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A DOUTRINA DA

PREDESTINAÇÃO
EM
CALVINO

Fred H. Klooster
Título do Original:

Calvin's Doctrine of Predestination by Fred H. Klooster, Second Edition,


All Rights Reserved To Socep

Copyright by Baker Book House, U.S.A.

Primeira Edição -1992

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ÍNDICE

PREFÁCIO.................................................................................................... 5
CAPÍTULO 1 ASPECTOS GERAIS DA DOUTRINA DA
PREDESTINAÇÃO EM CALVINO ............................................................ 7
CAPÍTULO 2 ELEIÇÃO SOBERANA E GRATUÍTA ............................ 19
CAPÍTULO 3 SOBERANIA E JUSTA REPROVAÇÃO ......................... 38
CONCLUSÃO ............................................................................................ 64
PREFÁCIO

Quando traduzia este pequeno livro sobre a Doutrina da Predestinação, em


Calvino, sentimos pulsar, nas suas páginas, o coração do grande teólogo de
Genebra que, alimentado pela Verdade haurida na Palavra de Deus, não se
envergonha de Confessar que sua razão, por mais bem aparelhada que
esteja não pode compreender os mistérios de Deus, entre os quais se
destaca a divina eleição.

Agostinho, no seu De Trinitate (= A Trindade), logo no início do capítulo


primeiro, adverte o seu futuro leitor de que os que "desprezam os sãos
princípios da fé, se deixam enganar por um prematuro e perverso amor à
razão". E continua: "Uns ensaiam aplicar, às substâncias incorpóreas e
espirituais, as noções adquiridas mediante a experiência dos sentidos ou,
ainda, com a ajuda da penetração natural do engenho humano, da
vivacidade de espírito ou com o auxílio de uma disciplina qualquer, pois
pretendem contrabalançar e medir (as coisas incorpóreas) por meio destes
recursos (humanos)".

“O santo varão nos adverte também de que não adianta raciocinar a


respeito de Deus com base nos sentimentos humanos, pois este erro nos
leva a assentar atormentados e ilusórios princípios” porque, "carregados
com o tardo da sua mortalidade", os que agem assim aparentam conhecer o
que ignoram e não são capazes de conhecer o que desejam". A
conseqüência disto, para Agostinho, é que, "fechados os caminhos à sua
inteligência, preferem apegar-se às suas doutrinas mal sãs ao invés de
mudar o seu modo de pensar" (De Trinitate, Obras Completas, Volume V,
Cap. I, pp. 128-129).

Ao expor a doutrina bíblica da Predestinação, Calvino não pode ser


acusado de ter feito prevalecer a sua razão ao defendê-la, porque, embora
não a entendesse racionalmente até as suas últimas conseqüências, aceitou-
a, pregou-a e defendeu-a por ser ela um fato da Revelação de Deus e ser,
sobretudo, uma revelação objetiva e concreta tanto da graça salvadora de
Deus, para com os que se salvam, como da justiça de Deus, para com os
que se perdem. Na verdade, a doutrina da Fé e a da Trindade, por exemplo,
encerram mistérios indevassáveis idênticos ao da predestinação e, portanto,
carece de sentido lógico aceitar estas duas doutrinas e rejeitar a doutrina da
Predestinação, alegando-se que ela é ininteligível.

A luz das Escrituras - por mais que discordem desta doutrina os que a
rejeitam, quer inteiramente, quer parcialmente -, não podem fugir dela, uma
vez que ela expressa, de forma inequívoca, a absoluta soberania de Deus
em relação ao eterno destino dos homens, tanto dos que são alcançados
pela graça da redenção, quanto dos réprobos, que são objeto do justo juízo
de Deus. Em última análise, COMO diz Paulo, repetindo Moisés (Rm
9.15), da vontade e do propósito de Deus depende tanto o ter misericórdia,
quanto o endurecer o coração dos réprobos. A razão ou causa deste
comportamento de Deus está escondida ao nosso entendimento, visto que
só Ele a conhece. A nós, criaturas finitas competem uma atitude de
submissão a Deus, seja qual for o desígnio que Ele, na sua infinita
sabedoria, reserva a cada uma de nós.

Estudemos, pois, com devoção esta doutrina bíblica, como é exposta por
Calvino e descansemos na graciosa promessa divina, pois Deus começa e
termina, em nós, não só a obra da redenção dos que se arrependem, aceitam
a Cristo e são salvos, mas também a obra do seu juízo nos que rejeitam a
Cristo, não se arrependem e são condenados. Não é sem razão que o Autor
da Carta aos Hebreus (10.31), disse que "coisa horrível é cair nas mãos do
Deus vivo". O fato de não sabermos quem são os eleitos é confortador para
nós que, conhecendo o Evangelho, somos incumbidos de anunciá-lo a
tempo e fora de tempo, na certeza de que Deus conhece os que são seus (II
Tm 2.19). Por isso, porfiemos na esperança de sermos alcançados por sua
graça que opera infalivelmente naqueles que Ele chama, justifica e glorifica
(Rm 8.30).

Sabatini Lalli
CAPÍTULO 1

ASPECTOS GERAIS DA DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO EM


CALVINO

A doutrina da predestinação, em Calvino, tem sido motivo de preocupação


e aborrecimento para muitas pessoas. Muitos sentem que esta doutrina os
leva a atormentar-se e a angustiar-se pelo fato de não poderem ter certeza
de sua salvação. "Se Deus já decidiu, desde toda a eternidade, que eu vou
ser salvo ou perder-me", dizem, "que posso eu fazer para alterar isso?
Como posso eu saber se estou ou não entre os eleitos?" Outros consideram
inaceitável esta doutrina por cau¬sa de sua aparente negação da liberdade
humana. Contudo, ironicamente, Calvino considerou esta doutrina como
portadora de grandes benefícios práticos. Ele insistia em dizer que ela
produz "doces frutos" para o crente; na verdade, só aceitando esta doutrina
da predestinação pode o crente desfrutar de genuína segurança e conforto,
em sua salvação.

Mal compreendido, o ensino de Calvino continua a desafiar a muito da


moderna erudição calvinista. "Calvino, formal¬mente, estimulou debates
porque pessoas concordavam ou discordavam de seu ensino.
Recentemente, muitos se têm manifestado em desacordo com relação ao
que Calvino queria dizer com o seu ensino”. Este julgamento de John
McNeill reflete o estado atual dos estudos sobre Calvino, desde que a
teologia de Karl Barth despertou novo interesse sobre os escritos do
Reformador. T.H.L. Parker sustenta que Barth

"mostrou, de uma maneira decisiva, que a mensagem do Reformador era


válida, numa nova forma, para os nossos dias". "Estas revelações nos
estudos sobre Calvino", dizem alguns "scholars", podem, contudo,
demonstrar que Calvino não era um calvinista no sentido tradicional, e que
muitos, atualmente, têm compreendido mal o seu ensino.

O problema de compreender corretamente os volumosos escritos de


Calvino, realmente, não é novo. Basta pensarmos na questão de se "há uma
doutrina central" na teologia de Calvino. A variedade de respostas dadas a
esta questão e as doutrinas propostas (como centrais) ilustram a
dificuldade. Não importa, porém, que doutrina o pesquisador decide aceitar
(como central), pois a doutrina da predestinação exige atenção.
Recente¬mente, a idéia de uma doutrina central, no pensamento de
Calvino, tem sido corretamente rejeitada, e crescente atenção tem sido dada
às Escrituras, como fonte do ensino de Calvino.

Ainda que haja abundante literatura sobre o pensamento de Calvino, é


lamentável que nenhum estudo minucioso tenha aparecido, recentemente,
em língua inglesa. A luz do renovado interesse sobre Calvino, não está fora
de propósito tentar uma breve apresentação da doutrina da predestinação,
em Calvino. Ainda que a questão da centralidade da predestinação, na
teologia de Calvino, continue a merecer atenção, o interesse hoje se
centraliza mais sobre questões relacionadas com o caráter cristocêntrico da
predestinação, e com o caráter decretivo da reprovação, e o assim chamado
caráter igualmente definitivo da eleição e da reprovação. Subjazendo a tudo
isto, permanece naturalmente, a questão vital de saber-se qual era, afinal, o
ensino de Calvino. Pelo fato de esta pesquisa destina-se primeiramente, a
estabelecer o pensamento de Calvino sobre a predestinação, as referências a
fontes secundárias e de autores contemporâneos ficam limitadas às notas de
rodapé. Esta é simplesmente uma tentativa de apresentar a doutrina da
predestinação, de João Calvino, como ela aparece nas Institutas, e como
está elaborada e ilustrada em seus tratados e comentá¬rios. Devemos notar,
primeiramente, certos aspectos gerais da doutrina de Calvino e, em seguida,
estudaremos a eleição e a reprovação, respectivamente.

1. O LUGAR DA PREDESTINAÇÃO NAS INSTITUTAS

Calvino não inventou a doutrina da predestinação, nem foi o primeiro a


ensiná-la claramente. O nome dele tem estado inseparavelmente ligado a
esta doutrina, contudo, provavelmente porque ele - mais do que ninguém -,
foi chamado a defender a predestinação contra toda sorte de oposição.
Porém, a afirmação de que a predestinação era a doutrina central da
teologia de Calvino - um princípio a priori do qual ele fez derivar todo o
seu sistema teológico, não tem o menor fundamento. Calvino não se
envolveu em raciocínios especulativos, frios e teóricos, quando discutiu a
predestinação, A predestinação, certamente, não foi o tópico com o qual
Calvino começou as Institutos. Na edição final de 1559, ele não discutiu
este assunto plenamente até o final do livro terceiro, à altura de cerca de
três quartos do final da obra. Ainda que ele não tenha distribuído o seu
material na mesma ordem, em cada edição das Institutas, e não tenha
seguido o mesmo padrão de arranjos em seus vários escritos sobre o
assunto, Calvino nunca colocou a predestinação no começo de sua obra
teológica. Contudo, infundadas conclusões são, às vezes, tiradas do arranjo
sistemático das Institutas. Não obstante, é digno de observar-se que os
teólogos Reformados, posteriores a Calvino, quando discutiram a
predestinação junto com o decreto de Deus, e antes de discutir a criação,
não seguiram o arranjo final do material de Calvino. Deparamo-nos com
Calvino tratando da predestinação próximo do final do livro terceiro das
Institutas, em meio à discussão da Soteriologia. Um longo capítulo sobre a
oração precede os três capítulos sobre a predestinação, seguindo-se-lhe um
capítulo sobre a ressurrei¬ção final. Só este fator contextual merece mais
atenção por parte dos que consideram a predestinação o fundamento lógico
da teologia de Calvino. Contudo, é também necessário hoje evitar o perigo
mais comum de permitir que o lugar sistemático, dado a doutrina,
obscureça aquilo que Calvino, de fato, diz claramente nesta seção, e
obscureça também a importância fundamental que a doutrina tem dentro de
todo o seu pensamento. Conquanto a predestinação não seja a doutrina
central, na teologia de Calvino, ela, não obstante, é de crucial importância
para toda a sua teologia calcada na Bíblia. A disposição sistemática ou
metodológica da doutrina da predestinação, nas institutas, torna, então,
importante o contexto imediato da discussão que Calvino faz do assunto. A
Soteriologia trata da Obra do Espírito Santo que aplica, aos pecadores, a
obra expiatória realizada por Cristo. Para a realização desta obra, o Espírito
Santo emprega homens como Seus agentes, na pregação do Evangelho. O
Evangelho, contudo, não é pregado a todos, e obtém diferentes respostas
onde é pregado. Como se explica este fato? Esta questão oferece o contexto
da discussão de Calvino sobre a predestinação, como fica claro de suas
palavras iniciais:

"De fato, o pacto da vida não é pregado igualmente entre todos os homens,
e entre os quais ele é pregado não tem a mesma aceitação, nem quanto à
constância, nem quanto à extensão. Nesta diversidade (de respostas) torna-
se conhecida a maravilhosa profundidade do juízo de Deus, pois não há
dúvida de que esta variedade (de respostas) serve também à sentença da
eterna eleição de Deus. Se é óbvio que, da parte de Deus, a salvação é
oferecida a alguns, enquanto outros são impedidos de ter acesso a ela,
surgem imediatamente grandes e difíceis questões, só explicáveis quando
as mentes reverentes consideram, como resolvido, que essas questões
podem apropriadamente estar ligadas à eleição e predestinação".

Este foi também o contexto da significativa discussão de Paulo sobre a


predestinação, em Romanos 9, capítulo especialmente decisivo nas várias
discussões de Calvino a respeito destas doutrina. Não há dúvida de que o
cuidadoso estudo da Epístola aos Romanos, cujo comentário foi publicado
em 1539, foi à fonte da doutrina da predestinação e foi, também, de grande
influências na disposição do seu material, na segunda edição das Institutas,
em 1539.

Retornaremos ao assunto do contexto soteriológico, da discussão de


Calvino sobre a predestinação, quando tratarmos especificamente da
eleição e reprovação. Porém, é importante observar este contexto no início
deste estudo.

2. O SIGNIFICADO PRÁTICO DA PREDESTINAÇÃO

Dentro do contexto soteriológico, dificilmente alguém esperaria deparar-se


com uma discussão fria e especulativa da eterna predestinação de Deus.
Uma das ironias da história é que o homem que escreveu - "Ninguém é
mais avesso ao paradoxo do que eu, e eu, afinal, não tenho nenhum prazer
nas subtilezas" tem sido repetidamente acusado de ser e fazer justamente
isso. No entanto, uma leitura compreensiva das Institutas poria fim a essa
lenda.

As palavras de abertura das Institutas, na edição de 1559, indicam que o


seu autor tinha rompido claramente com os escolásticos. Calvino falou não
de scientia, mas de sapientia = sabedoria. Sua definição a respeito do
conhecimento de Deus mostra sua preocupação religiosa prática. "Agora, o
conhecimento de Deus, como eu o entendo, é aquele pelo qual nós não
somente concebemos que há um Deus, mas também aprendemos o que nos
convém e é próprio à Sua glória, em suma, aprendemos que vantagem
temos em conhecê-lO. “Na verdade, apropriadamente falando, não diremos
que Deus é conhecido onde não há religião nem piedade.

Quando Calvino fez considerações sobre a Providência de Deus, ele disse


que "é conveniente aqui discutir sumariamente com que fim a Escritura
ensina que todas as coisas são divina¬mente ordenadas." Por meio das
"santas pias meditações sobre a Providência, que a regra da piedade nos
ordena", Calvino desejava receber "o melhor e mais doce fruto". Através
das institutas, esta preocupação prática pervade a discussão de Calvino
sobre a eleição e a reprovação. O teólogo - pastor -pregador sempre
demonstrou um caloroso interesse prático na doutrina que aprendeu das
Escrituras.

Calvino reconheceu que o estudo desta doutrina apresenta, imediatamente,


questões muito difíceis. Considerava que estas questões são inexplicáveis,
se não se mantiver o ensino bíblico sobre a predestinação. Ele não começou
com estes problemas. Primeiro, chamou a atenção para a "utilidade desta
doutrina" e "para os seus muito doces frutos". Ele mencionou três destes
frutos: Esta doutrina nos ensina a pôr nossa confiança na livre graça de
Deus; exalta a glória de Deus e fomenta a sincera humildade.

A contemplação da divina predestinação nos ensina a olhar para a graça de


Deus. Segundo o modo de julgar de Calvino, "nós nunca seremos
claramente persuadidos, como devíamos ser, de que nossa salvação deflui
da fonte da livre graça de Deus, enquanto não tomarmos conhecimento de
Sua eterna eleição, que ilumina a graça de Deus por este contraste: Que Ele
adota a todos, não indiscriminadamente, na esperança da salvação, mas
assegura a uns o que nega a outros". A salvação não vem das nossas obras;
a eleição torna claro que

Nossa salvação procede somente da só mera generosidade de Deus.


Aqueles que "fecham a porta a esta doutrina são homens injustos que se
colocam no lugar de Deus". “Nada será suficiente para tornar-nos
humildes, como devemos ser, nem de outro modo sentiremos sinceramente
o quanto somos obrigados diante de Deus”, a menos que reconheçamos a
Sua eleição. Por isso, "ignorar este princípio deprecia a glória de Deus" e
"impede a verdadeira humildade".

Aqueles que são cegos aos três frutos desta doutrina - a livre graça de Deus,
a glória de Deus e a humildade sincera -, "desejariam que o fundamento de
nossa salvação fosse remo¬vido do nosso meio" e "serviriam pessimamente
aos interesses deles mesmos e de outros crentes". Nesta doutrina
desco¬bre-se a verdadeira origem da Igreja de Cristo. O conforto da
predestinação de Deus não é só para os indivíduos; é para a Igreja e a
comunhão dos santos. Ouvimos Calvino pregar: Vamos apegar-nos à
eleição de Deus sempre que estivermos desanimados e abatidos; se virmos
os homens enfraquecerem e toda a Igreja parecer reduzir-se a nada
devemos lembrar-nos de que Deus é o seu fundamento, isto é, a Igreja não
está baseada na vontade do homem, pois os homens não podem edificar-se
a si mesmos, nem reformar-se a si mesmos: Porém, isto procede da pura
bondade e graça de Deus.

Esta doutrina útil e seus frutos agradáveis "devem ser pregados aberta e
plenamente". "Os que pensam abolir a doutrina da eleição de Deus
destroem, tanto quanto possível, a salvação do mundo". "De fato, o diabo
não tem um instrumento mais adequado do que os que lutam contra a
predestinação; em seu rancor, não suportam que se fale da doutrina ou que
ela seja pregada como deve". "O diabo não pode encontrar meio melhor
para destruir a nossa fé, do que esconder este artigo aos nossos olhos".

