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Cores

Estava o garoto com seu avô diante de um belo mar de final de tarde. Era o
último dia de férias e naquela mesma noite o garoto partiria de volta à cidade de
seus pais. Estavam sentados na praia. Os dedos das mãos e dos pés cavavam e
fuçavam na areia fofa e ainda quente do dia. Começava um leve vento como
prelúdio de uma noite talvez chuvosa.
O garoto perguntou para seu avô: “Por que o mar é azul?”. Ele respondeu:
“O mar não é azul. Da onde você tirou isso?”.
“Como assim? É claro que é. Você está ficando cego depois de velho?”
“Ahhh vocês jovens... Sempre apegados às superfícies. Menino, o mar não é
azul. Ele está azul. O mar não tem cor. Dependendo de como ele está no dia e de
como a luz entra nele, ele fica de uma cor ou outra. Ele não tem cor fixa. Depende
do dia, da luz, do vento, do céu”.
O garoto silenciou um pouco insatisfeito por ter que reconhecer a razão do
avô. Depois de algum tempo voltou a perguntar: “E a areia, sabichão? A areia não
muda de cor nunca”.
“Será que não mesmo? Ou será que somos nós que não estamos atentos às
suas mudanças? Ou talvez só não a tenhamos visto por meio de luzes diferentes”. O
avô respondia sem desviar o olhar do oceano, com voz calma e firme.
O garoto gostava muito de estar com o avô naquele lugar. Sentia muita falta
daqueles momentos enquanto estava longe, na capital. Seus pais não o deixavam
brincar na rua, pois tinham medo que algo de ruim acontecesse. Segundo eles,
“havia muita gente ruim por aí”.
“Vô, por que as pessoas são ruins?”. Disse o garoto com evidente desanimo
na voz.
“Meu querido, as pessoas não são ruins. Elas são como o mar”. Respondeu o
velho agora olhado para o neto, o qual mostrava claros sinais de dúvidas.
“Eu sou bem branco, certo?” Perguntou o avô. “Certo”, disse o jovem.
“No entanto, você lembra como eu ficava quando sua avó me olhava e me
chamava de ‘meu velho’? Você se lembra disso?”
“Você ficava todo vermelho, vô. Parecia um tomate velho. hahaha”.
“Quieto, garoto! Deixe-me continuar. O olhar e as palavras da sua avó eram
como uma luz que quando refletia em mim virava amor e me deixava todo
vermelho. A luz da sua avó sempre refletia como amor em mim. Hoje a lembrança
dela reflete como saudade”.
“Não entendi o que isso tem a ver com as pessoas ruins”, disse já impaciente
o garoto.
“Pois bem, as pessoas não são boas ou ruins, assim como o mar, elas não têm
cor fixa. As pessoas se tornam boas ou ruins de acordo com o que a vida joga nelas,
de acordo com a forma que as coisas do mundo refletem em sua essência. Muitas
pessoas vivem décadas em meio a tempos sombrios. É difícil ser colorido no escuro.
Mas isso não quer dizer que elas tenham perdido a capacidade de ter cores. Basta a
luz certa, basta o anglo correto. A mesma luz branca pode virar diferentes cores em
cada um de nós. Eu fui cinza grande parte da minha vida. Não me importava com
ninguém a não ser eu mesmo até a luz da sua avó bater em mim e me encher de cor.
Não podemos achar que as pessoas são uma mesma coisa sempre e para sempre.
Elas mudam. Mesmo que estejam vivendo por décadas nas sobras, basta a luz – o
olhar, o toque, a palavra - na medida certa para que elas voltem a ter cores. Daqui a
pouco vai anoitecer. O mar vai ficar negro, mas nenhum de nós dois duvida que isso
não fará com que ele perca a capacidade de ser azul, verde, cristalino quando
amanhecer”
O garoto ficou olhando para o avô que já voltara a olhar para o mar. Depois
de algum tempo ele mesmo se virou para o oceano, se aconchegou no ombro do
velho e ficou em silêncio. Percebeu que adorava as cores que as palavras do avô
produziam nele.
O sol desceu e de repente o olhar do céu deixou o mar, a areia e os dois
vermelhos. O mundo parecia apaixonado pelo céu. Amor.

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