antecipada, pouco ainda se sabe cas que, positivamente, discriminem os negros no Bra-
sobre as mediações e os meandros dessa discussão, sil. Para alguns estudiosos e militantes, essas políticas
estariam a demandar uma reflexão mais acurada, me-
5
Kabengele Munanga (1999) faz referência ao mesmo arti- nos exposta à carga emocional que o debate sobre o
go, confirmando seu caráter polêmico. assunto mobiliza, ou capaz de canalizar essas emo-

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ções para o avanço teórico e prático necessário e exi- lentidão para acompanhar o movimento do real e as
gido (Valente, 2000). experiências práticas em andamento, que, dentre ou-
Nesse trabalho, continuo tateando o terreno so- tros fatos, demonstram ser a questão da mestiçagem,
bre o qual o debate se desenvolve, relacionando refle- envolvendo a discussão sobre o estabelecimento de
xões produzidas em outros momentos, sem qualquer limites grupais, uma questão ideológica já superada
pretensão de superá-lo ou de encerrar uma discussão por imperativos da ação política.
aberta a críticas e contribuições. Não se podendo concordar que a discussão sobre
Embora tenha me incluído entre essas vozes in- a mestiçagem seja uma “falsa questão”, como defen-
certas, prudentes na tomada de decisão de defender de parcela da militância negra – mesmo porque, de
ou não a implementação de políticas de ação afirmati- 1980 a 1991, a taxa de crescimento da população ne-
va para os negros, em razão das mediações teórico- gra, entre jovens de 15 a 24 anos, de 2,3% (0,2% para
práticas que devem ser exploradas, não se pode negar os brancos), está “relacionada não só à fecundidade
o movimento que justifica e legitima essa proposta. O mais alta associada a este grupo como também aos
calcanhar de Aquiles passa a ser como fazê-lo, sem efeitos da miscigenação” (IBGE, 2001) –, deve-se ad-
que disso resulte o efeito contrário que se pretende: mitir como procedimento metodológico correto a pro-
que essas políticas não se transmutem em tiros que posta de compreensão do movimento do real. Mas, de
saem pela culatra ou que sejam analisadas romântica que real se fala? Sem que se negue a importância de
e ingenuamente. Essa parece-me ser a condição para dominar as manifestações cotidianas, suas singulari-
que o processo possa ser direcionado para o atendi- dades e especificidades, é preciso redimensioná-las
mento dos interesses e necessidades do grupo racial no quadro universal da organização social dominan-
na perspectiva da transformação. te. Disso decorre a necessidade de compreender o
movimento do capitalismo.
Nessa perspectiva, vale lembrar que quatro gran-
O movimento do real des “crises” do capitalismo engendrando processos de
homogeneização, nas décadas de 1930, 1950, 1970 e
Lilia Schwarcz (1999), ao fazer um balanço da 1990, numa surpreendente regularidade de uma vin-
produção antropológica sobre a questão racial e tena de anos, em média, tornaram visíveis processos
etnicidade, nos últimos 25 anos, afirma que, com a de reivindicação da diferença cultural (Valente, 1999c).
politização da questão racial e a realização de “estu- Dito de outra maneira, as diferenças culturais apare-
dos mais diretamente engajados com o movimentos cem como “problema” quando movimentos de inte-
sociais negros, ou com o debate sobre a ‘ação afirma- gração homogeneizadora procuram suprimi-las ou
tiva’ [...] é fato que esses trabalhos [...] têm, em al- mantê-las sob controle, de forma que não coloque em
guns casos, padecido de um certo distanciamento, ne- risco o seu projeto. Ou, ainda, como afirmei, a preo-
cessário, à reflexão crítica” (p. 303). Afinal, como cupação em torno das diferenças, transformando-as
lembra a historiadora e antropóloga, não há como em um “problema”, quando são marcas distintivas e
desconsiderar que a produção sobre essa temática, no necessárias da condição humana – não podendo ser
Brasil e em outros países como o México, guarda a consideradas epifenômenos –, parece cumprir a fun-
especificidade e não a exclusividade de ter a questão ção de deslocar para outra instância de embate as con-
da mestiçagem como elemento revelador de uma con- tradições econômicas próprias do capitalismo. Nesse
formação nacional original. caso, coerente com essa perspectiva, a discussão so-
Em contrapartida, militantes de movimentos ne- bre a verdadeira raiz do problema é abandonada, con-
gros são incisivos na crítica à “academia” e ao ana- tentando-se em mascará-la e em buscar medidas pa-
cronismo de suas reflexões, resultante de sua suposta liativas e reformadoras no campo cultural.