Este interesse prático, não especulativo e profundamente religioso é


evidente também no fato de ter sido considerado como um dos mais
polêmicos tratados de Calvino, Concerning lhe firmai Predestination of
God (1552). Em sua resposta às ACUSAÇÕES de Albert Pighius,
arquidiácono de Utrecht, Calvino afirmou que ele, realmente, nada mais
tinha a dizer senão o que tinha afirmado nas Institutas, porém, lhe oferecia
o seguinte notável sumário prático:

"As Institutas dão pleno e abundante testemunho a respeito do que eu


penso, e mesmo que eu quisesse nada poderia acrescentar. Antes de tudo,
peço aos meus leitores que recordem a advertência feita ali. Este assunto
não é especulação sutil e obscura, como pensam falsamente os que
afadigam a mente sem nenhum proveito. É, mais, um argumento sólido
estabelecido para o uso dos piedosos. Pois ele constrói a fé solidamente,
exercita a humildade, eleva-nos à admiração da imensa bondade de Deus
para conosco, e nos estimula a louvar esta bondade. Não há consideração
mais apta para construirmos nossa fé do que ouvirmos a respeito desta
eleição, que o Espírito de Deus testemunha em nossos corações estar
firmada na eterna e inflexível bondade de Deus, e invulnerável a todas as
tormentas do mundo, a todos os assédios de Satanás e a toda vacilação da
carne. Porque, assim, a nossa salvação está assegurada, uma vez que a sua
causa está enraizada no coração de Deus. Por isso, apoderemo-nos da vida
em Cristo, tornada manifesta na fé, de modo que, conduzidos por esta
mesma fé, possamos ir além para ver de que fonte esta vida procede. A
confiança da salvação está fundada em Cristo e descansa sobre as
promessas do Evangelho. Nem é desprezível apoio quando, crendo em
Cristo, ouvimos que isto nos foi divinamente outorgado, que antes do
começo do mundo fomos tanto ordenados para a fé, como também eleitos
para a herança da vida eterna. Disto procede a inexpugnável segurança".

3. A BASE BÍBLICA DA PREDESTINAÇÃO

A tarefa do teólogo, segundo Calvino, "não é distrair os ouvidos com


tagarelices, porém, fortalecer as consciências pelo ensino de coisas
verdadeiras, certas e proveitosas". Nem é o teólogo que determina o que é
verdadeiro, certo e proveitoso; isso é dado só pela Escritura. "Pois nossa
sabedoria não deve consistir em nada mais do que abraçar, com humilde
disposição para aprender - e pelo menos sem negligência -, tudo aquilo que
é ensinado na Sagrada Escritura". "Devemos buscar, na Escritura, a regra
certa tanto para o que fazemos como para o que falamos regra à qual tanto
os pensamentos de nossas mentes, quanto às palavras de nossas bocas,
devem conformar-se". Para Calvino, a Escritura é a Palavra de Deus
inspirada e infalível. Como vontade revelada do Deus vivo, a Escri¬tura é a
única fonte da teologia de Calvino.

Por que Calvino está tão empenhado em explicar e defen¬der a doutrina da


predestinação? Ele afirmou: "Posso declarar, com toda verdade, que eu só
falei sobre este assunto, quando a Palavra de Deus me conduziu a isso,
como, em verdade, os piedosos leitores dos meus primeiros escritos,
especialmente das Institutas, podem depreender prontamente". Depois de
definir a predestinação à luz do seu estudo bíblico, ele advertiu seus leitores
para que "não assumissem posição preconcebida de nenhum dos dois lados,
enquanto os textos da Escritura não fossem aduzidos, e ficasse clara qual a
opinião que deveria ser mantida". Calvino apoiou esta doutrina na Escritura
e é também por esse padrão que ele queria que sua exposição fosse julgada.
Esta doutrina não foi elaborada especulativamente com provas isoladas de
textos agregados aleatoriamente. Na verdade em apoio a ela são citadas
muitas passagens bíblicas, porém ,a estrutura básica da doutrina depende da
Escritura (como um todo), especialmente das Cartas de Paulo aos Romanos
e aos efésios. O primeiro comentário de Calvino foi escrito sobre a carta
aos Romanos, e seu estudo desta Carta influenciou-o na elaboração da
doutrina da predestinação, nas Institutas Calvino estava convencido de que,
"se entendermos esta epístola, teremos aberto a porta para entendermos
toda a escritura".
Um axioma, para Calvino, era que o teólogo deve ser obediente ao ensino
da Palavra de Deus: "Devemos ter tal apetite para com a Palavra de Deus,
que qualquer diferença de interpretação de nossa parte, possa alterá-la tão
pouco quanto possível… É, portanto, presunçoso e quase blasfemo torcer o
sentido da Escritura, sem o devido cuidado, como se fosse algum jogo de
que estejamos participando". Quando seus Oponentes o acusaram de ter
dado origem a uma doutrina que relaciona o endurecimento do homem com
o eterno conselho de Deus, Calvino respondeu enfaticamente: "Certamente,
não somos nós o autor desta opinião... Paulo ensinou isto antes de nos...
Pois nesta matéria nada discutimos que não tenha sido ensinado por ele".
Aqueles que se escandalizam com a distinção de Paulo entre eleição e
reprovação, Calvino respondeu: "Porém, que ousadia contestar ao Espírito
Santo e a Paulo!".

Conquanto insistisse em que a Escritura deve ser a única base desta


doutrina, Calvino reconhecia que havia, especialmente, dois perigos que
podem surgir quando tratamos com a Escritura. De um lado, é possível ao
homem deixar-se envolver por excessiva curiosidade, e ser levado a
especulações que vão além do ensino da Escritura. Por outro lado, é
possível tornar-se presa de excessiva timidez que impede dizer o que a
Escritura afirma. Com relação ao primeiro perigo ele escreveu: "A
curiosidade humana torna a discussão sobre a predestinação, já difícil por si
mesma, muito confusa e perigosa, pois nada consegue impedir o homem de
buscar as alturas, por elevação e atalhos proibidos, porque, se lhe fosse
permitido, não deixaria a Deus segredo algum que pudesse investigar e
desenredar".

Os que são tentados pelo perigo da especulação devem lembrar-se de que,


quando buscam compreender a predestinação, "estão penetrando nos
arcanos da sabedoria divina. Se alguém, com audaciosa confiança, força a
entrada neste lugar, não terá sucesso em satisfazer a sua curiosidade, mas
entrará num labirinto do qual não poderá sair. Não é permitido ao homem
investigar ilimitadamente aquelas coisas que o Senhor quis que ficassem
ocultas nele mesmo, nem esquadrinhar, desde a eternidade, a majestade e a
grandeza da sabedoria divina, que Ele quer que reverenciemos e não que
compreendamos, para que Ele também se mostra a nós de forma
maravilhosa". Os segredos de Sua vontade, que Ele quer que conheçamos,
"Ele os revelou em Sua Palavra, para nosso benefício". Porém, no
"momento em que formos além dos limites da Palavra, estaremos fora do
rumo e em trevas... e, então, reiteradamente, vaguearemos, tropeçamos e
nos confundimos". Contra este perigo, Calvino nos advertiu: "Antes de
tudo, tenhamos presente diante de nós: Procurar outro conhecimento da
predestinação, além daquele que a Palavra de Deus revela, não é menos
insano do que vagar por um deserto sem caminho (Jó 12.24), ou procurar
ver nas trevas. E não nos envergonhemos por ignorar algumas coisas nesta
matéria, onde há uma certa douta ignorância".

Calvino advertiu também contra o perigo oposto representado por aqueles


"que são muito cautelosos e tímidos e desejam esconder a predestinação,
com o objetivo de não perturbar as almas fracas". O cristão precisa "ter a
mente e | ouvidos abertos a tudo o que Deus lhe diz". Porém, "quando o
Senhor fecha os seus santos lábios, o cristão também, cessa de uma vez de
inquirir". O cuidado de Calvino se revela no seguinte:

"Porque a Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual não é omitido


nada do que seja útil e necessário saber. Por essa razão, nada é ensinado
senão aquilo que convém saber. Portanto, precisamos precaver-nos contra
crentes destituídos de qualquer conhecimento da predestinação, segundo a
Escritura, temendo que pareçamos fraudá-los perversamente das bênçãos
do seu Deus, ou acusar o Espírito Santo e zombar dele por ter Ele
anunciado aquilo que, de qualquer modo, é proveitoso suprimir... O melhor
limite de sobriedade para nós será não só seguir sempre a direção de Deus
para aprender, mas, também, quando Ele deixar de ensinar, pararmos de
tentar e ser sábios".

Os homens profanos criticam, vituperam, ladram e zombam da


predestinação. “Porém, se a oposição à doutrina da Escritura fosse capaz de
deter o cristão, seria necessário também guardar em segredo (e não
divulgar) doutrinas tais como a da Trindade, a da Criação”, na verdade,
(seria necessário esconder) "as principais doutrinas que tratam da fé". A
fonte bíblica de toda doutrina e os perigos a serem evitados se expressam
na seguinte regra geral: "Desejo apenas levá-los a admitir que não devemos
investigar aquilo que o Senhor tem mantido em segredo e que não devemos
negligenciar aquilo que Ele tem trazido à luz, para, de um lado, não sermos
condenados por excessiva curiosidade e, de outro lado, não sermos
condenados por excessiva ingratidão". O desejo de Calvino era que devia
florescer, na Igreja de Deus, "suficiente grandeza de alma", para "evitar que
os mestres piedosos ficassem com vergonha de professar a verdadeira
doutrina, por mais odiosa que ela possa parecer" e, também, pudessem
"refutar a quaisquer acusações que os ímpios despejassem sobre ela".

4. A DEFINIÇÃO DE PREDESTINAÇÃO

Calvino ensinava a doutrina da predestinação porque estava convencido de


que era urna exigência da Escritura. Ele esforçava-se para evitar a
especulação e a formulação de teorias, para que os frutos agradáveis da
doutrina bíblica pudessem ser provados e, (além disso), tratou da doutrina
num contexto soteriológico, que reflete a poderosa influência da Epístola
aos Romanos. Antes de apresentar o esboço da doutrina da eleição e da
reprovação, segundo Calvino, será útil fazer um levanta-mento de toda a
doutrina que está diante de nós. A definição dela nos propicia um bom
sumário:

Nas duas definições abrangentes que se seguem, Calvino sintetiza a sua


doutrina da predestinação:

"Chamamos predestinação ao eterno decreto de Deus pelo qual Ele


determinou consigo mesmo aquilo que Ele quis que ocorresse a cada
homem. Porque não fomos criados em condições iguais; certamente, a vida
eterna é preordenada para alguns, e a perdição eterna para outros. Portanto,
como todos foram criados para um ou outro destes fins, falamos deles
como predestinados para a vida ou para a morte.

"Como a Escritura, então, mostra claramente, dizemos que Deus, uma vez,
estabeleceu, mediante seu plano eterno e imutável, aqueles a quem, de
antemão, determinou, de uma vez por todas, receber para a salvação, e
aqueles a quem, por outro lado, destinou ao aniquilamento. Afirmamos
que, com respeito aos eleitos, este plano funda-se na graça de Deus,
livremente oferecida, sem levar em conta o mérito humano; mas, por seu
justo, irrepreensível, porém, incompreensível juízo, Ele fechou a porta da
vida àqueles a quem abandonou à perdição. Entre os eleitos, consideramos
a chamada como um testemunho da eleição e sustentamos que a
justificação ê outro sinal de sua manifestação, até que os eleitos entrem na
glória, onde está o cumprimento final da eleição. Porém, como o Senhor
sela os seus eleitos, chamando-os e justificando assim, por impedir que os
réprobos cheguem ao conhecimento do seu nome ou recebam a santificação
do seu Espírito,ele revela, por estes sinais, o tipo de julgamento que os
espera" Quase tudo o que Calvino ensinou, sobre a predestinação, ESTÁ
incluído nos dois sumários acima.

Em outros escritos, Calvino apresentou sumários semelhantes. No prefácio


ao seu comentário sobre os Salmos, ele falou da "predestinação eterna pela
qual Deus distinguiu os réprobos dos eleitos". Ao refutar? Os argumentou
de Píghius, a primeira das três considerações feitas por Calvino é a
seguinte. A eterna predestinação de Deus, pela qual, antes da queda Adão
ele decretou e determinou o que deveria acontecer em relação a toda raça
humana e a cada indivíduo". Finalmente notamos, no primeiro sumário de
Calvino, em sua Inslruction IN faith (= Instrução Sobre a Fé), de 1537.0
enfoque é semelhante ao do capítulo 9 da Carta aos Romanos e da edição
final das Institutas:

"Além deste contraste de atitudes entre crentes e descrentes, o grande


mistério do conselho de Deus deve ser necessariamente considerado. Pois,
a semente da Palavra de Deus lança raízes e produz frutos somente
naqueles que o Senhor, por sua eleição eterna, predestinou para serem
filhos e herdeiros do reino dos céus. A todos os outros (que, pelo mesmo
conselho de Deus, foram rejeitados antes da fundação do mundo), a clara e
evidente pregação da verdade nada significa e nada mais é do que cheiro de
morte para a morte... Reconhecemos, portanto, que os eleitos são os
beneficiários da graça de Deus (como verdadeiramente eles são), e que os
rejeitados são os recipientes do seu juízo, juízo que, contudo, não é nada
mais do que justo.

Estes sumários deixam claro que Calvino sustentava a.. Dupla


predestinação, isto é, a eleição e a reprovação. Estes sumários e todo o seu
ensino indicam que Calvino considerava tanto a eleição como a reprovação
operações soberanas de Deus, enraizadas no decreto eterno e imutável ou
decreto eterno do Deus triuno. Por isso, Calvino dava ênfase tanto à eleição
soberana quanto à reprovação soberana. Veremos, no entanto, que Calvino
usou outros adjetivos, que não podem ser aplicados igualmente à eleição e
à reprovação. Ele seguiu a Paulo, quando falou tanto da eleição quanto da
reprovação: "... no caso do eleito, temos de considerar a misericórdia de
Deus, porém, no caso do réprobo, temos de reconhecer o Seu justo juízo".

A eleição gratuita revela a livre graça e bondade de Deus. Os eleitos são


eleitos em Cristo, e Cristo é o espelho da eleição. A reprovação, por outro
lado, manifesta o justo juízo de Deus, a Sua Justiça. Isto não significa que a
eleição também não caracteriza a justiça de Deus. Certamente, a eleição
também revela a justiça de Deus, "pois não pode haver injustiça tanto em
relação aos eleitos como em relação aos réprobos". Deus é perfeitamente
justo em toda Sua obra. A graça gratuita, contudo, não caracteriza a
soberana reprovação de Deus. Daqui considerarmos a ênfase de Calvino,
quando falamos da eleição soberana e gratuita, de um lado, e, de outro,
quando falamos da justa (Justiça) reprovação soberana. Naturalmente, na
predestinação aparecem outros atributos de Deus. A incompreensibilidade
de Deus, por parte do homem, é repetidamente referida porém, a soberania,
a graça e a justiça são os principais atributos mencionados, na discussão
que Calvino faz do assunto. Deste levantamento de aspectos gerais da
doutrina da predestinação, de Calvino, partimos agora para um exame mais
detalhado, primeiro, da eleição gratuita e, em seguida da justa reprovação.
CAPÍTULO 2

ELEIÇÃO SOBERANA E GRATUÍTA

Ao expor a base bíblica da doutrina da eleição, Calvino começa, nas


Institutas, com a Carta aos Efésios e, daí, parte para carta aos Romanos. Na
extensa doxologia trinitariana de Efésios 1, Paulo se dirigiu "aos santos de
Éfeso e fiéis em Cristo Jesus". Ele se refere ao "beneplácito e vontade" de
Deus como a fonte de toda graça que os fiéis tinham recebido: "Bendito
seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado
com toda sorte de bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo, pois
nos escolheu nele antes da fundação do mundo para que fossemos santos e
sem mácula diante dele.Em, amor.ele nos predestinou para sermos
adotados como" filhos seus. Jesus Cristo, segundo o beneplácito e vontade
para louvor de sua gloriosa graça que ele nos concedeu gratuitamente no
Amado" (Ef 1.3-6).

Quando se presta atenção a cada uma das cláusulas separadas da passagem


acima, e estabelecem-se as ligações entre elas, não há como se duvidar da
doutrina da eleição. Os comentários de Calvino, sobre a passagem acima,
nos dá um sumário dos principais aspectos da doutrina da eleição soberana
e gratuita:

"Desde que Paulo os chama de eleitos, não resta dúvida de que ele está
falando aos crentes, como também logo declara... dizendo que "eles foram
eleitos antes da fundação do mundo" (Ef. I4A), eliminando qualquer
consideração a respeito de merecimento pessoal. Que base há para a
distinção entre estes que ainda não existiam e que, subseqüen-temente,
deveriam ser iguais a Adão? Ora, se eles são eleitos em Cristo, segue-se
não somente que cada homem é eleito sem qualquer conside-ração de
mérito próprio, mas também, que eles são separados de outros, pois vemos
que nem todos são membros de Cristo. Além disso, o fato de terem sido
eleitos para "ser santos" (Ef. 1.4b) refuta inteiramente o erro que faz a
eleição derivar do preconhecimento, visto que Paulo declara que toda
virtude que o homem é capaz de exibir, resulta da eleição. Agora, se
procura uma causa mais remota, Paulo responde que assim aprouve a Deus
porque está de acordo "com o beneplácito da sua vontade" (Ef 1.5b). Com
estas palavras, Paulo suprime todos os meios de eleição que o homem
possa pensar em possuir por si mesmo Pois todos os benefícios que Deus
concede para a vida espiritual, conto Paulo ensina, fluem desta única fonte:
Isto é, que Deus escolheu aqueles a quem quis e, antes do nascimento
deles, Deus guardou para eles, individualmente, a graça que lhes quis
conceder".

No comentário acima, sobre Efésios, Calvino sumaria a doutrina da eleição,


referindo as quatro causas de nossa salvação: A causa eficiente é o
beneplácito da sua vontade; a causa material é Cristo; a causa final é para o
louvor da sua graça, e a causa formal é a pregação do Evangelho por meio
do qual a bondade de Deus flui para nós". Ainda que Calvino não
empregue estes termos aristotélicos nas Institutas, ele apresenta as mesmas
distinções quando discute a eleição. Considerare¬mos os vários elementos
da discussão de Calvino, seguindo as seguintes divisões: O decreto divino,
sua causa e sua fonte, seu objetivo e seus meios.

A. O Decreto Divino da Eleição

Nesta seção examinaremos a ênfase de Calvino sobre três fatores: A eleição


como obra de Deus; a eleição como obra decretiva de Deus; a eleição como
obra decretiva de Deus visando aos indivíduos.

a) Eleição como obra de Deus. Segundo Calvino, a eleição, do começo ao


fim, é obra soberana do nosso Deus misericordioso.

Como obra de Deus, a eleição resulta do eterno conselho de Deus decretado


antes da fundação do mundo. Como obra da eleição se destina à salvação
de homens e mulheres salvação operada inteiramente pelo nosso Deus
soberano. O objetivo final da eleição não à atingido até que Deus, tendo
operado a salvação dos eleitos - e tendo-os levado para glória seja, deste
modo, glorificado plenamente em Si mesmo.

