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ERGONOMIA E PROJETO ORGANIZACIONAL:

a perspectiva do trabalho
Francisco de Paula Antunes Lima
Departamento de Engenharia de Produção-UFMG
Caixa Postal: 209 - CEP: 30161-970 - Belo Horizonte - MG
e-mail: fpalima@dep.ufmg.br

Resumo

Em contraposição à sugestão de somar as abordagens da análise ergonomlca do trabalho (AET) e do


projeto organizacional (PO), apoiada na tese da limitação de seus respectivos objetos, defendemos a tese
de que estas disciplinas são concorrentes e disputam um mesmo campo da realidade - o da organização
do trabalho' como um todo. Em relação aos prob lemas teóricos e práticos postos pela organização do
trabalho, a AET assume uma perspectiva própria no interior da produção (o ponto de vista da atividade
- PVA), que consiste em priorizar a interatividade dos sujeitos produtores, situados em qualquer posição
da estrutura organizacional, na realização cotidiana de suas tarefas e funções. Sabendo que todo trabalho
é socialmente organizado, o PVA constitui uma lógica determinada de coordenação das inter-relações entre
os sujeitos sociais enquanto trabalhadores, que elaboram suas próprias normas e quadros de ação e de
cooperação. Através da lógica da atividade é possível construir uma autonomia efetiva dos sujeitos sociais,
que reelaboram permanentemente as regras formais de o rganização do trabalho, criando uma organização
real mais adequada às necessidades da produção concomitantemente com a regulação individual e
interindividual da carga de trabalho.

Abstract

Instead of joining both ergonomic work analysis (EWA) (from the French ergonomics view) and
organisational design (OD) approaches, this paper argues that those disciplines are competing for the same
object - the organisation of work (in a wider sense). Regarding both practical and theoretical problems
emerged from the organisation of work, EWA developed the activity standpoint (AS). The AS looks for allocate
priorities to the interrelations among producers performing their daily tasks. Producers, in turn, can be
located at any point of the organisational structllre. Accepting that work is sociaUy organised, AS constitute
a specific logic to help to co-ordinate relationships among social subjects (producers), who build their own
norms, frames of action and co-operation criterion. The activity logic allows building a real autonomy of
producers, wllO are continuaUy re-inventing their formal rules of work organisation. This allows to be c/oser
to the idea of an 'actual organisation' which seems to be more adequate to the technical demands of the
productive system, individual inter-individual regulation of work/oad.

Palavras chave: ,
análise ergonômica do trabalho, organização do trabalho, 10rganização real, ponto de vista da atividade.

Key words:
ergonomics work analysis, work organisation, real organisation, activity standpoint

1. Questões de Método aventurarem em terras alheias, mesmo quando se


trata de disciplinas tão vizinhas quanto a ergo-
Raras vezes, teóricos e praticantes de uma ci- nomia e teoria das organizações, ambas voltadas
ência específica abandonam o terreno bem conhe- para a análise e o projeto de situações de traba-
cido de sua disciplina , no interior da qual estão lho. Destarte, disciplinas vizinhas convivem em
habituados a trilhar caminhos seguros, para se paz, cada uma em seu galho, desconhecendo as
PRODUÇÃO, W Especial, p. 71-98 71 ABEPRO, Rio de Janeiro, 2000
questões fundamentais e o tronco comum que as do alguns especialistas se aventuram em terra in-
unem. A ignorância mútua é condição desta con- cógnita, dispondo apenas de seus próprios con-
vivência pacífica, situação que se assemelha ao ceitos, pressupostos e perspectivas, é tratado
comportamento burocrático nas organizações o como inepto ou simplesmente desconsiderado,
qual, paradoxalmente, é objeto de crítica tanto da suas observações críticas sendo comumente redu-
ergonomia quanto da teoria organizacional'. Em zidas a simples mal-entendidos.
conseqüência, ao se entrincheirarem atrás de seus Ora, depois de algumas décadas de discussão,
próprios problemas, conceitos e métodos, cada a epistemologia deste século, apesar de ter fra-
disciplina se torna, de fato, inatacável, na medida cassado em seu projeto de fundamentação dos
em se mede apenas por seus próprios termos. procedimentos racionais de validação das propo-
Apesar de tratarem de uma mesma realidade, as sições científicas, deixou assentados pelos menos
disciplinas que se referem à esfera do trabalho ou dois princípios que devem servir de ponto de par-
da produção se apresentam como se fossem inco- tida para qualquer debate interdisciplinar: 1) a
mensuráveis, impedindo uma confrontação crítica incomensurabilidade entre teorias concorrentes
de resultados, conceitos, métodos e práticas de está assentada em sólidos pressupostos, às vezes
intervenção, que poderia ser reciprocamente impensados; 2) as interpretações dos fatos só se
enriquecedora. dão a partir e nos limites de determinados pressu-
Esta atitude auto-referente (e autocompla- postos ontológicos, visão de mundo ou quadro de
cente) só se mantém às custas de um abandono referência. Portanto, os mal-entendidos são ine-
das questões fundamentais que constituem o tron- rentes a qualquer debate teórico, uma vez que se
co comum, comumente descartadas como se fos- tende espontaneamente a interpretar os conceitos
sem questões "filosóficas". Cada disciplina per- de uma teoria ou disciplina, a partir do quadro de
manece, assim, na superfície das coisas, onde referência de uma outra. Um debate inter-
pode facilmente se esconder atrás da folhagem disciplinar só poderá ser construtivo, ser um de-
exuberante que esconde a própria árvore. Desco- bate efetivo, tornar-se inteligível para as partes
nhecendo o que lhes é comum, cada disciplina envolvidas, se os mal-entendidos inevitáveis fo-
pode circunscrever sua atuação apenas ao espaço rem reconhecidos e tomados como ponto de par-
que lhe é específico, evitando os debates inter- tida. Mais precisamente, não há debate possível,
disciplinares. confrontação efetiva de idéias, sem um mínimo de
Este auto-isolamento não é desprovido de ra- tolerância para reconhecer nos propósitos envie-
zões objetivas e de uma certa dose de prudência, sados do outro algo que de fato te concerne. Li-
pois, raras vezes, um especialista consegue co- mitar-se ao reconhecimento e à denúncia da
nhecer com suficiente profundidade uma outra incompreensão mútua não faz, obviamente, avan-
disciplina que a sua própria, ao ponto de dominar çar muito os limites auto-impostos por cada dis-
métodos, conceitos e a própria história da disci- ciplina, que tende, assim, a ensimesmar-se.
plina, sem falar dos saberes tácitos necessários Não cabe aqui discutir a natureza ou origem
para manipulá-los com segurança, "savoir-faire" (social, política, ideológica, filosófica, cultural ou
adquirido somente pelo habitus desenvolvido psicológica) desses pressupostos e tampouco
através de uma longa convivência com os pares e aprofundar a questão soore a incomensurabilidade
da participação no debate interno. Por isso, quan- radical entre teorias diversas, assumindo, portan-

1. Lukács, em uma obra polêmica, denunciou esta caráter burocrático das ciências especializadas: "O método das
"ciêncÚIs particulares" da sociedade, que consiste a remeter mutuamente os problemas, condena-os a ficar sem
solução, assim como a burocracia que "enterra" as questões envÚIndo-as de repartição em repartição" (Lukács,
1967, p. 189).
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to, a priori, a inutilidade de qualquer debate Antes de tratarmos do assunto em tela, é pre-
interdisciplinar. Deixemos que a prática decida so- ciso estabelecer certas condições que tornam o
bre o sucesso ou fracasso da confrontação de idéi- debate produtivo. Salerno fecha seu texto concla-
as que ora se inicia entre a ergonomia e a teoria mando uma ética do discurso que possibilite uma
organizacional. A alternativa, assumir a comodida- comunicação efetiva entre os sujeitos. Nisto ele é
de do relativismo absoluto, não deixa de ser um taxativo!2 Sem reconhecimento da alteridade com
pouco incômoda, dado o seu caráter autocontra- toda as suas diferenças, não há debate possível,
di tório: se é verdade que a epistemologia fracassou apenas conflito e imposição. Ora, não há aqui,
em seu projeto de estabelecer as condições de vali- sob a aparência de uma racionalidade discursiva
dação do conhecimento, não é razoável estender democrática, a imposição de uma forma de con-
este fracasso à prática científica enquanto tal ou frontação de idéias? A racionalidade comunicati-
abandonar qualquer tentativa de confrontação de va não é também uma opção por uma forma de-
idéias que favoreça o avanço da ciência . Quando terminada de conduzir o debate, portanto "impo-
nada, este debate deve servir, através da explici- sição de regras" ? Por que deste debate dever-se-
tação dos mal-entendidos, para espelhar seus pres- iam excluir os conflitos ou até mesmo a possibi-
supostos e, desta forma, deslocar a discussão para lidade de afirmar que o outro não é diferente,
os fundamentos e problemas comuns das disciplinas mas igual?
que se refiram a uma mesma realidade e que tam- As normas de validação do discurso racional
bém compartilhem objetivos práticos comuns. caem nas mesmas antinomias da epistemologia
Por outro lado, a inexistênci a deste debate que quer fundamentar, segundo critérios internos
interdisciplinar é sintoma de uma lacuna mais sé- à ciência, o conhecimento verdadeiro, conforme
ria: a carência de uma reflexão aprofundada, em já mencionado anteriormente. Quanto a nós, acre-
cada disciplina, sobre os seus próprios fundamen- ditamos que as regras são constituídas através do
tos; situação crônica dos especialistas brasil eiros, próprio debate e que os conflitos e mal-entendi-
sobretudo naquelas áreas mais próximas às exi- dos são inevitáveis, podendo ser dirimidos, tanto
gências práticas, como a engenharia de produção. quanto possível, ao longo do debate, jamais a
À falta de uma tradição teórica na formação dos priori. Seja como for, reconhecemos que as con-
engenheiros de produção, junta-se o pragmatismo dições normativas do debate devem também ser
" natural" dos engenheiros, vício profissional que discutidas, tanto quanto o problema em questão.
impede o surgimento espontâneo de uma reflexão Um desses conflitos deve ser evidenciado des-
consistente. Por isso, apesar das deficiênci as ine- de já para que os mal-entendidos não impeçam
vitáveis que possa ter este primeiro passo, é lou- completamente o entendimento dos argumentos.
vável a iniciativa de Mario Salerno de ter provo- Salerno ressalta, desde o início (p. 45), que a sua
cado este debate entre a ergonomia e a teo ria opção é contribuir para a prática de intervenção,
organizacional, disciplinas cuja proximidade torna caracterizando a maioria das pesquisas brasileiras
ainda mais absurda a tática da indiferença buro- sobre produção e trabalho como sendo análises
crática, uma vez que os especialistas respectivos, crítico-descritivas. (A mesma caracterização é
além de atuarem sobre uma mesma realidade, retomada ao final do texto, à p. 58). Ora, tal se-
convivem pessoalmente nos departamentos uni- paração entre teoria e prática nos parece exagera-
versitários. Já é passada a hora, portanto , deste da e pode deturpar fortemente os termos do de-
debate vir à tona. bate. Sem poder aprofundar aqui esta questão, li-

2. "(... ) deve haver uma discussão que valide as normas, regras e objelivos a que o projeto eSlá sujeito, e do
qual participam saberes diferentes; caso contrário, é conflilo certo e imposição de regras assumidas por uma
parte frenle à oUlra" (Salerno, 2000a, publicado neste número, p. 58).

