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RESUMO
RESUMO: O texto apresenta algumas das confluências existentes entre o modernismo brasileiro e as literaturas
africanas de língua portuguesa, buscando demonstrar as coincidências de diretrizes estéticas e ideológicas perten-
centes tanto ao movimento brasileiro de 1922 como às literaturas de Angola, Cabo Verde e Moçambique nos anos
1950, os quais marcam o surgimento dos sistemas literários daqueles países.

ABSTRACT
ABSTRACT: The text presents some of the existing convergences among the Brazilian Modernism and the African
Literature in Portuguese searching to demonstrate the coincidences of the aesthetics directives and ideologies
belonged both to the 1922 Brazilian Movement and to the literatures of Angola, Cape Verde and Mozambique in the
1950s, which ones make the appearance of the literary systems from those countries.

PALA VRAS
VRAS--CHA
ALAVRAS CHAVEVE
VE: Modernismo Brasileiro; Literaturas Africanas de Língua Portuguesa; Estudos comparados de
Literaturas de Língua Portuguesa.

KEY--WORDS
KEY WORDS: Brazilian Modernism; African Literature in Portuguese; Comparative Studies in Portuguese.

Sou um angolano capaz de sentir o Brasil, ca- “Exortação”, de outro poeta angolano,
paz de recitar de cor um poema de Manuel Maurício Gomes, que servem de pórtico a esse
Bandeira, capaz de sambar com intenção ao
texto.
som de uma marchinha de Luiz Gonzaga, ou-
vindo o bater ritmado dum tambor com acom- Ambos os textos são bastante eloqüentes
panhamento de reco-reco. no que tange às marcas que a literatura
Ernesto Lara Filho brasileira imprimiu nas trilhas da literatura
angolana contemporânea. No que se refere ao
poema de Gomes, vemos que ele convoca os
Ribeiro Couto e Manuel Bandeira,
modernistas brasileiros Manuel Bandeira e
Poetas do Brasil,
Do Brasil, nosso irmão,
Ribeiro Couto como vozes autorizadas a
Disseram: sancionarem o seu canto que busca uma
“-É preciso criar a poesia brasileira, poesia genuinamente angolana.
de versos quentes, fortes, como o Brasil, Cremos que o poema é paradigmático no
sem macaquear a literatura lusíada”. que se refere às relações que se estabeleceram
Angola grita pela minha voz entre a literatura angolana e a brasileira no mo-
Pedindo a seus filhos nova poesia!
mento do seu movimento modernista, na medi-
Maurício Gomes da em que ele encena o diálogo entre os autores
de 1922 e o eu poemático, visando à “nova
poesia” angolana, exortação que reaparecerá
Ainda que, infelizmente, a constância não em outros momentos do poema como uma
seja o atributo que melhor possa definir o espécie de refrão, demonstrando como o
diálogo literário estabelecido entre o Brasil e
os países africanos de língua portuguesa, não poeta, então, estimula ao rompimento com a
há como deixar à margem que ele ocorreu em ordem literária vigente, fundando um pilar nas
forças de coesão sediadas na natureza e no
momentos extremamente importantes e
homem angolano como forma de resistência
interessantes dos sistemas literários dos países cultural que recicle, no novo, o espírito da naci-
das duas margens do Atlântico, como o onalidade, em relação ao presente de domina-
comprovam as palavras de Ernesto Lara Filho, ção/descaracterização colonial. (SANTILLI,
poeta e prosador angolano e os versos de 2003, p. 228)