Ainda que este decreto divino seja, de algum modo, obra das três pessoas
da Trindade, Calvino concebeu-o primeiramente como obra das primeiras
duas pessoas. Que o Pai é o Autor do decreto é muito claro. É à luz do
eterno decreto do Pai que as palavras de Cristo adquirem sentido: "Todas as
coisas foram entregues por meu Pai... E a vontade do Pai que me enviou é
esta: Que eu não perca nenhum de todos os que me deu...". Assim, a
"dádiva do Pai é o começo de nossa recepção na segurança e proteção de
Cristo".
Calvino, porém, considerava também o próprio Cristo Como Autor do
decreto da eleição: "Entrementes, ainda que Cristo se interponha como
Mediador, Ele reivindica para si, em comum com o Pai, o direito de
escolher". Este é o sentido das palavras de Jesus, em João, 13.18: "Não falo
a respeito de todos vós, pois eu conheço aqueles que escolhi." Assim,
quando Cristo declarou que "conhece os que escolheu", ele assinala, no
gênero humano, uma espécie particular, distinta não pela qualidade de suas
virtudes, mas pelo decreto celestial... Cristo faz-se a Si mesmo Autor da
eleição". Concisamente, vere¬mos também que Calvino considerou o eleito
como "eleito em Cristo, e considerou a Cristo como o "espelho de nossa
eleição". Porém, é importante ver aqui que Cristo é, Ele mesmo, o Autor do
decreto.

Notamos que Calvino considerava o decreto divino como obra das três
pessoas da Trindade, porém, dava ênfase ao papel do Pai e do Filho. Ele
não refere explicitamente o Espírito Santo como autor do decreto, como faz
em relação ao Pai é o Filho. O Espírito Santo, naturalmente, está envolvido
na doutrina da eleição: Ele é o Mestre desta doutrina, pois inspirou as
Escrituras, e, mais significativamente, Sua obra soteriológica consiste em
executar o decreto de Deus.

a) A eleição é obra decretiva de Deus. As obras de Deus são muitas e


variadas. Aqui está em foco à obra decretiva de Deus. Para entender
Calvino, é preciso reconhecer que a eleição, como a reprovação, resulta do
soberano e eterno conselho de Deus: "Chamamos predestinação ao eterno
decreto de Deus, pelo qual Ele determinou, em Si mesmo, aquilo que Ele
quis que ocorresse a cada homem". "A Escritura mostra... claramente... que
Deus, uma vez, estabeleceu, em Seu plano eterno e imutável, aqueles a
quem Ele, de antemão, determi¬nou, de uma vez por todas, receber para a
salvação, e aqueles a quem, por outro lado, destinou à perdição". Calvino
fala de decreto eterno, de conselho eterno ou plano eterno, que precede a
existência da pessoa eleita (e.g. Jacó); precede a queda de Adão; na
verdade, precede a criação do mundo. Foi por isso que Calvino disse que
"todos não foram criados em condição igual; porém, que a vida_ eterna é
ordenado para alguns e a perdição eterna para outros". Calvino não faz
especulação a respeito da ordem dos decretos
Mais do que isso, com justificado apoio bíblico, ele Fala do eterno
conselho de Deus, que precede a todas as Suas Atividades na História,
conselho eterno que, contudo, se realiza na história.

A referência de Calvino ao eterno conselho e decreto de Deus indica a


intima relação entre predestinação e providência,no seu pensamento. Nas
edições das Institutas publicadas de, 1534 a 1554 Calvino discute estes
assuntos juntos, no mesmo capítulo Nao foi senão na edição final de 1559,
que ele passou a discutir a predestinação no Livro III. Contudo, este
rearranjo sistemático não envolveu mudanças nem no conteúdo, nem no
pensamento de Calvino. Quando ele discutiu a providência, achou
necessário referir-se à predestinação - ou, seja, à eleição e reprovação. E
quando ele aqui discutiu a predestinação, relacionou tudo ao conselho de
Deus, que é executado através de sua direção providencial e de Seu
governo sobre todas as coisas.

A luz da discussão contemporânea este ponto merece atenção adicional. A


referência ao decreto de Deus, com relação A eleição, imediatamente, traz
de volta as asserções de Calvino Com relação à providência de Deus.
"Porém, nós temos a Deus Como soberano e governador de todas as coisas,
o qual, de acordo com Sua sabedoria, tem desde a eternidade decretado
aquilo que ia fazer, e agora, por Seu poder, realiza o que decretou". Ele
insiste em lembrar-nos de que "não há poder errático, ou ação, ou
movimento nas criaturas, porém que elas de tal modo são governadas pelo
secreto plano de Deus, que nada acontece a menos que seja intencional e
voluntariamente decretado por Ele". Neste sumário de toda a doutrina da
providência, ele faz menção direta da eleição e da reprovação "Resumindo,
desde que a vontade de Deus é a causa de todas as coisas, considerarei a
Sua providência como o princípio determinativo de todos os planos e obras
humanas, não só para exibir Sua força nos eleitos, que são governados pelo
Santo Espírito, mas também para compelir os réprobos à obediência".

b) A eleição é particular. Segundo Calvino, a obra decretiva de Deus é


específica e particular; ela visa a indivíduos específicos. O decreto da
eleição não contém apenas a intenção geral de Deus, nem é um decreto
para salvar só os que crêem. Mais do que isso, o decreto diz respeito a
indivíduos (que, naturalmente, ainda não existem) a quem Deus destina à
salvação eterna; este decreto prove os meios para a realização daquele
propósito em favor de cada eleito, individualmente. O ponto de vista de
Calvino a respeito da eleição individual não o conduziu, contudo, ao
individualismo. Calvino não se referiu exclusivamente à eleição individual,
e é importante notar isto a fim de entendermos apropriada-mente as seções
sobre a predestinação. Ele fala de uma eleição nacional com relação a
Israel, e de uma eleição para ofícios, como distintas da eleição para a
salvação. Estas outras "espécies" ou "graus" de eleição mostram tanto a
generosidade quanto a soberania da eleição de Deus. Elas, contudo, não
envolvem necessariamente a salvação. Esaú, por exemplo, era membro da
nação eleita, mas quebrou o concerto e mostrou que não foi eleito para
salvação. O mesmo é verdade em relação a esmael. Judas é um que era
membro da nação eleita, foi eleito para um oficio, mas não foi eleito para a
salvação. "Ainda que esteja suficientemente claro que Deus, pelo Seu plano
secreto,escolhe para a salvação aqueles de quem se agrada, e rejeita
outros'', Calvino continuou: "ainda Sua eleição tem sido apenas meio
explicada até que cheguemos às pessoas individuais, às quais Deus não só
oferece salvação mas, também, lhes| assegura a certeza de sua eficácia, sem
deixá-las em suspenso ou em dúvidas". Nem toda a nação de Israel, mas só
os indivíduos eleitos para a salvação é que são "enxertados no cabeça",
Jesus Cristo, por isso "nunca serão cortados da salvação". Estas pessoas
eleitas, contudo, são ligadas entre si em comunhão. Em Cristo, seu Cabeça,
"o Pai celestial tem reunido os eleitos todos juntos, e os tem unido a Si
mesmo por um laço indissolúvel". Isto constitui a significativa base para a
doutrina da Igreja, de Calvino.

Eleição particular - ou eleição de pessoas individuais para, a salvação - foi


tão claramente concebida por Calvino, que seu pensamento o tornou
ocasião para a comum objeção de que Deus, então, faz distinção entre
pessoas. Depois de alguma reflexão preliminar sobre o real sentido da
objeção acima, Calvino apresentou sua resposta, que é a simples afirmação
do direito soberano do Criador sobre toda a Sua criação. Nada há, nas
pessoas humanas que leve Deus a elegê-las ou a reprová-las como tais. Os
eleitos aos quais Deus mostra misericórdia são tão culpados quanto os
réprobos. Ainda que os réprobos sejam eventualmente condenados por seus
pecados, a ação soberana de Deus, em preteri-los, não é ocasionada por
seus pecados.

A resposta de Calvino é eco de Agostinho: "Que Deus dê, àqueles a quem


reprova o castigo que merecem, e dê aos que elegeu, a graça que não
merecem, mostra que Deus é justo e irrepreensível, como no exemplo de
um credor, que pode perdoar a dívida de um devedor, e exigir o pagamento
de outro Assim, o Senhor, porque é misericordioso, pode oferecer a sua
graça a quem quer, e não dá-la a todos, porque é justo juiz. Ao dar a uns a
graça que não merecem, mostra a sua graça gratuita e não da-la a todos,
mostra o que todos merecem".

Os herdeiros de Abraão não eram mais dignos do que outros povos, quando
a nação de Israel foi eleita. De igual modo, os indivíduos eleitos para
salvação não são mais dignos de eleição do que os que são rejeitados. Isto
se deve simples¬mente à soberania de Deus. ".Deus escolhe uns e rejeita
outros, de acordo com a Sua decisão...". "Deus é sempre livre para dar a
Sua graça a quem Ele quer"; se alguém busca alguma causa (para este
procedimento)! Além da livre soberania de Deus, deve "responder por que
são homens ao invés de bois ou burros. Ainda que estivesse no poder de
Deus fazê-los cachor¬ros, Deus os fez à sua própria imagem". A resposta
de Calvino a tais questões é a mesma resposta de São Paulo: "Quem és tu, ó
homem, para discutires com Deus? Porventura pode o objeto perguntar a
quem o fez: Por que me fizeste assim?" (Rm 9.20).

Do dito acima fica claro o que Calvino quis dizer quando definiu a
predestinação como "o eterno decreto de Deus pelo qual Ele determinou,
em Si mesmo, aquilo que deveria ocorrer com cada homem". O decreto da
eleição faz distinção entre indivíduos, distinção que não existe por
natureza: Em Jacó e Esaú, "todas as coisas são iguais, contudo, o juízo de
Deus, sobre cada um, é diferente, pois Ele aceita um e rejeita outro.
Rejeitando a Ismael, Ele volta o seu coração para Isaque (Gn 21.12).
Preteriu a Manasses e honrou a Efraim (Gn 48.20)". O decreto, contudo,
não é conhecido dos homens, exceto em raros casos, quando Deus decide
revelá-lo. No único caso de Jacó e Esáu, foi revelado aos pais o eterno
decreto de Deus relativo a seus gêmeos, antes do nascimento deles. Rebeca
foi Divinamente informada da eleição de seu filho Jacó. Porém,

Mesmo nesse único exemplo, esta divina revelação não se motivo de ação
divergente por parte dos pais. Os meios de graça não eram para serem
tirados de Esaú e dados somente ao eleito Jacó. A eleição soberana dos
indivíduos, para receber o dom da salvação através de Jesus Cristo, dá
ênfase, contudo, a livre graça de Deus em dar a uns o que nega a outros - e
dar generosamente onde não há mérito nos que recebem.
B. A causa e a Base da Eleição

A seção precedente demonstrou que, para Calvino, a salvação dos crentes


está enraizada no eterno e imutável decreto de Deus. Agora, devemos
considerar a seguinte questão: Terá o decreto divino alguma razão ou causa
como sua base? Por que Deus elege algumas pessoas e não elege outras?
Será por causa de suas boas obras? Ou será porque Ele preconhece ou
prevê suas boas obras? Estas explicações não eram sustentáveis para
Calvino. “Porém, outros intérpretes têm apresentado” essas respostas e
Calvino foi forçado a considerá-las para refutá-las. Ele, enfaticamente,
negou, as boas obras. Ou o pré-conhecimento delas como razão ou causa
para o decreto da "Eleição de Deus. A primeira causa, a principal causa, a
mais alta razão, o fundamento da nossa eleição, para Calvino, é o próprio
Deus. Sua vontade soberana, seu bom prazer ou seu beneplá¬cito. Assim, a
soberania de Deus se destaca outra vez como a causa e a base da eleição.
Desde que as obras não são à base da eleição, a graça gratuita de Deus
também emerge proeminentemente da discussão. Deus escolhe seus eleitos
em Cristo: Ele, Jesus Cristo, é a base da eleição. Estes aspectos da
discussão de Calvino devem agora ser considerados.

a) A causa (da eleição) não sãos as boas obras. Calvino enumerou três
razões para rejeitar a posição de que as boas obras são a causa da eleição.
Deus estabeleceu o seu decreto antes da fundação do mundo, de modo que
as pessoas eleitas ainda não existiam para produzir quaisquer boas obras
todos os homens se perderam em Adão e, por isso, são incapazes de
produzir quaisquer boas obras (para a salvação); finalmente, a eleição, em
si mesma, existe para as boas obras "Ele nos escolheu nele antes da
fundação do mundo, para que fossemos santos e sem mácula diante dele"
(Ef 1.4).

O tempo em que ocorre a eleição, para Calvino, prova que a eleição é


puramente gratuita. "Ao dizer que os Efésios foram eleitos antes da
fundação do mundo (Ef 1.4), Paulo elimina toda consideração de mérito
humano. Pois que base pode haver para distinção entre os que não existem
ainda e os que, subseqüen¬temente, estarão nas mesmas condições de
Adão?". Paulo afirmou isto especificamente quando, em outra passagem,
estendeu a antítese implicada em Efésios: Deus "nos salvou e nos chamou
com santa vocação não segundo as nossas obras, mas conforme sua própria
determinação e graça". Porém, é em Romanos 9, "que o Apóstolo reitera o
seu argumento de modo mais profundo e o estende mais amplamente". Ali
o Apóstolo diz que a soberana eleição de Deus fez distinção entre Jacó e
Esaú, e entre crentes e não crentes, em Israel. "Se sua própria piedade
confirmou alguns na esperança da salvação, e sua própria deserção
deserdou outros, seria inteiramente ab-surdo, para Paulo, fazer seus leitores
dependerem da eleição secreta".

b) A causa (da eleição) não é preconhecimento das obras. Que dizer do


preconhecimento ou presciência de Deus a respeito das boas obras? Não
seria o preconhecimento de Deus a causa ou a base da eleição? A resposta
de Calvino é negativa. "Porém, mesmo que eles não tivessem ainda agido,
algum sofista da Sorbonne poderia replicar, dizendo que "Deus previu
aquilo que eles iam fazer". Esta objeção não tem força na natureza de
homens corruptos, nos quais nada pode ser visto senão material para a
destruição". "Estamos todos perdidos em Adão e, portanto, se Deus não nos
tivesse resgatado da perdição, por sua própria eleição, não haveria coisa
alguma para ser prevista". Outra vez, Romanos 9 proporciona decisiva
palavra para Calvino: "Se o preconhecimento ou presciência tivesse
qualquer suporte para a distinção entre os dois irmãos, a menção do tempo,
certamente, teria sido inoportuna". Calvino considerou as várias teorias de
Ambrósio, Orígenes, Jerônimo e Tomás de Aquino, mas rejeitou a todas
baseado nas Escrituras. Se as obras, em qualquer sentido, fossem a base
para eleição, Paulo teria facilmente encampado a acusação de que havia
iniqüidade ou discriminação de Deus atribuída a elas: "Paulo teria afirmado
isso numa palavra, propondo consideração em louvor das obras. Por que,
então, ele não fez isso? Por que, ao contrário, continua o discurso cheio das
mesmas dificulda¬des? Por que, senão porque não devia? Porque o Espírito
Santo, falando através da sua boca, não sofria da falta de memória.
“Portanto, Paulo responde sem rodeios: Deus mostrou favor aos seus
eleitos porque quis assim”. "Por isso, os que atribuem a eleição de Deus
aos méritos, são mais sábios do que devem ser", como escreveram
verdadeira¬mente "os antigos escritores eclesiásticos". As palavras de
Agostinho permanecem verdadeiras: "A graça de Deus não descobre os
escolhidos, mas prepara os que devem ser escolhidos". "Finalmente", disse
Calvino, "é certo que todas as causas de eleição e propósito, que os homens
comumente imaginam existir, estão fora do plano secreto de Deus".
c) A causa (da eleição) é a soberana vontade de Deus. A causa e
fundamento da eleição não podem ser as obras humanas, nem mesmo o
preconhecimento ou a presciência que Deus poderia ter delas. Qual é então
a base da eleição? Calvino diz que a única causa que pode ser alegada é,
simplesmente, a soberana vontade de Deus. Jacó e Esaú constituem o mais
claro exemplo da Escritura. "Esaú e Jacó eram irmãos gerados dos mesmos
pais, embora encerrados no mesmo ventre, contudo, não tinham ainda
nascido. Neles, todas as coisas eram iguais, porém, o juízo de Deus, em
relação a cada um deles, foi diferente, porque aceitou a um e rejeitou a
outro". "Daí não se deve duvidar que Jacó foi enxertado, com os anjos, no
corpo de Cristo, para torna-se participante da mesma vida. Portanto Jacó,
pela predestinação, foi escolhido e distinguido do rejeitado Esaú que, em
méritos, não era diferente de Jacó". Ou quando Paulo, em Efésios, 1.5,9,
disse que "Deus propôs em Si mesmo" quis significar "que Deus não levou
em conta coisa alguma fora de Si mesmo, quando estabeleceu o Seu
decreto... Certamente, a graça de Deus só merece ser proclamada na nossa
eleição, se ela for livremente concedida. Ela não seria livremente dada se
Deus, ao fazer a escolha levasse em conta as obras de cada um". Se
procurarmos razão para a distinção entre Jacó e Esaú, nenhuma resposta
nos será permitida senão as próprias palavras de Deus dita a Moisés: "Terei
misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia, e me compadecerei de
quem me aprouver ter compaixão". Qual é, então, a causa ou a razão para o
decreto da eleição? Paulo deu a resposta em Efésios, 1.5, dizendo que é "o
beneplá¬cito da sua vontade". Se alguém tenta ir além do bom prazer da
vontade de Deus, Calvino adverte: "... é sumamente iníquo meramente
investigar as causas da vontade de Deus. Porque Sua vontade é e,
certamente deve ser a causa de todas as coisas que existem". "O decreto
eterno de Deus não tem qualquer causa fora dele... Pois a vontade de Deus,
para nós, tem tal soberania que nos é simplesmente suficiente (sa simple
voluntê) para todas as razões. É a sabedoria em nós para fazermos tudo o
Deus determinou, sem perguntar por que". Calvino mesmo respeitou essa
exigência em sua Confession ofFaith (=confissão de Fé), de 1562, enviada
à Dieta de Frankfurt, em em nome das Igrejas Reformadas Francesas:
"Sustentamos que a bondade que Ele revela para conosco tem fundamento
no fato de ele ter-nos eleito antes da fundação do mundo, não procurando
fora dEle mesmo, mas no Seu bom prazer, a causa (para agir assim)". Esta
ênfase sobre a vontade soberana de Deus não é idêntica ao do conceito de
Deus que prevalecia na fase final da Idade Média, como poder absoluto.
Para Calvino, a vontade de Deus é caracterizada por todos os atributos de
Deus; Sua vontade é, ao mesmo tempo, santa e justa. Consideremos isto,
quando discutirmos a vontade em conexão com a Reprovação.