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mitar-nos-emos a colocar uma dúvida que permi- Deixemos explícitos nossos pressupostos e li-
ta um debate mais aberto. A opção pelos estudos nha principal de argumentação. Sustentamos a
posição que a ergonomia e a teoria organi-
crítico-descritivos não nos parece estar distancia-
da da prática, mas apenas desconsidera a prática zacional compartilham o mesmo objeto, a mesma
imediatista, o pragmatismo que promove somen- esfera da realidade: ambas tratam do trabalho em
te mudanças tópicas, cosméticas, em prol de situação, vale dizer em suas condições imediatas
transformações mais substantivas e radicais. Se e mediatas de realização, não importando se são
assim o for, não é razoável cobrar-lhes a mesma condições materiais ou organizacionais. Nesse
preocupação com detalhes práticos da interven- sentido, a AET e o projeto organizacional são
ção na concepção de sistemas produtivos, aqui e duas abordagens concorrentes.
agora, e exigir-lhes que se meçam pe los mesmos A posição específica da ergonomia pode ser
critérios dos engenheiros, cujo pragmatismo pode traduzida no que o ergonomista francês Jacques
também ser colocado em xeque por análises mais Duraffourg denomina de "ponto de vista da ativi-
aprofundadas, inclusive segundo critérios mais dade"3. No interior dos vários pontos de vista que
reivindicam legitimidade no interior de uma orga-
globais de eficiência. Assim, seria falsear o debate
contrapor desde o início os " teóricos-críticos" enização, cada um deles correspondendo a uma
os "práticos", uma vez que não há teoria que não função parcial (produção, qualidade, manutenção,
tenha propósitos ou implicações práticas, nem compras, vendas, finanças, segurança etc.), o
tampouco prática que não se oriente por uma te- ponto de vista da atividade - em suma, o ponto
oria, seja ela implícita . Há que se reconhecer, de vista de como os objetivos fixados podem ser
além disso, que esta relação teoria-prática pode efetivamente alcançados em uma dada situação -
se colocar em horizontes temporais mais ou me- se apresenta como uma posição igualmente legí-
nos longos, dependendo dos mandatos sociais tima, embora seja raramente reconhecida enquan-
que legitimam certas práticas e não outras. to tal. Duraffourg não chega a afirmar que um ou
outro desses pontos de vista seja superior aos ou-
tros, mas nós sustentamos que o ponto de vista
2. A Perspectiva do 1l-abalho da atividade é o único ponto de vista com possi-
bilidade de se universalizar. Todos os outros,
no Interior da Produção
embora legítimos, são parciais e sua imposição ou
Neste texto , em contraposição ao artigo de predominância acaba gerando problemas na pro-
autoria de Mario Salerno, defendemos o seguinte dução (os eternos conflitos interdepartamentais
ponto de vista: ao contrário do que sustenta são o exemplo mais notório). Apenas o ponto de
Salerno, a análise ergonômica do trabalho (AET) vista da atividade é capaz de estabelecer um com-
e o projeto organizacional não constituem duas promisso satisfatório entre os objetivos de produ-
abordagens complementares, que poderiam se ção e as lógicas conflitantes de sua realização,
somar para resolver as demandas atuais das orga- inclusive (e isto é fundamental para a presente
nizações, mas sim perspectivas excludentes, quer discussão) entre os aspectos formais e informais
em termos teórico-conceituais, quando se trata de do trabalho, entre o trabalho prescrito e o traba-
analisar e explicar o trabalho, quer no que lho real, entre a organização e a atividade viva.
concerne à prática de sua organização, quando se Além dos problemas propriamente organiza-
pretende aumentar a sua eficiência ou obter gan- cionais ou do trabalho, o ponto de vista da ativi-
hos de produtividade. dade representa a lógica própria de uma realida-

3. Par maiores detalhes, ver DurafIourg; Schwartz e Davezies e (1991) e Guérin et cals. (1991).
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de social, humana. O fato de se tratarem de dis- exemplo de como se pode produzir conhecimen-
ciplinas do campo das ciências sociais, e não das to sobre um "objeto" humano-social - a ativida-
ciências naturais, acarreta conseqüências impor- de de trabalho - e de como os homens, inclusive
tantes, também relacionadas à natureza do seu e sobretudo aqueles que serviram de "objeto" de
objeto. O trabalho é uma atividade humana, si- análise, podem se apropriar deste conhecimento
multaneamente social (direcionada para outros e para transformar as situações de trabalho. Antes
realizada em co-operação com outros homens) e de esclarecermos estes pontos vejamos a posição
individual (diz respeito à forma como cada um de defendida por M. Salerno em seu texto.
nós traça uma trajetória no interior das (im)possi-
bilidades sociais). Apenas a constatação desta
3. A Ergonomia Segundo Salerno
dualidade já é suficiente para recolocar o debate
sobre o duplo significado social e individual do Antes de esclarecermos as discordâncias, que
trabalho e sobre os pressupostos implícitos em . sejam reafirmados os pontos de acordo, para que
cada teoria a respeito da natureza do trabalho. os mal-entendidos fiquem mais evidentes, permi-
Uma outra conseqüência, que também se põe tindo, desta forma, conduzir o debate ao que é
como pressuposto de qualquer ciência social, é essencial.
que o objeto de análise e o sujeito do conheci- Desde a introdução, Salerno coloca o problema
mento são idênticos: se o trabalho é uma ativida- da confrontação interdisciplinar em termos seme-
de determinante da hominização e, até hoje, da lhantes aos nossos: é necessário evitar minúcias e
humanização dos homens em geral e de cada in- operar "reduções" (p. 45). Isto, com efeito, é ne-
divíduo em particular, não há como assumir a cessário, mas cuidando para que essas reduções
perspectiva objetiva de um observador exterior, inevitáveis não impliquem em reducionismos
que teria acesso privilegiado à verdade sobre o empobrecedores, o que pressupõe duas condi-
trabalho ou sobre como ele deve ser realizado. É ções: (1) não se pode descaracterizar o objeto em
evidente que, ao assumirmos o que é e como o questão, apresentando como algo que ele não é, e
trabalho deve ser realizado, estamos, ao mesmo (2) a redução deve abstrair o superficial (para os
tempo, determinando o que é e o que será o indi- propósitos da discussão), para revelar o que é
víduo que o realiza. Assim, dificilmente a "ciência essencial. Quanto a isto, explicitar o fundamento
do trabalho", não importa o que ela pretenda ser, essencial da ergonomia, Salerno procede com
poderá justificar uma posição de pura objetivida- uma maestria que poucos ergonomistas demons-
de. Este fato, já decantado pela filosofia da ciên- tram possuir, o que não impede que ele, ao ado-
cia, - o "círculo hermenêutico", isto é, a identida- tar certos pressupostos, acabe cometendo equívo-
de entre sujeito e objeto no campo das ciências cos que revelam um mal-entendido fundamental.
humanas - não implica necessariamente em Nossas divergências começam para além da ca-
relativismo absoluto ou em seu corolário: a im- racterização da disciplina (à parte alguns deslizes
possibilidade de qualquer conhecimento objetivo de menor importância, correta no essencial). Di-
sobre fenômenos humano-sociais. Impede, toda- zem respeito mais precisamente às conseqüências
via, que se adote, na teoria e na prática, a atitu- que decorrem das possibilidades de análise do
de própria aos cientistas da natureza (a posição trabalho e da prática fundadas na AET, em espe-
de um observador externo), exigindo novas for- cial o lugar e função que lhe são reservados por
mas de produção do conhecimento sobre o traba- Salerno em relação à organização do trabalho e
lho humano e de sua organização prática. A vis-à-vis à abordagem do projeto organizacional.
ergonomia e a AET, em sua metodologia, concei- Desde o início, os dois campos são demarca-
tos fundamentais e prática de intervenção, são um dos de forma inconfundível: "a abordagem

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organizacional se preocupa com a estrutura, com Salerno é rigorosa, pois evita cair na falsa identi-
os sistemas de informação e coordenação, e com ficação de comportamento e atividade, esta sim,
as po/[ticas de gestão de recursos humanos e de uma categoria própria à ergonomia. O comporta-
desempenho da empresa/entidade" (p.46). Por mento é uma categoria da psicologia behaviorista,
sua vez, a "análise ergonô- mica do trabalho que compartilha com o projeto organizacional os
centra seus objetivos, métodos e desenvolvimen- mesmos propósitos de uma análise objetivante: o
tos teóricos sobre a atividade de trabalho efeti- behaviorismo pretende reduzir a atividade huma-
vamente desenvolvida pelas pessoas, suas difi- na ao comportamento, explicando-a através de
culdades físicas e/ou cognitivas, e sobre as con- variáveis externas, diretamente observáveis, sem
dições de trabalho encontradas nas empresas" recorrer aos mecanismos intermediários da subje-
(p. 46). Fundamentalmente a diferença, e razão tividade (consciência, intencionalidade, vontade,
de complementaridade, entre as duas abordagens decisão, liberdade etc.).
é que a análise e o projeto organizacional privile- Os limites entre as duas abordagens ficam, assim,
gia os aspectos estruturais das organizações, rigorosamente postos, desde o nível mais geral da
"tendendo a ser objetivante, impessoal", e "a estrutura organizacional aos comportamentos indivi-
análise ergonómica da atividade tende a ser duais imediatos, o que é rearfimado em uma outra
subjetivante" (p. 46. Cf., também, p. 57). passagem igualmente clara e precisa:
Pensamos não trair a opinião de Salerno ao di-
zer que todo o seu texto está organizado em tor- "o nível, os objetivos, os métodos e os ins-
no desta contraposição entre uma abordagem trumentos de análise e projeto organizacional
objetivante e uma abordagem subjetivante. Esta são bastante diferentes daqueles da análise
contraposição é reafirmada ao longo de todo o ergonómica do trabalho. Ao invés da discus-
texto e pode ser melhor caracterizada com a se- são dos mecanismos de ajuste desenvolvidos
guinte passagem: pelo trabalhador, trata-se de estruturar o que,
grosso modo, a ergonomia consideraria como
"A abordagem organizacional tem (. .. ) prescrito, mas num sentido muito mais amplo
uma forte característica estrutural/ estru- do que prescrição da tarefa ou do posto. En-
turante. E aliado à estrutura, há os sistemas volve os mecanismos hierárquicos (e, portan-
de informação, coordenação e planejamen- to, de poder formal), os mecanismos de coor-
to, e o comportamento esperado das pesso- denação, os sistemas de informação, de toma-
as. Este comportamento deve ser estimulado da de decisão, a relação com os mecanismos
e induzido, e para isto existem as diversas de gestão, o livre trânsito dos fluxos produti-
po[(ticas de recursos humanos, de estímulo vos, chegando até, conforme o enfoque, a uma
à produtividade e qualidade etc." (p. 50) maior ou menor prescrição da tarefa a ser de-
sempenhada por um determinado trabalhador
o importante aqui, que reforça e aprofunda as (pp. 50-51)
diferenças específicas entre as duas abordagens, é
a consideração do "comportamento" como perti- Em suma, o objeto da AET seria a atividade
nente à abordagem organizacional. Os leitores dos sujeitos humanos e seus mecanismos de
menos familiarizados com a ergonomia poderiam regulação, o "trabalho real", enquanto o projeto
pensar que se trata de uma atribuição indevida, organizacional se interessa pelo que em ergono-
pois caberia a esta disciplina tratar de tudo que mia se denomina de "trabalho prescrito", em nível
diz respeito ao indivíduo e, portanto, de seu com- bem mais amplo que esta disciplina o tem consi-
portamento. Entretanto, a caracterização de derado.

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4. Alguns Problemas Menores mia é precisamente a "regulação" permanente-
e uma Questão Maior mente estabelecida pelos trabalhadores entre ob-
jetivos de produção e a autopreservação de sua
Ao longo do texto, Salerno comete alguns integridade física, mental e afetiva. Não há
equívocos, tanto de ordem geral, sobre as de- sentido falar em carga de trabalho se não se le-
mandas e a forma de intervenção técnica em var em consideração as exigências de produ-
questões sociais, quanto em relação à atuação ção. A separação entre dois campos distintos -
da ergonomia propriamente dita. Se relaciona- o da saúde e condições de trabalho e o da pro-
mos os pontos que consideramos criticáveis, dução - reduz o problema da carga de trabalho
não é por preciosismo ou gosto pela polêmica, apenas ao impacto de fatores externos. A
mas apenas para conduzir o debate para o que ergonomia perderia assim, no campo da saúde,
realmente importa. Por isso, cada um dos pon- tudo o que fez avançar em relação à higiene ou
tos tratados abaixo, são considerados como à segurança do trabalho e deixa de fora, no
deslizes menores em relação à questão funda- campo da engenharia de produção, a contribui-
mental, servindo apenas para acentuar a diver- ção da ergonomia ao projeto de instalações
gência essencial. Em verdade, esses deslizes para melhorar a eficiência da operação. Aliás,
são sintomas do pressuposto assumido por o que existe de mais estressante do que um
Salerno de que a ergonomia e análise organiza- instrumento de trabalho que não funciona ade-
cional tratam de coisas diferentes e, portanto, quadamente?
seriam complementares. Esta complemen- A distinção de níveis de abordagem também
taridade se fundaria inclusive em demandas transparece na afirmação de que quanto mais de-
práticas. talhada fora descrição do trabalho, menos
abrangente se torna o nível de análise e de atua-
A Questão do Nível de Abordagem ção da ergonomia (p. 49). A dicotomia entre pro-
fundidade da análise e abrangência não tem sen-
A tese da complementaridade das duas aborda- tido, a menos que se assuma como pressuposto
gens implica que a realidade da produção esteja que a realidade da produção está estruturada
também dividida em níveis, como deixa trans- como uma boneca russa. No trabalho, aprofundar
parecer a caracterização opondo subjetivante/ a análise de uma situação significa ampliar a com-
objetivante. Por "subjetivante" deve-se entender preensão das complexas interações entre o com-
que a AET possui certas especificidades, pressu- portamento aqui e agora e os determinantes
postos e objetivos que circunscreveriam seu obje- organizacionais, econômicos e sociais. Como dis-
to e espaço de ação ao nível do indivíduo, do se Goethe: "A arte da observação consiste em
posto de trabalho e da atividade. Assim para descobrir o grande no pequeno". O quadro 1 dá
Salerno, a ergonomia focaliza as condições de tra- um pequeno exemplo desta possibilidade e vários
balho e efeitos sobre a saúde, e não as estratégi- outros poderiam ser lembrados (Ver, por exem-
as e objetivos de produçã0 4 • plo, Guérin et aI., 1991).
Mais uma vez, Salerno carrega nas tintas da di- O mesmo equívoco em relação ao nível trans-
ferença para reforçar a tese da complemen- parece quando Salerno caracteriza a unidade de
taridade. Uma das categorias centrais da ergono- análise como sendo a tarefa/atividade individual

4. "Partindo do pressuposto lógico de que o foco da análise de condições de trabalho é o trabalho, não impor-
ta discutir muito a pertinência das ações dos trabalhadores com relação às estratégias e objetivos da produ-
ção, mas sim com relação às condições de carga de trabalho, ritmo, penibilidade, sofrimento, ideologias de-
fensivas etc." (p 49)

