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27.06.2018
Contribuições da
Aprovado em:
16.11.2018 hermenêutica de Paul
Ricoeur para uma teoria da
narratividade jornalística1
Leandro Rodrigues Leandro Rodrigues Lage
Lage
Doutor em Comunicação
pela Universidade
Federal de Minas Resumo
Gerais (UFMG). Mestre O objetivo do texto é explorar a dimensão narrativa do fazer jornalístico a partir
em Comunicação das contribuições teóricas da hermenêutica narrativa de P. Ricoeur. Trata-se de um
e Especialista em ensaio teórico, no qual, busca-se abordar a noção de narrativa jornalística à luz da
Comunicação: Imagens operação mediadora da narração, que se desenvolve entre a experiência dos acon-
e Culturas Midiáticas tecimentos e os processos de leitura e interpretação, por meio da coniguração de
pela mesma instituição. um enredo ou intriga. A linha argumentativa tensiona pelo menos três percepções
Professor do Programa sobre o caráter narrativo do jornalismo: a de que tal dimensão narrativa do fazer
de Pós-Graduação jornalístico se ancora no fato de que é intrínseco a esta instância social a atividade
em Comunicação,
de contar histórias; a defesa da narrativa jornalística como espécie de modalidade,
Linguagens e
Cultura (PPGCLC) gênero ou estrutura textual e discursiva; e a de que a qualidade narrativa do jorna-
da Universidade da lismo ameaça a construção das relações de referencialidade com os acontecimen-
Amazônia (Unama). tos, orientadas pelo ideal da objetividade.
Abstract
he purpose of this paper is to explore the narrative dimension of journalism ba-
1
sed on the theoretical contributions of P. Ricoeur’s narrative hermeneutics. It is a
Uma versão preliminar the-oretical essay in which the notion of journalistic narrative is approached in the
deste artigo foi apresen-
tada no 15° Encontro light of the mediating operation of narration, developed between the experience of
Nacional de Pesquisa- the events and the processes of reading and interpretation, through the entangling
dores em Jornalismo of a plot or in-trigue. he argumentative line stresses at least three perceptions
(SBPJor), em 2017.
about the narrative character of journalism: irst, that the narrative dimension of
journalism is linked to the journalistic activity of storytelling; second, the defense
of the journalistic narrative as a kind of modality, genre or textual and discursive
structure; third, that the narrative quality of journalism threatens the construction
Estudos em Jornalismo e Mídia of relations of referentiality with events, guided by the ideal of objectivity.
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Julho a Dezembro de 2018 Keywords: Journalism. Narrative. Paul Ricoeur. Event.
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A
abordagem do jornalismo pelo viés das narrativas requer o enfren-
tamento e a superação de pelo menos dois obstáculos. O primeiro
deriva do próprio campo proissional, no qual os jornalistas costu-
mam, paradoxalmente, negar a qualidade narrativa de seus relatos
e tratá-los como “registros do real” – sem problematizar a noção de
real como algo ixo e pré-existente, ou certa percepção sobre a linguagem como
mecanismo eticamente neutro e transparente. A exceção, dentro dessa lógica, ge-
ralmente, é aberta às reportagens, “casos à parte” em que seria permitida uma es-
pécie de postura narrativa por parte daqueles que reportam. E, mesmo assim, com
a ressalva de que, a despeito das possibilidades narrativas, a história está sempre
a serviço dos imperativos da objetividade e da veracidade. O segundo constrangi-
mento advém de teóricos da própria narratividade literária, para os quais é difícil
conceber o trabalho jornalístico como um labor narrativo, criativo, imaginativo,
e suas histórias como legítimas narrativas, conigurações poéticas da experiência.
