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Arte para todos, performance


de Luzia Ribeiro. Foto de Marco
Rodrígues.
O CINEMA DA RETOMADA ANTES DA “RETOMADA” –
PORQUE NÃO PENSÁ-LO COMO UM “CICLO”

Luiz Augusto Rezende é Doutor em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ. É Professor Adjunto do
NUTES-UFRJ (Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde) e coordena o Laboratório de Vídeo
Educativo desta mesma instituição.
História do cinema brasileiro/retomada/público

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“O colapso de 1990 estabeleceu um hiato radical que projetou sobre toda a
produção anterior a pecha de ciclo encerrado. A própria noção de
‘renascimento’, então em voga, sinalizou este sentimento de descontinuidade
ainda vigente” (XAVIER, 2001: 41-42).

Palavras-chave: História do Cinema Brasileiro; Retomada; Público

A citação de Ismail Xavier acima sintetiza bem a compreensão geral que ainda
hoje temos do cinema brasileiro da década de 1990: um momento de ‘crise’
advindo do desmantelamento das estruturas de financiamento e distribuição
então vigentes, somado ao conseqüente desaparecimento do filme brasileiro e
do seu público dos cinemas. A isto teria se seguido um ‘renascimento’, uma
‘retomada’ da produção, denominação pelo qual a época acabou ficando
conhecida. Mas, além disso, o que Xavier destaca no trecho acima é a
percepção, quase inevitável, tanto da chamada ‘Retomada’, quanto do
momento anterior do cinema brasileiro (os anos 1980, o ‘período Embrafilme’),
como “ciclos que se abrem e se fecham”. Ainda mais porque estes últimos
estariam balizados pelo advento de uma ‘ruptura’ muito evidente: a suposta
interrupção da produção de longas-metragens, a partir das medidas tomadas
por Collor.

Uma primeira ressalva que poderíamos fazer a respeito desta última


consideração é que, como alguns pesquisadores já vêm apontando (CAETANO,
2007; VALENTE, s.d.; BUTCHER, 2005), a crise de produção do início dos anos
1990 não representou realmente um “hiato radical”, ou seja, a paralisação da
atividade ...

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audiovisual ou da produção de longas-metragens no Brasil. Por um lado,


“curtas, programas de TV, comerciais, vídeos institucionais e video-clips
continuaram a ser feitos em quantidade, sustentando setores da infra-estrutura
(como estúdios e laboratórios) e empregando mão-de-obra criativa e técnica”
(BUTCHER, 2005: 36). Este mesmo autor indica também o surgimento, nesta
época, de produtoras que viriam a ser pólos de produção importantes, tais
como Videofilmes, Conspiração, O2. Por outro lado, segundo Maria do Rosário
Caetano (2007: 197), a realização de filmes de sexo explícito sustentou a
produção de longas em 1990 e 1991. Em 1990, foram 47 longas brasileiros
concluídos em película (entre eles alguns projetos iniciados ainda nos tempos
da Embrafilme), dos quais 31 eram pornográficos. Em 1991, de 44 longas, 25
eram pornográficos. A partir de 1992, esse quadro muda: neste ano, foram
apenas 9 filmes (2 pornográficos) e, em 1993, 11 filmes (2 pornográficos). Em
1994 e 1995 (anos que costumam marcar o início da “Retomada”), produziram-
se respectivamente 12 e 13 filmes, dos quais apenas 2 eram pornográficos. A
redução da produção não se deveria muito mais, então, à decadência dos
filmes de sexo explícito? Por que falar em uma “retomada”, a partir de 1994-
95, se a diferença do número de filmes produzidos é tão pequena?

Algumas respostas possíveis: em geral, a historiografia e a crítica não têm


reconhecido os filmes de sexo explícito como dignos de consideração. Por outro
lado, como quem realmente parou de produzir, neste momento, foi o grupo de
cineastas mais consagrados e mais dependentes das verbas da Embrafilme (que
costumava representar “o” cinema brasileiro), destacar o “retorno” ao trabalho
de alguns desses diretores, bem como a estréia de diretores que já haviam se
destacado no curta-metragem na década anterior, pode ser entendido como
uma clara demonstração de que a defesa dos interesses e da perspectiva deste
grupo ainda tinha grande peso político.

