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Abel Neves

Além as estrelas
são a nossa casa

Título: Além as estrelas são a nossa casa

© Abel Neves e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 1999

Concepção gráfica de João Botelho

ISBN 972-8423-63-2 Cotovia


ÓRBITA ABERTA

Um homem está sentado a uma mesa. Uma mulher, grávida,


observa para lá de uma suposta janela. Um telescópio está
colocado a um canto. Há uma pequena jarra com flores sobre
a mesa. Ouvem-se, distantes, sons de comunicação entre as-
tronautas e o centro de controle terrestre.

ELA Pessoas. Breve silêncio


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ELE O quê?

ELA Não perguntaste o que estou a ver?

ELE P e r g u n t e i . h á dez minutos. Breve silêncio


ELA Gostava da moldura do espelho da casa de banho, não
sei porque tiveste que dizer que era horrível. Eu gostava.

ELE Eu gostava! Até .parece que mandei fazer palitos com a


moldura. Caiu, era velho, partiu-se, acontece.

ELA Não caiu por acaso.


ELE Caiu. Silêncio. Penso no que pode ter havido antes de


haver isto tudo e dá-me um sobressalto. O universo... tu
não tens um sobressalto? Breve silêncio Tudo começou
com uma explosão... parece até que ainda há vestígios
disso... ondas rádio, ou lá o que é. Mas... e antes? Porra,
não acredito que não tenhas um sobressalto.

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ELA O que é que tu queres?, somos diferentes. Não te esque- ELA Não me toques!
ças que tens que levar os pedaços do espelho para o mar.
ELE Sentando-se Não achas essa coisa um bocado estúpida?
ELE Tenho porquê?
ELA Não sei porquê.
ELA Aquela coisa dos sete anos.
ELE Estás preocupada com os restos de um espelho que se
ELE VOU agora atirar com o espelho para a água! partiu...

ELA O problema é teu. ELA Que tu partiste.

ELE Ainda alguém espeta um caco nos pés. E u a fugir da má ELE Seja, que eu parti... parti nada mas está bem, se ficas
sorte e outro a apanhá-la, não é justo. contente, está bem, que eu parti. Estás preocupada com a
merda dum espelho partido?
ELA Então fica com eles. Mas noutra casa, aqui não.
ELA Partido nesta casa, pelas tuas mãos, tu, o pai desta cri-
ELE Mas já deitei fora o espelho, moldura e tudo. ança que trago aqui.

ELA Deitaste fora? Não guardaste os pedaços do espelho? ELE Ela assim vai ouvir tudo, vai espantar-se, há-de achar
isto uma parvoíce pegada. Quando for crescida vou-lhe
ELE Ia agora guardar! contar, ai isso é que vou. A mamã estava muito preocupa-
da com um espelho que apareceu partido, sabias, bebé?
E L A Pois é mas quem está grávida sou eu, não és tu, que eu Vá, come a papa, senão vou chamar a mamã e ela conta-te
saiba. Sempre a mesma trampa contigo! Eu gostava da a história toda desde o princípio. Queres ouvir a história
moldura do espelho. toda desde o princípio? Vá, come a papa... isso, come a
papa... bonita... Vês, não vai querer ouvir a tua história.
ELE Já sabemos.
ELA Sabes, minha querida, o teu papá é um estúpido de um
ELA E U , grávida, numa casa onde o fornicador de serviço convencido.
partiu ura espelho? Nem pensar!
ELE É um estúpido mas se não fosse o papá a pequerrucha
ELE Levantando-se e aproximando-se dela Espera aí. não estava cá.

ELA Larga-me! ELA Sabes, está convencido que é o único fornicador do


mundo.
ELE Toquei-te?