Os estudos em jornalismo passaram a se preocupar mais expressivamente
com uma abordagem narrativa a partir da década de 1980 (BIRD; DARDENNE,
2009). Antes disso, as questões sobre a dimensão narrativa do trabalho jornalístico
apareciam episodicamente nos relatos de jornalistas sobre experiências proissio-
nais. É conhecido o ensaio em que o historiador R. Darnton (1975) ironiza o tra-
balho de correspondentes estrangeiros, que, naquele contexto, raramente, falam a
língua nativa dos países em que trabalham: “[...] esse handicap não lhes dói, se eles
têm um faro para a notícia, eles não precisam de língua ou ouvidos; eles trazem
mais para os acontecimentos que cobrem do que levam deles” (DARNTON, 1975,
p. 192, tradução nossa). Tomar os relatos jornalísticos como narrativas enfrenta,
desde cedo, a desconiança de que, ao narrar, “traz-se mais para os acontecimen-
tos” do que o que efetivamente lhes pertence. Além de a narratividade ter demo-
rado a se constituir como problema no âmbito dos estudos sobre jornalismo, a
narração, por seu parentesco com a fabulação, é, geralmente, colocada no lado
oposto aos valores canônicos do jornalismo, que interpõem uma rígida divisão
entre “fatos” e “histórias”.
O que buscamos, neste ensaio, é discutir a dimensão narrativa do jorna-
lismo, demarcando contribuições ainda pouco exploradas da hermenêutica nar-
rativa, em especial da fenomenologia-hermenêutica de Paul Ricoeur, para com-
preender certos fenômenos jornalísticos. É importante fazer a ressalva de que tal
proposta não consiste em observar somente as convenções narrativas, dividindo,
por exemplo, quais tipos de relatos jornalísticos podem, ou não, ser considerados
narrativas. Também não é nossa intenção tomar as narrativas jornalísticas como
meros relatos de experiências, ou mesmo considerá-las formas discursivas mais
ou menos ixas. O objetivo é argumentar, a partir de um ponto de vista essencial-
mente teórico, em favor da compreensão de que o trabalho jornalístico consiste
em operar uma transposição poética da experiência prática, criando esquemas in-
terpretativos dos acontecimentos, das ações dos indivíduos e do mundo em que
vivemos.
Do texto à narrativa
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lístico, entre outras, detêm certo privilégio nesse campo de estudos, sem falar no
lugar cativo de determinados objetos e fenômenos. Essa preferência relete o que
Carvalho (2012) considera ser um “poder de agendamento” que as mídias possuem
sobre tais pesquisas, que se deixam inluenciar fortemente pelas máximas deon-
tológicas sem questioná-las. Com isso, reforça-se aquele constrangimento de que
falamos no início deste texto, relativo a uma resistência ou mesmo descrença em
empreender abordagens voltadas à dimensão narrativa do jornalismo.
É importante demarcar, de saída, que a questão da narrativa não está dada a
priori pelas textualidades midiáticas ou pela obviedade da airmação de que o tra-
balho jornalístico consiste, em grande parte, em tecer histórias sobre o cotidiano.
Observar analiticamente as narrativas signiica, segundo Resende (2011),
reconhecer que é a partir dos usos da linguagem que os problemas devem ser ba-
lizados; em um caminho inverso, é desses usos que surgem as perguntas e os di-
lemas que afetam o jornalismo no contemporâneo. O interesse central, em uma
pesquisa desta natureza, é buscar conhecer estratégias e táticas textuais à luz de
narrativas que são tanto devedoras de uma referencialidade como portadoras do
simbólico (RESENDE, 2011, p. 132).
A força narrativa dos enunciados jornalísticos estaria menos nas qualidades nar-
rativas intrínsecas do texto das notícias e reportagens ou no confronto entre o
estilo descritivo e o narrativo, mas principalmente no entendimento da comuni-
cação jornalística como uma forma contemporânea de domar o tempo, de mediar
a relação entre um mundo temporal e ético (ou intratemporal) pré-igurado e um
mundo reigurado pelo ato de leitura. Uma trilha que põe a narrativa no campo
dos atos de fala e das relações pragmáticas (MOTTA, 2004, p. 11).