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QUADRO 1: Atividade, organização da produção e determinantes econômicos

Este caso mostra como uma simples observação deu motivo à descoberta de determinantes eco-
nômicos subjacentes às más condições num posto de trabalho, sendo possível mesmo relacioná-las
com a organização da produção em escala mundial.
Durante uma análise de postos de trabalho repetitivo numa empresa da indústria eletrônica situ-
ada no Brasil, um ergonomista observa que, num determinado posto, a operadora trabalha com o
dedo enrolado em esparadrapo. Pergunta-lhe a razão daquilo e a operadora explica que "algumas
peças agarram", e acrescenta: "Quando vem uma peça brilhante, eu já preparo o dedo".
O processo de trabalho neste posto consiste em posicionar duas pequenas chapas metálicas em
mandris assentados sobre uma placa giratória que se movimenta num ritmo predefinido e constan-
te, a soldagem posterior das peças sendo feita também automaticamente pela máquina.
Após a explicação da operadora, o ergonomista observa que as peças superiores, colocadas num
recipiente situado à esquerda da superfície de trabalho, apresentam, com efeito, uma ligeira dife-
rença de brilho. É uma outra operadora que lhe esclarece sobre esta diferença, quando o
ergonomista indaga se a mesma coisa acontece no seu posto: "Aqui não - responde a trabalhado-
ra. Aquelas lá eu perguntei, por curiosidade, para uma amiga que trabalha no almoxarifado e ela
me disse que umas peças vêm da França e outras dos Estados Unidos" .
Somente quando o caso foi discutido com os engenheiros da produção é que o "mistério" foi es-
clarecido (mais nem por isso resolvido na prática) A diferença de brilho era conseqüência da estra-
tégia de compras da empresa, que repartia os pedidos entre a matriz (francesa) e uma outra filial
localizada nos EUA. A fábrica situada no Brasil pertencia a uma multinacional norte-americana
recentemente adquirida pela empresa francesa. As compras internas ao grupo foram então
rearranjadas para atender os objetivos de política financeira e de estratégia industrial da matriz, o
que implicava transferir parte da compra de materiais intermediários, antes adquiridos nos EUA,
para a França.
A filial brasileira ficava assim obrigada a operar com lotes diferentes de uma mesma peça, os
quais, mesmo se mantendo dentro dos limites de tolerância dimensional exigidos, afastavam-se da
média em sentidos opostos, acabando por inviabilizar uma regulagem única da máquina (mandris)
capaz de acomodar todas as peças com igual perfeição. Donde a dificuldade de posicionamento das
peças por parte da operadora. (Lima, 1991)

(p. 49). Em verdade, não há tarefa que seja rea- sua carga de trabalho depende, ao lado da deman-
lizada de forma isolada, todo trabalho, toda ativi - da objetiva, de um coletivo de trabalho, de cole-
dade profissional é necessariamente social. O que gas que são mais ou menos competentes ou dis-
gera o mal-entendido é que a regulação da carga postos a cooperar, de produtos semi-acabados
de trabalho é, em última instância, individual. entregues ao seu setor ou posto com mais ou
Evidentemente, são sempre os indivíduos que so- menos qualidade e presteza, de máquinas bem
frem ou adoecem, que pensam e resolvem proble- ajustadas ou com manutenção precária e assim
mas. Não há sofrimento coletivo assim como não por diante. A atividade coletiva e a regulação
há um pensamento coletivo. Trabalhar significa, coletiva da carga de trabalho são também aspec-
em última instância, "o uso de si por si mesmo" tos relevantes e presentes na maior parte das aná-
(Schwartz, 1988), mas isto apenas em última ins- lises ergonômicas.
tância. O que cabe a cada indivíduo como sendo Esta delimitação do objeto da análise
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ergonômica do trabalho teria como conseqüência gem organizacional esbarra nos determinantes
induzir à "super valorização das ações do anali- macrossociais e macroeconômicos. Vê-se aqui
sado", o que implica, por exemplo, na "tendência que o pressuposto assumido é a hierarquização
a assumir toda a variabilidade como intrínseca a dos campos de atuação em níveis, o que fortale-
um determinado trabalho, quando ela é muitas ce a sua tese da complementaridade, pois cada ní-
vezes passfvel de redução ou mesmo de elimina- vel encontra no outro o seu limite, ao mesmo
ção" (p. 50), se se adota a perspectiva do enge- tempo em que guarda para si seu próprio espaço.
nheiro de produção ou do organizador. É verda- Tudo se passa como se a realidade da produção
de que alguns ergonomistas supervalorizam a "in- fosse organizada em camadas.
teligência do trabalho", mas a explicitação da Caso se adote uma perspectiva diferente, "re-
complexidade do trabalho serve também para re- cortar" o real não mais em camadas mas sim de
duzir esta complexidade, seja através de medidas forma transversal (cada objeto seria, assim,
organizacionais, seja através da formação e de- multidimensional, abarcando diferentes níveis),
senvolvimento de competências. Aliviar a carga então a estratificação cairia por terra. Ressalte-se,
de trabalho quer dizer quase sempre facilitar ou todavia, que esta não é uma opção metodológica
simplificar o trabalho . Esta contradição já foi ou epistemológica: está antes dada na realidade
apontada há muito tempo por Montmollin (1981 da produção e do trabalho, onde os níveis
e 1984) que vê aí a filiação taylorista da ergo- organizacionais (estratégia, estrutura) estão obje-
nomia: racionalizar o trabalho significaria neces- tivamente separados do trabalho imediato, assim
sariamente simplificá-lo. Este paradoxo não se como o "econômico" está separado da organiza-
resolve no nível do posto de trabalho, pois decor- ção/empresa individual. Seria evidentemente utó-
re de uma contradição objetiva da divisão social pico propor uma abordagem integradora desses
do trabalho, que pode ser mais ou menos estan- diversos aspectos quando e enquanto o real for
que , fixando os indivíduos a funções parciais e em si mesmo clivado. Todavia, aceitar como dada
repetitivas durante toda a vida. Se a ergonomia esta separação é abrir mão de toda perspectiva
encontra aqui um limite, este não é tampouco crítica do estado de coisas atual. Por isso a aná-
superado pelo projeto organizacional, a não ser lise ergonômica do trabalho deve manter seu lado
através das tímidas experiências dos grupos semi- "crítico-descritivo" ainda que, et pour cause, suas
autônomos. possibilidades práticas de ação estejam limitadas
Por outro lado, por "objetivante" deve-se en- pelo "nível organizacional". Salerno reconhece
tender que o projeto organizacional seria mais este papel de vigilância metodológica da análise
abrangente, considerando a organização como um ergonômica do trabalh0 6 , mas não lhe dá legitimi-
todo, o processo e não as operações isoladas dade ontológica para ultrapassar o seu nível sem
(p. 51)5. A análise ergonômica encontraria os ajuda da análise organizacionaJ1.
seus limites na organização assim como a aborda- Salerno percebe com precisão que as tentativas

5. Além disso, em contraposição às outras características da análise ergonômica, o projeto organizacional é descen-
dente, privilegiando os aspectos formais/es truturais da organização, as normas e prescrições; adota metodologias
de "cunho racionalista-cartesiano" e trata a atividade de forma instrumental e os seres humanos de forma im-
pessoal.
6. [A análise ergonômica] "Pode ser um bom instrumento para ajudar a análise organizacional, tomada num sen-
tido mais amplo, a voltar a incorporar o trabalho explícita, sistemática e controladamente (em termos de vi-
gildncia metodológica) em suas considerações". (p. 58)
7. "é o papel clássico (ainda que fundamental) da análise ergonômica do trabalho, que ocorre como crítica par-
cial à organização a partir das condições de trabalho, e menos como uma parte legitimada anteriormente para
disclllir o projeto organizacional (e não apenas o projeto do mobiliário ou a interface de software)". (p. 57)

79 Ergonomia e Projelo de Organizacional


de extensão da ergonomia, como a macroer- cional, não algo inerente a toda e qualquer forma
gonomia, "tendem a cair na análise organiza- de organização do trabalho. Noutros termos, o
cional sem os instrumentos para tar', perdendo o engenheiro é também um trabalhador e, enquanto
que existe de melhor na análise ergonômica do tal, pode ter a sua atividade analisada nos moldes
trabalho: a análise do trabalho propriamente dita da AET, como se analisa o trabalho dos operári-
(pp. 50). É precisamente por isso, que a "genera- os. É verdade que a ergonomia padece de um
lização", a passagem para o nível da organização, ranço "obreirista", conseqüência de sua história,
é uma questão delicada que apavora os ergono- quase exclusivamente dedicada ao trabalho dire-
mistas, sempre reticentes a sair das análises loca- to, mas a abordagem é generalizável ao estudo de
lizadas nos postos de trabalho. Mostra, contudo, atividades mais complexas, como pode ser visto
o outro lado, o risco de se construírem organiza- nos estudos que tratam do trabalho de chefes de
ções vazias. usinas e de engenheiros em equipes de projetos.
Desde já podemos assinalar uma incoerência na Os parâmetros apresentados na tabela 1 (Saler-
argumentação de Salerno, ao mesmo tempo em no, 2000a, p. 51), antes de serem " parâmetros"
que apontamos para nossa discordância funda- ou variáveis de uma organização são dimensões
mental: como pode ser inferido das citações aci- de realidade, da prática efetiva dos homens em
ma, o que de fato diferencia as duas abordagens inter-atividade. Por isso também se pode falar em
é a ênfase nas características subjetivas e objeti- organização real em contraposição à organização
vas, e não o nível de análise ou de abrangência. A prescrita. (Até mesmo na teoria organizacional
divisão em níveis parece um tanto quanto força- esta dualidade é percebida, quando se discutem as
da: se a análise organizacional vai da estrutura práticas de resistência, poder x legitimidade, au-
geral da empresa às tarefas e comportamentos toridade x liderança, organização formal e infor-
individuais, por que a ergonomia não poderia fa- ma!...) A atividade não se resume a ajustes no
zer o percurso inverso, isto é, da atividade de tra- interior de uma estrutura pré-existente, é também
balho imediata à atividade de trabalho organiza- atividade estruturante: os indivíduos transformam
cional. Não seria difícil demonstrar que, de fato, e negociam o quadro de suas ações. A rigidez es-
o ponto de vista da atividade atravessa toda a or- trutural é muito mais um efeito da alienação, do
ganização, do trabalho direto às decisões estraté- poder, do que uma necessidade eterna da organi-
gicas . Por sua vez, enquanto princípio paradig- zação do trabalho.
mático, a abordagem objetivante também atraves-
sa toda a organização (e, de resto, a sociedade As Demandas Postas pelos
em geral). Assim , quer no nível mais geral, quer Sistemas Complexos
no nível individual, a mesma dicotomia se põe.
Quem estabelece as estratégias da empresa tam- Estas duas características específicas - objeti-
bém realiza uma atividade com as mesmas carac- vante e subjetivante - encontram respaldo também
terísticas que qualquer outro trabalh ador. Se a nas demandas práticas das empresas relacionadas
atividade do engenheiro ou do diretor da empre- aos aspectos organizacionais, por um lado, e à
sa apresenta um escopo mais amplo, se, além de atividade de trabalho, por outro. A complexidade
uma atividade em si mesma, é também uma ativi- crescente dos sistemas de produção é apontada
dade "estruturante", de gerenciamento ou de or- como fonte da demanda por uma abordagem ar-
ganização, isto é conseqüência da divisão social ticulando a AET e o projeto organizacional e ori-
do trabalho que produz a hierarquia organiza- gem de problemas que ultrapassam as possibilida-