É certo que o termo “Retomada” serve bem para descrever um momento que
teve, inegavelmente, suas especificidades. Não se trata de negar ou relativizar
essas especificidades, pelo menos não mais do que o suficiente para que
possamos explorar ...

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outras dimensões semânticas da noção de “Retomada”, e sugerir outras linhas
de pesquisa e análise que se coloquem para além da necessidade de
estabelecimento de marcos históricos. Neste sentido, um quadro teórico-
metodológico interessante para pensar a história recente do cinema brasileiro
(dos anos 1980 até hoje, pelo menos, se não toda ela), seria analisar, além
das rupturas, as continuidades entre os períodos que são considerados “ciclos”,
de forma a escrever uma história não apenas de filmes e de diretores
(BERNARDET, 1995), mas também de idéias e de formações discursivas
(FOUCAULT, 2004).

A “Retomada” pode ser um momento histórico rico para este tipo de análise,
caso tenhamos interesse em olhá-la nem tanto como um período isolado entre
marcos mais ou menos precisos (no entanto, onde se localiza o seu fim?), mas
como uma etapa em que diversas questões e debates ganham novo relevo em
suas relações simultaneamente de ruptura e de continuidade com momentos e
movimentos anteriores. Neste sentido, é sintomático que, apesar do termo
“retomada” indicar semanticamente uma idéia de continuidade, não foi este o
aspecto destacado pela maior parte dos críticos e historiadores que se
dedicaram a tratar dos anos 1990. Ao contrário, o que encontramos mais
frequentemente é uma busca e uma ênfase nos aspectos que apontariam para
o “ineditismo” do período. Não há muitas referências a linhas de continuidade
com a década imediatamente anterior, por exemplo. No máximo, aponta-se a
“recomposição de certos núcleos temáticos” ou o “retorno a espaços
emblemáticos do Cinema Novo”, como a favela e o sertão (XAVIER, 2001: 45).
Mas me parece que, neste caso, encontramos justamente uma ruptura e não
uma continuidade.

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Este quadro teórico-metodológico me parece interessante para analisar, por


exemplo, a questão do público do cinema brasileiro nos primeiros anos da
década de 1990. A curva de queda do número de espectadores dos filmes
brasileiros encontrou seu momento crítico entre os anos de 1991-1993, quando
as bilheterias apresentaram números muito baixos (0,4% do total de ingressos
vendidos, segundo Caetano). Esta “fuga” do público não deveria, no entanto,
ser analisada apenas em sua conjuntura: um ...

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... pequeno número de filmes lançados em um momento de crise, uma safra de
“qualidade duvidosa”, estratégias de lançamento inexistentes, etc. De fato, os
historiadores apontam outras razões, mais estruturais, para esta queda. A crise
econômica, o encarecimento dos ingressos, a disseminação do videocassete, a
concorrência da TV, o fechamento de muitas salas no interior, nos centros e
nos subúrbios das grandes cidades já vinham afetando o público dos filmes
brasileiros desde meados dos anos 1980, pelo menos. Mas o que esta nova
situação de mercado implica é o início de um processo de mudança do perfil
sócio-econômico e cultural dos públicos de cinema no Brasil. O que significa
que, ao longo da década de 1980, passaremos de um público eminentemente
popular, a um público em que predominam as classes médias e altas.