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Uma característica da mímesis seria visar o mŷthos, não seu caráter de fábula, mas
seu caráter de coerência. Seu “fazer” seria logo de partida um “fazer” universali-
zante. Todo o problema do Verstehen [compreensão] narrativo está contido aqui
em germe. Compor a intriga já é fazer surgir o inteligível do acidental, o universal
do singular, o necessário ou o verossímil do episódico (RICOEUR, 2010a, p. 74).
[...] é tarefa da hermenêutica reconstruir o conjunto das operações pelas quais uma
obra se destaca do fundo opaco do viver, do agir e do sofrer, para ser dada por um
autor a um leitor que a recebe e assim muda seu agir. Para uma semiótica, o único
conceito operatório continua sendo o do texto literário. Uma hermenêutica, em
contrapartida, preocupa-se em reconstruir todo o arco das operações mediante as
quais a experiência prática dá a si mesma obras, autores e leitores
(RICOEUR, 2010a, p. 95).
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nos são diariamente narrados, ajudando a conformar nossa visão sobre eles e sobre
o mundo que nos cerca. Acerca deste processo, podemos ir ainda mais fundo: as
narrativas jornalísticas são ainda mediadoras porque partem de esquemas concei-
tuais gerais e restritos sobre a experiência cotidiana para conigurarem histórias
sobre acontecimentos e peripécias do social que são continuamente reiguradas
por comunidades leitoras que habitam esse mesmo mundo prático transigurado
poeticamente.
Segundo Arquembourg (2011), a despeito da peculiaridade estrutural da
narrativa midiática, resultante de seu caráter fragmentário e diacrônico, esse con-
junto de narrativas pode ser observado à luz dessa abordagem teórica da herme-
nêutica porque, entre outros motivos, também se confronta com a dialética da
concordância/discordância intrínseca à mise en intrigue enquanto parte da ope-
ração de transfusão poética da experiência prática. Frente à discordância do que
se produz no cotidiano social, tais narrativas agem conigurando sucessiva e frag-
mentariamente o que ocorre, numa profusão de histórias que buscam dar sentidos
às ações e acontecimentos que atravessam nossa experiência individual e coletiva.
É necessário acrescentar que a força narrativa desses relatos reside no fato de que
essa atividade possui uma ancoragem ética, partindo de um conjunto extenso de
saberes e valores oriundos tanto das regras proissionais quanto de convenções so-
ciais, e de que tal processo é ativado pela experiência de leitura, também, relativa
à formação de uma comunidade leitora responsável por reigurar e pôr em circu-
lação os sentidos produzidos no curso dessa atividade narrativa e comunicativa.
Esses pressupostos nos autorizam a tratar de uma “poética jornalística”? Ar-
quembourg (2011) faz uma importante observação sobre esse aspecto, ressaltando
a necessidade de evitar respostas positivas ou negativas demasiado precipitadas,
mesmo porque não se trata de uma prova dos nove a uma aplicação conceitual,
mas sim um exercício de observação repleto de tensões. Para essa autora, a apli-
cação da hermenêutica narrativa à narratividade midiática abre a questão acerca
da possibilidade de qualiicarmos esse conjunto de relatos como narrativas. “Ina-
cabadas, esquivas, desprovidas de autoria, sempre ameaçadas pela discordância,
essas tessituras de intriga não coincidem completamente com a deinição de uma
narrativa concebida como uma totalidade conigurada” (ARQUEMBOURG, 2011,
p. 48, tradução nossa). A questão que persiste, para esta autora, não é a de uma
impossibilidade, mas do clareamento das condições segundo as quais podemos
tomá-las como narrativas. Por esse motivo, Arquembourg (2011, p. 48) defende
que a narratividade midiática nos leva “aos limites da narrativa”.
Considerações inais
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REFERÊNCIAS
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