D. A base (da eleição) é Cristo. Calvino deu ênfase ao fato de que a eleição
soberana, para a salvação, é a eleição em Cristo. A eleição se origina da
soberana vontade de Deus, mas há uma base ou fundamento para esta
eleição. "Quando Paulo ensi¬na que nós somos escolhidos em Cristo 'antes
da fundação do mundo' (Ef 1.4a), ele elimina toda e qualquer
considera¬ção de obras meritórias de nossa parte, pois é exatamente como
se ele dissesse: Desde que entre todos os filhos de Adão o Pai celestial não
encontrou ninguém digno de sua eleição, Ele voltou seus olhos para o Seu
Ungido a fim de escolher, como membros do Seu Corpo, aqueles a quem
fosse receber em comunhão da vida".

Mais adiante, em outro lugar, Calvino disse: "Desta maneira, aqueles a


quem Deus adotou como Seus filhos, foram escolhidos não em si mesmos,
mas no Seu Cristo (Ef 1.4); porque, a menos que Ele os amasse em Cristo,
Ele não os honraria com a herança do Seu Reino, se eles não se tivessem
tornado previamente participantes de Cristo". Para Calvino, a eleição em
Cristo de modo algum minimizou ou alterou o caráter decretivo da eleição
divina. Ao contrário, a eleição em Cristo estabelece este divino e eterno
decreto ou, seja, é a sua causa material", como ele o chamou no seu
comentário sobre Efésios. A eleição em Cristo não minimizou a soberania
do decreto, mas engrandece a gratuidade, a livre graça da eleição: "Quando
ele acrescenta em Cristo, dá-nos a segunda prova da liberdade da eleição.
Porque, se somos escolhidos em Cristo, a razão da escolha está fora de nós.
Não é por causa dos nossos merecimentos, mas porque nosso Pai celestial,
através da bênção da adoção, nos enxertou no Corpo de Cristo. Portanto, o
nome de Cristo exclui todo o mérito e tudo o que os homens possam ter de
si mesmos; pois quando o Apóstolo diz que somos escolhidos em Cristo,
segue-se que, em nós mesmos, somos indignos").

Ao opor-se à pueril ficção de Pighius, Calvino nos propor¬ciona um bom


sumário da significação da nossa eleição em Cristo. Ele citou João, 6.37:
"Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de
modo nenhum o lançarei fora". Segundo Calvino, temos aqui três coisas
breves, mas, claramente expressas: Primeiro todos os que vão a Cristo, são
antes dados a Ele pelo Pai; segundo, todos os que Lhe são dados, passam
das mãos do Pai para as mãos dele, de modo que se tornam
verdadeiramente Seus; finalmente, Ele é fiel custódia de todos aqueles que
o Pai confiou à Sua guarda proteção, de modo que nenhum deles perecerá.
“Agora, se o problema do começo da fé for levantado, Cristo responde:
Todos os que crêem, crêem porque foram dados a Ele pelo Pai”

C. Propósito e os Meios da Eleição.

O propósito e os meios da eleição são a glória de Deus e a nossa


santificação. O propósito da eterna eleição é duplo: A um deles Calvino
chamou de causa final ou desígnios últimos da eleição, isto é, a glória de
Deus. Ao outro ele chamou seu fim próximo, que é a nossa santificação.
Comentando o texto de EFÉSIOS, 1.4 - "para ser santos e sem mácula
diante dele”, Calvino disse: "Paulo indica o imediato, porém, não o
principal desígnio. Porque não é absurdo supor que uma coisa pode ter dois
objetos. O desígnio de construir uma casa é para que haja uma casa. Este é
o fim imediato. Porém, a conveniência de morar nela é o fim último. Foi
necessário mencionar isto de passagem; porque Paulo, imediatamente,
menciona outro objetivo ou, seja, a glória de Deus. Porém, não há
contradição aqui. A Glória de Deus é o mais alto fim, ao qual nossa
santificação está subordinada". Em Efésios, 1.6, a frase - "para louvor de
mia gloriosa graça", refere-se à causa final da eleição de Deus. Isso aparece
outra vez no versículo 12 "para o louvor da sua glória". "Ele repete o
propósito. Porque só então a glória de Deus brilha em nós, se não formos
nada, a não ser vasos de sua misericórdia. A palavra glória (no texto grego)
denota, peculiarmente, aquilo que brilha na bondade de Deus; porque nada
mais há Nele mesmo para desejar ser glorificado, senão a sua bondade".

A glória de Deus era a única ênfase de Calvino, tanto no seu ensino como
na sua vida pessoal. "Soli Deo Gloria!" (Só a Deus seja dada glória!). Este
era o bem conhecido moto de Calvino. Seus comentários sobre Efésios são
claros sobre este aspecto da eleição, mas ele os elaborou na sua discussão
da eleição, nas Institutas. A glória de Deus é, contudo, como já vimos aqui,
um dos frutos agradáveis que colhemos da com-preensão desta doutrina.
Esta perspectiva subjaz a toda sua discussão da soberana e gratuita
misericórdia de Deus revelada na eleição divina.
Nas Institutas, Calvino deu muito mais atenção ao propó¬sito imediato da
eleição - nossa santificação -, e às questões relativas a este propósito. O
objetivo ou propósito imediato da eleição é a santificação do eleito, isto é, é
torná-lo "santo e sem mácula diante dEle" (Ef 1.4), e essa santificação leva
o crente a glorificar seu misericordioso e soberano Senhor. A eleição
soberana prove todos os meios para que o propósito soberano de Deus
atinja o seu objetivo. Romanos, 8.29-30 nos oferece a estrutura básica
destes meios pelos quais Deus efetua Sua eterna eleição, isto é, a chamada,
a. justificação e a glorificação. Há uma ação recíproca; os meios conduzem
a atenção ao propósito e à fonte de Deus: "Agora, entre os eleitos,
consideramos a chamada como testemunha da eleição. “Em seguida, temos
a justificação como outro sinal de sua manifestação, até que os eleitos
entrem na glória, onde está a consumação final da eleição”. Isto indica
também a significação crucial para toda a teologia de Calvino. A eleição
envolve todo o processo redentivo, desde o decreto eterno à sua
consumação final na glória. Entre estes dois pólos, a eleição é relevante à
doutrina da fé, ao conhecimento de Deus, a toda Soteriologia, à Igreja e
sacramentos e, também, à escatologia. Assim, finalmente, Calvino
encontrou o lugar certo para a discussão da predestinação - o Livro III das
Institutas - que trata extensamen¬te da Soteriologia. A Soteriologia
culmina na escatologia, por¬que "o inabalável amor de Deus dura de
eternidade a eternida¬de sobre os que o temem" (SI 103.17). Calvino citou
Bernardo, referendando suas palavras: "Da eternidade, por causa da
predestinação; para a eternidade por causa da santificação -uma não
conhece o começo, outro não conhece o fim".

D. Os meios (da eleição) são a Pregação.

Deus faz uso dos meios para levar Seu propósito decretivo à consumação.
E estes próprios meios também estão incluídos no decreto de Deus e estão
sob Seu controle soberano. Por ordem divina, o Evangelho deve ser
pregado a todos os povos; contudo, nem todos ouvem e, entre os que
ouvem, as respostas são diferentes. Nisso a predestinação de Deus está
envolvida "Mesmo que a pregação do Evangelho flua da fonte da eleição,
ela não é, em si mesma, prova plena da eleição". A chamada é que é a
prova da eleição. A chamada referida em Rm 8:30 "consiste não só da
pregação da Palavra, mas também da iluminação do espírito". Esta
chamada efetiva é um dos MEIOs da eleição: "Ainda que, na escolha dos
Seus, o Senhor os adota como filhos, vemos que eles não tomam posse de
um tão grande bem, se não forem chamados; inversamente, quando eles são
chamados, eles já gozam da participação de Sua eleição".

A chamada universal do Evangelho conflitará, então, com, a eleição


particular? Se não, qual é o seu real significado? Calvino enfrentou estas
questões corajosa, cuidadosa e biblicamente. Ele afirmou que a
universalidade da promessa não destrói a distinção da graça especial . Não
podemos dizer que o Evangelho é "eficazmente proveitoso a todos". "Se
Deus quisesse salvar a todos, Ele enviaria o Seu Filho a todos, o enxertaria
todos no Corpo de Cristo, mediante os sagrados laços da fé. Porém, é certo
que a fé é o penhor do amor do Pai, reservado aos filhos que Ele adotou".

Estas considerações não significam que a pregação do Evangelho a todos


seja sem sentido.

"É fácil explicar porque a eleição geral de um povo nem sempre é firme e
eficaz: Aqueles com quem Deus faz um concerto, Ele não dá, em seguida,
o espírito de regeneração que os habilitaria a perseverar no concerto até o
fim. Mais do que isto, a mudança externa, sem a operação da graça interior
- que poderia ter eficácia para guardá-los -, é intermediada entre a rejeição
da humanidade e a eleição de um pequeno número de piedosos".

Apoiado em Agostinho, Calvino explicou como o Evangelho deve ser


pregado:

"Se alguém se dirige a uma pessoa e lhe diz que se ela não crê, a razão está
no fato de ela ter sido ordenada para a destruição, ao dizer isto não só adota
uma atitude indolente, mas, também, da lugar à má intenção, Se alguém
estende ao futuro também a afirmação de que os que ouvirão, também não
hão de crer porque foram condenados, também estará mais amaldiçoando
do que ensinando. Pois não sabemos quem pertence ao número dos
predestinados ou quem não pertence, mas devemos estar atentos quanto ao
desejo de que todos os homens desejam ser salvos. Assim acontecerá que
nós tentaremos fazer com que cada um que encontramos, seja mais
participante da nossa paz... Pertence a Deus, contudo, tornar efetiva a
recompensa daqueles a quem preconheceu e predestinou".

Ao mesmo tempo, Calvino sustentou que a pregação do Evangelho, mesmo


para os reprovados, envolve a manifesta¬ção de "grandes benefícios" de
Deus, ou da graça comum. Um juízo mais pesado, portanto, espera os
reprovados que ouviram o Evangelho e o rejeitaram, do que aos que
viveram antes da vinda de Cristo e nunca ouviram o Evangelho.

A pregação do Evangelho é, primeiramente, um meio para a realização do


decreto da eleição. Essa é a razão pela qual Calvino se referiu à pregação
do Evangelho como fluindo da fonte da eleição. Ele explicou: "Os eleitos
são reunidos no rebanho de Cristo pela chamada, não imediatamente no
nasci¬mento e não todos ao mesmo tempo, porém, são chamados da
maneira como agrada a Deus dispensar sua graça a eles. Porém, antes que
eles sejam reunidos ao Supremo Pastor, eles vagueiam pelo deserto comum
a todos; e eles não são diferentes de todos os outros, exceto pelo fato de
serem protegidos pela graça especial de Deus e serem impedidos de se
precipitarem impetuosamente para a ruína final"). "Esta chamada interior
procede da livre bondade de Deus e resulta da efetiva operação do seu
Espírito"; por isto esta chamada interior é o penhor da salvação que não
pode enganar-nos".

Calvino sugeriu que, especialmente, dois erros devem ser evitados na


compreensão da relação entre eleição e fé. O primeiro, é o erro de alguns
que fazem o homem ser "cooperador de Deus", ratificando a eleição pelo
seu consentimento: visto que isto "torna a vontade do homem superior ao
plano de Deus", como se a Escritura ensinasse que "a nós é dada,
meramente, a habilidade para crer", quando ela, na verdade, afirma que a
própria fé nos é dada". O segundo erro é o daqueles que consideram a
eleição como dependente da fé, como se a eleição fosse duvidosa e também
ineficaz, até ser confirmada pela fé". Naturalmente, Calvino admitiu que a
eleição "é confirmada em relação a nós", pois, "o secreto plano de Deus
que está oculto -, é trazido à luz, estabelecido que se entende, por esta
linguagem, meramente aquilo que era desco¬nhecido e agora é confirmado
- selado como se com um selo". A presença da verdadeira fé é também o
fundamento da nossa segurança na eleição de Deus. Conquanto a chamada
interior, eficaz, confirme a eleição, não devemos confundir causa e efeito.
O cano através do qual a água flui para nós não deve ser confundido com a
fonte da qual a água nasce. Calvino disse que a "fé é apropriadamente
ligada à eleição, devendo-se entender que ela ocupa um segundo lugar". A
eleição é a genitora da fé. Deus emprega a chamada, a fé, a justificação e a
santificação como meios para realizar a glorificação decretada desde a
eternidade. "O Senhor sela o seu eleito pela chamada e pela justificação";
Calvino disse: "portanto, entre os eleitos, consideramos a chamada como
testemunha da eleição. Em seguida, consideramos a justificação como
outro sinal de sua manifestação, até que os eleitos entrem na glória, onde se
dá a consumação final da eleição".

À luz disto, entendemos a refutação de Calvino à objeção feita à sua


doutrina, de que a predestinação remove todo incentivo à atividade ética
responsável. Calvino admitiu que algumas pessoas deturpam a doutrina da
predestinação com tal insana blasfêmia, mas chamou a atenção para as
palavras de Paulo, segundo as quais "Deus nos elegeu para ser santos e sem
mácula diante dele". “Se o objetivo da eleição é propiciar a santidade de
vida, ela deve antes mais animar-nos e estimular-nos animadamente a
aceitá-la decisivamente, do que servir de pretexto para não fazermos nada”.
Sadoleto foi um dos que acusaram a doutrina da predestinação, de Calvino,
de levar o homem à indolência; a resposta de Calvino nos mostra como ele
tratava esse tipo de objeção:

"Portanto, desde que, segundo a nossa doutrina, Cristo regenera para uma
vida santificada àqueles a quem Ele justifica, e depois de libertá-los do
domínio do pecado, os conserva no domínio da justiça, e transforma-os na
imagem de Deus e, assim, pelo Espírito Santo, os exercita à obediência de
Sua vontade, não há base para a alegação de que a luxúria fica livre para
reinar. Mais ainda, como é gratuito o fim da eleição, do mesmo modo o é a
justificação, assim podemos viver vidas puras e não contaminadas diante de
Deus. Porque o dito de Paulo é verdadeiro, quando diz que "fomos
chamados não para a impureza, mas para a santificação" (I Ts 4.7).

E. O Conhecimento da Nossa Eleição está Baseado em Cristo.

Porém, a pessoa sabe que é eleita? Calvino respondeu também a esta


questão: "Agora, que conhecimento podemos ter da nossa eleição?". Esta
pergunta é feita por quase todas as pessoas que pensam sobre a eleição,
como fonte de salvação. Satanás, tortuosamente, tenta perturbar-nos.
Calvino afirmou que Satanás "não dispõe de tentação mais danosa ou
perigosa do que essa para desalentar os crentes, quando os perturba com
dúvidas a respeito da sua eleição, incitando-os, ao mesmo tempo, com o
ímpio desejo de procurá-la em algo exterior". O desejo de segurança, em si
mesmo, não é tentação; a tentação é procurar segurança num meio exterior.
Calvino disse, "Refiro-me (a buscar segurança) num meio exterior, quando
o homem simplesmente tenta forçar o íntimo recesso da sabedoria divina e
procura penetrar na mais alta eternidade, com o objetivo de descobrir que
tipo de decisão foi tomada a respeito dele no juízo de Deus". Se um homem
tenta fazer isso, "ele é arremessado num profundo sorvedouro, expondo-se
a ser tragado; então, ele se emaranha em numerosas e inextricáveis
armadilhas, e se sepulta num abismo de trevas". Sofrer um naufrágio nessa
rocha, significa a perda da "paz e da tranqüilidade em Deus".

Foi em conexão com a questão da certeza em relação à eleição de alguém,


que Calvino se referiu a Jesus Cristo como "o espelho da eleição".
Primeiro, devemos recordar a ênfase de Calvino sobre nossa eleição em
Cristo, porque isto está estreitamente relacionado a Cristo, como o espelho
da eleição:

"Desta maneira, àqueles a quem Deus adotou como seus filhos, dizemos
que foram escolhidos, não em si mesmos, porém, em Cristo (Ef 1.4), pois a
menos que Deus os amasse em Cristo Ele não os honraria com a herança do
Seu Reino se eles, previamente, não se tivessem tornado participantes dele.
Porém, se fomos escolhidos nele, não encontramos a segurança da nossa
eleição em nós mesmos, nem mesmo em Deus, o Pai, se nós o julgamos tão
severo com seu Filho. Cristo, portanto, é o espelho onde nós, sem ficarmos
decepcionados, podemos contemplar nossa própria eleição. Porque, desde
que o Pai destinou enxertar no seu Corpo aqueles que Ele, desde a
eternidade, quis que fossem seus filhos afim de que Ele possa sustentar
como filhos a todos os quais Ele reconhece serem seus membros temos um
testemunho suficientemente claro e firme de que fomos inscritos no livro
da vida(cf.Ap 21.27), se estamos em comunhão com Cristo”

Devemos voltar nossos olhos para Cristo, a fim de obtermos segurança.


Pois, "qual é o propósito da eleição senão que nós, adotados como filhos
pelo Pai Celestial, possamos obter salvação e imortalidade por seu favor?".
A segurança da eleição não nos vem de alguma revelação especial, nem de
curiosas tentativas de sondar o eterno decreto de Deus. Cristo é o espelho, e
"se desejamos alguma coisa mais do que ser reconhecidos como filhos de
Deus e herdeiros, temos de subir acima de Cristo. Se esta é a nossa meta
final, quão insanos somos em procurar, fora dele, aquilo que já obtivemos
nele e só podemos encontrar nele!". "Portanto, se desejamos saber se Deus
cuida da nossa salvação, perguntemos se Ele nos confiou a Cristo a quem
Ele estabeleceu como único Salvador de todo o Seu povo". E isto que
Calvino significa, quando diz que "a firmeza de nossa eleição está
associada à nossa chamada ou vocação". Daí, para obter o "inestimável
fruto do conforto" e da segurança, a Palavra exige que "comecemos com a
chamada ou vocação de Deus, e terminemos com ela".