Edição nº 003 - Junho 2005


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Se o poema de Maurício Gomes, publicado Recorde-se que naquele texto Mário de


em 1958, exorta os angolanos a realizarem um Andrade define o Modernismo como “uma rup-
rompimento com os modelos tecno-formais da tura, foi um abandono de princípios e de técni-
literatura da metrópole visando a que os autores cas conseqüentes, foi uma revolta contra o que
angolanos elaborem os “versos quentes, fortes, era a Inteligência nacional” (p. 240), aspecto
como o Brasil”, o estabelecimento do diálogo este que, segundo entendemos, foi percebido
com a literatura brasileira é anterior, como se pelos Novos Intelectuais de Angola e assimila-
pode ver acompanhando o surgimento do mo- do, não apenas no que se refere ao aspecto
vimento “Vamos descobrir Angola!”. formal da poesia, mas também de novos temas
Recorde-se que nos fins dos anos 1940, mais que freqüentariam o repertório poético angolano.
precisamente em 1948, graças ao Movimento Mais adiante, Mário reafirma o caráter
dos Novos Intelectuais de Angola, sob o lema iconoclasta do movimento brasileiro, indicando
de “Vamos descobrir Angola!”, e os seus esforços uma espécie de trajetória a que obedeceu o
(entre os quais a publicação da Antologia dos espírito de 22:
novos poetas de Angola – 1950 e da revista
Mensagem – Voz dos Naturais de Angola) que E foi da proteção desses salões que se alastrou
se consolida o sistema literário angolano. pelo Brasil o espírito destruidor do movimento
modernista. Isto é, o seu sentido verdadeira-
O Movimento dos Novos Intelectuais, inte-
mente específico. Porque, embora lançando inú-
grado, entre outros, por Viriato da Cruz e Anto- meros processos e idéias novas, o movimento
nio Jacinto, propunha-se a uma redescoberta modernista foi essencialmente destruidor.
de seu país, ao mesmo tempo em que a sua (ANDRADE, 1974, p. 240)
produção visava a uma produção para o povo,
com a “expressão dos interesses populares e da Mas sem dúvida são os três princípios fun-
autêntica natureza africana”. Era integrado por damentais do Modernismo brasileiro que teriam
autores que presidido ao movimento que mobilizaram os
autores angolanos, na medida em que neles
sabiam muito bem o que fora o movimento convergiam os anseios da geração de artistas
modernista brasileiro de 1922. Até eles havia
que procuravam novas formas de expressão de
chegado, nítido, o ‘grito do Ipiranga’ das artes
e letras brasileiras, e a lição dos seus escrito- uma singularidade angolana: “o direito
res mais representativos, em especial de Jorge permanente à pesquisa estética; a atualização
de Lima, Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Lins da inteligência artística brasileira e a estabilização
do Rego e Jorge Amado, foi bem assimilada. de uma consciência criadora nacional.” (p. 242).
(ERVERDOSA, 1978, p. 84) Como bem nos lembra Rita Chaves a respei-
to da leitura que os autores angolanos realiza-
Para os jovens do Movimento que iria definir ram desses paradigmas da Semana de 22,
os rumos da literatura angolana, a leitura de
autores do Modernismo brasileiro abriu (...) a estabilização da consciência nacional era
caminhos, apresentando propostas estéticas e uma espécie de condição para que a pátria se
respostas a questões que eles próprios se transformasse em nação. Por isso era preciso
colocavam. Sob esse aspecto, o balanço sobre trabalhar as divisões internas, investindo na con-
solidação de um projeto que na ignorasse as
o movimento modernista brasileiro, realizado por
diferenças inerentes a um solo onde a diversida-
Mário de Andrade em conferência realizada em de de etnias, línguas e tradições compunha um
1942 e posteriormente publicado em Aspectos intrincado mosaico cultural. A consciência dessa
da literatura brasileira sob o título “O movimento pluralidade e a crença na necessidade converter
modernista” (ANDRADE, 1974, p. 231-258) esse dado em fator positivo podem explicar os
pode nos auxiliar a traçar algumas das rumos seguidos pela prosa de ficção que, de
algum modo, procura se apossar do país trazen-
convergências existentes entre o programa
do para a cena literária todo um conjunto de
estético dos brasileiros de 1922 e dos angola- elementos que pudesse refletir o caráter múlti-
nos de 1948. plo desse universo. (CHAVES, 1999, p. 48)