O problema para o mercado do filme brasileiro é que o público das classes


médias e altas, mais sintonizado com o padrão técnico e estético do cinema
americano, já recusava o cinema brasileiro. Esse público o identificava com
apenas duas de suas vertentes: o filme de sexo ou o de “miséria” (CAETANO,
2007: 198). O legado do Cinema Novo e a memória ainda fresca das
pornochanchadas e dos filmes de sexo explícito não faziam parte do universo
dos produtos culturais que essas “elites” desejavam consumir. Soma-se a isso
a visão estigmatizada do cinema brasileiro como obra de técnicos
incompetentes e da precariedade tecnológica. É por este motivo que grande
parte dos filmes da “Retomada” se concentrará, ao que me parece, em
“destruir” a imagem de sexo-miséria-precariedade relacionada ao cinema
brasileiro. Sem desacreditar esta imagem, de todo distorcida, este público não
se reencontraria, naquele momento, com o filme brasileiro.

Os produtores brasileiros precisarão preocupar-se mais, então, em adequar os


filmes ao gosto deste espectador, buscando estratégias para conquistá-lo
(como o desmonte da “imagem-estigma” apontada acima), já que é ele o novo
senhor das bilheterias. O curioso é que este movimento de adequação ao gosto
de um “novo” público, de busca por padrões ou modelos estético-comerciais
que respondessem a esta mudança do perfil sócio-econômico e cultural do
público, já é perceptível desde o final ...

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dos anos 1970, no discurso de um diretor como Cacá Diegues, por exemplo.
Diegues já mostrava preocupação em alcançar padrões técnicos internacionais
de qualidade (de som, fotografia e produção), e continuará reiterando essa
posição até os anos 1990. Ortiz Ramos (2004: 26-41) aponta diversos outros
exemplos que refletem essa preocupação durante os anos 1980, assim como
Ismail Xavier. Ao falar em “enterro da estética da fome”, Xavier aponta a
necessidade de afirmação da técnica e da “mentalidade profissional” como um
dado importante dessa década (XAVIER, 2001: 40). A preocupação com a
qualidade técnica e com a eficiência da narrativa, como reflexo de uma
tentativa de conquista de um certo público, não é, portanto, um dado novo da
“Retomada”.

Mas, com a “Retomada”, esta preocupação se torna uma urgência, em função


de uma nova conjuntura (fim dos mecanismos de subvenção) que exigirá
outras bases para a afirmação do cinema brasileiro – busca do respaldo do
público e dos “sucessos” de bilheterias para justificar a sua existência, já que
os projetos políticos e estéticos se esvaziaram. Neste sentido, a “Retomada”
pode ser entendida como o “ápice” deste processo, que se inicia mais cedo e

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continua para além do fim da Embrafilme.

Se o resultado do processo de mudança do perfil sócio-econômico e cultural do


público foi a queda das bilheterias dos filmes brasileiros, já a partir dos anos
1980, isso ocorreu, a despeito de outras razões, porque o cinema brasileiro não
conseguiu responder com agilidade a esta nova situação. E foi pego
“desprevenido” quando a Embrafilme acabou. Se, entre outras coisas, a
“Retomada” significou, como sugiro aqui, o coroamento de um processo de
“readequação” estético-comercial do cinema brasileiro em resposta a este
“fracasso” inicial, mais do que apenas um período de busca de novas formas de
produção, podemos considerar que este processo se iniciou antes do fim da
Embrafilme, antes da “Era Collor” (1990-1993). E que, sob este aspecto, uma
retomada nem chegou a existir.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERNARDET, J-C. Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro. São Paulo:


Annablume, 1995.

BUTCHER, P. Cinema Brasileiro Hoje. São Paulo: Publifolha, 2005.

CAETANO, M.R. “Os anos 1990: da crise à Retomada”, in Alceu v.8 nº15,
jul/dez 2007.

FOUCAULT, M. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


2004.

RAMOS, J. M. O. Cinema, Televisão e Publicidade – Cultura Popular de Massa


no Brasil nos anos 1970-1980. São Paulo: Annablume, 2004.

VALENTE, E. Editorial. Contracampo – Revista de Cinema nº 52, s.d.

XAVIER, I. O Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

Recebido em 14/05/2008
Aceito em 27/05/2008 .

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