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Essas “crises” universais manifestam-se de ma- de renda e por uma conjuntura política repressiva, com
neira singular. No Brasil, sem contar a imposição do apoio internacional.
universalismo europeu sobre índios e negros durante Atualmente, mais uma vez a questão da diferen-
o período colonial, a partir da década de 1930, a polí- ça emerge no conjunto das preocupações de intelec-
tica de modernização industrial legitimada por um tuais e pesquisadores brasileiros, em resposta a um
ideário nacionalista imprimiu outra direção ao trata- clima de animosidade preocupante e sob a influência
mento da diferença, que passou a ser objeto de refle- da produção acadêmica americana e européia. No iní-
xão a respeito da nossa constituição como povo e para cio dos anos de 1990, começaram a ser organizados
pensar a formação de uma sociedade nacional. As grupos na periferia das cidades, como a de São Paulo,
preocupações dos governantes voltaram-se para o de- que, inspirados pela ideologia neonazista, têm feito
saparecimento das diferenças culturais dos contingen- vítimas fatais entre os negros e os nordestinos (Valen-
tes envolvidos. Foram dois os principais alvos dessa te, 1997). Nos países do Mercosul, em particular na
tentativa: o abrasileiramento dos descendentes de imi- Argentina, os problemas sociais existentes estão acir-
grantes, principalmente italianos, alemães e japone- rando a discriminação contra bolivianos, paraguaios
ses, de maneira que não constituíssem quistos cultu- e peruanos, levando à proposição de medidas para res-
rais que ameaçassem o projeto da nação e a destruição tringir a imigração (Gazir, 1998). Racismo e xenofo-
das tradições culturais africanas que se contrapunham bia no plano nacional e regional parecem reafirmar a
aos planos de construção de um Brasil branco, oci- nossa tese, impondo a necessidade de uma reflexão
dental e cristão. atenta que propicie a compreensão histórica desse pro-
Na década de 1950, como se sabe, um projeto cesso. Voltar os olhos para o passado, buscando ava-
financiado pela UNESCO propiciou a realização de liar as lições vividas no Brasil e no plano internacio-
estudos sobre a situação racial em vários países, in- nal, é exigência imprescindível para não cometermos
clusive no Brasil. Já naquela oportunidade os estudos os mesmos erros, os mesmos equívocos; a começar
no país apontavam para a existência de problemas entre pela crença de que a problemática sobre diversidade
brancos e negros e preocupavam-se em desmistificar cultural é uma “novidade”.
a chamada “democracia racial brasileira” (Valente, Embora nessas décadas sejam engendrados mo-
1997). Houve outros momentos em que a questão da vimentos de homogeneização econômica, estes não
diferença cultural ocupou a cena política e educacio- parecem guardar as mesmas características, em que
nal do país, como nas discussões em torno da chama- pesem expressarem a agudização crescente das ten-
da “educação popular”, a partir da década de 1960, dências gerais do capitalismo. Seguindo o esquema
7
que envolveu os educadores por mais de 25 anos (cf. de Mandel (1985), em torno dos anos de 1930 e 1970
Paiva, 1986). Nos anos de 1970, num momento de iniciam-se ondas longas com tonalidade de estagna-
efervescência política no Brasil, movimentos sociais ção, ao passo que nos anos de 1950 inicia-se uma onda
passaram a ser organizados, inclusive aqueles porta- longa com tonalidade expansionista, assim como nos
dores de signos de diferença, como o movimento ne-
gro. Organizavam-se para reivindicar melhores con-
dições de vida, de trabalho e maior espaço de 7
Na definição da “teoria das ondas longas”, o autor segue o
expressão, em resposta ao modelo econômico implan- preceito enunciado no prefácio à 1ª edição de O capital, quando
tado pelos militares, caracterizado pela concentração Marx justifica o estudo do modo de produção capitalista na Ingla-
terra por ser o seu campo clássico, na medida em que, sendo con-
sideradas as tendências que operam e se impõem na produção ca-
6
Universais porque, onde se realizam, as contradições do pitalista, “o país mais desenvolvido não faz mais do que representar
capitalismo são mais evidentes. a imagem futura do menos desenvolvido” (Marx, 1980, p. 5).