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Ainda que a estudiosa se refira especifica- deira (“Evocação do Recife” e “Pasárgada”) e


mente a Angola e à ficção ali produzida, suas poemas do angolano Mário Antonio (“Rua da
observações podem ser ampliadas para a rea- Maianga”) e dos cabo-verdianos Osvaldo
lidade dos cinco países africanos de língua por- Alcântara/Baltazar Lopes (cinco textos reunidos
tuguesa na medida em que a pesquisa estética sob a título Itinerário de Pasárgada) e de Ovídio
centrada nas singularidades culturais de cada Martins (“Anti-evasão”), assim como entre
país e a busca de atualização da inteligência “Carta para longe”, texto do poeta cabo-
artística nacional foram alvos perseguidos de verdiano Daniel Felipe, e “Europa, França de
perto pelos consolidadores das literaturas da- Bahia”, do brasileiro Carlos Drummond de
queles países africanos. Andrade.
A leitura do modernismo brasileiro que se Em todas as análise a pesquisadora busca
realizou na África de língua portuguesa foi tematizar não apenas as semelhanças entre os
estética, sem dúvida; mas, sobretudo, textos, mas também apontar-lhe as diferenças,
ideológica, na medida em que: desenhando a singularidade de percurso de
cada poeta e sistema literário.
(...) esteve ligada a uma conscientização políti-
co-social. Tratava-se nesses países, como ocor- O móvel da análise é bastante interessante,
rera no Brasil, de prestigiar um nível de fala de pois para Santilli
identificação nacional. Os registros múltiplos Não se trataria de desprezar a consciência his-
desses níveis apontavam para situações tórica, ou de assumir uma atitude anti-história,
socioculturais diversas, tanto no plano de cada ou, nem mesmo de aliviar o fardo da historia.
cidade (com as divisões sociais internas) como Tratar-se-ia, sim, de passar a reconsideramo-
no plano das várias regiões de cada país. nos desde nossa atual posição de periferia, re-
(ABDALA JÚNIOR, 1989, p. 73) lativamente às metrópoles do poder mundial
de hoje, ou seja, onde podemos fazer blocos a
Os exemplos das operações de leitura que partir das diferenças oriundas das ancestrais
se realizam na passagem de textos de uma mar- analogias, que estiveram no sistema geopolítico
gem a outra do Atlântico são numerosos, como do passado que nos articulou. (SANTILLI, 2003,
nos mostra Maria Aparecida Santilli em um texto p. 138)
imprescindível intitulado “Angola, Brasil, Cabo
Verde, nos caminhos cruzados da poesia” A título de exemplificação, vale transcrever dois
poemas caboverdianos e o texto de Manuel Ban-
(SANTILLI, 2003, p. 126-136). Ali, a estudiosa
deira, a fim de verificarmos as confluências de
após apresentar alguns dos textos em que o
um mesmo tema – a Pasárgada ideal, como um
Brasil e a sua literatura se presentificam, detém- espaço onírico – e as diferenças que as leituras
se com mais vagar em traçar uma leitura dos autores de Cabo Verde operam a partir do
comparatista entre dois textos de Manuel Ban- texto brasileiro:

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Vou me embora prá Itinerário de PPasárgada


asárgada Anti-Evasão
Pasárgada
Osvaldo Alcantara (Baltazar Ovidio Martins
Vou-me embora pra Pasárgada Lopes)
Lá sou amigo do rei Saudade fina de Pasárgada… Pedirei
Lá tenho a mulher que eu quero Suplicarei
Na cama que escolherei Em Pasárgada eu saberia Chorarei
Vou-me embora pra Pasárgada onde é que Deus tinha depositado Não vou para Pasárgada
o meu destino…
Vou-me embora pra Pasárgada Atirar-me-ei ao chão
Aqui não sou feliz E na altura em que tudo morre… E prenderei nas mãos convulsas
Lá a existência é uma aventura (cavalinhos de Nosso Senhor Ervas e pedras de sangue
De tal modo inconseqüente correm no céu;
Que Joana a Louca de Espanha a vizinha acalenta o sono do filho Não vou para Pasárgada
Rainha e falsa demente rezingão;
Vem a ser contraparente Tói Mulato foge a bordo de um Gritarei
Da nora que nunca tive vapor; Berrarei
o comerciante tirou a menina de Matarei
E como farei ginástica casa;
Andarei de bicicleta os mocinhos da minha rua Não vou para Pasárgada
Montarei em burro bravo cantam:
Subirei no pau-de-sebo indo eu, indo eu
Tomarei banhos de mar! a caminho de Viseu...)

