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Brega, Samba, e Trabalho Acustico: Variacdes em torno de uma contribui¢ao teérica 4 etnomusicologia. Samuel Araujo, UFRJ (*) RESUMO: Busca-se empreender uma reflexao conceitual sobre o campo da etnomusicologia, tomando-se como ponto de partida dois universos de comunicacao sonora ndo-verbal -- brega e samba ~ estudados pelo autor. 0 conceito de trabalho actistico, elaborado a partir de certas formulacées do campo da filosofia da linguagem, é assim proposto como instrumento eficaz para a superagao de certos impasses e dicotomias recorrentes na pesquisa etnomusicolégica A assimilagao pela ctnomusicologia de temas comumente associados & chamada, misica popular urbana pés em discussio os fundamentos que norteavam aquela disciplina até ento, Aquekes complexos entroncamentos de culturas, surgidos, em muitos casos, do anonimato e nele, em Ultima instancia, dissolvidos, causaram ao etnomusicdlogo uma perturbadora sensagao de fluidez, uma vez. impossibilitada sua visio holistica das mitiplas relagdes sociais subjacentes ao fazer miisica, teoricamente possivel na observagdo das assim chamadas "sociedades simples", Superada a antipatia cr6nica pelos produtos musicais dessa realidade a cada dia mais abrangente (¢ também refletindo a emergéncia da antropologia urbana), procurou-se uma espécie de conciliago tedrica entre uma etnomusicologia mais "clissica" e aquela dedicada a estudos urbanos, tomando-se alguns daqueles produtos--nio todos--ora como reelaboragio de tradigdes estabelecidas, ora como criagdo de novas tendéncias expressivas de comparivel significagdio para seus criadores. Como formulado por Nettl, Longe de virarmos nossas costas a estes resultados das desventuras da poluigdo, nds deveriamos estar atentos a eles porque constituem o grosso da experiéncia musical ndo ocidental, e porque nos fornecem a oportunidade de observarmos, em primeira méo, o produto musical da interagao cultural , (Nett! 1983-346) Embutido em tal esforgo, vinha uma espécie de mensagem de alivio 4 humanidade supostamente ameagada por total homogeneizagio cultural: a progressiva urbanizagio das populages do globo sob a hegemonia capitalista continuava a produzir diversidade em abundancia, 0 que parecia afastar os perigos do musical grey-out antevisto por Lomax (1968). Convenientement no entanto, permaneceu excluida dessa literatura toda a esfera de miisicas que, ignorando a boa vontade dos etnomusicélogos, pareciam continuar a comprometer a diversidade; isto &, provavelmente, a parte majoritéria da produgdo/recepgao em termos globais hoje. Comeste trabalho, procuramos apresentar uma perspectiva tedrica por nés construida em raziio de dois estudos de priticas musicais no contexto brasileiro que poderiam ser caracterizadas, em um primeiro momento, como urbanas. As duas primeiras partes consistirio de uma descrigo concisa de cada uma dessas priticas e de alguns problemas por elas colocados; ja a terceira parte discute o trabalho de elaborago conceitual que passou a ocupar-nos a partir dos estdgios conelusivos de nossa tese de mestrado (Araijo 1987). Nela tratévamos de uma questo sui generis dentro do conjunto da misica brasileira: todo um setor da produgzio comercial, a chamada miisica brega, tido pela critica jomalistica como de mau gosto e repleto de clichés, ¢ que, embora responsavel pelo crescimento inusitado do mercado do disco no Brasil, permanecia quase que absolutamente ignorado pela literatura acerca da miisica brasileira. Iniimeras questées emergiram de tal estudo, mas talvez.a principal delas consistia em entender por que nossos compéndios limitavam-se a tragar uma linha evolutiva compreendendo uns poucos géneros ¢ estilos populares, como a modinha, o hindi, o samba ou a bossa-nova, reservando um lugar marginal, se tanto, a outras formas de express4o. O critério de representatividade obviamente nfo a respondia de modo satisfatério, nem tampouco o de enraizamento na tradigdo passada, ou © de uma anilise musical mais ortodoxa. Talvez suas fontes, formas de utilizagdo e taxonomia, comentadas mais adiante, fossem por demais escorregadias, sem que se pudesse apontar categoricamente o que caracterizaria 0 género ou estilo, ou mesmo se haveria afinal algum género ou estilo definivel. s questdes poderiam parecer inerentes apenas ao tratamento de rétulos do mercado do disco, sem aparente ligagaio com um grupo social especifico—dai ser o brega um tema até ento negligenciado pelos etnomusicélogos ¢ folcloristas musicais. Todavia, logo ao iniciarmos nosso projeto de tese de doutorado sobre o samba na cidade do Rio de Janeiro (Araijo 1992), um dos elos-chave da linha evolutiva a que nos referimos acima e organicamente ligado 4 populagdo affo- brasileira da cidade, j4 antecipavamos a interferéncia dessas quest6es, uma vez que desde 0 comego de sua histéria conhecida podemos detectar a utiizagao do samba como mereadoria pela indistria do entretenimento, Como lidar com tais simultancidades e principalmente coma