Olhar para Cristo como espelho de nossa eleição pode dar segurança no
presente, porém, e quanto ao futuro? Algumas pessoas parecem ter
verdadeira Fé e parecem estar ligadas a Cristo; contudo, elas fraquejam
depois. Calvino enfrentou também este problema. Para o futuro, Cristo
também é o espelho da eleição e da segurança para nossa perseverança
(preservação). "Porém, Cristo nos libertou da ansiedade, pois estas
promessas se aplicam certamente ao futuro: "Todo aquele que o Pai me dá,
esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo algum o lançarei fora" (João
6.37). Calvino mencionou outras passagens e concluiu com a pergunta:
"Que é que Cristo deseja que aprendamos disto senão que permaneceremos
para sempre seguros, uma vez que fomos feitos dele de uma vez por
todas?”. Desde que Cristo "é a eterna sabedoria do Pai, sua verdade
imutável, seu firme conselho, não devemos temer que aquilo que Ele nos
diz, em Sua Palavra, seja diferente nas mínimas coisas do que prevalece na
vontade do Pai, que buscamos. “Mais do que isso, Cristo nos revela
fielmente essa vontade como ela é desde o começo e como será para
sempre”. As palavras de Cristo devem ser acatadas, pois Suas promessas
são tão certas, que não é permitido ao crente orar e dizer: "O Senhor, se eu
sou eleito, ouve-me!", pois esta maneira de falar revela dúvida nas
promessas de Deus. As Escrituras não dizem que alguns que parecem
pertencer a Cristo se desviarão no fim. Calvino explicava que "é também
igualmente claro que tais pessoas (que abandonam a Fé) nunca foram fiéis
a Cristo com sincera confiança na qual a certeza da eleição, eu afirmo, foi
estabelecida para nós". E ele continua: "Assim, não permitamos que tais
circunstâncias nos induzam, afinal, a abandonarmos o seguro apoio da
promessa do Senhor, pela qual Ele declara que todos aqueles por quem Ele
é recebido, em verdadeira Fé, Lhe foram dados pelo Pai e nenhum deles,
uma vez que Ele é seu Guardião e Pastor, perecerá" (cf Jo 3.16 e 6.39).

A referência de Calvino a Cristo como espelho de nossa eleição é bom


exemplo pelo qual ele evitou a fria especulação. É igualmente importante
observar, contra a opinião de alguns intérpretes, que Calvino não apresenta
o assim chamado syllogismus practicus. Na verdade, a linha entre o que
Calvino fez e o syllogismus practicus é um fio de navalha; porém, Calvino
não estimulou as pessoas a olharem para as suas próprias boas obras, a fim
de encontrarem confiança em si mesma. Sua ênfase clara é sobre a obra de
Cristo realizada nos crentes. Ele não disse que, ao procurarmos a certeza de
nossa eleição, devemos "apegar-nos àqueles últimos sinais que são seguros
atestados dela". Mas aqui, Calvino estava con¬trastando "últimos sinais"
com a tentativa fútil de investigar o eterno e supremo conselho e decreto de
Deus. Quando ele melhorou a explicação para estes "últimos sinais", nunca
deu ênfase às boas obras do crente, mas, para ele, são as obras e promessas
de Cristo que estão evidentes nestes "últimos sinais".

É preciso apenas rever as citações lembradas acima: "Cristo, então, é o


espelho no qual, sem nos enganarmos, devemos contemplar nossa própria
eleição". Ainda: "Se desejamos saber se Deus cuida da nossa salvação,
perguntemos se Ele nos confiou a Cristo...". Do mesmo modo, com relação
à nossa segurança futura, o núcleo da questão não é a segurança que está
em nós mesmos, mas aquela segurança que está enraizada nas promessas
de Cristo. A chamada ou vocação de Deus que, de acordo com Calvino,
deve ser o começo e o fim do exame que fazemos desta questão, "consiste
não só na pregação da Palavra, mas, também, na iluminação do Espírito".
Em seu tratado Concerning the Eternal Predestination of God (= Tratado
Sobre a Predestinação Eterna de Deus), Calvino, oportunamen¬te,
sumariou as Institutas nesta matéria: "A segurança da salvação está
fundamentada em Cristo e descansa nas promes¬sas do Evangelho". Isto
não é um syllogismus practicus que nos permite tirar conclusões lógicas
das boas obras dos crentes!

A insistência de Calvino em dizer que Cristo é o espelho da eleição não


minimiza o caráter decretivo e eterno da eleição. Mais do que isso, a
referência a Cristo, como espelho da eleição, está firmemente enraizada no
eterno decreto de Deus, pelo qual somos eleitos em Cristo. Quando Calvino
advertiu contra tentativas fúteis de alguém penetrar no oculto conselho de
Deus, em busca de segurança e certeza da eleição, ele, de modo algum, quis
deixar a impressão de que não há decreto eterno de eleição. A questão que
se levanta é: Como alguém pode vir, a saber, a respeito deste decreto eterno
e estar seguro de sua eleição? Calvino respondeu que nós não temos acesso
direto ao decreto ou conselho de Deus. Só podemos saber isso de modo
indireto, porém, verdadeira e certamente, através da obra de Cristo feita em
nós e por nós. Para os que desejam saber isso mais claramente, Calvino
explicou que a eleição é anterior à Fé, mas é conhecida pela Fé. Ele disse
mais:

"Portanto, Cristo, quando confiou Sua eleição eterna ao conselho de Seu


Pai, mostrou, ao mesmo tempo, onde nossa Fé pode descansar segura. Ele
disse: "Eu manifestei Teu nome àqueles que me deste (fo 17.6). Eram Teus
e Tu mos deste, e eles guardaram a Tua palavra". Vemos aqui que Deus
começa consigo mesmo quando Se dispõe e aleger-nos; ele nos elegerá
começando com Cristo, de modo a podermos saber que somos
reconhecidos como filhos do Seu povo peculiar".

Num de seus sermões, Calvino instou com seus ouvintes a reconhecerem


que a "graça de Jesus Cristo" está ligada "ao eterno conselho de Deus, o
Pai". Ele encorajou seus ouvintes a buscarem a segurança de sua eleição,
levando em conta a chamada e a fé enraizada em Jesus Cristo. Ao mesmo
tempo, Calvino os advertiu de que não devem perder de vista o decreto
eterno de Deus: "Porém, devemos observar que, quando temos
conhecimento de nossa salvação, quando Deus nos chama e nos ilumina
mediante a fé do Evangelho, não é para reduzir a nada a eterna
predestinação já antes determina¬da".

Em suma, Calvino deu ênfase à eleição soberana e gratuita de Deus. O


eterno decreto de Deus é soberano e seu justo fundamento é a graça de
Jesus Cristo. Nosso conhecimento do decreto está baseado em Jesus Cristo,
como o espelho da eleição, de acordo com toda a Escritura. Entendida desta
maneira bíblica, a doutrina da eleição propicia paz e segurança ao
verdadeiro crente, e a eleição se transforma em rico fruto de conforto
cristão. As seguintes palavras de Calvino constituem conveniente
conclusão para esta seção: "Ainda que a discussão a respeito da eleição
assemelhe-se a um mar perigoso, mesmo ao atravessá-lo navegando é
possível encontrar segurança e calma - e, acrescento também prazer -, a
menos que voluntariamente o navegante deseje expor-se ao perigo. Do
mesmo modo como se afundam num abismo mortal aqueles que, querendo
ter mais certeza de sua eleição - tentam penetrar o plano de Deus fora de
Sua Palavra, assim também os que, correta e devidamente, a examinam
como ela se encontra contida em Sua Palavra, colhem o inestimável fruto
do conforto".
CAPÍTULO 3

SOBERANIA E JUSTA REPROVAÇÃO

Provavelmente, ninguém mais do que Calvino sabia que a doutrina da


dupla predestinação é impopular. "Agora, quando o homem, na sua
compreensão humana, ouve estas coisas", escreveu ele," sua insolência é
tão irreprimível que ele prorrompe a esmo e em imoderado tumulto, como
despertado por som de trombeta na batalha". Calvino estava pensando nos
que aceitam a eleição e negam a reprovação. Alguns dos amigos de Calvino
e mesmo alguns companheiros reformadores instaram com ele para
abrandar a doutrina da reprovação. "Na verdade, muitos, como se
quisessem evitar o opróbrio de Deus, aceitavam a eleição em tais termos,
que acabavam negando a condenação de qualquer um", observou; "na
verdade, não existiria eleição se não houvesse reprovação".

Calvino não queria significar que a reprovação fosse uma dedução lógica
da eleição; ele fez a asserção acima plenamente convicto de que a Escritura
a exige. "Se não nos envergonhamos do Evangelho, devemos confessar que
a eleição está aí plenamente declarada. Deus, por sua eterna boa vontade,
que não tem causa fora de si mesma, destinou à salvação aqueles de quem
se agrada, rejeitando o resto. Aqueles a quem achou dignos da eleição
gratuita, Ele iluminou por Seu Espírito, de modo que recebessem a vida
oferecida por Cristo, ao passo que os outros descrêem voluntariamente, de
modo que permanecem nas trevas, destituídos da luz da Fé".

Calvino, falou abertamente do "plano incompreensível" de Deus e admitiu


que a reprovação levanta questões que não podem ser respondidas.
Considerou-se compelido a defender a doutrina da reprovação, contudo,
porque a Escritura o exige. Com referência a Romanos 9, ele disse "que
está na mão e na vontade de Deus tanto o endurecer quanto o usar de
misericór¬dia... Nem tão pouco o próprio apóstolo Paulo se empenha em
desculpar a Deus - como o fazem muitos aos quais me tenho referido -,
com falsidades e mentiras; o Apóstolo apenas se limita a advertir que não é
lícito ao barro querelar com o oleiro" (Rm 9.20).

Ao sumariar a doutrina da reprovação, de Calvino, podemos empregar as


mesmas divisões usadas ao sumariarmos a sua doutrina da eleição - com
uma exceção. Nossa discussão da doutrina de Calvino a respeito da
"soberana e justa reprovação" tratará do decreto divino da reprovação - a
causa, porém, não o fundamento - da reprovação, seu propósito e seus
meios. A reprovação é tão soberana quanto a eleição; contudo, Calvino deu
ênfase à soberania da justiça de Deus na reprovação, em contraste com a
soberania da livre graça, na eleição.

1. O Decreto Divino da Reprovação

Calvino entendeu o eterno conselho de Deus como expressão de Sua


soberana vontade e propósito para toda a história do mundo. A história é o
desdobramento deste imutável conselho de Deus. A presciência de Deus,
bem como a sua providência, estão enraizadas no seu eterno conselho. O
decreto da eleição é parte do eterno conselho de Deus. Agora seguiremos a
Calvino na discussão da reprovação. A reprovação bem como a eleição diz
respeito ao decreto eterno ou ao conselho soberano de Deus. Aqui é onde
começa a discussão do assunto por Calvino.

a) A reprovação envolve a obra decretiva de Deus. A revisão das definições


de Calvino a respeito da predestinação demonstra que Calvino ligava a
reprovação ao eterno decreto de Deus:

"Chamamos predestinação ao eterno decreto pelo qual Deus determi-nou,


em si mesmo, aquilo que deve ocorrer a cada homem, pois os homens não
são todos criados em igual condição; ao contrário, uns são preordenados à
vida eterna, e outros são preordenados à eterna danação".

"Estamos dizendo que a Escritura mostra claramente que Deus, por ser
eterno e imutável desígnio, determinou, de uma vez por todas, aqueles a
quem queria receber para sempre à salvação e, por outro lado, aqueles a
quem queria entregar à perdição".

"Logo, Esaú, que não diferia em mérito de Jacó, foi repudiado, enquanto
Jacó foi distinguido pela predestinação de Deus".

Estes sumários do ponto de vista de Calvino são claros. A reprovação


relaciona-se com o decreto divino. Contudo, devemos observar que Calvino
não fez referência específica às distintas pessoas da Trindade em conexão
com a reprovação, como fez com relação à eleição. A obra de Deus,
naturalmente, é operação do Deus Triuno, como foi antes observado.
Calvino não repetiu isto especificamente ao discutir a reprovação.
Conquanto Calvino tenha dito que o Filho e o Pai são o autor do decreto da
eleição, não fez a mesma referência com relação à reprovação. Que o
Espírito Santo é o atual mestre desta doutrina da reprovação deduz-se do
ponto de vista de Calvino a respeito da inspiração da Escritura. “Ele fez
esta referência específica quando mencionou os que rejeitam esta doutrina
difícil: Tais pessoas não se opunham apenas a ele, mas também a Paulo e
ao Espírito Santo”.

Calvino sustentou também que esta doutrina da reprovação foi claramente


ensinada pelo próprio Cristo. Calvino pergunta: "Agora, como aqueles que
não admitem que ninguém é condenado por Deus se arranjam com a
afirmação de Cristo: "Toda árvore que meu Pai não plantou será arrancada'
(Mt 15.13) - paráfrase?”E Calvino acrescenta: Isto significa plenamente
que todos aqueles a quem o Pai não condescendeu em plantar como árvores
sagradas no seu campo, estão marcados e votados à destruição. E se (meus
adversários) dizem que isto não é sinal de reprovação, nada mais pode ser
provado a eles, por mais claro que seja".

Contudo, Calvino sabia que um apelo a uma passagem clara da Escritura


não fechava a boca de seus opositores. Por isso apelou outra vez para a
Carta aos Romanos: "Observem os leitores que Paulo, para pôr fim aos
murmúrios e maledicências, reconhece soberania suprema à ira e ao poder
de Deus, uma vez que é iníquo sujeitar, à nossa opinião, os profundos
juízos de Deus, que absorvem todos os recursos da nossa mente". Calvino
estava se referindo as palavras de Paulo: "Que diremos, pois, se Deus,
querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com
muita longanimidade os vasos da ira, preparados para a perdição, a fim de
que também desse a conhecer as riquezas de sua glória em vasos de
misericórdia, que para a glória preparou de antemão?". Ao argumento de
que a variação nas frases - "preparados para a perdição" e "preparou de
antemão" - parece excluir a reprovação do decre¬to eterno, Calvino
respondeu: "Mas, ainda que eu concorde que Paulo, com seu modo
diferente de falar, abranda a aspereza da primeira frase, está muito longe de
concordar em transferir, a outro fator, a preparação para a perdição, senão
atribuí-lo ao secreto conselho de Deus, visto que ainda há pouco, no
contex¬to, ele afirmou que Deus "instigou a Faraó" (Rm 9.17) e, em
seguida, acrescentou: "Logo, tem ele misericórdia de quem quer, e,
também, endurece a quem lhe apraz (Rm 9.18). Conclui-se daí que a causa
do endurecimento está no secreto conselho de Deus". Calvino endossa a
interpretação de Agostinho, que disse: "Quando Deus transforma lobos em
ovelhas, usa de graça mais poderosa para domar a sua dureza; logo, Deus
não converte aos obstinados, porque não emprega essa graça mais
poderosa, que ele poderia propiciar, se quises-se, pois não é destituído
dela" . Ainda que Calvino não empregue tais distinções como preterição e
condenação - que teólogos reformados posteriores empregaram na
discussão da reprovação, nós encontramos estas idéias distintas na sua
discussão. Referir-nos-emos a isto quando considerarmos o pecado em
relação ao decreto de Deus.

2. A reprovação é particular.

Para Calvino, a reprovação, como o decreto da eleição, relaciona-se


especificamente com indivíduos; eleição e reprovação são específicas e
particulares. O decreto da reprovação não traduz a intenção geral de Deus,
e não é limitado em sua referência a uma classe de pessoas, como
contendiam os Arminianos posteriores. As definições gerais da
predestinação, citadas atrás, tornam isso claro; assim também ocorre com
as referências específicas a Esaú, diferentemente de Jacó. Só à luz da
reprovação individual ou particular poderia surgir o problema que Calvino
conside¬rou. O problema origina-se da alegada inconsistência do fato de
dizer-se que Deus, "desde toda a eternidade, ordenou, segundo a sua
vontade, àqueles que Ele quis que recebessem o seu amor, e àqueles sobre
os quais Ele quis manifestar o Seu juízo", e o fato de Deus "anunciar
salvação a todos os homens indiscriminadamente". Os opositores desafiam
a justiça de Deus precisamente porque o decreto de Deus se relaciona com
os indivíduos.

Ainda que o decreto de Deus, a respeito da reprovação, se refira claramente


aos indivíduos, Calvino insistiu em dizer que nós não sabemos quem são os
reprovados. Isto só Deus sabe. Por isso, no curso da história, não podemos
tratar com qualquer indivíduo como se ele ou ela fosse claramente um
reprovado. Temos obrigação de pregar o Evangelho a todos e podemos
também desejar a salvação de todos aqueles a quem pregamos, e nunca
temer, por agir assim, que estejamos indo contra a vontade de Deus, pela
qual Ele, soberanamente, decretou a reprovação de alguns". Mesmo quando
a Igreja, obediente à ordem do seu Senhor, se vê na necessidade de
excomungar um de seus membros, nem mesmo nesse caso a pessoa
excomungada deve ser tida como claramente reprovada, porque tal pessoa
"está na mão e sob o juízo de Deus somente". Um dos objetivos da
disciplina da excomunhão é levar o pecador ao arrependimento; para isto, a
Igreja deve continuar a orar. Aqui também está o ensino e o exemplo do
apóstolo Paulo, que Calvino repete.

3. A causa da Reprovação.

Vimos que, segundo Calvino, tanto e reprovação quanto a eleição estão


relacionadas com o eterno, imutável e soberano decreto de Deus, e dizem
respeito a indivíduos específicos. Agora devemos tratar da questão de se
este decreto divino tem alguma causa que esteja fora da vontade de Deus.
Estará o decreto da reprovação de alguns indivíduos baseado em suas ações
pecaminosas? Ou, se a pessoa ainda não existe, será que a presciência de
Deus (ao saber de antemão que a pessoa vai praticar ações pecaminosas) é
a causa do decreto de Deus? Por que, em relação a Jacó e Esaú, o decreto
de Deus foi diferente? Calvino dedicou boa parte de sua atenção a estas
questões. Nesse contexto, ele considerou também várias objeções que
surgiram relativas à presciência ou preconhecimento de Deus, em relação à
permissão e em relação a Deus e pecado. A discussão de Calvino, a
respeito de tais problemas, torna este lugar apropriado para tratarmos da
assim chamada questão final de eleição e reprovação.