8. Sobre isto, ver Langa (1994) e os estudos da equipe da Universidade de Bordeaux, encabeça da por F. Daniellou
(Cf, Garrigou (1992) e Carballeda (1997)).
F. DE P. A. LIMA 80
des de cada uma dessas disciplinas isoladamente e exige uma síntese entre as duas abordagens, o que
(p. 46). Mostraremos que o problema não é novo, não ocorre, todavia, sem certas dificuldades. As no-
embora concordemos que agora ganha novas di- vas tecnologias colocam paradoxos que não são re-
mensões e uma importância maior com as trans- solvidos pela abordagem objetivante e impessoal da
formações tecnológicas e organizacionais atuais. análise organizacional. Assim, quer em relação aos
Por enquanto, o importante é que concordemos novos modelos organizacionais, quer em função das
com a necessidade de uma síntese, independente- tecnologias de automação, estaria "sendo atribuülo
mente de quando as demandas se colocaram. Esta ao ser humano um papel preponderante para que a
necessidade fica patente nos exemplos dados por organização alcance altos nlveis de qualidade,
Salerno à (nota 1, p. 47), quando são relatadas as flexibilidade, para que a produção seja eficien-
dificuldades de explicação da aceitação pelos tra- te" CP. 52). Sem se deixar levar pelas aparências,
balhadores das novas formas de organização do Salemo aponta com acuidade o paradoxo desse "re-
trabalho (NFOTs). Ficamos sem saber se a prefe- conhecimento" da importância do ser humano no
rência dos trabalhadores pelas NFOTs se deve às desempenho produtivo, assinalando ao mesmo tem-
características intrínsecas do trabalho com mais po a diferença da abordagem da ergonomia:
autonomia, se é um efeito duradouro ou passagei-
ro, se está relacionado às reclassificações salariais "tal importância é de caráter basicamen-
ou às estratégias de ocupar posições no mercado te instrumental, passando longe daquela
de trabalho, todas razões plausíveis e certamente conferida pela análise ergonômica do traba-
verdadeiras. O correto não seria explicar como lho, sendo muito mais genérica, relativa ao
interagem as características intrínsecas à ativida- estímulo a determinadas modalidades de
de, por um lado, e as condições objetivas da es- participação, ao estímulo a assumir deter-
trutura de cargos e salários e do mercado de tra- minadas responsabilidades, mas sem uma
balho, por outro? Se esta questão tiver alguma rediscussão mais profunda do trabalho hu-
pertinência, como então analisar essas interações mano propriamente dito". (p. 53)
de forma articulada?
A própria necessidade prática teria a virtude de Este mesmo paradoxo já havia sido apontado
relaxar a pretensão objetivante dos organizadores, anteriormente por Bainbridge, estudiosa da ativi-
forçados a abandonar a prescrição detalhada de dade de operação de sistemas automatizados. De
certas tarefas de controle dos modernos sistemas modo geral, estes e outros paradoxos decorrem
de produção automatizados, favorecendo a da concepção de sistemas produtivos baseada em
sinergia entre ergonomia e análise organizacional princípios tecnocêntricos, ou seja, considera-se a
(pp. 55-56). Surge, portanto, da própria realida- atividade humana como um resíduo da auto-
de da produção, a necessidade de uma conver- mação, um mal necessário que deve ser eliminado
gência entre as duas abordagens, inclusive porque ou reduzido a um mínimo, na medida das possibi-
a " crise da noção de tarefa" e a emergência de lidades dadas pelo avanço da tecnologia. Assim,
organizações flexíveis, valorizando a autonomia quando se manifesta, o interesse pelo "fator hu-
dos operadores para lidar com eventos imprevis- mano" é marcado de ambigüidades e motivados
tos, mostra "a dificuldade e perda de interesse, pela perspectiva tecnocêntrica. Os próprios enge-
por parte das empresas, em prescrever os gestos nheiros, quanto mais aperfeiçoam os sistemas téc-
e ações operárias" CP. 55). nicos, mais necessidade sentem de entender o "fa-
A realidade produtiva, em certa medida, contribui tor humano" que interfere na confiabilidade dos

9. "o interesse crescente pelos fatores hllmanos entre os engenheiros reflete a ironia de que quanto mais avançado
é o sistema de controle, mais crucial pode ser a contribuição do operador hllmano" (Bainbridge, 1987:271).
81 Ergonomia e Projeto de Organizacional
processos 9 • Isto, porém, não implica o reconheci- gerenciais" (p. 58), devem ser explicitadas e
mento, por parte dos engenheiros e informáticos, compreendidas é precisamente para que deixem
da necessidade de conceber de outra forma os de funcionar de forma implícita, natural, como se
sistemas homens-máquinas, isto é, de adotarem fossem meras questões técnicas ou determinadas
uma perspectiva antropocêntrica, na medida em pela tecnologia. Os ergonomistas e organiza-
que entendem a atividade de vigilância como uma dores, ao reconhecerem a determinação social da
atividade residual e não central. técnica, contestam ao mesmo tempo a legitimida-
Como, então, superar este impasse? Não se de dos engenheiros ao fazerem tais opções. Mas,
trata, como propõem vários autores, de mudar a se não são decisões técnicas, que critérios orien-
lógica de concepção tecnocêntrica para sistemas tam , a partir de então, as decisões organiza-
antropocêntricos? Ou se trata de conciliar e man- cionais, incluindo aquelas cristalizadas na tecno-
ter lado a lado duas lógicas distintas e, portanto, logia?
manter a situação paradoxal dos operadores? Assim, a questão não se esgota no reconheci-
Salerno não assume uma posição clara sobre a mento de que a concepção da situação de traba-
questão e hesita em tomar partido, apesar de re- lho depende também de outros atores, em parti-
conhecer com precisão todos esses problemas e cular dos engenheiros e informáticos, ela se põe a
paradoxos. O que o motiva a assumir tal posição partir do momento em que se verifica que estas
conciliadora não podemos saber, mas é possível decisões "técnicas" não são neutras ou indiferen-
esclarecer como ela se manifesta e em qual pres- tes do ponto de vista organizacional e da ativida-
suposto ela se assenta. Este, já vimos, é sempre o de humana. Há, aqui, uma contradição radical em
mesmo: Salerno quer manter a legitimidade da relação à qual é necessário tomar partido e este
análise organizacional e, para tanto, é levado a me parece evidente tanto para ergonomistas
reduzir o escopo de atuação da ergonomia. Para quanto para engenheiros de produção: ainda que
tornar sua tese mais palatável, é levado a fazer nós não saibamos segundo quais critérios e como
concessões a outras lógicas presentes na empresa, organizar o trabalho, certamente os engenheiros e
mesmo ao custo de aceitar imposições econômi- informáticos não são os especialistas mais habili-
cas contraditórias com a lógica do trabalho. tados, sobretudo quando deixam que os critérios
Na conclusão do texto esta posição fica evi- atuem de forma implícita.
dente, quando ele afirma (em sua segunda obser-
vação) que a concepção da produção e do traba- Descrição Extrínseca
lho não é atributo exclusivo nem dos organi- e Descrição Intrínseca:
zadores nem dos ergonomistas, na medida em que a Questão dos Limites da Ergonomia
ela "se dá de forma impUcita via o projeto de
equipamentos, de sistemas de informação e de Ao descrever a AET, em suas características e
softwares em geral" (p. 58). Hoje é difícil não limites, Salerno também comete alguns equívocos
reconhecer que as escolhas técnicas incorporam que não perturbam a posição clara do problema
certas definições organizacionais e isto deve ser principal, mas de certa forma servem para tornar
levado em consideração pelos organizadores e mais verossímil a sua própria tese. Assim ao
ergonomistas de forma a contrabalançar o poder apontarmos esses equívocos, não gostaríamos de
tecnocrático dos engenheiros 1o• Todavia, se "as discuti-los em si mesmos, mas apenas à luz da
restrições colocadas pelos dispositivos técnicos e contraposição já assinalada entre atividade e or-

10. Sobre o caráter normativo da tecnologia e a visão tecnocrática dos engenheiros, ver os textos de Thiollent, em
especial Thiollent, 1981.

F. DE P. A. LIMA 82
ganização, entre abordagem subjetivante e abor- pode-se discutir o âmbito em que se deve consi-
dagem objetivante. derar esta atividade. Salerno vê o trabalho, obje-
É certo que o foco da AET é o trabalho efeti- to da ergonomia, apenas em seu conteúdo opera-
vamente realizado, descrito através da observação tório imediato. Mesmo quando ele trata da estru-
de pessoas trabalhando e em contraposição ao tura organizacional como sendo trabalho prescri-
trabalho prescrito, mas devem ser feitas aqui duas to, cuida para que o escopo da ergonomia seja
ressalvas. Ao descrever o que se considera, em reduzido à prescrição da tarefa ou do posto:
ergonom ia, como sendo "trabalho prescri to", "trata-se de estruturar o que, grosso modo, a
Salerno discrimina os seguintes itens: "posto de ergonomia consideraria como prescrito, mas num
trabalho, métodos de produção, quantidades/ob- sentido muito mais amplo do que prescrição da
jetivos a serem atingidos etc." (p. 48). Esta ca- tarefa ou do posto" (p. 51). Em verdade, não é o
racterização é correta se dentro do "etc." inclu- que a ergonomia "consideraria", mas o sim o que
em-se também a estrutura organizacional, além de la já considera como sendo prescrito.
vários outros determinantes sociais (eventualmen- Outro equívoco é que, a rigor, a análise da ati-
te, as condições de transporte, valores culturais, vidade ou do trabalho real não se faz "a partir
relações entre sexo etc.). Como o elenco de das condições de contorno impostas", como pre-
determinantes de uma situação de trabalho, ou tende Salerno. O foco efetivo é a análise da ativi-
que fazem parte das "condições de contorno im- dade em suas características próprias e lógica in-
postas", é extenso e relativamente indefinido, so- trínseca (o que Pinsky & Theureau (1987) deno-
mente revelados com precisão através da análise minam de "descrição intrínseca" em contrapo-
do trabalho real, o "etc." não constitui uma im- sição à "descrição extrínseca"). Com efeito, limi-
precisão conceitual, mas sim uma necessidade tar-se a apontar as diferenças entre o que é pres-
coerente com a variabilidade das circunstâncias crito e o que efetivamente ocorre é apenas um
que influenciam a atividade humana e com o ca- primeiro passo da análise que deixa em suspenso
ráter mutável desta atividade e das situações nas a descrição de como a atividade efetivamente se
quais ela se desenrola. Este ponto é importante desenrola, qual é sua organização própria.
de ser lembrado porque sustentamos a tese de Salerno identifica um problema que poucos
que as abordagens são concorrentes e não com- ergonomistas percebem: a maior parte das análi-
plementares como quer Salerno. Assim, é funda- ses ergonômicas se limita a assinalar a "oposição
mental acentuar que a estrutura faz parte das con- prescrito-real" (p. 56). Isto, todavia, não expressa
dições de contorno impostas, portanto, já está o que existe de mais desenvolvido na disciplina,
integrada à AET sob o conceito de trabalho pres- nem sua especificidade. Consiste apenas no pri-
crito. Esta não parece ser a posição de Salerno, meiro passo da análise e da formação do ergono-
que tende a limitar a AET à análise do prescrito mista.
a nível de posto, tarefa ou indivíduo. Seria intrín- A constatação da diferença não é específica à
seco ao próprio método lidar com "questões da AET e os engenheiros de métodos e administra-
relação trabalho-trabalhador em senso estrito" dores não esperaram pelos ergonomistas para se
(p. 60). darem conta quer da variabilidade do processo,
Que a ergonomia esteja centrada na atividade quer do lado informal das organizações. É a im-
não resta dúvidas e Salerno percebeu com grande portância atribuída a esta variabilidade que dife-
clareza esta especificidade, distinguido-a das va- rencia o ergonomista do engenheiro de métodos:
lorizações instrumentais do ser humano no traba- para este a variabilidade deve ser eliminada, cons-
lho, que não rediscutem em profundidade o traba- titui um problema, é prejudicial e não essencial;
lho humano propriamente dito (p. 52). Todavia, para o ergonomista, a variabilidade é o essencial,

83 Ergonomia e Projeto de Organizacional


a realidade efetiva. Por isso o real, o que deve ser sim como estas duas coisas interagem. O que se
explicado, é o "trabalho real", a atividade, e não contrapõe não é um atividade real e uma prescri-
o trabalho prescrito, as normas escritas e as es - ção irreal, mas sim duas ordens de realidade: uma
truturas formais. lógica objetiva, estrutural e estruturante, a lógica
Salerno sabe muito bem disto, tanto que carac- da organização que se torna superior e externa
teriza as duas abordagens contrapondo "uma ló- aos homens, e a organização específica do traba-
gica de homogeneização, de estabilidade versus lho humano vivo, da atividade que se auto-regu-
uma lógica de heterogeneidade, de variabilida- la em inter-relação com outros indivíduos em
de" (p. 48). Todavia, o faz no sentido de reforçar iguais condições, também como pessoas em ativi-
a separação entre duas realidades e esferas de dades, não como representantes de cargos ou de
ação . Ao chamar a atenção para a questão da posições objetivas. A atividade não é espelho, tal
variabilidade no interior da ergonomia, ele diz; como se dá no modelo behaviorista de estímulo-
"Notar bem, o foco é a variabilidade/ajustes a resposta, do trabalho prescrito, das condições de
n{vel do trabalhador. e não a nível da produção. contorno. É, sobretudo, atividade produtiva, que
Apesar de estarem ligadas, as duas questões não produz as suas próprias condições de existência e
são idênticas (... )" (pp. 48-49. Grifos do autor). de efetivação. Nesse sentido, a atividade é tam-
Ora, se é verdade que se trata de duas questões bém estruturante. Nesta lógica, tudo que é sólido
diferentes, não se pode, entretanto, considerá-las se desmancha no ar: a atividade é negociação
em separado, ainda que seja na forma de duas permanente, onde o que permanece é apenas
abordagens complementares: a variabilidade que a aquilo que foi explícita ou implicitamente valida-
ergonomia descobre em qualquer atividade ou si- do na negociação. O posto não tem validade por
tuação de trabalho é um produto da organização si mesmo, a não ser quando reposto pela ativida-
e refere-se precisamente àque les aspectos que de viva. A lógica da organização objetiva é exa-
fogem à formalização e ao controle administrati - tamente o contrário: o posto se transforma em
vo (ver exemplo no quadro 1); por outro lado, a pressuposto irrevogável, é dotado de autonomia e
estabilidade organizacional só se mantém graças à de vontade própria. Não se trata de simples
atividade invisível de gestão da variabilidade pe- nuanças: são duas realidades que se defrontam,
los próprios trabalhadores, como pode ser cons - cada qual querendo se impor: ou a atividade se
tatado nas paradoxais greves do zelo ou opera- põe (e se compreende) a partir de sua própria ló-
ções-padrão. gica, ou ela se põe nos espaços e poros deixados
Isto não quer dizer que as estruturas não sejam pela organização objetiva, que predomina, assim,
reais, efetivas. O que está em jogo é a maior ou sobre os indivíduos. Veremos, adiante, que esta
menor importância que se atribui aos aspectos lógica objetivante é precisamente a essência do
objetivos ou subjetivos da situação de trabalho. taylorismo. Por isso a simples contraposição tra-
Trata-se de creditar a eficácia do trabalho, a sua balho prescrito - trabalho real deixa ainda sem
força propulsora vital, às estruturas formais ou ao explicação o que é dinâmica específica da ativida-
trabalho vivo. Em termos organizacionais, é a de, esta sim objeto da ergonomia.
contraposição entre poder e convencimento; au-
toridade e liderança; qualificação formal e quali- Análise da Demanda
ficação real; produção nominal e produção real
etc. Que as duas coisas existam - o prescrito e a Ao expor em que consiste a análise da deman-
atividade real - (a contraposição prescrito-real da, outras imprecisões foram cometidas. Segundo
pode levar a pensar que apenas a atividade seja Salerno a análise da demanda seria a fase "na
real e não o prescrito), não está em questão, mas qual se procura especificar quais os objetivos a