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anos de 1990, avançando para um período não anali- tam desse momento de gestação, estendendo-se até a
sado pelo autor. No argumento de Mandel, a tecnolo- década de 1970.
gia ocupa papel fundamental na passagem de uma onda Nas décadas de 1930 e 1970, de estagnação, cujos
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longa à outra, com tonalidades diferentes. fatos emblemáticos foram a guerra e os preços do pe-
Em linhas gerais, foram apontados aspectos que tróleo, quando os riscos de desemprego eram eviden-
permitem a compreensão desses momentos na pers- tes, devido ao retrocesso na produção material, pare-
pectiva das reivindicações das diferenças culturais. De ce mais fácil compreender porque, tendencialmente,
fato, na década de 1950, o avanço tecnológico é sur- os portadores de signos diferenciais foram os primei-
preendente, mas não se devem menosprezar as variá- ros a perder posições no mercado de trabalho. Já na
veis sociais e políticas que podem facilitar a compreen- década de 1990, iniciada como um momento de ex-
são de quando as diferenças são um problema. Os anos pansão do capital e justificada pelo ideário neoliberal,
de 1950, de boom econômico mundial, marcam o mo- a análise torna-se mais complexa e delicada, inclusi-
mento em que se coloca na pauta de discussão o trata- ve porque se trata de um processo em andamento.
mento que a diversidade cultural recebera no momen- Na última década do século XX, é possível veri-
to anterior. Politicamente era preciso romper com o ficar um incremento tecnológico, que caracterizaria
passado da experiência nazista, combatendo o racis- uma onda longa de tonalidade expansionista, não ape-
mo. Restabelecida a capacidade produtiva, era possí- nas implicando a mudança dos processos de produ-
vel promover o respeito à diversidade do mercado con- ção existentes, mas também a criação de novos bens e
sumidor, como foi sugerido. serviços de consumo, propiciando o surgimento de
No entanto, conforme Wallerstein, novos ramos de produção, como aliás ocorre em ou-
tras revoluções tecnológicas. Entre os aspectos que
[...] se se quer maximizar a acumulação do capital, é preci- caracterizariam o capitalismo contemporâneo, a ter-
so, simultaneamente, minimizar os custos de produção (e ceirização tornou-se estrutural, com a fragmentação e
por conseqüência os custos da força de trabalho) e minimizar a dispersão de todas as esferas da produção. Funda-
igualmente os custos dos problemas políticos (e por conse- mentalmente resultante do desenvolvimento das for-
qüência minimizar – e não eliminar porque isso é impossí- ças produtivas que autonomizam e multiplicam ativi-
vel – as reivindicações da força de trabalho). O racismo é a dades de intermediação, a terceirização também
fórmula mágica favorecendo a realização de tais objetivos. diversifica o consumo, expandindo o setor de servi-
(1990, p. 48) ços. Se a princípio os avanços tecnológicos tendem a
liberar mão-de-obra, podendo comprometer a produ-
Operacionalmente, o racismo – na expressão de ção capitalista, à medida que não há trabalho vivo,
Balibar (1990, p. 33), “racismo sem raças”, cujo tema não há produção de mais-valia, como afirma Singer:
dominante não é a herança biológica mas a irredutibi-
lidade das diferenças culturais – toma a forma de Com o grande aumento do exército industrial de re-
“etnicização” da força de trabalho, ou seja, permite a serva cresceu a disponibilidade de força de trabalho, per-
hierarquização de profissões e remunerações na so- mitindo o ressurgimento de formas arcaicas de exploração,
ciedade. Desse modo, na década de 1950, que num tais como empresas familiares e trabalho a domicílio. Es-
primeiro momento aparece como redentora das dife- sas formas muitas vezes são estimuladas por capitais
renças, logo se empreende um movimento de sua monopólicos, que demitem operários para subcontratar seus
negação, que desencadeia reações no campo político-
cultural, sem que essas diferenças deixem de ser
8
manipuladas em proveito da indústria cultural. Os Lembre-se que, em 1929, antes da guerra, a grande “que-
acontecimentos que marcaram os anos de 1960 resul- bra” da bolsa de Nova York deflagrou o processo.