interagdo--muitas vezes tensa--entre a expresso comunitiria do samba ¢ seu aspecto comercial nos surgia, portanto, como uma questio tedrica de dimensdes mais sérias do que poder-se-ia pensar em principio. Seria, de algum modo, possivel a retroalimentagiio via indiistra de valores e aspiragdes coletivas caros as comunidades que cuttivam o samba (o chamado mundo do samba), ainda que no fosse esse, evidentemente, o objetivo? Como entender e, quem sabe, influir positivamente em tal proceso? BREGA Em meados dos anos 80, discutiu-se pela primeira vez na chamada grande imprensa 0 retumbante sucesso comercial de todo um espectro de cantores populares rotulados, segundo as noticias iniciais, como brega. Essa subita ressonfineia devia-se, em grande medida, & publicidade em tomo do disco Brega-cl jue-brega (1984) do cantor, pianista e compositor Eduardo Dusek. A farta exploragio de tal "descoberta" nao conseguia, no entanto, explicar uma série de questdes. O préprio termo era uma delas. Em nossa recolegao pessoal, ele era aplicado pejorativamente por setores da classe média do Rio de Janeiro ao universo das empregadas domésticas--ie., seus gostos, hibitos, pertences--por volta da década de 70; em sentido mais amplo, a tudo aquilo que se procurasse caracterizar como de mau gosto. Mas os diciondrios no registravam tal verbete e as mitas definigdes entdo colhidas pela imprensa eram as mais dispares, muito embora nelas estivesse quase sempre presente algum elemento depreciativo Instado a comentar o assunto, o pivé da polémica, Eduardo Dusek, apontava alguns dos rebatimentos do “fenémeno"; muito além do preconceito contra as empregadas, também seriam brega a elitsta e anti-democritica politica brasileira e 0 vazio cutural a ela correspondent. Nesta titima acepedo, segundo ele, o termo também ter-se-ia estabelecido na industria do disco, como designagao genérica de um amplo e esiiisticamente diversificado repertério, que, como ja apontado acima, responderia pela esmagadora maioria de discos (em nimero de unidades) vendidos no Brasil como um todo. E interessante ressaltar que nossa visio subjctiva 4 época em que tal debate veio 8 tona era a de que pelo menos aqueles exemplos apontados pela imprensa por nés reconhecidos mais imediatamente nos pareciam "mabacabados", aborrecendo-nos sua audigdo; seu sucesso, pensdvamos, estaria associado intrinsecamente a massivas execugdes em radios e outros veiculos populares ¢ a uma suposta vulnerabilidade do gosto popular, privado de amplo acesso aos bens culturais e do cultivo de manifestagSes proprias, ie. "auténticas”. Tais impressdes, umidamente superficais, apresentavam pontos comuns as primeiras descriges da misica brega pela midia, Segundo elas, um nimero expressivo de cangGes teriam "letras ingenuamente rominticas” ou contetido "escatolégico", "grotesco", ao que se acrescentaria o uso abundante de clichés musicais. A acreditar nessas mesmas fontes, os artistas mais representativos dessa tendéncia scriam origindrios dos extratos mais baixos da hierarquia social: trabalhadores rurais, motoristas de caminhio, trabalhadores de baixa renda do setor de servigos, himpen- proletariado. Face ao verdadeiro mosaico de estilos apontados pela imprensa como inelusos na mesma categoria, resolvemos empreender um estudo exploratério de um conjunto de gravagdes representativas, ie., segundo 0 sucesso comercial tornado ptiblico durante 0 periodo em que 0 debate irrompeu, Procuramos basicamente atentar para as possiveis articulagdes de elementos, géneros e estilos musicais na delineagao de um campo musical mais amplo, mas homogéneo o bastante para justificar sua incluso sob uma categoria geral comum. As fontes musicais identificaveis nos discos mais representativos eram, no entanto, bastante heterogéneas ¢ fluidas. Variavam de rancheras invocando 0 estilo dos mariachi mexicanos, mas cantadas em portugués, a lambadas de algum modo evocativas do merengue dominicano (adaptagio popular no norte do pais desde pelo menos os anos 70); de uma aparente sub-espécie de samba denominada samba-roméntico a derivagdes brasileiras do rock britinico e norte- americano dos anos 60 (uso de alguns clichés do chamado "ié-i-ié"). Tal diversidade era costurada, por assim dizer, por procedimentos musicais a que dificlmente poderiamos atribuir ‘uma origem mais precisa, As possibilidades abertas por essa pesquisa nos pareceram bastante inferessantes, ainda que nos intrigassem, Brega aparecia como uma forma de juizo negativo vigente em uma formagao social especifica, a brasileira. Inviabilizava uma operagao taxondmica ou uma andlise musical tradicional, pois cada termo era ambiguo, o mesmo podendo dizer-se da maioria dos elementos musieais. Scus limites eram, portanto, impalpdveis, bastando haver uma diferenciagdo real ou imagindria entre o enunciador e um objeto qualquer para que a designago pudesse ser aplicada (e.g, "Villa-Lobos tinha um gosto brega", fiase a propésito de certas preferéncias do ilustre

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