F. DE P. A. LIMA 84
serem atingidos conforme a solicitação do clien- tam para resolver o problema. Se, ao contrário, a
te da análise" (p. 48). Em verdade, a análise da atividade que medeia a relação entre o objeto cadei-
demanda não está restrita a uma "fase" prévia ra e o corpo do trabalhador tem algo a ver com a
(todo o método de AET, aliás, como qualquer característica "ergonômica", então os conhecimen-
método efetivo, é iterativo), mas o essencial é tos disponíveis nos manuais não seriam auto-sufici-
que não se busca apenas "especificar os objetivos entes, além de adquirirem sentido apenas através
a serem atingidos conforme a solicitação do cli- desta atividade: a característica ergonômica passa a
ente da análise", mas sim redefinir a própria de- ser propriedade do objeto servindo à realização de
manda. Via de regra os "clientes" não têm uma um trabalho. Entre o corpo físico da cadeira o cor-
consciência clara das razões dos problemas e po biológico do trabalhador se inserem várias medi-
quase sempre já apresentam a "solução" que gos- ações relacionadas à forma como as pessoas traba-
tariam de ver implementada. Por isso, a própria lham em determinadas circunstâncias. A universali-
idéia de um cliente personificado na pessoa que dade do ponto de vista da atividade se manifesta
solicita a análise ou que a paga não é adequada, também nas relações entre entes físicos, porquanto
pois, ao evoluir a análise, os problemas se apre- um destes entes é um ser humano que trabalha e
sentam de forma inesperada. que para tanto coloca em ação o seu corpo.
Se pudesse ser estabelecida uma regra geral
para o objetivo de uma análise da demanda seria o Método
precisamente a de recolocar o problema ou a hi-
pótese de trabalho do ponto de vista da atividade. Salerno comete um último equívoco ao carac-
Por exemplo, se um gerente solicita a especifi- terizar os instrumentos de coleta de dados, em
cação de uma "cadeira ergonômica", o ergono- especial a autoconfrontação, inovação metodo-
mista não a fornece toda pronta tal como consta lógica por excelência da ergonomia, que a distin-
nos manuais, antes verifica se é esta a solução do gue de outras disciplinas que se servem técnicas
problema postura I e, sobretudo, quais são as ca- semelhantes de observação participante ou de
racterísticas do desenrolar da atividade que deter- entrevistas de campo. Ao enfatizar a importância
minam a postura, portanto, a forma de inter-rela- da devolução dos dados para os trabalhadores,
ção do sujeito com a cadeira no curso de um ati- Salerno afirma:
vidade. A cadeira ergonômica deixa de ter uma
existência objetiva, a priori, e passa a ganhar senti- "Sem o retorno e a discussão com os tra-
do e existência específica a partir de como ela se balhadores objetos e fins da análise ergonô-
insere na atividade viva, como um de seus instru- mica (o que é conhecido como "autocon-
mentos. Evidentemente, ninguém consegue se as- frontação "), esta se empobrece, pois passa
sentar no ar, e é necessário que a cadeira seja algu- a prevalecer sobretudo a imposição dos cri-
ma coisa dotada de uma estrutura objetiva. A ques- térios do analista sobre o objeto, sem ne-
tão é se esta estrutura se resolve em uma relação nhuma possibilidade efetiva de controle
intrínseca ao objeto, ou seja, se a característica metodológico - a análise tende a virar um
"ergonômica" é uma propriedade da cadeira assim "tempos e métodos" sofisticado, resultando
como a sua densidade ou resistência. Mas ainda, a em nova prescrição definida externaliza-
questão real é saber se o "ergonômico" se resolve damente ao executante, ainda que com
na relação entre dois corpos físicos - o da cadeira e eventuais "boas intenções"". (p. 49)
o corpo da pessoa que se assenta - sem nenhuma
mediação. Neste caso, os manuais de ergonomia À parte o equívoco em confundir o retorno e
não apenas são de grande valia como também bas- discussão com os trabalhadores com o procedi-

85 Ergonomia e Projeto de Organizacional


mento metodológico de autoconfrontação (utili- permite olhar com mais acuidade o trabalho, é pre-
zado, em verdade, durante a coleta de dados, cisamente o método de entrevista em autocon-
como forma de explicitar os saberes tácitos), o frontação, através da qual se explicita o ponto de
restante da citação é de uma precisão absoluta vista da atividade, que dá vida e sentido aos dados
e mais uma vez Salerno é rigoroso ao contra- brutos. Repõe-se, também no que diz respeito ao
por o trabalho real à prescrição externa do método, a distinção entre ponto de vista intrínseco
comportamento, por mais sofisticada que esta (a atividade) e ponto de vista extrínseco (organiza-
seja. Todavia, a confusão sobre o que é a cional).
autoconfrontação revela igualmente o mal-en-
tendido essencial. sobre a natureza da ergono-
mia. A profundidade e o detalhamento da aná- 5. A Questão Essencial:
lise estão, em verdade, em estreita relação com &trutm-a Objmva x Atividade Subjmva
os instrumentos de pesquisa, mais especifica-
mente com a autoconfrontação. Sem este mo- Resolvidos esses equívocos menores, podemos,
mento indispensável, não se pode revelar a ló- agora, retomar a argumentação fundamental de
gica intrínseca da atividade, a saber: a motiva- Salerno, que se apresenta como uma análise com-
ção do trabalhador, suas estratégias e modos parativa das duas abordagens em torno de suas
operatórios, suas competências e saberes táci- características fundamentais: objetivante e
tos, a regulação das exigências contraditórias, subjetivante.
suas razões para agir de uma ou de outra for-
ma, as negociações no interior da atividade e Estrutura Organizacional e Atividade
consigo mesmo. A devolução ou validação dos
resultados são momentos subsequentes à A questão de fundo que transparece do texto,
autoconfrontação, que estão na dependência e da qual derivam todos esses equívocos, é a re-
desta análise anterior. Em si mesmas não enri- lação entre prescrição e atividade. Em termos
quecem a análise, apenas confirmam ou infir- práticos, a escolha consiste em organizar o traba-
mam o que já foi obtido. lho real de forma descendente, por cima, ou de
Esta pequena confusão, compreensível em forma ascendente. Noutros termos, tomá-lo como
quem não pratica a ergonomia, é reveladora de dado, forma cristalizada, ou, ao contrário, como
um problema de fundo: sem a autoconfrontação, fogo vivo, realidade criada, autoposto na e pela
no sentido próprio do termo, a metodologia de atividade dos homens. Salerno não vê aqui uma
AET se transforma em uma técnica apurada de contradição antagônica, propondo conciliar a
coleta de dados e de descrição detalhada do tra- dérmache descendente da análise organizacional
balho. A diferença específica passaria a ser a dis- com a dérmache ascendente da análise ergonô-
cussão com os trabalhadores, o que, a rigor, não mica do trabalho. Mas como, na prática, concili-
distingue a ergonomia de qualquer outra ciência ar estas duas abordagens? O reconhecimento da
do trabalho, pois a devo Iução dos resultados é importância dos serem humanos não basta para
uma questão de apropriação social do conheci- reconhecer o que é específico ao trabalho (ver
mento, o que vale tanto para a ergonomia como paradoxos da automação relatados por Bain-
para qualquer outra disciplina que tem os traba- bridge, 1987), assim como Taylor não desprezava
lhadores como objeto de estudo. Dessa forma, a a e experiência dos trabalhadores e sua contribui-
autoconfrontação não seria algo intrínseco à ção para melhorar sua organização prescritiva do
metodologia de análise ergonômica do trabalho. trabalho. Também os trabalhadores podem criar
Entretanto, o que diferencia a ergonomia, que lhe os seus próprios grilhões.

F. DE P. A. LIMA 86
Não há como negar as diferenças entre as duas os engenheiros técnicos. O uso de técnicas e de
abordagens. Certamente analisar o processo não é conceitos semelhantes (pesquisa operacional,
a mesma coisa que analisar a atividade ou o tra- otimização, logística etc.) pode fazer pensar que
balho humano ll . O processo de trabalho, além da se trata de uma área comum, compartilhada por
atividade humana, comporta elementos objetivos, especialistas diferentes. É bem possível, dada a
conhecimentos científicos objetivados em máqui- sua formação matemática, compartilhada com
nas e processos, aplicação tecnológica das ciênci- outros engenheiros e informáticos, que um enge-
as naturais, que, atualmente, tendem inclusive a nheiro de produção se ocupe do problema de
predominar em termos quantitativos sobre a ati- otimizar a carga de um alto-forno, tarefa que
vidade viva. É precisamente esta a diferença entre também pode ser assumida por engenheiros
uma abordagem técnica do processo produtivo e metalúrgicos. Os métodos empregados podem ser
uma abordagem organizacional, que só se justifi- comuns, mas o problema, em seu conteúdo, já
ca apenas e quando persiste "a intersecção do não é mais um problema pertencente ao campo da
objeto e dos sujeitos da produção". Contudo, Engenharia de Produção.
neste momento a análise do processo deixa de ser A ergonomia padece menos desse mal resolvi-
uma questão de organização do processo de tra- do problema de identidade do que a engenharia
balho e passa a ser uma questão de aplicação de produção, pois o estudo do trabalho só é ne-
tecnológica da ciência, passa a pertencer ao do- cessário quando o homem está presente no siste-
mínio de atuação dos engenheiros técnicos e não ma de produção (donde a função de "vigilância
mais dos engenheiros de produção, organizadores metodológica" que lhe atribui Salerno). A opção
ou ergonomistas. Que engenheiro de produção se por esta abordagem objetivante do processo de
preocupa com o deslocamento ou transporte de produção é que coloca a engenharia de produção,
materiais no interior de uma torre de craquea- ou a abordagem organizacional, diante de dilemas
mento ou de um alto-forno? O transporte é uma insolúveis.
função inerente ao processo, assim como a velo- De fato, se é verdade que "estrutura" ou "or-
cidade da reação química alterada pela presença ganização" e a "atividade de trabalho" são trata-
do catalisador. das como campos à parte, quer pelas empresas
A diferença assinalada a este respeito não con- quer pela academia, e entregues a especialistas
cerne, portanto, apenas à ergonomia mas à enge- diferentes, é urgente reparar esta dicotomia, ela
nharia de produção como um todo, que só tem mesma insustentável na prática, até mesmo quan-
razão de existir quando e onde há sistemas com- do se pensa no projeto dos instrumentos materi-
postos de homens, equipamentos e materiais. Isto ais de trabalho. Engenheiro de produção avisado,
não quer dizer que, com a objetivação do proces- Salerno sabe que a técnica não é neutra 12, o que
so de produção, que se torna cada vez mais uma torna o projeto de situações de trabalho uma ati-
aplicação tecnológica de leis naturais, deixe de vidade um tanto complexa, envolvendo outros
existir o problema de aumentos de eficiência ou atores além dos organizadores e ergonomistas e
de racionalização do processo. Apenas que a En- obrigando-os a intervir desde o início do projeto
genharia de Produção não tem nada a acrescentar e a negociar com outras lógicas legítimas no inte-
a respeito desses problemas além do que já fazem rior da empresa. Por esta e outras razões, o pro-

11. "Analisar o "processo" não é a mesma coisa que analisar as "operações": nem toda atividade dos trabalha-
dores interfere diretamente no fluxo, mas apenas aquelas nas quais ocorre a intersecção do objeto e dos su-
jeitos da produção". (Salemo, 1996, p. 52)
12. "A técnica cristaliza determinadas relações sociais" (id., p. 58), ou como diz Wisner, sintetizando longos anos
de pesquisa sobre os problemas relacionados à transferência de tecnologia: "toda máquina é cultural".