4. A Causa não é o Pecado.

Quando se levanta a questão da causa do decreto da reprovação, a resposta


mais comum é a do pecado humano. Esta parece ser a mais simples e a
mais óbvia solução. Com respeito à reprovação, a referência às ações
humanas parece ser mais sustentável em contraste com a causa do decreto
da eleição de Deus. A eleição tem por objetivo produzir boas obras que
glorifiquem a Deus; por isso, as obras humanas estão fora de consideração
como causa do decreto da eleição. Contudo, com relação à reprovação, as
ações pecaminosas de homens e mulheres são, certamente, relacionadas
com a condenação final, como expressão da justiça de Deus. Calvino
repetiu, enfaticamente, que ninguém é finalmente condenado se não
merecer plenamente a condenação. Contudo, a questão que está agora
diante de nós não é a causa da condenação final de uma pessoa, mas a
causa do decreto divino, em si. Calvino não pode ser adequadamente
compreendido se não se tiver em mente esta distinção. Qual é a causa do
decreto eterno da reprovação, segundo Calvino? Esta é a questão agora.
Calvino debateu enfaticamente a idéia de que as obras pecaminosas são a
causa ou a base do decreto eterno de Deus relativo à reprovação. Paulo e a
Carta aos Romanos são, de novo, cruciais argumentos de Calvino: "Ora,
como Jacó, sem nada merecer por boas obras, é recebido em graça, assim
também Esaú, sem ter cometido nenhum delito, é rejeitado" (Rm 9.13). "Se
volvermos nossos olhos para as obras", acrescentou Calvino,
imediatamente, "afrontamos o Apóstolo, porque é como se ele não tivesse
visto aquilo que é tão claro para nós!". Calvino continua: "Agora, está
provado que ele não considerava assim, uma vez que ele acentuou
especificamente o ponto segundo o qual eles, não tendo feito nem bem,
nem mal, um foi escolhido e o outro foi rejeitado, isto prova que o
fundamento da divina predestinação não está nas obras".

5. A Causa não é a presciência ou preconhecimento do pecado.

Desde que as obras, como aqui consideradas, (como causa da


predestinação), não existem, a idéia de presciência ou preconhecimento das
obras más, como base para o decreto da reprovação, aparece como a mais
forte (para explicar a doutrina). Calvino considerou também esta
possibilidade, porém, rejeitou-a com base na Bíblia: "Se Deus apenas
antevisse os eventos dos homens, e também não os dispusesse e ordenasse
de acordo com seu arbítrio, então, não sem razão se agitaria a questão de
se, casualmente, sua presciência tivesse influência sobre a necessidade.
Quando, porém, não por outra razão, Deus anteviu as coisas que hão de
ocorrer, senão porque assim decretou que acontecessem, é inútil mover-se
litígio acerca da presciência, uma vez que se torna evidente que todas as
coisas acontecem por sua ordenação e vontade". Calvino viu a solução
deste problema na correta compreensão da relação entre preconhecimento,
providência e predestinação. Refletindo sobre Provérbios (16.4), Calvino
escreveu: "Vejam, desde que a disposição de todas as coisas está nas mãos
de Deus, e desde que a salvação ou a morte depende do seu poder, assim
Ele ordena, por meio do Seu plano e vontade que, entre os homens, alguns
nasçam destinados à morte certa, desde o ventre materno, e glorifiquem
Seu nome por sua própria destruição... “Tanto a vida como a morte são
mais atos da vontade de Deus do que atos do Seu preconhecimento”.
Certamente, Deus preconheceu aquilo que se realiza, "porém, não só
preconhece ou antevê, mas também o ordena". Por isso o preconhecimento
não pode ser considerado como a causa do decreto divino da reprovação.

6. A Causa é a Soberana Vontade de Deus.

Se o decreto da reprovação não tem o seu fundamento nas obras


pecamino¬sas dos reprovados, nem no divino preconhecimento de tais
obras, qual é, então, o seu fundamento? A resposta de Calvino está baseada
na sua análise do capítulo 9 de Romanos. Paulo rejeitou vigorosamente a
suspeita de que pode haver injustiça em Deus. Mas não fez isso apelando
apenas para as ações pecaminosas de Esaú. “Quando Paulo “levantou essa
objeção” - que admitiria ser Deus injusto - ele não fez uso daquilo que teria
sido a mais certa e segura defesa da justiça divina ou, seja, a retribuição a
Esaú segundo a má intenção deste”. Mais do que isso, "Paulo se contenta
com uma solução diferente: Para ele os réprobos são levantados para que,
por meio deles, seja manifesta a glória de Deus". E Paulo conclui: "Logo,
Deus tem misericórdia de quem quer, e também endurece a quem lhe
apraz". Isto levou Calvino a concluir: "Vedes como Paulo atribui ambas as
decisões só a Deus? Portanto, se não descobrimos nenhuma razão pela qual
Deus manifesta misericórdia àqueles de quem se agrada, a não ser porque
assim lhe apraz, do mesmo modo Ele reprova outros por ser esta também a
Sua vontade. “Quando, pois, o Apóstolo diz que Deus endurece a uns ou
cumula de misericórdia a outros, de acordo com a Sua vontade, fica aos
homens a admoestação de que não devem buscar razão fora da vontade de
Deus”. Calvino também expressou-o de outro modo: "... “Aqueles a quem
Deus despreza, Ele reprova; e faz isto não por outra razão senão porque Ele
quer excluí-los da herança que predestinou aos que escolheu por seus
filhos”. Qual é, então, a causa do decreto da reprovação de Deus? A
resposta de Calvino é: O Soberano bom prazer de Deus! “Nenhuma outra
causa pode ser aduzida senão a sua soberana vontade”.

A resposta de Calvino a esta questão deu lugar a várias objeções. Se só a


vontade de Deus é a causa da reprovação, por que, então, desaprovar as
ações pecaminosas das pessoas a quem Ele reprova? Isto não implica em
reconhecer a Deus como autor do pecado? Calvino considerou também
estas objeções:

"De muitas maneiras, os homens insensatos contendem com Deus, como se


suas acusações contra Deus pudessem incriminá-lo. Portanto, primeiro
perguntam com que direito Deus se ira contra Suas criaturas, se nenhuma
delas o provocou previamente, pois destinar à condenação àqueles a quem
lhe haja aprazido, soa mais como o capricho de um tirano, do que como
legítima sentença de um juiz. Há, portanto (razão?), para que os homens
reclamem de Deus, se apenas por Seu arbítrio - sem que os homens
mereçam - Deus os predestina à morte eterna?".

A primeira coisa que Calvino disse em resposta à objeção acima é uma


advertência aos crentes. "Se pensamentos desta espécie jamais ocorrem aos
piedosos, eles estarão suficiente mente armados para quebrar a sua força,
apenas considerando que é iníquo meramente investigar as causas da
vontade de Deus. Porque Sua vontade é, como corretamente deve ser a
causa de todas as coisas que existem". Se a vontade de Deus tem uma causa
"alguma coisa deve precedê-la e deve estar ligada a ela, causa que não é
lícito imaginar". Numa notável seção acrescentada à última edição das
Institutas, Calvino revelou qual era o seu ponto de vista a respeito da
vontade de Deus, que é bem diferente do de alguns teólogos do final da
Idade Média, que sustentavam a "ficção do poder absoluto", conceito este
que Calvino rotulou de "profano" e que o cristão deve, com razão, repudiar.
"Não devemos imaginar um deus sem lei, mas um Deus que é lei em si
mesmo. Porque, como diz Platão, os homens são perturbados pela luxúria e
necessitam de lei, mas a vontade de Deus não só está livre de toda
imperfeição, mas se constitui a mais alta regra de perfeição, é a lei de todas
as leis". Anteriormente, Calvino tinha dito isto de outra maneira: "Porque a
vontade de Deus é não só a mais alta regra de justiça de tudo que Ele quer,
mas também só o fato de Ele querer já é considerado justo. Quando,
portanto alguém pergunta por que Deus fez assim, devemos responder:
Porque Ele quis Mas se alguém quer ir além e pergunta: Porque Ele quis?

Está buscando algo maior e mais alto do que a vontade de Deus, coisa que
não pode ser encontrada. “Deixemos que a temeridade dos homens se
refreie a si mesma e não busque aquilo que não existe”. A esta atitude para
com a soberana vontade de Deus, Calvino chamou de "freio" que,
"efetivamente, restringirá a qualquer um que queira ajuizar, com
reverência, os segredos de seu Deus".

Esta constitui a resposta básica de Calvino àqueles que acusam a Deus de


injusto, (quando, segundo eles) Deus nos torna responsável por aquilo que
Ele mesmo decretou. Calvino, contudo, vai adiante para indicar que Deus "
refreia seus inimigos", "guardando silêncio". Em Sua Palavra, porém, Deus
nos fornece armas contra estas objeções, pois a Escritura torna claro que a
soberania de Deus nada deve aos seres humanos, e deve menos ainda
àqueles que são agora "totalmente viciados pelo pecado", de modo que são
todos eles "odiosos a Deus". A partir daqui, Calvino insiste com os
objetores a fim de que eles mesmos reconheçam o seu pecado; Deus é justo
quando condena o pecador, mesmo que o pecador não possa esquadrinhar a
justiça do decreto eterno de Deus. Aos objetores que consideram esta
resposta como evasiva, uma espécie de "subterfúgio tal como o daqueles
aos quais, como de costume, falta uma desculpa legítima", Calvino sugeriu
que devem "ponderar a respeito de Quem é Deus". Ele pergunta: "Por que,
como poderia Aquele que é o juiz de toda a terra permitir qualquer
iniqüidade" (Cf. Gn 18.25)?. O apóstolo Paulo não estava procurando "uma
saída de escape", quando disse que "a justiça divina é mais alta do que a
pode medir o padrão do homem, ou do que a exígua capacidade do homem
pode compreender".

A resposta de Calvino à acusação de que Deus é injusto, dá ênfase tanto à


soberania quanto à justiça da vontade de Deus. Com Agostinho, Calvino
disse: "O Senhor criou aqueles que, de antemão, já sabia, haveriam de ser
destinados à perdição, e determinou que assim fosse porque quis. Mas,
porque Deus quis assim, não é de nossa alçada indagar, pois não
poderemos compreender a razão de Deus. Nem é próprio que entre nós se
estabeleça a discussão da divina vontade, vontade da qual se faz menção
tantas vezes (na Escritura), e sob cujo nome se anuncia a suprema regra de
justiça". Desde que a justiça de Deus é claramente evidente na condenação
final do pecador descrente, o qual nada merece a não ser a condenação,
"por que levantar uma questão de injustiça, onde a justiça aparece
claramente?”

A firme insistência de Calvino sobre a soberania da vontade de Deus, na


reprovação, levou seus objetores a sugerir que Deus, nesse caso, é o autor
do pecado. Os opositores de Calvino chegaram a dizer que a doutrina de
Calvino, a respeito da reprovação, livra o pecador da responsabilidade e
torna Deus autor do pecado. Calvino considerou também esta objeção. Ele
admitiu prontamente que Deus quis a queda de Adão, mas negou que Deus
seja o autor do pecado, ou que o decreto de Deus livra o pecador de sua
responsabilidade. Com relação ao fato de desejar a queda de Adão, Calvino
disse:

"Proclama a Escritura que todos os mortais foram sujeitos à morte eterna na


pessoa de um só homem (Rm 5.12-18). Como isto não podia ser imputado
à natureza, não podemos considerar ser obscuro ter procedido do admirável
conselho de Deus. É extremamente absurdo que os bons patronos da justiça
de Deus se mostrem perplexos diante de uma varinha e, contudo, saltem
por cima de altas vigas. De novo, pergunto: De onde vem que a queda de
Adão lançasse à morte eterna, sem remédio, a tantas gentes com seus filhos
infantes, senão porque assim pareceu bem a Deus? Importa que aqui
emudeçam suas línguas que, de outro modo, são tão loquazes. O decreto,
certamente, é horrível, confesso-o. Entretanto, ninguém poderá negar que
Deus haja preconhecido o fim que o homem haveria de ter, mesmo antes de
o criar e, por isso, haja conhecido de antemão, porque assim ordenou por
Seu decreto. Se alguém investir aqui contra a presciência de Deus,
tropeçará temerária e irrefletidamente. Ora, pergunto: Por que considerar
culposo o Juiz Celeste pela fato de não haver ignorado aquilo que deveria
acontecer? Por isso, se há razão para queixa -justa ou especiosa — compete
à predestinação.E não deve parecer absurdo o que digo: Que Deus não só
viu de antemão a queda do primeiro homem, e nela viu também a ruína de
sua posteridade, mas também as determinou por Seu arbítrio. Pois, como
pertence à sabedoria de Deus ser presciente de todas as coisas que hão de
ocorrer, assim cabe ao Seu poder reger e regular tudo por Sua mão"

Não só a queda de Adão, mas também a de toda a sua posteridade estão


incluídas na vontade de Deus:

"Naturalmente, eu admito que nesta condição miserável que agora os


homens estão envencilhados, todos os filhos de Adão caíram pela vontade
de Deus. E foi isto que eu disse no princípio: É preciso recorrei unicamente
ao arbítrio da vontade divina, cuja causa está escondida em Deus".

Calvino reconhecia, então, que Deus quis a queda de Adão, mas não
entendia nem compreendia isto plenamente:

"O primeiro homem caiu porque assim o Senhor julgou conveniente. No


entanto, a razão porque Ele julgou assim nos é oculta" .
E Calvino acrescentou: "Entretanto, é certo não haver Ele julgado de outro
modo senão porque via, por esse meio, devidamente iluminada a glória do
Seu nome". Calvino não foi além disto. A causa evidente da condenação
assegurou ele, "é a corrupta natureza da humanidade", porém, "a causa
oculta e absolutamente incompreensível" está na predestinação de Deus. Aí
Calvino conclui: "E não nos envergonhemos de submeter nosso
entendimento à imensa sabedoria de Deus, nem temamos que ela seja
impotente diante dos muitos arcanos da sabedoria divina, pois é douta a
ignorância dessas coisas que não nos é dado nem lícito saber, já que a
avidez de conhecimento é uma espécie de loucura".

Em conexão com a queda de Adão e com o decreto divino, alguns dos


opositores de Calvino fizeram distinção entre a vontade de Deus e Sua
permissão. "Deste modo, eles (meus opositores) sustentam que os ímpios
perecem porque Deus permite, e não porque Deus quer". Calvino rejeitou
esta distinção. (A referência aqui à permissão não deve ser confundida com
a expressão decreto permissivo, empregada por alguns teólogos
reformados. O decreto permissivo relaciona-se com o decreto de Deus e
Sua vontade. Calvino se referia à distinção entre vontade e permissão). Ele
reconhecia que, quando os homens pecam, "toda transgressão é deles
mesmos... Porém, transformar todas aquelas passagens da Escritura (onde a
disposição da mente, no ato, é distintamente descrita) em mera permissão
da parte de Deus, é um frívolo subterfúgio e uma vã tentativa de escapar da
poderosa verdade". Alguns dos Pais da Igreja, mesmo Agostinho, a
princípio, estavam muito ansiosos em evitar ofensas; pelo emprego do
termo permissão, "relaxaram um tanto aquela precisão de atenção devida à
grande verdade, em si". Calvino contendeu em relação àquelas passagens
que falam de Deus cegando e endurecendo aos réprobos, bem como com
relação àquelas que se referem a José, a Jó, a Davi e a Paulo, e mostrou que
(nesses casos) o termo permissão é inadequado. O pecador é sempre
responsável por seus pecados, porém, de algum modo, esses pecados estão
incluídos na incompreensível vontade de Deus, que não sim-plesmente
permite, "mas governa e sujeita todas as ações do mundo com perfeita e
divina retidão". “Em outras palavras, o homem cai como ordena a
providência de Deus, mas cai por sua própria iniqüidade”.

A insistência de Calvino sobre a vontade de Deus como causa do decreto


da reprovação, e sua objeção ao termo permis¬são, com relação ao pecado
humano, levaram seus opositores a fazer carga contra Deus, como autor do
pecado. Calvino consi¬derou esta atitude como "ofensa atroz". Ele exigiu
que seus opositores fossem mais cuidadosos com as palavras que
empregavam e com as acusações que faziam; tais acusações injustificadas
poderiam levar os cristãos mais simples e mais inexperientes a "chocar-se
contra a medonha e abominável rocha que faz de Deus o autor do pecado"
(59). Calvino admitiu que nenhuma destas palavras pode desenredar o
mistério do decreto da reprovação. Porém, convencido de que a Escritura
ensina que a vontade de Deus é a causa última de todas as coisas, desejou
deixar o mistério ai.

Pode-se sentir com que desgosto Calvino ouvia as críticas que exigiam
explicações. "Como se fosse minha a obrigação de explicar a razão dos
secretos conselhos de Deus", escreveu ele retoricamente, "como se fosse
minha a obrigação de fazer os mortais entenderem o ponto crucial da
sabedoria divina, cuja altura e profundidade eles são ordenados a olhar e a
adorar". Em outro lugar, ele sugeriu que os perturbados por estes
problemas deveriam observar a advertência de Agostinho: " Vós, homens,
esperais de mim uma resposta; eu também sou homem. Portanto, vamos
nós (vós e eu) ouvir alguém que disse: O homem, quem és tu? (Rm 9.20).
A ignorância que crê é melhor do que o conhecimento temerário... Paulo
descansou porque reconheceu maravilha. Ele chamou insondáveis os juízos
de Deus e tu, ó homem, te aventuras a perquiri-los? Paulo fala dos
caminhos de Deus como inescrutáveis (Rm 11.33), e tu tens a pretensão de
esquadrinhá-los?". Seguindo ele mesmo a advertência de Agostinho,
Calvino simplesmente conclui: "Nada progrediremos, querendo ir mais
longe...".