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serviços como fornecedores externos. Como resultado, cai após a queda do muro de Berlim e a dissolução da
o nível de remuneração dos trabalhadores e se recupera a economia socialista soviética, admite-se a crise do tra-
taxa de mais-valia e mais ainda, graças à menor composi- balho abstrato – “dispêndio de força de trabalho do
ção orgânica do capital dos “novos setores”, a taxa de lu- homem, no sentido fisiológico, e, nessa qualidade de
cro. (1985, p. XXXII) trabalho humano igual ou abstrato, cria o valor das
mercadorias” (Marx, 1980, p. 54). No entanto, a ou-
O que dizer a respeito dos movimentos de reivin- tra dimensão que o trabalho assume na sociedade ca-
dicação de diferenças culturais da década de 1990, pitalista, como trabalho concreto – “dispêndio de for-
sobre os quais se tem uma fundamentação empírica ça humana de trabalho, sob forma especial, para um
que não corresponde a uma análise mais cuidadosa? determinado fim, e, nessa qualidade de trabalho útil e
De alguma maneira eles parecem retomar as tendên- concreto, produz valores-de-uso” (idem, p. 54) –, des-
cias percebidas na década de 1950: de um lado resga- de que não subordinado ao trabalho abstrato, poderia
tam sua legitimidade perante o momento anterior, na potencializar o resgate do homem omnilateral.
década de 1970, quando a diferença é tomada como Para o enfrentamento da crise, foi desencadeado
bode expiatório da difícil situação econômica; de ou- um processo de reorganização do capital, buscando
tro, cria-se a expectativa de que, em um momento sub- novas respostas para a retomada da acumulação. Esse
seqüente, esses movimentos passem a ser negados e processo, denominado globalização, agudizou as ten-
manipulados pela lógica capitalista. dências percebidas no início do século XX, quando o
Se as flutuações na taxa de lucros constituem o capital financeiro assumiu a hegemonia. O desemprego
mecanismo central de todas as mudanças a que está estrutural; a terceirização e a fragmentação das esfe-
sujeito o capital, afetando o processo de acumulação, ras produtivas; a rejeição da presença estatal e conse-
responde-se parcialmente à pergunta de quando as qüente privatização estrutural; a transnacionalização
diferenças são um “problema”. Contudo, evitando-se da economia implicando a transferência da base in-
o viés economicista, bem como o desencantamento dustrial dos países ricos para os países pobres, tendo
da discussão sobre as diferenças, outros aspectos so- como atrativo a força de trabalho a baixo custo e a
ciais – culturais e políticos – devem necessariamente existência de bolsões de riqueza e pobreza substituindo
mediar essa reflexão. No momento atual, como ques- a diferença entre países do primeiro e terceiro mun-
tões implícitas naquele mecanismo, é preciso explo- dos são algumas das condições materiais que o ideário
rar a tese da etnicização da força de trabalho, a forma neoliberal tenta justificar, dissimulando o fato de se-
operacional do racismo, que, como foi dito, permite a rem formas contemporâneas de exploração e domi-
hierarquização de profissões e remunerações na so- nação.
ciedade, quando se coloca em xeque a centralidade Organismos internacionais como o FMI e o Ban-
ou não da categoria trabalho. co Mundial, que se tornaram o centro econômico e
político global, ao adotarem esse ideário, pressiona-
ram os países pobres a desarmar uma rede de prote-
A crise e a educação ção que, segundo análises de matiz ideológico diver-
so, ampliou a miséria, expulsando dos processos
Numa sociedade produtora de mercadorias, como produtivos um contingente humano de dimensões gi-
é a sociedade capitalista, mesmo que se pretenda ex- gantescas e promovendo maior exploração daqueles
cluir o trabalho vivo dos processos produtivos, não se que se mantêm ocupados. Como decorrência do de-
pode prescindir dele. Reafirmada a centralidade da semprego estrutural, o trabalho é desregulamentado,
categoria trabalho para compreensão do capitalismo precarizado, ampliando-se a terceirização e as ativi-
como organização histórica não superada, e afirmada dades temporárias e ilegais. Isso implica a perda de