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ELE À minha maneira, sou, claro. Alguém que me prove o ELE Porra, mas eu só me levantei!
contrário. Silêncio
ELA Estás aí muito bem, não é preciso estarmos em cima um
ELA Que estupidez... do outro, para conversarmos estamos muito bem assim.
Larga-me!
ELE Também acho.
ELE Sentando-se Mas eu agarrei-te?
ELA ... que estupidez essa coisa de dizeres "até parece que
mandei fazer palitos com a moldura." ELA Estás sempre em cima de mim... Silêncio. Quero que
ela nasça para o mundo em órbita aberta. Ele olha para ela,
ELE Fiz pior, pelos vistos, deitei tudo fora. perplexo Como alguns cometas... viajam rasantes ao sol...
curvam em parabólica e seguem para o infinito... gostaria
que a vida dela fosse assim... é o mais belo movimento.
ELA E eu grávida dum monstro!
Breve silêncio Qual é a admiração?
ELE T U vê lá se tens tento na língua! Ela está a dar atenção
a tudo o que dizemos. ELE É bonito o que disseste... órbita aberta... nem sei como
te ocorreu. Silêncio Viajam rasantes ao sol é como quem
E L A Se está ou não, eu é que sei, ou agora também já sentes diz... o gelo vai derretendo, é verdade... é por isso que se
os efeitos da minha gravidez? vão desfazendo... ficam com aquelas cabeleiras... passam
bem longe... Breve silêncio A minha filha um cometa...
ELE Uma grande injustiça, esta coisa toda. Se pudéssemos quando foi que sonhaste isso?
voltar atrás...
ELA Desde que fornicámos.
ELA E podemos, quem é que te disse que não podemos?
O tempo não anda só para a frente, não sabias? ELE J á lá vão...

ELE Anda para trás, para os lados, que me importa?, estou ELA Sete meses. Espero que na vida dela não encontre um
por tudo. homem como tu.

ELA T U , tão amigo das coisas do universo, não percebo... ELE Vamos lá a ver as ocorrências cósmicas. Silêncio. Ela
devias sa*ber que o tempo pode levar-nos para trás. Se aproxima-se dele, acaricia-lhe a cabeleira. Não queres que
pudéssemos voltar atrás... e depois? ela viva agarrada às tuas saias, é isso? Silêncio. Ele levanta-
sse, abraçam-se. Por que temos sempre que nos magoar?
Ela encolhe os ombros E se estivermos enganados?
ELE Levantando-se Desculpa, eu não queria...

ELA Quieto! ELA O quê?

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ELE E se o universo for fechado em vez desta coisa infinita- E L E N E M SEMPRE APARECE
mente aberta? Escuro. E ÀS V E Z E S QUANDO MENOS SE ESPERA

E L A Amo-te. Ouvem-se ainda as vozes dos astronautas. Foste


ao meu perfume. As vozes dos astronautas deixam de ouvir-
se, subitamente.

Uma mesa com microfone. Uma jarra com flores. Um copo


com água. Entra o conferencista, um oficial da Marinha.

Devo dizer que a minha intenção era matar-me. Estou


onde estou é o que importa, acho que sou bem tratado,
pedem-me sempre para dizer isto. Repugnava-me a faca
nas veias e os barbitúricos no estômago enchiam-me a ca-
beça de imagens horríveis comigo contorcendo-me em
cima da cama embora a possibilidade fosse dormir, dormir
o tal sono dos justos que era sem dúvida a minha meta me-
tafísica. O tiro nos miolos foi a minha primeira escolha e
opção definitiva. Nada de arrastar o corpo entre o mundo
e o além mundo, se fosse o caso de o envenenar e o vene-
no não fosse suficiente, acontece em muitos casos, vai-se a
ver e o corpo resiste mais do que esperávamos e lá se vai a
morte por um canudo ou então chega mais tarde, o que é
uma maçada para quem a deseja enquanto o diabo esfrega
um olho. Era o meu caso, estou lúcido, estou, estou. Eu es-
tava incapaz até de me levantar, embora sentado no fundo
da cama, e a verdade é que tinha atrás de mim o crucifixo
de arte popular, e o telefone tocou mas não atendi, claro,
como podia atender? A minha Dores ali aos pés, a cara já
não sei com que cor, as minhas mãos a tremerem e o tele-
fone, como podia atender? E u estava em casa dela, a cama
era dela, tudo era dela, posso dizê-lo, o telefone, eu ia aten-
der e dizer, claro, sim, matei-a, sim, fui eu, estou aqui à
vossa espera, que venha quem quiser, estou à vossa dispo-
sição. Não podia atender, olhava para ela e para as mãos e

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OFICIAL Gostava de entrar numa revolução, e Deus sabe se O B A L D E E AS TRÊS DONZELAS,
entrarei, em qualquer altura. Para já, para já, apetece uma UMA HISTÓRIA POPULAR
revolta.