Nos lugares onde Calvino discutiu estas questões com mais detalhes, ele
apenas ampliou a mesma resposta e introduziu certas distinções. Por
exemplo, Calvino sugeriu que se aceitarmos a idéia de que Deus é a autor
do pecado, porque decretou a queda de Adão, podemos dizer também,
forçosamente, que Deus é o autor daquele ato iníquo pelo qual os judeus
crucificaram a Jesus Cristo. Os judeus fizeram "aquilo que Tua mão e Teu
conselho determinaram, de antemão, que deveria ser feito". E lembrai-vos,
disse Calvino, que "estas não são as palavras de Calvino, mas do Espírito
Santo, de Pedro e toda a Igreja Primitiva".
Uma distinção que Calvino considerava de grande auxílio, aqui, é a que
existe entre a vontade de Deus e a vontade de Satanás: "Há uma poderosa
diferença, porque ainda que Deus e Diabo queiram a mesma coisa, eles a
querem de maneira inteiramente diferente... o homem quer para o mal
aquilo que Deus quer para o bem. Calvino insistiu em que Deus está, e
deve estar sempre, inteiramente longe do pecado". De acordo com Calvino,
o piedoso "confessará, na verdade, que a queda de Adão não ocorreu sem o
governo e direção da secreta providência de Deus [arcana Dei providentia),
mas também nunca duvidará de que o fim e o objetivo do Seu secreto
conselho são retos e justos. Porém, como a razão (desse conse¬lho) está
escondida na mente de Deus, os piedosos, sóbria e reverentemente,
esperam a sua revelação que será feita no dia em que veremos a Deus "face
a face", a quem vemos agora por espelho, e obscuramente".

Outra distinção que Calvino considerou útil levar em conta, nesta questão,
é a que existe entre causa última e causa remota. No juízo de Calvino, esta
distinção muito simples é de grande importância. Ele não se surpreendeu de
que seu opositor Pighius "confundisse tudo indiscriminadamente no
discernimento de Deus, quando deixa de distinguir entre causa próxima e
causa remota". Calvino considerou "ímpia e caluniosa" a acusação que
Pighius fez contra ele, quando disse que o Reformador transformou a
"queda do homem em obra de Deus", uma vez que Calvino "retirou de
Deus toda acusação próxima do agir... ao mesmo tempo em que remove
dele toda culpa e deixa o homem responsável sozinho". Contudo, esta útil
distinção não resolve o mistério, para Calvino: "... porém, a maneira como
foi ordenado pela presciência e decreto de Deus, que no futuro do homem
Deus não estivesse implica¬do como associado no seu pecado, como autor
ou aprovador da transgressão, é claramente um segredo que excede, em
muito, a capacidade de compreender da mente humana, e eu não tenho
vergonha de confessar ignorância".

Para Calvino, pois, a soberana vontade de Deus é a causa ultima da queda e


reprovação de Adão, o pecado humano é a causa próxima. Nesta última o
pecado humano,- está toda reprovação e culpa. Ao procurar entender estas
Questões difíceis, Calvino insistiu em que devemos enfatizar AQUILO que
é claro e compreensível - a culpa pessoal do homem -, e não tentar
escrutinizar indevidamente aquilo que, segundo o ensino da Escritura, isto
é, a vontade de Deus como causa última, não podemos compreender. A
clara explicação da condenação do descrente é sua própria culpa. Calvino
repetia isso com ênfase: "Por sua própria má intenção o homem, pois,
corrompeu a pura natureza que recebeu do Senhor e, por sua queda,
arrastou com ele toda a sua posteridade à destruição. Conseqüentemente,
devemos considerar, como causa evidente" da condenação, a corrupta
natureza da humanidade - causa que está próxima de nós -, ao invés de
procurarmos a causa oculta e totalmente incompreensível, na predestinação
de Deus"? Nisto "a ignorância é douta" e o "desejo de saber é uma espécie
de loucura". Calvino seguiu seu próprio conselho, como o indica a seguinte
rara confissão pessoal: "Nada prescrevo aos outros que não proceda da
experiência do meu coração. Pois o Senhor é minha testemunha e minha
consciência o atesta, que eu, diariamente, medito tanto sobre estes mistérios
do seu juízo, que a curiosidade de saber qualquer coisa além, não me atrai;
e nenhuma suspeita funesta, em relação à sua justiça, consegue afastar a
minha confiança e nenhum desejo de lamuriar me seduz".

7. A Reprovação e a eleição são, igualmente, causas últimas.

A distinção de Calvino entre causa última e causa próxima oferece-nos um


bom contexto para examinarmos a questão da igualdade final entre eleição
e reprovação. Enquanto opositores de Calvino sempre fizeram objeção a
toda doutrina da reprovação, alguns dos seus amigos hoje contendem que
ele não considerava a eleição e a reprovação como igualmente finais. Quê
significa esta asserção? As discussões deste assunto, infelizmente, têm
falhado em dizer claramente o que isto significa.

Esta questão fica claramente focalizada se nos referirmos à distinção de


Calvino entre causa última e causa próxima. Se a expressão "igualmente
finais" se refere à causa última da eleição e da reprovação, a questão não é
difícil de responder com base nos escritos de Calvino. Segundo o
Reformador, será a soberana vontade de Deus a causa última da eleição
bem como da reprovação? As várias afirmações de Calvino, citadas na
discussão aqui levantada, oferece-nos clara resposta afirmativa à questão,
pois ele afirmou que a vontade de Deus, seu decreto eterno, é a causa
última tanto da reprovação quanto da eleição. O pecado humano e a culpa
entram significativamente na discussão da reprovação, levada a efeito por
Calvino, naturalmente, porém, este pecado e culpa constituem a causa
próxima não da reprovação como tal, porém, a causa do elemento judicial
da reprovação, isto é, da condenação eterna. Calvino insistiu com seus
leitores para que considerassem esta causa próxima "como causa evidente
de condenação", porque eles podiam prontamente reconhecer e entender
isto; a justiça de Deus é evidente na sua condenação da culpa do descrente.
Calvino nunca consentiu que esta referência à causa próxima da reprovação
(condenação) fosse sustentada por si mesma. Compelido pelo ensino da
Escritura, ele reconhecia que a causa última ou remota da reprovação, bem
como da eleição, é a soberana vontade de Deus. Conquanto isto seja
incompreensível, Calvino submeteu-se ao ensino da Escritura.

Ainda que o leitor, no sumário acima, possa encontrar suficiente evidência


para o ponto de vista de Calvino, a respeito da igualdade final, a
importância do assunto, em debates recentes, justifica um breve sumário
dessa evidência aqui. A seção onde Calvino começa a discutir a
predestinação, Já tem o titulo de abertura: "Eleição eterna pela qual Deus
predestinou .alguns para a salvação e outros para a destruição". Sua
definição básica de predestinação tem a mesma força:

"Como mostra a Escritura, claramente, dizemos que Deus, uma vez, por seu
eterno e imutável decreto, estabeleceu aqueles a quem, de antemão,
determinou, de uma vez por todas, receber para a salvação, e aqueles a
quem, por outro lado, devotou a destruição. Afirmamos que, com respeito
aos eleitos, este plano funda-se na sua livre graça oferecida, sem
consideração das obras humanas; porém, por seu justo e irrepreensível, mas
incompreensível juízo, ele fecha a porta da vida àqueles que devotou
inteiramente à danação"

Ele definiu a predestinação como o "Eterno decreto de Deus pelo qual ele
pactuou consigo mesmo o que ele quis que ocorresse a cada homem... A
vida eterna é preordenada a uns, a danação eterna a outros". E-se
predestinada ou para a vida ou para a morte. Por este "plano secreto", Deus
"escolhe livremente aos que são do seu agrado e rejeita outros". Depois de
discutir a base bíblica da eleição e da reprovação, Calvino conclui: "Vede
como Paulo atribui só a Deus ambas as decisões? Se, pois, não podemos
determinar a razão pela qual ele não concede a sua graça, a não ser àqueles
de quem se agrada, não podemos igualmente descobrir qualquer razão para
ele rejeitar outros, a não ser a sua vontade. Porque onde se diz que Deus
endurece a quem quer e tem misericórdia de quem quer, há uma
advertência para o homem não procurar qualquer causa fora da vontade de
Deus".
Quando ele refutava as "falsas acusações com que esta doutrina tem sido
sempre gravada", Calvino ligava, de novo, claramente, a reprovação final à
vontade de Deus. Ele afirmou que "estes a quem Deus repudia (praeterit),
ele condena (reprobat); e isto ele faz não por outra razão senão porque ele
quer exclui-los da herança que predestinou á seus "próprios" filhos".
Depois de citar as referencias chaves de Romanos 9, Calvino insistiu com
seus leitores a "notarem que Paulo, para não dar ocasião ao murmúrio e ao
descrédito, atribui a razão última ao soberano juízo e poder de Deus",
acrescentando que o "secreto plano é a causa do endurecimento". Ao
considerar a relação da queda de Adão com o decreto de Deus, Calvino
disse: "Naturalmente, eu admito que, nesta miserável condição em que os
homens estão agora enredados, todos os filhos de Adão caíram pela
vontade de Deus". E ele continuou: "É isto que eu tenho dito desde o
começo: que nós devemos sempre, em última análise, retornar à só decisão
da vontade de Deus, cuja causa está escondida nele". Não só a eleição e
salvação, mas também a reprovação e a condenação encontram sua causa
última na vontade de Deus. "Desde que a disposição de todas as coisas está
nas mãos de Deus, e desde que a decisão a respeito da salvação e da morte
está em seu poder, ele assim ordena por seu plano e vontade...". O
preconhecimento de Deus descansa sobre "o fato de que Deus decretou
aquilo que acontece" e "é claro que todas as coisas acontecem... por sua
determinação e ordem".

Quando Calvino falou dos meios pelos quais Deus execu¬ta seus decretos,
relacionou novamente a causa última da reprovação à soberana vontade de
Deus: "Porque todas as coisas não foram criadas em igual condição; porque
a vida eterna foi preordenada a uns, e a danação eterna a outros". Com
Agostinho, Calvino disse: "O Senhor criou aqueles a quem,
inquestionavelmente, preconheceu como destinados à destruição Isto
aconteceu, porque ele quis assim. Porém, por que ele quis assim não é para
a nossa razão indagar, pois não podemos compreender". Quando alguém
pergunta por que o Evangelho é pregado em algumas nações, e não em
outras, e por que alguns, aos quais ele é pregado, crêem,e outros não,
"aquele que procura uma causa mais profunda (causa altiorem) além do
secreto e inescrutável plano de Deus, se atormentará a si mesmo sem
nenhum propósito". Contu¬do, Calvino esteve sempre preocupado em
acrescentar que "ninguém perece imerecidamente". E quando a sua
discussão tinha como centro a responsabilidade pessoal, o acréscimo (ira
feito à soberania de Deus, como ilustra a seguinte passagem: "O fato de os
réprobos não obedecerem a Palavra de Deus, quando ela se torna conhecida
deles, será - com justiça contra eles -, atribuída à malícia e depravação dos
seus corações, acrescentando-se, ao mesmo tempo, que eles foram
levantados pelo justo e inescrutável juízo de Deus, a fim de, na sua
condenação, exibirem a glória de Deus".

Este sumário indica claramente que Calvino considerava como causa


última da reprovação, bem como da eleição, a soberana vontade de Deus. O
número de citações de outros escritos de Calvino poderia ser facilmente
multiplicado. Seus opositores contemporâneos o compreenderam
correta¬mente nesta questão: Calvino considerou francamente a soberana
vontade de Deus como a causa última da reprovação, bem como da eleição.
Se as expressões “igualmente finais” se refere à causa última da eleição e
da reprovação, então, Calvino ensi-nou, claramente, como iguais, a causa
final da eleição e a da reprovação. Ao responder às falsas acusações feitas
contra a doutrina da predestinação, Calvino nunca se retratou da
insis¬tência com que defendeu enfaticamente a vontade de Deus, como
causa da reprovação.

8. Reprovação e eleição não são completamente paralelas.

Se a eleição e a reprovação são igualmente finais, como expressão da


soberana vontade de Deus, isto não significa que, para Calvino, a eleição e
a reprovação sejam paralelas em todos os seus aspectos. Recente discussão
sobre este assunto, infelizmente, não tem distinguido estas duas facetas da
questão. O resultado tem sido de confusão, distorção e desvios para outros
argumentos de scholars. Quando igualdade final e paralelismo não são
distinguidos e definidos claramente, uma simples negação da igualdade
final envolve, usualmente, uma distorção da insistência com que Calvino
defendia a soberania da vontade de Deus, na reprovação. Conquanto
insistamos sobre a defesa de Calvino a respeito da igualdade final da
eleição e da reprovação, devemos também, contudo, fazer justiça aos
modos pelos quais Calvino indica que elas não são paralelas. O aspecto não
paralelo da eleição e da reprovação destaca-se no capítulo que intitula este
livro. Enquanto tanto a eleição quanto a reprovação são descritas como
"soberanas" (indicando igualdade final das duas na teologia de Calvino), a
eleição, em seguida, é descrita como gratuita, e a reprovação é tida como
justa.
Uma das mais notáveis indicações da falta de paralelismo evidencia-se na
insistência com que Calvino distingue causa última de causa próxima da
reprovação. A ação humana pecaminosa é a causa próxima da condenação,
que é um aspecto da reprovação. Porém, Calvino nunca se referiu à ação
humana como sendo igual à causa próxima da eleição. De fato, a base para
a eleição é Jesus Cristo, e é precisamente a nossa eleição em Cristo que
indica que coisa alguma, na pessoa humana, pode funcionar como causa
próxima da eleição. Contudo, com relação à reprovação, as ações humanas
pecaminosas são levadas em consideração. É de suma importância notar em
que termos Calvino considerou essas ações como causa próxima da
reprovação. Já vimos indicações de Calvino distinguindo entre preterição
("rejeição") e condenação. Ainda que os teólogos reformados posteriores
tenham usado estes termos tecnicamente, a distinção entre eles já tinha sido
feita por Calvino. As ações humanas pecaminosas não foram consideradas
por Calvino como a causa próxima, que levou a soberania de Deus a
rejeitar uns e a eleger outros. Esta decisão foi creditada por Calvino
exclusivamente à liberdade de Deus, à sua soberana vontade e a
determinação. Não foi por causa das ações pecaminosas que Deus, decretou
não conceder sua graça a alguns. Nem as obras realizadas, nem as
previstas, desempenham papel algum, neste ponto, no pensamento de
Calvino. Se as obras pecaminosas fossem a causa próxima da rejeição, que
é um ASPECTO da reprovação, não haveria eleição.

As ações ou obras pecaminosas são a causa próxima só da condenação, que


é também um aspecto da reprovação. Enquanto Deus, soberanamente,
rejeita alguns por sua vontade decretiva, a base da condenação final deles é
o seu pecado e sua culpa. Este pecado é nosso pecado; ele constitui a causa
próxima da reprovação como também da condenação do descrente. È
importante observar, contudo, que o pecado não é a base ou a causa
próxima da discriminação final de Deus entre eleitos e reprovados.
Ouvimos Calvino negar isso freqüentemente. Porém, a condenação,
enquanto soberanamente executada, é sempre o resultado do pecado
humano - "... ninguém perece imerecidamente". Pecado e culpa são a base
para a sentença judicial da condenação. A referência de Calvino à causa
próxima da condenação, na reprovação, mostra que eleição e reprovação
não são paralelas.
Outro aspecto de que eleição e reprovação não são paralelas está
estreitamente ligado ao aspecto precedente. Na verdade, está envolvido
nele. Temos visto que, segundo Calvino, Cristo é a base do decreto de Deus
para a eleição. Os que são objetos da eleição eterna são indignos da graça
que Deus decidiu oferecer-lhes; Deus olhou para eles através de Jesus
Cristo. Cristo é o Cabeça em quem o Pai uniu todos os seus eleitos. Na
doutrina de Calvino, da reprovação, no entanto, não há paralelo neste
aspecto chave da eleição: Os réprobos, obviamente, não são reprovados em
Cristo. Nem Satanás Calvino vê como cabeça dos réprobos: Os réprobos
não são reprovados em Satanás. Em seu comentário sobre Mateus, Calvino
afirmou que o Diabo é o cabeça de todos os réprobos e adversário de
Cristo, mas não faz esta referência quando discute o decreto da reprovação.
Calvino observou que, em muitas partes da Escritura, o Diabo é
representado como o cabeça dos anjos caídos, e como aquele que congrega
todos os ímpios juntos, numa única massa de corrupção. Porém, Calvino
não diz isto quando discute o decreto eterno da reprovação. Aqui, ao
explicar a doutrina de Calvino sobre a reprovação, não podemos dizer que
ele apresenta Satanás como a base da reprovação.

Seria também impróprio dizer que o fundamento da reprovação são o


pecado e a culpa humanas. Pode-se dizer que o pecado e a culpa são à base
de apenas um elemento da reprovação, isto é, da condenação; só neste
sentido o pecado é a base da reprovação. Ainda assim, contudo, o pecado é
apenas a causa próxima. Enquanto podemos entender claramente a causa
próxima, não acontece o mesmo com a causa última. Calvino deu grande
ênfase à causa próxima, e a concentração de ênfase sobre ela deixa
cristalinamente claro que Deus é justo; a reprovação por causa do pecado e
a condenação final ocorrem por nossa causa e não por causa de Deus.

Há outros aspectos em que a eleição e a reprovação não são paralelas. Diz-


se, às vezes, que Calvino deu menos espaço ou atenção à reprovação do
que à eleição. Contudo, essa posição é difícil de se manter, uma vez que a
reprovação está constante¬mente envolvida na discussão de Calvino sobre
a eleição. Além disso, ele defendeu a doutrina da reprovação contra todo
tipo de ataque ou oposição, tanto por parte de amigos como de inimigos.
Contudo, é obviamente verdadeiro que Calvino não mostrou o mesmo
interesse e prazer em tratar da soberana e justa reprovação, como fez com
relação à soberana eleição gratuita. Certamente ele não tinha, na
reprovação, um interesse que refletisse desejo pessoal ou características
nacionais ou esquizôides. Ele ensinou esta doutrina e defendeu-a
vigorosamente porque estava convencido de que a Escritura a ensina. Ele
confiava em que aquilo que o Espírito Santo revelou, na Escritura, tem um
propósito que não pode ser desprezado ou ignorado. Na sua empenhada
fidelidade à Palavra Escrita de Deus, ele achava que estava sendo submisso
ao Deus soberano e obediente a Jesus Cristo. Em tudo isto ele só visava à
glória de Deus.