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conquistas históricas dos trabalhadores que, sob amea- independentemente de idade, gênero, raça, opção sexual
ça de não poderem garantir a sobrevivência, aceitam ou de portar uma deficiência etc., todos os homens devem
as condições impostas. ser vistos pela ótica da igualdade e merecem ser alvo de
Sob a alegação de que as pessoas estão sendo preocupação e ações diversas, seja por parte do poder pú-
expulsas do mercado de trabalho por não estarem qua- blico ou da iniciativa privada. Se por um lado este movi-
lificadas para as suas demandas, a educação formal mento parece responder a necessidades que são genuínas e
passa a ser apontada como solução para a crise. Con- que de muito vêm sendo reclamadas desde os movimentos
tudo, o avanço das forças produtivas torna cada vez sociais, por outro não permitem apreender que dentro deste
menos necessário o trabalho vivo, incorpora trabalho modo de organização social, estas ações são iníqüas, até
morto nas máquinas e equipamentos eletrônicos, sim- porque as diferenças são justificadas pela lógica do siste-
plificando progressivamente o processo de trabalho. ma. (Lancillotti, 2000, p. 94)
Mesmo que existam funções que demandem maior
domínio dos trabalhadores, a qualificação exigida pelo Mas, a despeito do contexto em que o discurso
mercado de trabalho é antes uma justificativa de sua da inclusão penetra o campo educacional, pode ser
expulsão e de sua não absorção ao mercado. considerado um avanço a incorporação de pessoas com
Samira Lancillotti (2000), ao discutir a profissio- deficiência pela escola regular. Como palco das con-
nalização de pessoas com deficiência, mostra que tradições sociais, é no âmbito da escola que se de-
vem buscar condições de acesso de todos ao conhe-
A educação de jovens e adultos com deficiência, como cimento.
a de todos aqueles que compõem a classe que vive do tra- Essa digressão permite-me retomar a tese da
balho, tem sido pensada a partir da lógica do mercado. O etnicização da força de trabalho como expressão da
ideário neoliberal postula que é preciso qualificar e desen- lógica interna do capitalismo excludente. No caso dos
volver competência para dar acesso ao mercado. Esse dis- negros brasileiros, assim como de outros grupos mar-
curso escamoteia o fato de que o trabalho vivo, necessário cados pela diferença, as justificativas do capital para
à manutenção da esfera produtiva, está sendo reduzido. a não absorção do trabalhador são inúmeras. Efetiva-
Hoje, as empresas produzem mais, com menos trabalhado- mente, a única resposta plausível é que são desneces-
res. (p. 89) sários. Pelas regras do mercado, não há emprego para
todos e é crível que as leis que protegem as pessoas
Segundo a autora, uma das respostas para fazer com marcas diferenciais se efetivam à medida que estas
frente à condição de exclusão é o discurso da inclu- se tornam atrativas para o mercado, e o poder da atra-
são, tornando a inserção social das pessoas com defi- ção reside nas vantagens econômicas.
ciência o centro de preocupação com repercussões nas Mas é também no caso dos negros brasileiros que
políticas públicas. Porém, “a despeito do que afirmam a situação de desigualdade torna-se mais evidente. A
seus defensores, parece que a luta pela inclusão é uma Síntese de indicadores sociais 2000 do IBGE, com
luta para manter a sociedade que produz a exclusão, informações elaboradas com base na Pesquisa Nacio-
já que não toca suas razões de fundo e se estabelece nal por Amostra de Domicílios (PNAD), nos anos de
como movimento compensatório” (Lancillotti, 2000, 1992 e 1999, assim resume os resultados obtidos so-
p. 94). Reforça sua análise afirmando que, bre a desigualdade racial:

A partir da justificativa de que a exclusão é “cultu- Os avanços alcançados nos níveis de educação e ren-
ral”, muitas ações vêm sendo implementadas contra o pre- dimento não alteraram significativamente o quadro de de-
conceito, e ganha destaque o discurso da diversidade cultu- sigualdades raciais. Embora a taxa de analfabetismo tenha
ral, pautado no “direito de cidadania”, segundo o qual, caído para todos os grupos, ainda é mais elevado, em 1999,