FLORISTA Comer leitão e jaquinzinhos já dá para irritar os


lordes. Passa para lá da fita de plástico A minha loja fica lá
para trás, se um dia precisarem, nem que seja só para saber
que continuam vivos... os meus clientes é o que fazem, flo- Uma rapariga está sentada num banco portátil. Silêncio.
res, flores, sempre as flores. Entra a segunda rapariga.
As saias das raparigas são rodadas e coloridas.
OFICIAL Vou consigo. Com esta senhora nunca poderia en-
tender-me, como explicar? Acho que sabemos conversar
mas depois há qualquer coisa que impede que eu possa PRIMEIRA VOU deixar crescer o cabelo até ao rabo. Silêncio
amá-la. Para ter depois o prazer de o cortar. Silêncio

EXECUTIVA Que disparate! E u nunca falei de amor. SEGUNDA Juro-te que não fizemos truque. Calhou-te, podia
ter calhado a qualquer uma de nós.
OFICIAL Precisamente... e eu gostaria que o tivesse feito,
agora é tarde, em falando agora eu não poderia acreditá-la, PRIMEIRA Claro. Silêncio
está a ver como as coisas são? Florista avança passando cau-
SEGUNDA Apetece-me bolachas com geleia.
telosamente junto da silhueta, o Oficial avança também mas
deixa o braço estendido para a Executiva que também tem o
PRIMEIRA Tens marmelada no armário.
braço estendido para o Oficial mas que não se tocam
Adeus... costumo jantar no Ex-Libris Bar. SEGUNDA Acabaste com a geleia?

EXECUTIVA E é onde, meu amor? PRIMEIRA Estava no fim, não? Silêncio, entra a Terceira ra-
pariga que pousa um balde de plástico diante da Primeira
OFICIAL EU disse adeus, não disse?
TERCEIRA Acho melhor fazermos a coisa depressa, engonhar
EXECUTIVA Mais valia que nunca nos tivéssemos encontrado... é que não. Silêncio E a vida, porra, não vamos agora ficar
Vê-o desaparecer com a Florista Posso dizê-lo, sim, agora sei aqui feitas catatuas a olhar para o balde.
que posso dizê-lo... mas já não vais ouvir-me. Ah, como são
difíceis certas palavras... Deita-se suavemente com as flores PRIMEIRA A tua mania de deixares a porta da cozinha aber-
sobre a silhueta, silêncio Amo-te... e depois?, que me impor- ta é no que dá.
• ta o trânsito? Breve silêncio, ouve-se uma repentina e estri-
dente travagem de automóvel, e logo o escuro. TERCEIRA Achas que isso agora adianta alguma coisa?

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SEGUNDA Estamos com lua nova, é? no quintal aí uns cinquenta gatos, fora os que vão achar
graça à colónia de férias e toca de armar a tenda onde os
PRIMEIRA Sim. Breve silêncio outros já têm hotel.

TERCEIRA Bom, posso trazer? PRIMEIRA Tens a certeza que são mesmo sete?

PRIMEIRA Não, espera aí. Breve silêncio Não sei se sou capaz, SEGUNDA Não os contaste também?
nunca fiz isto.
PRIMEIRA Eram sete, sim... Mas eu só os atiro aqui para den-
TERCEIRA Nem nós, por isso é que tirámos à sorte... Vá lá, tro, depois tu é que levas o balde lá para fora e fazes com
deixa-te de macaquinhos no sótão. eles o que quiseres.

PRIMEIRA Pois é mas quem tem a parte chata para fazer sou TERCEIRA J á abri o buraco ao pé da figueira.
eu. Breve silêncio. Por que é que não puseste água no
balde? SEGUNDA AOpé da figueira?! Porra, vamos ter a gata a miar
o tempo todo debaixo da árvore.
TERCEIRA Tu é que sabes a quantidade que queres.
TERCEIRA E a natureza, o que é que queres?, e ao menos acon-
PRIMEIRA E U sei lá! E tem que ser hoje? chegamos os bichos numa terra boa.