A fonte bíblica levou Calvino a deleitar-se na eleição e a realçá-la na sua


pregação, sem ter, entretanto, a mesma preocupação com relação à
reprovação. Já fizemos notar que Calvino Considerava um erro sério
minimizar a responsabilidade humana com relação à Palavra pregada. Um
ponto de vista não bíblico a respeito da reprovação também seria
irresponsável. Quando um seu opositor fazia acusação, dizendo que,
segundo Calvino, "Deus, por sua pura e mera vontade, tinha criado a maior
parte do mundo para a perdição", Calvino respondia que isso era "uma
perfeita ficção" produzida no cérebro-oficina dos seus opositores: "Porque
ainda que, certamente, Deus tivesse decretado, desde o começo, tudo aquilo
que deveria acontecer à raça humana, contudo aquela maneira de falar -
(que o fim ou o objetivo da obra da criação de Deus era a destruição ou a
perdição) -, em parte alguma dos meus escritos pode ser encontrada... Deus
nunca decretou coisa alguma, a não ser pela mais justa razão".

Tendo notado vários aspectos do não paralelismo entre a eleição e a


reprovação, devemos, finalmente, observar aqueles aspectos em que esse
paralelismo existe. O mais admirável é que a vontade soberana de Deus é a
causa última de cada um desses decretos. Nesse sentido, temos falado da
igualdade final da eleição e da reprovação. O outro paralelo está no fato de
as obras humanas não serem causa nem do decreto da eleição, nem do
decreto da reprovação. Eleição e reprovação são também paralelas no
sentido de que cada uma, a seu modo, contribui para a glória final de Deus.
Outro paralelo está no fato de Deus não só decretar o fim ou o objetivo,
mas também os meios para realizar os fins de cada um desses decretos. Na
seção seguinte deveremos considerar os meios da reprovação; ali se tornará
claro que, não obstante haver um paralelo, a reprovação é efetuada de
"modo contrário" ao da eleição.
Ainda que se possam mencionar outros fatores como paralelos ou não
paralelos, dois resultados se destacam na discussão de Calvino. Deus é
soberano tanto na eleição como na reprovação; elas são igualmente finais.
Mas é a justiça ou a integridade de Deus que se acentua na reprovação, ao
passo que é a graça livre e gratuita de Deus que caracteriza a eleição.
Quando os réprobos, finalmente, recebem a punição eterna que os espera,
recebem precisamente aquilo que merecem; mas quando os eleitos recebem
a salvação eterna que os espera, recebem aquilo que não merecem. Os
eleitos recebem graciosa¬mente, todavia recebem justamente, o contínuo
favor e imere¬cida graça de Deus, através de Jesus Cristo. Este é o
principal aspecto em que eleição e reprovação não são paralelas, ainda que
sejam igualmente finais.

9. O objetivo e os meios da reprovação.

O objetivo é a glória de Deus. No pensamento de Calvino ou a causa final


da eleição é o louvor e a glória de Deus. O objetivo da reprovação também
é a glória de Deus. Na verdade, todas as coisas manifestam a sua glória: "O
mundo todo foi constituído para ser o teatro da sua glória". Romanos 9
indica que mesmo a reprovação tem a glória de Deus como meta, pois ali
Paulo disse "que os réprobos são levantados com a finalidade de, através
deles, manifestar-se a glória de Deus" (110). A Escritura diz "que os ímpios
foram criados para o dia do mal, simplesmente porque Deus quis mostrar
neles a sua glória (Pv 16.4), exatamente como, em outro lugar, se declara
que Faraó foi levantado por Deus para que, por meio dele, o poder do nome
de Deus fosse mostrado entre os gentios" (Ex 9.16).

Segundo o modo de julgar de Calvino, a glória de Deus Inclui a sua justiça.


Ele ilustra isto, fazendo referência à queda.O homem é responsável por seu
pecado, contudo, a queda de Adão foi predestinada por Deus (ainda que a
mente humana não possa compreender porque Deus a quis). "Contudo, é
certo que Deus julgou assim, porque viu que, por meio dela, a glória do seu
nome seria devidamente revelada". Calvino continua: "Onde você ouve a
respeito da glória de Deus, pense na sua justiça, porque tudo o que merece
louvor, deve ser justo" Então, mesmo na destruição do ímpio, a glória de
Deus se manifesta. Novamente, em referência a Pv 16.4, Calvino escreveu:
"Vede. desde que a disposição de todas as coisas está na mão de Deus, e
desde que a decisão a respeito da vida e da morte está em seu poder, assim
ele ordena por seu plano e _vontade que, entre os homens, uns nasçam
destinados à morte certa desde o ventre materno, os quais, por sua
destruição, glorificam o seu nome".

Três fatores complexos cooperam juntos na contribuição feita à glória de


Deus: O eterno decreto de Deus, a iniqüidade do homem e a condenação
final do descrente por um Deus justo. Calvino entrelaçou estes três fatores
da seguinte maneira: "O fato de os réprobos não obedecerem à Palavra de
Deus, quando ela se faz conhecida deles, será alegado contra a sua malícia
e depravação de seus corações, acrescentando-se, ao mesmo tempo, que
eles foram levantados pelo inescrutável juízo de Deus para, em sua
condenação, ser mostrada a glória do seu nome". Como se podia esperar, a
complexa inter-relação destes três fatores levou Calvino, mais uma vez, a
reconhecer o mistério e incompreensibilidade de tudo isto. Conquanto a
Escritura o ensine, as mentes piedosas não podem "reconciliar as duas
questões: Que o homem, por sua queda voluntária se tornasse a causa da
sua própria destruição e que, contudo, pelo admirável conselho de Deus
tenha sido ordena do que esta ruína voluntária da raça humana e de toda
posteridade de Adão, se tornasse a causa de sua humildade". Quer o
homem compreenda isto, quer não, é preciso crer e aceitar. Por isso,
Calvino insistiu sobre o fato de que a eterna reprovação tem, como meta
final, a glória de Deus.

10. Os meios são diversos.

Calvino entendia que o decreto de Deus incluía os meios que asseguram a


realização do seu propósito. Vimos isto em conexão com o decreto da
eleição: Aquele a quem Deus elege, Ele chama, justifica e glorifica (Rm
8.29-30). Ao mesmo tempo em que Calvino ensinava que o decreto da
reprovação incluía os meios que asseguravam a sua efetivação, ele
introduziu também algumas importantes qualificações (para caracterizar
esses meios): Deus, certamente, não é o autor do pecado; supor que Deus é
o autor do pecado, segundo o modo de pensar de Calvino, é idéia blasfema,
pois Deus repele o pecado. Ele nunca manda a quem quer que seja pecar.
Ao contrário, nos Seus manda-mentos, a palavra de ordem é: "... Não".
Além dos mais, como temos visto, repetidamente, Calvino sempre insistiu
na idéia de que os seres humanos são responsáveis por seus pecados. Pelo
fato de Deus sempre incluir os meios para a realização do seu decreto, há
um paralelo entre decreto e meios, tanto com relação à eleição, como com
relação à reprovação. Porém, na reprovação, a relação entre decreto e meio
é "contrária" à que existe em relação à eleição: Isto é, Deus retira dos
réprobos aquilo que concede aos eleitos. Ilumina o coração dos eleitos, pelo
Seu Espírito, enquanto abandona os réprobos e retém a Sua graça, cegando-
os em seus pecados, endurecendo os seus corações e deixando-os à mercê
de Satanás. "Porém, como o Senhor sela Seus eleitos, chamando-os e
justificando-os", Calvino escreveu, nas Institutas, o seguinte: "Fechando
aos réprobos o acesso ao conhecimento do Seu nome, ou negando-lhes a
santificação do Seu Espírito, Deus, na verdade, revela, por este meio, o tipo
de juízo que os espera".

Em outro contexto, Calvino expressou de modo bem mais amplo a relação


entre decreto e meios que permitem a sua consumação:

"Da mesma forma pela qual Deus realiza a salvação dos eleitos, pela
eficiência da Sua vocação e segundo estabeleceu no seu eterno conselho,
assim também Ele, nos Seus juízos contra os réprobos, executa os desígnios
estabelecidos para eles. Portanto, aqueles a quem criou para a desonra na
vida e para a destruição na morte - para serem instrumentos de sua ira e
exemplos de Sua severidade, ora os priva da capacidade de ouvira Sua
palavra, ora os torna cegos e entorpecidos para não entenderem a sua
pregação. Portanto, esse Juiz Supremo conduz a sua predestinação, quando
deixa cegos aqueles a quem privou de Sua luz, quando uma vez os
reprovou".

Como indica a citação acima, Calvino reconhecia diversidade nos meios


que Deus usa para executar seu plano de reprovação. Uns podem ser
privados do privilégio de ouvir o Evangelho. O mais claro exemplo deste
fato é o período que transcorreu entre Babel e Pentecoste, quando a
revelação divina esteve confinada à nação escolhida de Israel, e negada aos
gentios. Por que as nações gentílicas foram privadas de ouvir a Palavra de
Deus? "Aquele que procura uma causa mais profunda" - para explicar isso -
"além do secreto e inescrutável plano de Deus, se atormentará inutilmente",
é a resposta de Calvino .

Os meios que Deus emprega para executar seu decreto, ás vezes, assumem
formas diferentes e mais dramáticas. "É fora de dúvida que o Senhor envia
sua Palavra a muitos cuja cegueira ele quer aumentar". Faraó é notável
exemplo disto, como Paulo mostrou em Romanos 9: "Com que objetivo
Deus se mostrou a Faraó, por meio de Moisés? Terá sido porque esperava
amolecer o coração dele, com as sucessivas embaixadas? Não, pois antes
de começar ele sabia e tinha predito o que ia acontecer". Ilustrações de
Ezequiel, Jeremias, Isaías mostram que "Ele dirige sua voz com o propósito
de tornar os homens mais cegos; expõe sua doutrina, porém, com o
propósito de torná-los mais broncos; emprega o remédio de modo que não
sejam curados”. Jesus mostrou que várias de suas parábolas tinham
propósito semelhante (Mt 13.11). Daí dizer Calvino "que não se pode
controverter: Quando Deus não quer que os homens sejam iluminados,
transmite-lhes sua doutrina envolta em enigmas, para que nenhum proveito
obtenham dela, mas para que sejam entregues a maior embrutecimento".
“O apóstolo João, 12.39, citando o profeta Isaías, afirma que os judeus não
podiam crer no ensino de Cristo, porque a maldição de Deus pendia sobre
eles”.

11. O homem é ainda responsável.

O soberano uso que Deus faz destes meios para executar o seu decreto da
reprovação, não elimina nem reduz a responsabilidade humana. O homem
nunca é desculpado por sua descrença. Jesus disse aos seus discípulos que
lhes falava por parábolas, porque "a eles lhes era dado conhecer os
mistérios do reino de Deus, mas não aos outros... que vendo, não vêem, e
ouvindo não ouvem nem entendem" (Mt 13.11-13). "Que é que Jesus quer
significar", pergunta Calvino, "com ensinar àqueles que cuida para que não
entendam?". Aqui, a resposta de Calvino dá ênfase à descrença humana:
"Considera de onde vem a falha, e deixarás de perguntar, pois qualquer que
seja o ponto obscuro que haja na Palavra, há sempre, contudo, bastante luz
para convencer a consciência dos ímpios". Aqui, outra vez, a
responsabilidade humana e soberania divina se entrelaçam
incompreensivelmente. Os que foram "ordenados à vida eterna", ouvem e
obedecem pela sobera¬na instrumentalidade do Espírito Santo. Calvino
também pergunta: "Por que, então, Ele concede graça a estes e nega
àqueles?". Aqueles, como explica Lucas, "fora destina¬dos para a vida
eterna" (At 13.48), estes, como explica Paulo, "são vasos de ira, preparados
para a perdição" (Rm 9.22). À luz disto, Calvino sugeriu que nós não nos
envergo¬nhemos de dizer com Agostinho: "Deus poderia converter, para o
bem, a vontade dos maus,porque Ele é onipotente: é claro que poderia!
Então, por que não o faz? Porque não quer pois o não querer está nele".
Vimos que Calvino reconhecia uma variedade de meios empregados por
Deus, para executar seu soberano decreto da reprovação. Nega a uns sua
Palavra, e a envia a outros, mas os cega e endurece na descrença.
Naturalmente, a responsabilida¬de humana é entrelaçada com a soberana
ação de Deus. Contudo, Calvino sempre considerou a pregação do
Evangelho como evidência da bondade de Deus: "Quando Ele, primeiro,
faz brilhar a luz de sua Palavra sobre os indignos", afirma Calvino, "Ele dá
prova suficientemente clara de Sua livre bondade (gratuitae bonitatis)". E
Calvino continua: "Aqui, portanto, se manifesta a imensa bondade de Deus,
mas não para salvação de todos, porque juízo mais grave espera os
réprobos, visto que eles rejeitam o testemunho do amor de Deus
(testemonium amoris Dei). Ainda que a Palavra evidencie a livre e infinita
bondade de Deus, como testemunha do seu amor, a diferença das respostas
(dadas pelos homens) também envolve a soberana ação de Deus: "E Deus,
também para realçar a sua glória, retira deles a eficiência do Seu Espírito
isto é, retira dos réprobos. “Porém, aos seus eleitos, Ele assegura a efetiva
operação do Seu Espírito, para que eles creiam em Jesus Cristo”. "Ora, se
bem que a pregação do Evangelho jorra da fonte da eleição", e tem como
objetivo primeiro, levar os eleitos à fé em Jesus Cristo, contudo, o
Evangelho deve ser pregado a todas as pessoas indiscriminadamente, pois é
deste modo que Deus opera sua, soberana vontade. Porém, por que Deus
ordenou que o Evan¬gelho fosse pregado a todos? Aqui está parte da
resposta de Calvino: "Para que mais seguramente concordem as
consciências dos piedosos,, enquanto entendem não haver nenhuma
diferença entre os pecadores, á não ser que a fé esteja presente os ímpios,
porém, para não alegarem que lhes falta um refúgio onde possam abrigar-se
da servidão do pecado, rejeitam, por sua ingratidão, o asilo que lhes é
oferecido". A questão se torna mais enfática, quando perguntamos por que
o Evangelho deve ser pregado aos réprobos, bem como aos eleitos.
Naturalmente, no curso da história não sabemos quem são os réprobos. Mas
a ordem de Deus exige a pregação universal do seu Evangelho, e ele sabe
quem são os eleitos e quem são os réprobos. Calvino focalizou também esta
questão: "Quando Deus dirige a mesma Palavra aos réprobos, ainda que
não para corrigi-los, Ele faz a Palavra servir a outro propósito: Hoje, para
pressioná-los com o testemunho da consciência e, no dia do Juízo, para
torná-los mais inescusáveis... Paulo salienta que o ensino não é inútil aos
réprobos porque, para eles, "é cheiro de morte para a morte" (II Co 2.16),
contudo, para com Deus, "somos o perfume de Cristo" (II Co 2.15). Deste
modo, Calvino reconhecia que a Palavra pregada aos réprobos, torna-os
"sujeitos a um mais pesado juízo", e "é ocasião para mais severa
condenação", tornando-os, no Juízo Final, mais inescusáveis. Por isso, a
pregação geral do Evange¬lho funciona também como meio utilizado por
Deus para consumar o seu decreto da reprovação. Contudo, Calvino insistiu
em dizer que, o "fato de apenas a proclamação externa (do Evangelho)
tornar inescusáveis os que a ouvem, e não obedecem, mesmo assim é a
proclamação da Palavra consagrada testemunho da graça de Deus, pela
qual Ele reconcilia OS homens consigo".

Por estes diversos meios, Calvino entendeu que Deus executa seu soberano
decreto da reprovação. Ainda que Deus seja a causa última que opera
soberanamente, segundo SEU bom prazer, a mancha e a culpa do pecado
residem no homem, como causa próxima, pois o homem peca
voluntariamente, e é responsável por rejeitar a bondade de Deus. O decreto
de Deus é, finalmente, levado a efeito, quando Ele condena o descrente por
seu pecado. Nisso brilha claramente a justiça de Deus, que está incluída na
sua glória. "Por isso, os réprobos são abominá¬veis a Deus, e com muita
razão", insistiu Calvino, "porque são destituídos do seu Espírito e nada
podem apresentar senão a causa da maldição". Assim, Calvino sempre se
referiu à causa próxima da condenação (reprovação) -, que é o pecado
humano e a culpa; porém, a Escritura não lhe permitiu negar a causa última
da reprovação (a rejeição), que é a soberana vonta¬de de Deus. Sua
compreensão da Escritura e sua obediência a ela, como Palavra fidedigna
de Deus, serviram de base à sua teologia da predestinação. Com fé
confiante, ele acreditava na fidedignidade da Palavra de Deus, ainda que
reconhecesse a incapacidade da mente humana para compreender todo o
seu sentido. Assim, Calvino concluiu a discussão deste assunto controverso
da predestinação, com as seguintes palavras: "Agora, quando muitas noções
foram aduzidas de ambos os lados, deixemos que a nossa conclusão seja:
"Tremer com Paulo diante de profundeza tão grande, e, mesmo que clamem
lín¬guas atrevidas, não devemos nos envergonhar da proclamação do
Apóstolo: "Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?" (Rm 9.20).
Como diz Agostinho, os que medem a justiça divina pelos padrões
humanos de justiça, agem perversamente".
CONCLUSÃO

Fizemos um levantamento dos vários aspectos da doutrina de Calvino a


respeito da dupla predestinação - eleição gratuita e soberana de Deus e sua
soberana e justa reprovação. Em sua totalidade, esta doutrina nunca foi e,
provavelmente, nunca será popular. Vimos que não foi uma preferência
particular, mas foi o ensino da Escritura que compeliu Calvino a crer nela,
a ensiná-la e a defendê-la. A impopularidade desta deprezada doutrina é
devida, em parte, ao fato de as pessoas não se submeterem ao pleno ensino
das Escrituras. Podemos registrar, portanto, que um teste de nossa
fidelidade às Escrituras pode ser feito, quando indagamos a respeito de
como anda a dourina da predestinação, de Calvino, na crise de nosso
tempo.

Foi deste modo que Calvino concluiu seu significativo tratado Concerning
the Eternal Predestination of God ("Tratado Referente à Eterna
Predestinação de Deus"):

"Repito o que disse no começo. Ninguém pode desaprovar a doutrina que


expus, exceto aquele que pretende ser mais sábio do que o Espírito de
Deus... De minha parte, eu, sóbria e reverentemente, confesso que não
conheço nenhuma outra lei de modéstia, a não ser aquela. que aprendi na
escola do Mestre Celestial. Estou consciente de que a prudência deve estar
presente temperando tudo, na construção da fé. Porém, como eu tenho
estudado em boa fé, para fazer exatamente isto, mesmo que não satisfaça os
escrúpulos de alguns, imagino ter cumprido o meu dever. Quem tem
ouvidos, para ouvir, ouça.

Fim.

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