Revista Brasileira de Educação 83


Ana Lúcia Valente

para pretos e pardos (20%) do que para brancos (8,3%). O nhecido o sistema das relações raciais no Brasil, é di-
aumento do número de anos de estudo foi generalizado – fícil imaginar que o estigma racial será negligencia-
com a população como um todo registrando um ano a mais do. Ante a precarização, a desregulamentação, a
de estudo de 1992 a 1999. Apesar disso, na comparação temporalidade e a ilegalidade de atividades que ga-
por cor ou raça, há uma diferença de dois anos de estudo, rantam a sobrevivência numa sociedade produtora de
em média, separando pretos (4,5 anos) e pardos (4,6) de mercadorias, também não podem ser menosprezadas
brancos (6,7). Uma vez que esses patamares têm-se manti- eventuais estratégias que transformem medidas de dis-
do historicamente inferiores para pretos e pardos, o cresci- criminação positiva no campo educacional em sobre-
mento de um ano de estudo, no total, revela-se mais signi- carga de manifestações racistas. Ainda considerando
ficativo para esses grupos. No Nordeste, por exemplo, esse que a terceirização diversifica o consumo e expande o
ganho correspondeu a um aumento de quase 50% nos anos setor de serviços, tendo em vista o mercado importan-
médios de estudo de pretos e de mais de 25% no de pardos. te de negros e pardos no país – “black is business” –,
Entre 1992 e 1999, o aumento de um ano de estudo poderia ser considerado um alento que o consumidor
correspondeu a uma elevação de 1,2 salários no rendimen- negro venha ganhando espaço e chamando a atenção
to de brancos e de meio salário no rendimento de pretos e de muitas empresas. Em 1997, foi promovida em São
pardos. Paulo a primeira feira de grande porte direcionada a
Na década, houve uma queda generalizada no núme- esse público – Ethic 97 (Folha de S. Paulo, 1997a).
ro de famílias vivendo com até meio salário mínimo per Empresários negros, em sua maioria, vêm procuran-
capita, mas, em 1999, ainda se encontram nessa situação do atender às necessidades dessa clientela específica,
26,2% das famílias pretas e 30,4% das pardas, para 12,7% mas não exclusiva, não sem dificuldades, em razão de
das brancas. Também, a posição na ocupação se mantém a margem de lucro das atividades propostas ser diver-
inalterada na década, com mais pretos e pardos (14,6% e sificada (Folha de S. Paulo, 1997b). Não havendo
8,4%) no emprego doméstico que brancos (6,1%) e, ao con- emprego para todos, as vantagens econômicas atrati-
trário, mais brancos (5,7%) entre os empregadores, que pre- vas para o mercado residiriam na construção de um
tos e pardos (1,1% e 2,1%). (IBGE, 2001) “mercado étnico”? Entre milhões de negros e pardos,
quem teria acesso a esses produtos?
As evidências empíricas de desigualdade, no Diante desse quadro, O relatório da comissão
mercado de trabalho e no campo educacional, pare- mundial de cultura e desenvolvimento da UNESCO
cem encaixar-se como uma luva no discurso de que, (1997) é apenas uma doce e singela promessa... Nas
se mais qualificados, os negros poderiam pleitear me- palavras de Javier Pérez de Cuéllar (1997), o organi-
lhores trabalhos e rendimentos. Discurso falacioso, zador, “nosso propósito é mostrar a todos como a cul-
como vimos, na medida em que a simplificação do tura forja todo pensamento, nossa imaginação e nosso
trabalho sob o capitalismo dispensa a qualificação, comportamento [...] devemos aprender como fazê-la
promovendo a especialização e, com ela, a perda da conduzir não ao conflito de culturas, mas à coexistên-
compreensão do processo de produção da existência. cia frutífera e à harmonia intercultural” (p.16). Consi-
Mesmo admitindo-se que a produtividade dos que derando que o Banco Mundial se transformou “no or-
consigam trabalho possa ser aumentada com educa- ganismo com maior visibilidade no panorama
ção, “eles estarão sempre concorrendo entre si, e o educativo, ocupando, em grande parte o espaço tradi-
salário dos que consigam empregar-se resultará antes cionalmente conferido à UNESCO” (Torres, 1996,
de um processo de negociação em condições desfa- p. 125-6), não se pode perder de vista que, para ate-
voráveis do que de sua produtividade” (Coraggio, nuar as críticas ao programa de transformação estru-
1996, p. 107). tural, adequado ao padrão de desenvolvimento neoli-
Nesse processo desfavorável de negociação, co- beral, o organismo internacional abriu uma linha de