SEGUNDA Não podemos continuar nisto o tempo todo e está PRIMEIRA Sete vezes sete... Parece que demoram muito
na altura certa, acho eu. tempo antes de se passarem, não é?

PRIMEIRA O que a mim me faz espécie é haver pessoas que SEGUNDA Se calhar tens que ficar uns minutos com a mão
fazem isto como quem bebe um copo de refresco. Breve si- dentro da água, claro.
lêncio E se estivéssemos quietas e deixássemos andar a na-
tureza? PRIMEIRA Eles vão ficar aqui aos guinchos, uns guinchos in-
suportáveis... e depois o que fazemos com a gata? Fazer
TERCEIRA Faz as contas. Sete vezes sete... isto a uma mãe...
*

PRIMEIRA Interrompendo Sete vezes sete?! Como é isso? SEGUNDA Por isso é que tirámos à sorte, agora já está, és tu
e pronto não vale a pena estarmos com mais zum-zum, é
TERCEIRA Nem todos serão fêmeas mas acaba por ser igual, triste, é assim, é a vida!
não fodem estas fodem outras que andam por aí. Dou-te
um número por alto, redondinho como a lua: dentro de PRIMEIRA Estás muito pragmática porque não és tu que os
dois anos, se não te decides a fazer a coisa, vamos ter aqui vais afundar na porcaria do balde.

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SEGUNDA Em tempos... queria... e era só um gato... temos
SEGUNDA Talvez mas que queres que eu faça? Temos é que
sete, não é?
resolver a história da ninhada debaixo do armário da cozi-
nha, o resto falamos depois, com o assunto resolvido.
PRIMEIRA Pelo menos salvava-se um.
PRIMEIRA Já tinha comprado o biberão. Breve silêncio Com-
TERCEIRA Assim não dá, não vamos ficar outra vez a recitar
prei o biberão já a pensar no caso da gata rejeitar algum fi-
a lista dos que há não sei quanto tempo queriam um gato,
lhote... acontece, ou não? já falámos do Quim Zé não sei quantas vezes. Silêncio Oh,
que porra! Ele não foi também vosso namorado? Então
TERCEIRA Biberão?! O que se costuma fazer é dar-lhes o leite
qual é o espanto? Breve silêncio
muito aguado mas com uma seringa, agora um biberão!
SEGUNDA Mas nós não dissemos nada.
PRIMEIRA Pois, uma seringa, eu disse biberão mas queria
dizer seringa, comprei-a na farmácia.
TERCEIRA É O costume, não dizem nada mas pensam.
SEGUNDA Às tantas já pensam que andas na pica.
PRIMEIRA Meto assim a mão dentro do balde, na água, e os
pobrezinhos ficam a guinchar?... Não vou ser capaz. E se
PRIMEIRA Até parece que não me conhecem na farmácia, a
falássemos com a vizinha?
doutora Boavida...
SEGUNDA Se lhe falas de gatos a mulher baba-se de raiva,
TERCEIRA ÉO apelido do marido, coitada...
temos a experiência quando atirou os óculos contra a gata
só porque ela se deitou em cima do colchão de praia, é
PRIMEIRA Tive o cuidado de dizer que a seringa era para dar
completamente alérgica, não percebes?
de mamar a um gato.
TERCEIRA VOU buscá-los.
SEGUNDA Disseste?
PRIMEIRA Espera! E a protectora dos animais?
PRIMEIRA E depois?
SEGUNDA Não tarda estás a telefonar para a presidência da
SEGUNDA Não tens nada que justificar a tua vida, agora é que
república.
vão pensar que é desculpa por causa da droga.
PRIMEIRA Por que é que às vezes és tão estupidamente
PRIMEIRA E eu ralada... Silêncio
banal? Breve silêncio Tenho o direito ao menos de me pre-
ocupar com o que vou fazer, ou não?
TERCEIRA Enches o balde? Vou buscá-los.
TERCEIRA Já falámos sobre isso, há o direito à vida mas tam-
PRIMEIRA, Estou-me a lembrar que o Quim Zé em tempos
bém há o direito à morte, e depois repara, eles saem das
queria um gato.