E quando estiver cansado Na hora em que tudo morre,


Deito na beira do rio esta saudade fina de Pasárgada
Mando chamar a mãe-d’água é um veneno gostoso dentro do
Pra me contar histórias meu coração
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo Como se pode verificar, o texto de Bandeira é lido sob a
É outra civilização clave da evasão, tema tão caro aos caboverdianos daquele
Tem um processo seguro momento, que se debatiam com a questão da emigração
De impedir a concepção para sobreviverem em melhores condições do que aquelas
Tem telefone automático oferecidas pelo Arquipélago. Dessa maneira, o “ter de ir,
Tem alcalóide à vontade querendo ficar” constituía-se em um dos principais debates
Tem prostitutas bonitas que percorria a sociedade daquele momento. No que se refere
Para gente namorar ao poema de Ovídio Martins, escritor pertencente à geração
da revista Certeza (1944), a qual trazia uma forte marca do
E quando eu estiver mais triste neo-realismo português, pode-se dizer que estamos frente a
Mas triste de não ter jeito um verdadeiro manifesto que, colocando-se diametralmente
Quando de noite me der em oposição ao onírico dos versos de Bandeira, afirma a
Vontade de me matar necessidade da luta e da expressão de um sentimento de
- Lá sou amigo do rei - pertença a Cabo Verde a partir da realidade circundante,
Terei a mulher que eu quero sem fugas ou evasões.
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

(Libertinagem, 1930)

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Considerações finais REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Se, como afirmávamos acima, a constância ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura bra-
não tem sido a tônica das relações literárias entre sileira. 5.ed. São Paulo: Martins, 1974.
o Brasil e os países africanos de língua oficial
portuguesa, também não se pode deixar à mar- CHAVES, Rita. A formação do romance angolano.
gem que o intercâmbio existiu de variadas manei- Entre intenções e gestos. Maputo; São Paulo: FBLP;
ras e em momentos importantes de definição ou Via Atlântica, 1999.
redirecionamento dos sistemas literários dos paí-
ses das duas margens do Atlântico. Lembramos, CHAVES, Rita. A literatura brasileira e o imaginário
aqui, a título de exemplo, o período romântico nacionalista africano: invenção e utopias. In:
brasileiro, no qual realizou-se o encontro seminal CHAVES, R; SECCO, C; MACEDO, T. (Org.).
para uma das manifestações literárias mais im- Brasil/África: Como se o mar fosse mentira.
portantes da literatura angolana, a escrita do an- Maputo: Imprensa universitária, 2003.
golano José da Silva Maia Ferreira.
As aproximações mais duradouras, todavia, ERVEDOSA, Carlos. Roteiro da literatura angola-
seriam consolidadas pelo Modernismo, a partir na. Luanda: união dos escritores angolanos, 1979.
do delineamento de uma proposta estético-ideo- (Coleção 2K).
lógica em que o projeto literário inscrevia-se em
um projeto cultural maior, de questionamento e LARA FILHO, Ernesto. Crónicas da roda gigante.
intervenção na realidade nacional. Lisboa: Afrontamento, 1990
A esse respeito, cremos que a estrofe final de
“Poema para Jorge Amado”, de Noêmia de Sousa, SANTILLI, Maria Aparecida. Paralelas e tangentes:
sintetiza admiravelmente o que vimos afirmando: entre literaturas de língua portuguesa. São Paulo:
Arte & ciência, 2003. (Via Atlântica, 4)
Jorge Amado, nosso amigo, nosso irmão
Da terra distante do Brasil! SOUSA. Noêmia. Sangue negro. Maputo:
Depois deste grito, não esperes mais, não! associação dos escritores moçambicanos, 1988.
Vem acender de novo no nosso coração
A luz já apagada da esperança!

Aceito para publicação em 25/02/2005.

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