84 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19
Os negros, a educação e as políticas de ação afirmativa

“financiamento de programas sociais compensatórios assim, aos militantes de organizações negras, aos es-
voltados para as camadas mais pobres da população, tudiosos e a todos aqueles comprometidos e envolvi-
destinados a atenuar as tensões sociais geradas pelo dos nesse debate sobre a implementação de políticas
ajuste” (Soares, 1996, p. 27). afirmativas, redimensionar tática e estrategicamente
A compreensão de que a implementação de polí- uma luta que não se pode “perder” ou que justifique
ticas de ação afirmativa para os negros serve aos inte- o diletantismo. A história já nos deu lições de sobra
resses de uma lógica societária excludente, limitan- para que possamos projetar um futuro diferente, mes-
do-se a aliviar tensões sociais e a propor medidas mo sem certezas.
compensatórias, não deve nos fazer perder de vista o
espaço da contradição, garantindo a própria coerên- ANA LÚCIA VALENTE é doutora em antropologia social
cia metodológica dessa análise. Sabe-se que essas pela USP e fez pós-doutorado em antropologia na Université
políticas vêm recebendo apoio governamental, em Catholique de Louvain, na Bélgica. Atualmente é professora do
especial do Ministério da Educação, que, ao que tudo Programa de Pós-Graduação em Educação, no Centro de Ciências
indica, conta com a possibilidade de financiamento Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do
dos organismos internacionais. Contudo, isso não pode Sul. Entre outras obras, publicou: Ser negro no Brasil hoje (Mo-
nos conduzir à visão maniqueísta de tomar o capital derna, 1994, 16ª ed.); O negro e a Igreja católica: o espaço conce-
como “demoníaco” ou a negar peremptoriamente me- dido, um espaço reivindicado (CECITEC/UFMS, 1994); Educa-

didas de governantes que aderiram ao ideário neoli- ção e diversidade cultural: um desafio da atualidade (Moderna,
1999).
beral. Como a exclusão faz parte da lógica interna do
capitalismo, compreender o seu movimento pode per-
mitir o redirecionamento dessas propostas na perspec-
tiva da transformação e garantir o controle e a influên-
Referências Bibliográficas
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tais, como também dos próprios governos, impondo a educação: sentido oculto ou problemas de concepção? In:
rearranjos na trajetória original planejada, vale ilumi- TOMMASI, WARDE, HADDAD, (orgs.). O Banco Mundial e
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Lancillotti (2000), parafraseando-a: pode ser consi-
CUÉLLAR, Javier Pérez de, (org.) (1997). Nossa diversidade cria-
derado um avanço a incorporação dos negros pela es-
dora – Relatório da Comissão Mundial de Cultura e desenvol-
cola regular, em todos os níveis.
vimento. Campinas: Papirus, Brasília: UNESCO.
Como expressão das contradições sociais exis-
tentes, é no âmbito da educação formal que se devem FOLHA DE S. PAULO, (1997a). São Paulo, 30 de março, cad.
buscar condições de acesso de todos ao conhecimen- Folhatudo, p. 13-14.
to. Mas pretende-se que esse movimento extrapole , (1997b). São Paulo, 7 de dezembro, cad. Folhatudo, p. 16.
os limites e os muros institucionais, atingindo o pro-
GAZIR, Augusto, (1998). Argentina estuda limitar a imigração.
cesso educativo da formação humana, que ocorre em
Folha de S. Paulo, São Paulo, 25 de outubro, Mundo, p. 15.
todas as dimensões da vida. Espera-se que o domínio
da realidade, em suas dimensões universal e singu- GONÇALVES, Luiz Alberto O., SILVA, Petronilha B. Gonçalves
lar, possa permitir a construção de novas sociabilida- e, (1998). O jogo das diferenças: o multiculturalismo e seus
des que anunciem uma nova hegemonia. Impõe-se, contextos. Belo Horizonte: Autêntica (Col. Trajetória).