87 Ergonomia e Projeto de Organizacional


jeto de situações de trabalho deve ser tratado de ser apenas um problema organizacional, quan-
como um todo, pois decisões sobre um aspecto, do percebemos que a eliminação de um chefe ou
por exemplo a tecnologia, determinam as opções de um supervisor, juntamente com o poder e o
em outro campo, por exemplo, formação. A controle por ele exercidos, deixou a equipe des-
fortiori, o projeto do trabalho e o projeto provida de recursos (tempo e certas competênci-
organizacional devem ser considerados em con- as) para assumir as atividades de coordenação,
junto. Com efeito, retomando apenas um dos planejamento e preparação, implícitas na função
exemplos avançados pelo autor como sendo de- eliminada. Quando as decisões são puramente
manda organizacional - "trabalho em grupo" - administrativas, percebe-se logo que o superior
vejamos como a ergonomia encontra também aí hierárquico não tinha apenas a função de manter
um espaço. o controle, mas também um trabalho invisível de
No campo da ergonomia, uma das áreas tradi- organização de uma atividade coletiva.
cionais é precisamente a análise do trabalho cole- O mesmo ocorre com as terceirizações motiva-
tivo. Trata-se, aqui, da mesma realidade do "tra- das apenas por critérios financeiros ou de oti-
balho em grupo"? Ou sob esses termos ligeira- mização do tempo de utilização da força de tra-
mente diferentes são tratados aspectos e dimen- balho. É freqüente que as empresas percebam que
sões diferentes da realidade? Ora, para as empre- as esperadas economias de custos com manuten-
sas não se coloca a divisão entre uma demanda ção não se efetivam e que, além da perda de qua-
organizacional - como organizar e constituir tra- lidade dos serviços terceirizados, os custos até
balho em grupo, ou seja lá como esta demanda se aumentam. Uma análise prévia da atividade de
expresse - e uma outra demanda de análise do manutenção não teria nenhuma dificuldade para
trabalho - melhorar a interação e comunicação revelar as competências e saberes tácitos que os
entre membros de uma equipe. Podemos, portan- técnicos de manutenção haviam acumulado, assim
to, neste caso, falar de uma única e mesma reali- como as atividades extras não apropriadas como
dade e de uma só demanda. Trata-se de montar custo, mas necessárias para a execução dos servi-
equipes que funcionem melhor quando se rom- ços de reparação das instalações.
pem certas divisões funcionais (equipes multifun- Mas tudo isto não é apenas uma demanda atu-
cionais, equipes de projeto) ou quando se lhes al, exclusivamente das novas tecnologias ou de-
concedem maior poder decisório (grupos semi- correntes da necessidade de implantar novas for-
autônomos) . Para tanto, tratar esta demanda mas de organização do trabalho. Desde os
como uma simples questão de estrutura ou, ao primórdios, organização e trabalho foram sempre
contrário, de atividade coletiva ou inter-atividade, tratados como faces inseparáveis de uma mesma
é desde o início comprometer-se com o fracasso moeda. Em momentos em que a complexidade
ou com resultados medíocres (nem sempre perce- das atuais transformações técnico-organizacionais
bidos como tal, dada a falta de parâmetro para das empresas e a sofisticação dos conceitos e das
avaliar os modelos organizacionais), pois a ques- propostas teórico-metodológicas possam criar
tão real é como a equipe e os indivíduos agem no confusão nesta comparação, é útil retornar à sim-
interior de estruturas organizacionais determina- plicidade e à pureza dos pioneiros como Taylor.
das, mais ou menos centralizadas ou hierar-
quizadas, mais ou menos flexíveis etc. Invertendo A Síntese Taylorista entre
os termos, desde o início a questão prática con- Organização e Trabalho
siste em criar formas organizacionais que favore-
çam a realização das atividades cotidianas. Nos é indiferente aqui a discussão sobre a na-
Assim, a redução de níveis hierárquicos deixa tureza do taylorismo, sobre a sua originalidade ou

F. DE P. A. LIMA 88
sobre a sua crise atual. Basta tomá-lo como caso eficiência" significa maior intensificação do traba-
típico de uma proposta de organização calcada na lho. Em verdade, o que Taylor busca é aumento
análise do trabalho, tema central deste debate. A de produtividade e não simplesmente aumento da
organização científica do trabalho (OCT) nasce produção, o que significa que, em termos relati-
desta síntese e por isso aparece como referência vos, não se trabalha mais, e sim melhor. O traba-
obrigatória tanto para a ergonomia quanto para a lho cientificamente organizado propicia mais ren-
teoria organizacional. Que estas referências sejam dimento com igual dispêndio de energia. Para
sobretudo negativas, mas ao mesmo tempo recor- tanto é necessário determinar cientificamente as
rentes, mostra uma herança ambígua e difícil de leis da fadiga. O operário Schmidt não se cansa
ser superada 13 • mais, quando obedece às ordens do especialista
Relendo alguns trechos da Administração Cientí- em métodos, apesar de produzir mais. Que
fica, é fácil verificar como, de fato, o projeto de Taylor pretenda elevar o rendimento da máquina
uma organização científica do trabalho (Ocr) fun- humana ao seu limite máximo não há dúvidas, a
dava-se em uma síntese particular da estrutura questão é se isto implica em prejuízos ao traba-
organizacional e do trabalho, que transparece em lhador, o que ele nega explicitamente. O aumen-
cada um de seus princípios. to de produção, a rigor de produtividade, e a
A seleção dos trabalhadores, segundo o crité- OCT em geral devem preservar a saúde física do
rio do maior rendimento obtido, permite obter trabalhadores, favorecer o seu desenvolvimento
ganhos de eficiência combinando: (1) aumento moral, aumentar os salários, melhorar o nível de
progressivo dos salários; (2) aperfeiçoamento dos consumo e até mesmo reduzir a jornada de traba-
trabalhadores; (3) dispensa dos trabalhadores que Iho l 4• Através da organização científica, pode-se
não atingirem o nível máximo; e (4) "nova admis- trabalhar mais e melhor trabalhando menos tem-
são de trabalhadores cuidadosamente seleciona- po.
dos" (p. 39). Nada mais fácil, e contudo equivo- A seleção científica é necessária, assim, para
cado, do que concluir que o critério de "máxima determinar quem é mais apto para um tipo de tra-

13. Na ergonomia, tanto de inspiração anglo-saxônica como francesa, Taylor é ainda considerado por alguns au-
tores uma referência válida e insuperável em seus princípios fundamentais, que qualquer proposta de organiza-
ção racional do trabalho deveria assumir. A melhor defesa do taylorismo como organização racional do traba-
lho se encontra em Montmollin (1981).
14. "A adoção generalizada da administração científica poderá, no fllluro, prontamente dobrar a produtividade do
homem médio, empregado no trabalho industrial. Avalie-se o que isto significa para todos: aumento das coi-
sas necessárias e de luxo, seu uso em todo o país, encurtamento do período de trabalho quando isto for de-
sejável, crescentes oportunidades de educação, cultura e recreação que tal movimento implica ". (p. 127) Os
benefícios obtidos em termos de eficiência e diminuição da fadiga são relatados após a redução da jornada no
caso do trabalho de inspeção de esferas (pp . 84-92). A conjugação de saúde e aumento de eficiência é expli-
citamente buscada: "Esta tarefas são cuidadosamente planejadas, de modo que não obrigue o trabalhador a
esforço algum que lhe prejudique a saúde. A tarefa é sempre regulada, de sorte que o homem, adaptado a ela,
seja capaz de trabalhar durante anos, feliz e próspero, sem sentir os prejuízos da fadiga" (p 51). Poder-se-ia
pensar que este objetivo é mero voto piedoso, mas Taylor o considera como essencial e intrínseco ao método:
"Se este homem torna-se fatigado com seu trabalho, então a tarefa está sendo mal determinada, coisa impos-
sível na administração científica". (p. 124. Grifos meus , F. L.) Os benefícios podem ser, inclusive, de ordem
moral, alterando os hábitos de consumo de bebidas alcoólicas (p. 74). O importante aqui, não são tantos os
resultados efetivos obtidos por Ta ylo r, e tampouco se eles são reais , isto é, se os trabalhadores trabalham mais
e melhor e se eles se cansam menos, mas sim que ele afirma ser "i mpossível" que isto ocorra na ocr. A ocr
é uma proposta totalizante de organização do traba lho baseada na ciência, enquanto tal nada relacionado ao
trabalho pode lhe escapar. Se algo lhe foge ao controle é porque ela não é científica, ainda não é uma orga-
nização racional do trabalho. A ocr é auto-suficiente, não pede nem precisa de complementos desde que as ta-
refas sejam bem determinadas.

89 Ergonomia e Projeto de Organizacional


balho determinado e para qualquer tipo de traba- de interesses racionalmente demonstrada. À ge-
lho, respeitando-se as características e dons natu- rência compete "impor padrões e forçar a coope-
rais ou capacidades adquiridas através do treina- ração" (p. 82), isto porque o "padrão" é o meio
mento. Esta função, assim como a de organização de coordenação e de "cooperação científica"
geral do trabalho, pertence à gerência, que detém (p. 84). Não é contraditório "forçar a coopera-
as condições para determinar cientificamente as ção", pois esta se impõe pela objetividade cientí-
tarefas. É verdade que os trabalhadores são ca- fica - o padrão é racional, impõe-se, finalmente,
racterizados como "tipos bovinos" ou como "pe- por si mesmo, ainda que, de início, encontre cer-
ças em um tabuleiro de xadrez" (p. 72), cuja co- tas resistências. Assim não se precisa negociar ou
ordenação, articulação e movimentos são garanti- contestar quem detém o saber, e o próprio Taylor
dos pela organização, que, todavia, leva em con- demonstra pouca paciência com atitudes diplomá-
sideração sua personalidade e possibilidades (p. ticas diante das inspetoras de esferas de aço (p
73) e treina-os ao invés de despedirem-nos logo 86) e recomenda despedir quem não se adapta ao
no primeiro fracasso (p. 73). Não é isto que se sistema (p. 59 et passim). Taylor parte do pressu-
espera de qualquer organização racional? posto da divisão do trabalho existente, procuran-
Como conciliar objetivos tão nobres, o respei- do apenas aperfeiçoar a transmissão do saber de
to à personalidade de cada um, com a metáfora ofício (p. 115). Isto não impede o desenvolvimen-
das peças de um jogo de xadrez? Estamos a lé- to pessoal (p. 116) (para quem tiver os dons e
guas de distância da imagem execrável da direção capacidades naturais), nem que as sugestões pro-
que expropria saber dos operários. É certo que o venham dos próprios trabalhadores (p. 116). A
saber tradicional dos ofícios é ponto de partida da hierarquia social está baseada nas capacidades
OCT, mas a complexidade da ciência do trabalho inatas ("naturais") ou adquiridas (p. 116). Ao
ultrapassa as capacidades normais dos operários e contrário do que alardeiam os críticos da "orga-
por isso deve ser atribuída à direção e aos técni- nização máquina", Taylor propõe, inclusive, estu-
cos competentes, aos especialistas em análise do dar a motivação e a psicologia dos indivíduos (p.
trabalho e em organização, substituindo a tradi- 109)16.
ção oral de transmissão dos saberes práticos. Apenas porque não se pode medir o próprio
Taylor vê a ciência do trabalho e a divisão con- trabalho (p. 97), é razão suficiente para naturali-
cepção/execução como necessidade técnica de zar a divisão do trabalho. É verdade que o "ator
uma sociedade moderna, a apropriação da função é um mal teórico de sua própria ação" (Ver-
de organização não como decorrente da separa- mersch, 1990), no sentido de que a consciência
ção entre capital e trabalho l5 • não precede nem conduz todos os nossos atos (e
Assim como Taylor naturaliza as capacidades muito menos o seria capaz uma consciência ana-
dos indivíduos, torna natural, pura necessidade lítica). Mas disso não decorre a separação entre
técnica, a divisão do trabalho entre concepção e ciência e ação, entre concepção e execução,
execução. É compreensível, portanto, que consi- como se fossem atributos naturais de duas classes
dere a cooperação entre gerência e trabalhadores sociais distintas. Contudo, para Taylor, a hierar-
como harmoniosa e amistosa, dada a identidade quia é natural, pois não somos mais do que "cri-