Revista Brasileira de Educação 85


Ana Lúcia Valente

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Recebido em setembro de 2001


Aprovado em novembro de 2001

86 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19
Resumos/Abstracts

as emoções. As chamadas terapias al- Key-words: poverty, emotion and differences are transformed into a
ternativas são propostas para lidar com health, Pentecostalism. “problem”, when they are in fact
as emoções, juntamente com a teoria distinctive and necessary marks of
do apoio social. Esta teoria propõe que the human condition. Thereafter, we
Ana Lúcia Valente
quando pessoas recebem apoio emoci- seek to evaluate the material and
Os negros, a educação e as políticas
onal ou material sistemático de grupos ideological conditions of present day
de ação afirmativa
ou instituições, este apoio é benéfico capitalism, the process of
Este texto procura avançar na com-
para a saúde dessas pessoas. A hipóte- ‘ethnicisation’ of the work force and
preensão do movimento histórico que
se levantada é que o custo das terapias the dislocation of the debate from the
subjaz a implementação de políticas
alternativas, juntamente com as difi- cultural/ educational sphere
de ação afirmativa para os negros no
culdades do sistema público de saúde promoted by international
campo educacional, considerando ser
em lidar com os sofrimentos dos po- organisations.
essa a condição para o atendimento
bres, ajuda a explicar o grande cresci- Key-words: negroes and education,
dos interesses e necessidades desse
mento das igrejas pentecostais e evan- policies of affirmative action.
grupo, na perspectiva da transforma-
gélicas em torno das classes populares
ção. Para isso, são retomadas refle-
no Brasil.
xões realizadas em outras oportuni- Alda Judith Alves-Mazzotti
Palavras-chave: pobreza, saúde e
dades, explicitando idéias há muito Repensando algumas questões sobre
emoção, pentecostalismo.
debatidas por estudiosos e militantes o trabalho infanto-juvenil
negros, bem como discutindo os mo- O artigo focaliza algumas questões
Poverty, emotion and health: a
mentos em que as diferenças são presentes na discussão acadêmica so-
discussion on Pentecostalism and
transformadas em “problema”, quan- bre o trabalho infanto-juvenil e suas
health in Brazil
do são marcas distintivas e necessá- conseqüências sobre o “fracasso esco-
In the field of health and education, a
rias da condição humana. Em segui- lar” das crianças pobres, buscando
debate has arisen about the causes of
da, busca-se avaliar as condições apontar posicionamentos ideológicos,
health problems. This debate
materiais e ideológicas do capitalis- sociocentrados, e falhas metodológi-
maintains that the origin of health
mo atual, o processo de etnicização cas que levam à redução da comple-
problems today is basically related to
da força de trabalho e o deslocamen- xidade do problema. Tal redução evi-
the emotions rather than viruses or
to do debate para a esfera cultural/ dencia-se no estabelecimento de
bacteria. The theory of social
educacional promovido por organis- relações lineares que desconsideram
support suggests that if the causes
mos internacionais. as mediações envolvidas, bem como
of health problems are basically
Palavras-chave: negros e educação, na homogeneização de categorias que
emotional, then the solutions must
políticas de ação afirmativa. incluem uma vasta gama de variações
also be related to the emotions. The
internas. São apresentados exemplos
so-called alternative therapies are
Negroes, education and policies of de pesquisas que sustentam os ques-
proposed as a way of dealing with
affirmative action tionamentos feitos, apontando-se al-
the emotions, together with the
This text seeks to further our gumas conseqüências daqueles
theory of social support. This theory
understanding of the historical posicionamentos reducionistas sobre
holds that when people receive
movement which underlies the as práticas escolares e o desenvolvi-
systematic emotional or material
implementation of policies of mento cognitivo e afetivo das crian-
support from groups or institutions,
affirmative action for Negroes in the ças e adolescentes trabalhadores.
this support is beneficial to their
field of education considering this to Dentre os fatores que precisam ser
health. This raises the hypothesis
be the condition for attending the considerados na discussão das rela-
that the cost of alternative therapies
interests and needs of this group, in ções entre trabalho precoce e trajetó-
together with the difficulties
the perspective of transformation. To ria escolar são destacados: as media-
encountered in the public health
this end, the text takes up reflections ções representadas pelas diversas
system in dealing with the sufferings
developed on other opportunities instâncias excludentes que cercam a
of the poor help to explain the
explaining ideas debated for years by pobreza, a heterogeneidade do traba-
enormous growth of Pentecostal and
scholars and militant Negroes and lho infanto-juvenil e o papel atribuí-
evangelical churches among
discussing the moments in which do às famílias pobres com relação ao
working-class populations in Brazil.

170 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19

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