15. "O capitalista não é capitalista porque ele é dirigente industrial, ele torna-se comandante industrial porque
ele é capitalista. O comando supremo na indlÍstria torna-se atriblllO do capital, como no tempo feudal o co-
mando supremo na guerra e no tribunal era atributo da propriedade fundiária". (Marx. O Capital, vol. 1/1, p.
264)
16. Sobre os estudos sobre os "fatores humanos" no interior da ocr, ver Doray (1981), que identifica nos docu-
mentos da Taylor Society as mesmas preocupações e interesses da Escola de Relações Humanas.
F. DE P. A. LIMA 90
anças grandes" (p. 110). A divisão do trabalho é próprio Taylor alertou mais de uma vez para a con-
equivalente à divisão funcional do trabalho na fusão entre as técnicas e os princípios de seu siste-
sociedade (p. 115) ou à relação professor-aluno. ma, estes sim é que deveriam ser preservados (pp.
Os métodos de trabalho, objeto de análise da 43, 117). O conceito de tarefa é referido apenas
ocr, são tão exteriores ao trabalhador quanto a como um dos elementos do sistema, ao mesmo títu-
matemática, a física, o latim etc. (p. 115). A ati- lo que a cronometragem, o sistema de salários, a
vidade vital dos homens é assimilada aos conhe- padronização, o uso da régua de cálculo etc. (p.
cimentos sobre a natureza ou de línguas mortas, 117-8), não como um de seus princípios essenciais.
cuja aprendizagem, evidentemente, nunca pode se Evidentemente não se pode crer nas declara-
dar senão através da mediação de um tutor e do ções de boas intenções de um autor, mas não é
ensino formal. O credo fundamental é que "cada rigorosa a análise crítica que se limita a apontar
ato elementar de trabalho pode ser reduzido a os efeitos práticos negativos, deixando de lado a
uma ciência" (p. 69). filosofia e os princípios que os inspiraram. Esta
A ciência, ao substituir a empiria e as tradições atitude crítica é precária porque deixa intocados
de ofício, incide também sobre os instrumentos de os princípios e sujeita-se ao contra-argumento de
trabalho: "( ... ) há diferentes maneiras em uso que a OCT, em si mesma, não é ruim. As possí-
para fazer a mesma coisa (... ). Entre os vários veis críticas diriam respeito, então, apenas aos
métodos e instrumentos utilizados em cada ope- eventuais erros de aplicação das técnicas 17• No
ração, há sempre método mais rápido e instru- quadro 2, mostramos um exemplo de como a
mento melhor que os demais", o que pode ser cronometragem conduz necessariamente a des-
analisado, descoberto, e aperfeiçoado pela ciência considerar certos aspectos dinâmicos da ativida-
(p. 40). Ninguém contestaria que as análises da de: o tempo medido a partir dos gestos obser-
arte de cortar metal constituem análises científi- váveis é, e somente pode ser, a medida de um
cas, objetivas, e uma contribuição relevante para comportamento sem vida própria, deixando, por-
a tecnologia de usinagem. Não se pode, todavia, tanto, de servir como parâmetro para a regulação
dizer o mesmo em relação à análise do trabalho, da atividade viva, o que vale para qualquer outra
onde não se aplicam os mesmos métodos e prin- forma de prescrição. Também não escapou a
cípios das ciências do engenheiro. Em suma, Salerno o caráter vazio dos tempos alocados e
Taylor é um excelente engenheiro e um medíocre sua utilidade para a organizar a produção 18 •
organizador do trabalho. Resta entender de onde e como uma idéia simples
O essencial no taylorismo não é um ou outro e vazia de conteúdo retira o seu poder efetivo. A
conceito (como o de "tarefa", ao qual o próprio força deste princípio provém exatamente da abstra-
Taylor atribui especial relevância) ou técnica de ção que opera sobre as outras dimensões do traba-
medição do tempo (como a cronometragem). O lho real, o que constitui também a sua fraqueza
17. Segundo lida & Wierzzbicki (1978, p. 5), a impopularidade dos estudos de tempos e movimentos nas déca-
das de 20 e 30 foi devido "principa lmcnte ao trabalho de alguns cronomctristas mal-preparados".
18. "Tal concepção é ao mesmo tempo bastante simples e poderosa, pois consegue aliar, num único e relativa-
mente objetivo critério - o tempo associado a cada operação - tanto as questões de planejamento físico da
produção (processo de trabalho, por assim dizer) quanto as questões de economia da produção (valorização).
O tempo é o critério para projeto do trabalho, balanceamento de linhas, estudo de carga de trabalho etc., mas
também é o insumo básico para eSllldar a relação entre o operário e a maquinaria, e para integrar os cus-
tos de produção na lógica da contabilidade analítica". (Salerno, 2000a, p. 54)
19. "(... ) à medida que surjam à tona os fatos verdadeiros (... ) Não se admitirá mais o tipo de patrão que so-
mente pensa nos dividendos, negando-se em retribuir de acordo a parte que corresponde ao trabalho, e que
se limita em brandir o açoite sobre as cabeças de seus comandados, tentando obrigá·los a produzir mais, por
menores salários." (Taylor, 1970, p. 124-125)

91 Ergonomia e Projeto de Organizacional


QUADRO 2: Tempo Observável e Temporalidade Subjetiva

Durante uma perícia realizada em uma fábrica de chicotes elétricos (fiação para painéis de au-
tomóveis), os trabalhadores criticavam os tempos definidos pela engenharia de métodos, dizendo-
os insuficientes para realizar as tarefas e definidos de forma arbitrária, enquanto os engenheiros
afirmavam terem seguido corretamente a metodologia padrão.
Para entender esta divergência de opiniões quanto aos tempos-padrão, é necessário aprofundar
a análise da atividade real de trabalho e não se limitar aos tempos tais como são definidos pela en-
genharia de métodos. Somente assim se pode compreender porque os trabalhadores, a partir de sua
experiência prática, não concordam com as medidas realizadas e afirmam que elas não
correspondem à realidade, ou que os tempos sempre são apertados.
Uma das causas mais importantes dessa divergência decorre precisamente das estratégias que os
trabalhadores adotam para dar conta da produção em quantidade e em qualidade e que sistemati-
camente são negadas pelos estudos de tempos e movimentos. Estes, devido aos conceitos e técni-
cas que empregam, se limitam a registrar o início e o fim de um movimento, negligenciando todas
as dimensões cognitivas presentes na atividade de trabalho, perdendo assim a lógica que dá senti-
do aos diferentes movimentos observados. Sem esta dimensão torna-se impossível compreender e
interpretar os tempos e movimentos que constituem a atividade dos trabalhadores e, por isso, os
tempos definidos a partir dessa medidas aparecem-lhes como arbitrários, pois não refletem a
globalidade do trabalho que realizam. A consideração de uma frase várias vezes repetida por qua-
se todos os trabalhadores bastaria para mostrar o que é a atividade real do trabalho na montagem
de chicotes: "Aqui a gente trabalha o tempo todo preocupado" .
Os trabalhadores dizem, sob diversas variantes, que sempre trabalham na expectativa de ocorrer
algum problema; estão todo o tempo "pré-ocupados": "a pressão psicológica faz a gente trabalhar
fora do limite, prevendo algum problema pra frente; "o cronometrista não quer saber se atrasou
ou adiantou, se teve ajuda"; "só marcam tempo com caras experientes". Esta expectativa pode au-
mentar dependendo da fase da tarefa: "A sexta fase é a pior; tem que fazer rápido: é a última fase;
se está atrasado com outras tarefas não tem como recuperar".
Como explicar por exemplo, que mesmo com o tempo de giro fixado de maneira rígida pelo
carrossel, seja possível, como dizem os trabalhadores produzir até 28 chicotes quando estão pre-
vistos apenas 25? Isto é compreensível apenas quando se considera que eles estão sempre se adi-
antando aos problemas e, quando esses não ocorrem, eles podem até produzir mais, deixando uma
certa folga para a equipe seguinte.
Ora, quando o cronometrista mede o tempo sem saber que o trabalhador está adotando aquele
ritmo precisamente porque antecipa vários problemas e para que, quando esses incidentes ocorre-
rem, tenha como se recuperar, está, querendo ou não, eliminando uma importante dimensão da ati-
vidade humana que é precisamente o seu caráter consciente, sua capacidade de antecipação, a qual
configura e dá sentido aos gestos e movimentos que os téc nicos apenas conseguem registrar e ob-
servar do exterior. Ao fazerem isto, estão criando uma nova organização temporal do trabalho, de-
finida a partir da somatória dos tempos dos movimentos nos qua is recortou anteriormente a ativi-
dade, e que de forma alguma corresponde à atividade real dos traba lhadores nem à experiência
vivida que estes têm de sua própria forma de trabalhar.
Essas operações reducionistas, os cronometristas as cometem não intencionalmente, mas sim por-
que se fiam em procedimentos e conceitos tradicionais de estudos de tempos e movimentos, há mui-

F. DE P. A. LIMA 92
to tempo considerados ultrapassados e inadequados para se estudar e descrever o trabalho em to-
das as suas dimensões. Tal como ocorre na metodologia tradicional, desprezam-se, nos cálculos do
tempo-padrão, aqueles tempos que se afastam demasiadamente da média. Pouco importa aqui, para
nossos propósitos, mostrar a inadequação dos princípios de estudos de tempos e movimentos, os
limites do que se considera normal ou não. O importante é o significado desse procedimento. Se
os trabalhadores aceleram o ritmo de trabalho, prevendo quando esses problemas ocorrerão e se an-
tecipando a eles para terem tempo de realizar suas tarefas, não é, evidentemente, muito acertado
eliminar precisamente esse tempo que sobra, essa folga que é criada com a finalidade de resolver
os incidentes eventuais.
O mais perverso de tudo isto é que quanto mais experiente for o trabalhador mais ele consegue
prever os problemas que podem ocorrer e mais macetes e habilidades ele tem para economizar tem-
po. Ao cronometrarem apenas os mais experientes, os técnicos acabam selecionando exatamente a
situação mais extrema, a que exige menos tempo, isto é, o tempo despendido por um trabalhador
habilidoso, em situações nas quais quase nada acontece de anormal.
O sentido último (e profundamente falso) dos estudo de tempos e movimentos é precisamente a
sua fixação nas médias, o que gera um processo paradoxal que sempre tem como efeito separar o
resultado de suas causas. O tempo médio, normal, é o resultado de uma longa aprendizagem dos
trabalhadores, através da qual eles se tornam competentes e se capacitam a trazer para a normali-
dade todas as situações incidentais. Ao desprezarem essas situações incidentais e guardarem ape-
nas as médias ou o que consideram como sendo "normal" (e isto depende sempre de julgamentos
subjetivos dos cronometristas e não de uma medida ou critério objetivo, científico), os técnicos
operam uma amputação da atividade de trabalho, retendo apenas o que lhes interessa, desprezan-
do tudo o que diz respeito ao que constantemente pré-ocupa os trabalhadores e que faz com que
eles aumentem seu ritmo. (Novais et. aI., 1997)

como mecanismo vivo e efetivo de regulação da princípios e métodos das ciências da natureza às
atividade. A meta imposta, objetiva, pode se trans- ciências humanas. Em todos esses pressupostos
formar facilmente em um aguilhão, assim como a transparece o espírito do positivismo cientificista
ciência taylorista dispensa o açoite 19 • que predominava em fins do século passado.
A crítica, para ser radical, deve demonstrar A solução dos conflitos, possível graças à
como as conseqüências práticas (os supostos er- OeT, decorre da harmonia preestabelecida, ape-
ros dos técnicos mal preparados) derivam neces- nas mal compreendida pelos homens, que agem
sariamente dos princípios fundamentais. E, aqui, de forma irracional porquanto não percebem seus
já não é mais possível se limitar à palavra de interesses reais. Os conflitos existem, mas não de
Taylor. É preciso explicitar os pressupostos que forma necessária, são aparentes, no sentido em
dão sustentação aos princípios filosóficos funda- que decorrem da má organização do trabalho,
mentais, a saber: (1) a identidade de interesses, distribuição de tarefas inadequadas e de formas
ou de como o bem comum deriva da busca do de pagamento que induzem à "cera" etc. A ciên-
interesse individual; (2) a solução objetiva, cien- cia revela os interesses verdadeiros, que os ho-
tífica, dos confli tos sociais; (3) a extensão dos mens teimam em não reconhecer, donde a sua efi-

20. "A administração científica corresponde para o operário, patrão e particularmente todos aqueles que a implan-
taram, em primeiro lugar, à eliminação de todas as causas de disputa e de desentendimentos entre si." "A de-
terminação duma tarefa diária de trabalho será uma questão científica, em lugar de objeto de negociações e
de regateamento." (p. 127)

93 Ergonomia e Projeto de Organizacio nal


cácia 20• Se problemas persistem é devido aos de- suas capacidades. Ao contrário, "sob direção raci-
feitos inerentes à natureza humana, a respeito dos onal, o melhor homem atingirá o mais alto posto,
quais nada se pode fazer. Não há, assim, sistema de modo mais seguro e rápido que em qualquer
perfeito, porquanto a natureza humana é imper- outra distinção" (p. 27).
feita e muitos fatores fogem ao controle dos ho- A atividade, as diferenças interindividuais, a
mens (p. 43). À parte esses limites naturais, tudo variabilidade servem como alimento para a orga-
o mais pode ser cientificamente organizado. nização que os transforma segundo seus próprios
Não há como aprofundar, aqui, todos os des- princípios de homogeneidade, assim como o cor-
dobramentos desta "releitura" de Taylor. Uma po biológico digere e metaboliza os alimentos.
questão, contudo, não pode ser evitada, pois se No metabolismo, o sabor não mais existe, nega-se
trata de algo essencial na argumentação de o aspecto cultural dos alimentos para preservar
Salerno, leitor arguto da ergonomia que evita apenas sua essência química, protéica e vitamí-
confundir os tradicionais estudos de tempos e nica. O alimento metabolizado já não é mais o
métodos com a análise ergonômica do trabalho. alimento humano, preparado e degustado pelos
Não estaríamos, portanto, desautorizando este sentidos desenvolvidos pela cultura e pela histó-
autor quando colocamos Taylor como um pai ria. Da mesma forma, no taylorismo, a realidade
fundador da ergonomia, e sobretudo quando se do trabalho é inessencial, o sistema é o essencial.
trata da ergonomia francesa? É precisamente nes- A diversidade, a experiência não formalizada re-
te ponto que radica a nossa discordância funda- vela a falta de organização, de ciência. O existente
mentai em relação às teses defendidas por demonstra a necessidade do inexistente, que somen-
Salerno, pois sustentamos que projeto organiza- te pode vir a ser quando processa e transforma a
cional e projeto do trabalho são abordagens atividade, negando-a no que ela possui de essencial
indissociáveis, tanto no objeto como na prática, e - a variabilidade e a capacidade de adaptação. O
não abordagens distintas e complementares. Nes- morto suga o vivo.
se sentido, o taylorismo busca a identidade do
ponto de vista da organização, perspectiva que Há Sínteses e Sínteses ....
nega a realidade efetiva da atividade em seus
conceitos, métodos e prática de concepção. An- Estas digressões valem menos como discussão
tes de ser defesa de um modelo específico de or- sobre a natureza da OCT do que como preocupa-
ganização do trabalho, o taylorismo é a crença de ções quanto à prática de concepção do trabalho e
que a administração científica é o remédio para de sua organização. Se não quisermos repetir os
todas as ineficiências da produção (pp. 27-28). erros do passado (e o taylorismo é um exemplo
Se, como vimos, Taylor reconhece a personalida- emblemático desses erros), a questão essencial é
de humana, a diferença entre o homens, a experiên- como pensar esta "síntese" e como estabelecer os
cia prática e tantos outros aspectos do trabalho real critérios de sua operacionalização. Aqui fica ainda
"redescobertos" pela ergonomia, é porque este re- mais evidente a discordância fundamental entre
conhecimento serve como prova da necessidade de ergonomia e projeto organizacional: as diferenças
se adotar o seu sistema, mais evoluído, sistemático, entre as duas disciplinas não se devem a suas lacu-
científico e objetivo. O trabalho real é, neste caso, nas ou impossibilidades teórico-metodológicas para
ponto de partida e não ponto de chegada. O siste- tratar de uma realidade complexa, como se fossem
ma é a instância última e superior aos indivíduos 21• dois pernetas que, ajudando-se mutuamente, conse-
Isto não implica o desprezo pelos indivíduos e de guem andar sem muletas, mas sim decorrem de

21. "No passado, o homem estava em primeiro lugar; no fwuro, o sistema terá a primazia" (Taylor, p. 27).
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perspectivas diferentes sobre como operar esta sín- vidade, ou, em termos mais gerais, entre estrutura
tese entre organização e atividade. e indivídu0 23 • A proposta da ocr é hoje questi-
Vimos que a OCT é, de fato, uma proposta de onada tanto pela ergonomia quanto pela teoria
síntese que, sem negar a existência de uma ativi- organizacional (cf. também reconhecido por
dade, pretende ser possível e mais eficiente anali- Salerno, à p. 4), porque enfatizaria apenas as es-
sa-Ia, traduzi-Ia e enquadra-Ia em uma organiza- truturas formais, mas não deixa de ser uma pro-
ção formal. Desta perspectiva, mesmo a participa- posta de síntese, certamente fundada na homoge-
ção dos trabalhadores é bem-vinda, como hoje é neização do trabalho operatório, deixando toda
também comprovado pelos métodos participativos variabilidade excepcional (o famoso princípio de
de elaboração de padrões, usados tanto em pro- administração por exceção) para ser tratada em
gramas de qualidade como na ISO 9000 (Para instâncias hierárquicas superiores. Reconhecer a
uma crítica da "padronização participativa" da insuficiência desses princípios não implica negar
perspectiva da ergonomia, ver Lima, 1994). Não que haja aí uma visão de mundo que parte da ati-
se trata, evidentemente, de propugnar a anarquia vidade, da experiência vivida, para negá-Ia em
(ou a anomia) e o espontaneísmo na produção e seguida, na forma de uma prescrição rígida e in-
Salerno alerta para o fato de que a falta de nor- variável de modos operatórios. A superação desta
mas é impossível nas organização modernas, e concepção exige, antes, reconhecer os fundamen-
mesmo os trabalhos nas corporações medievais tos desta síntese específica e como ela continua
deviam obedecer a certos padrões, o que desloca operando ainda hoje nos sistemas complexos, or-
o cerne da questão: ganizações qualificantes, grupos semi-autônomos
nA questão, portanto. não é prescrição ou e tu ui quanti24•
não prescrição, pois isto não se coloca na pro- O essencial é que se propõe tratar de forma ci-
dução e no trabalho contemporâneos,' a ques- entífica a atividade laborativa humana. Os méto-
tão é sim qual o grau e quais os limites das dos de análise e seu resultado na forma de tarefa
prescrições(... )" (p. 51. Grifos no original) são apenas conseqüência desta concepção positi-
Mas não é este precisamente o dilema de onde vista do trabalho humano. Desta forma, a crise do
partiu Taylor? A ciência do trabalho não deve conceito de tarefa pode deixar intocado os mes-
substituir os métodos empíricos e as tradições dos mos princípios, sob uma nova roupagem, se não
ofícios? Não se repõe, desta forma, a mesma se pensa de forma radical a relação entre aspectos
dicotomia entre trabalho organizado e trabalho objetivos e subjetivos no trabalho. Pode-se dizer,
desorganizado? Se é verdade, como também acre- por exemplo, que a ampliação do espaço de auto-
ditamos sê-lo, que todo e qualquer trabalho obede- nomia dos operadores na gestão dos problemas
ce a certas normas, como reconciliar atividade e do cotidiano da produção ou dos eventos impre-
padrão, trabalho e organização, superando o vistos, coloca por terra o princípio da administra-
positivismo da OCT? Para a ergonomia, o traba- ção por exceção (p. 118), ou melhor, a divisão de
lho quer instituir suas próprias normas 22 • trabalho que este princípio implica entre gestão
A questão, portanto, é saber em que consiste e estratégica e gestão operacional?
como operar esta síntese entre organização e ati- A crítica dos princípios racionalista-cartesianos
22. "Todo homem quer ser sujeito de sllas próprias normas". (Canguilhem, 1947)
23. Questão antiga no campo da sociologia, cuja referência pode ser instrutiva para o atual debate. A ergonomia
francesa se reclama explicitamente das correntes sociológicas da fenomenologia e da etnometodologia. Para uma
tentativa de síntese entre macro e microssociologia, ver Coulon, 1995. A melhor obra, a meu ver, sobre a re-
lação macro/micro ou estruturas sociais/indivíduos é Callinicos, 1988.
24. Para uma análise dos mecanismos de implicação (desta feita, subjetiva) na operação de processos automatizados
ver Clot et aI. 1990; Lima, 1998)
95 Ergonomia e Projelo de Organizacional
é pertinente, mas pode esconder o pressuposto acomodação e de modificação efetiva? Se o pres-
ontológico essencial: o positivismo que transfor- crito é modificado com que direito e legitimidade
ma fenômenos sociais em fenômenos naturais, isto é feito e como é negociado com a hierarquia?
reduz o intercâmbio dos homens à física, projeto Se o padrão deixa de ser padrão, como passa en-
por excelência do behaviorismo radical. O proje- tão a funcionar como orientação para a atividade
to e a perspectiva abertos pela ergonomia france- viva, aqui e agora? O que serve como medida?
sa (a humanização do trabalho humano) não pode Se, por exemplo, o funcionário público não pode
ser reconciliada com nenhuma abordagem que agir de forma estritamente burocrática, se não é
substitua as atividades humanas, vivas, pelas es- mais a impessoalidade do cargo que informa a sua
truturas objetivas, mortas. atividade, segundo quais critérios define sua
Assim como a OCT e a ergonomia que a ela se ação?
contrapõe, o projeto organizacional pode aspirar É evidente que não há vida social possível sem
a uma síntese particular entre atividade e organi- um padrão (as palavras precisam ter certos signi-
zação. O que não é legítimo é criar uma síntese ficados precisos e intercomunicáveis), mas o dici-
eclética, híbrida, construída sobre a camuflagem onário não ensina nem a ler nem a escrever, em-
da síntese proposta pela ergonomi a. bora possa ser útil para um e para outro. Afirmar
que o dicionário e a linguagem estão em relação
Da Dialética entre Prescrito e Real dialética não esclarece nem como a linguagem
evolui nem como, ao escrever, eu me sirvo do
Salerno certamente não desconhece esses pro- dicionário. Certamente, para recorrer a outra ana-
blemas e dirá que sua tentativa de síntese procu- logia, é melhor começar a aprender a preparar um
ra dar conta precisamente desse viés objetivante prato partindo de uma receita do que sem ela,
do projeto organizacional. Assim, por exemplo, mas a receita não esclarece a evolução da experi-
ele escreve: ência prática do chef de cuisine.
Salerno parece acreditar, para além das ques-
"Consideramos que trabalho "prescrito" e tões conceituais, que a análise organizacional de-
"real" são indissociáveis, mantendo uma rela- tém virtudes intrínsecas capazes de promover
ção dialética. O trabalho real se dá, se cons- mudanças organizacionais, o que só funcionaria,
trói, se mobiliza e se organiza a partir do no caso da ergonomia, se houvesse uma pressão
prescrito; por outro lado, o prescrito pode ser social (p. 56). Ora, a ergonomia, qualquer que ela
modificado em função do real." (p. 55, nota 4) seja, nasceu e se desenvolveu sob pressão social e
só é efetiva quando esta pressão se mantém. O
O que é efetivamente esta relação dialética? O mesmo vale para as transformações organiza-
nome não pode fazer vez de explicação. Como cionais . A ergonomia não é uma intervenção téc-
sempre o termo "dialética" esconde ma is do que nica (este é o sonho de Taylor), mas social e, por-
revela. Como o prescrito e o real se relacionam e tanto, depende de forças sociais para se efetivar.
se condicionam mutuamente? Dizer que estão em Isto não é um limite, mas sim elemento intrínseco
"relação dialética", não vai muito mais longe do à dérmache ergonômica, configurada já em sua
que afirmar que estão em "determinação reflexi- metodologia. Se, no Brasil, as intervenções práti-
va", " influência mútua", "interação", "circula- cas da ergonomia ainda são incipientes é porque o
ridade", "co-dete.rminação" ou qu a lquer outro movimento social evoluiu pouco nessas negocia-
termo. Como o trabalho rea l se "mobiliza" e se ções, em especial em relação às negociações soci-
"organiza" a partir do prescrito? Como e até ais sobre questões relacionadas à organização do
onde o real modifica o prescrito? O que existe de trabalho e introdução de novas tecnologias. Pre-

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tender que a ergonomia se desenvolva indepen- suas versões, acaba negando a atividade viva.
dentemente do movimento social, não apenas é Desta outra perspectiva, a ergonomia tem ofere-
utópico como desemboca inevitavelmente em sua cido vários elementos que permitem resolver pro-
deturpação, tornando-a mera intervenção técnica. blemas "dos sistemas de comunicação, coordena-
Deste risco não está livre nenhuma área da enge- ção e ajustamento mútuo entre os trabalhadores"
nharia de produção, nem mesmo a análise e pro- sem necessidade de abandonar seus conceitos e
jeto organizacional. metodologia e recorrer ao projetistas
De onde vem a força do projeto organizacional organizacionais.
para quebrar esta lógica econômica que impõe li- Se, como acreditamos, trata-se de duas aborda-
mites à ergonomia? Por que e como o saber dos gens diferentes que disputam o mesmo campo a
projetistas organizacionais lhes permitem escapar partir de perspectivas divergentes, então não
destas leis férreas? De onde vem a legitimidade pode ser a somatória que ajudará a avançar o
para discutir e propor mudanças da organização? conhecimento e atender às novas demandas que
Seria apenas uma virtude técnica da análise estão surgindo, mas sim o debate aberto a partir
organizacional sua capacidade de "romper o rela- das teorias e das intervenções práticas desenvol-
tivo isolamento das práticas de análise ergonô- vidas em cada disciplina, cada qual defendendo
mica centradas no posto de trabalho, ao possibi- uma síntese particular de atividade e organização.
litar-lhes uma perspectiva mais global, levando Isso não impede nem a cooperação amistosa,
em conta outros condicionantes e possibilidades" nem o debate franco, até que uma posição se
(p. 58)? mostre mais correta do que a outra. A interdis-
A ergonomia não trata da análise de postos de ciplinaridade, a nosso ver, não é um pressuposto,
trabalho, mas sim de situações de trabalho. A di- deve ser um resultado, que ninguém pode prever
ferença não é puramente terminológica. Uma a priori qual será. Por isso, aceitamos o debate
análise ergonômica que não transcende o que se proposto por Salerno, mas não os seus termos: o
observa imediatamente no posto, remetendo aos reconhecimento a priori do outro me parece en-
condicionantes gerais da situação, não cumpre fraquecer o próprio debate e já prenuncia o seu
seus objetivos mais elementares. Por outro lado, desfecho . A interdisciplinaridade só pode existir
apenas indicando os limites não fica resolvido entre disciplinas com campos distintos, não se as
como estas duas coisas distintas podem se somar, disciplinas ou abordagens forem concorrentes,
em que, afinal de contas, consiste a tal dialética isto é, se lutam em um mesmo campo. Neste
entre o prescrito e o real? Nesta, a estrutura caso, deve prevalecer a competição e o conflito
organizacional deve assumir que feições, para até que vença o melhor... ou o pior dependendo
não se contrapor à lógica da atividade? "O estu- de como a sociedade caminhe.
do dos sistemas de comunicação, coordenação e
ajustamento mútuo entre os trabalhadores, vi-
sando criar instrumentos técnicos ou organiza- Bibliografia
cionais que os auxilie" (p. 58) define-se a partir
da lógica da atividade ou da lógica prescri tiva das CALLINICOS, Alex (1988). Making History.
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liar atividade e organização nestas novas situa- CANGUILHEM, G. (1947). "Milieu et normes
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Enquanto ergonomista, não considero que a de sociologie. 3: 120-136.
análise organizacional tenha muito a dizer sobre CARBALLEDA, G. (1997). La contribution
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