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águas da placenta da mãe e vão directamente para outras SEGUNDA Por favor!...
águas, não hão-de sentir grande diferença.
PRIMEIRA Tenho visto até nas lojas... Dão-se gatos. Breve si-
PRIMEIRA Outra pragmática! Mas quem és tu para estar com lêncio Tinha que ser eu a escolhida...
intuições acerca do sentimento dos bichos na água?
TERCEIRA É O fado, sim... Posso ir buscá-los?
TERCEIRA Sou mulher, não?
PRIMEIRA E não posso fazê-lo lá fora?
SEGUNDA Sabes o que eu acho? Isto tudo porque te calhou
a ti o serviço de meter os bichanos no balde porque se ti- SEGUNDA À vizinha dá-lhe um chelique.
vesse tocado a mim seria eu que estaria provavelmente
com a tua conversa. Pensa que não és tu que vais fazer a PRIMEIRA Pois é, a vizinhança... vão passar a olhar para mim
coisa, não penses em nada, ou melhor, pensa que temos doutra maneira.
que fazer isso e pronto, a mão que entra no balde com uma
figurinha que nada sabe deste mundo nem do outro e que TERCEIRA Já olham, não te preocupes.
até pode guinchar mas não é dor o que sente, é só urri guin-
cho que vem lá dos códigos da genética, mais nada. Não te PRIMEIRA Já olham, como?
ponhas a magicar coisas, mete a mão no balde e se quise-
res pensar pensa que estás a livrá-los do peso do mundo, é TERCEIRA Sei lá! Deu-me para dizer. Breve silêncio
isso, se quiseres pensar pensa nisso.
SEGUNDA Apetece-me mesmo bolachas com geleia.
PRIMEIRA VOU meter a mão no balde sete vezes... sete guin-
chos... e depois os guinchos todos misturados... e eles TERCEIRA E porque não comes?
nadam, ou como é?
SEGUNDA Ela acabou com o frasco.
TERCEIRA Como queres que eles nadem se vais agarrá-los
bem dentro da água? Merda, daqui a nada temos cinquen- TERCEIRA Há compota de pêssego, fiz há dias.
ta gatos no quintal e tu aí a olhar para o balde.
PRIMEIRA Havia.
PRIMEIRA Tenho muita pena mas tenho que me preparar,
não é fácil. TERCEIRA E a marmelada?

TERCEIRA Está bem, prepara-te lá. Silêncio PRIMEIRA Está no armário. Silêncio Tens razão, se estivesses
tu no meu lugar eu não estaria com esta conversa. Eu esta-
PRIMEIRA Talvez que um anúncio no jornal... ria a dizer apetece-me bolachas com geleia, seria muito
mais cómodo.

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SEGUNDA Fizeste o buraco com que profundidade? PRIMEIRA Pois, estávamos no quarto, foi o pai que veio de-
pois ter connosco e nos disse essa coisa da cadela do se-
TERCEIRA Meio metro talvez, chega. nhor Narciso.

SEGUNDA Temos cal, não temos? TERCEIRA E não era? Silêncio

PRIMEIRA Vamos pôr cal? PRIMEIRA Tinha que me calhar a mim... eu nem sou capaz

de matar uma meiga, passei esta noite em branco por causa


SEGUNDA Essa é a minha tarefa depois... a cal, a terra, os ga- duma.
titos...
*
TERCEIRA Enches então o balde?
PRIMEIRA Os gatitos... pelos vistos não te são assim tão in-
diferentes. PRIMEIRA Fiquem comigo, não me deixem aqui sozinha com
os gatitos.
SEGUNDA Gatos, pronto!
SEGUNDA Ela vai buscá-los, enches o balde e eu depois levo-
PRIMEIRA Mas a cal...
-os para o buraco da figueira. Tudo junto são dez minutos.
TERCEIRA É um fertilizante, não sabias?
PRIMEIRA Dez minutos?!
PRIMEIRA Engraçado...Lembro-me que a mãe uma vez...
não se lembram? SEGUNDA Sei lá! Mais ou menos. Descansa que ficamos
contigo.
TERCEIRA Uma vez o quê?
TERCEIRA Mas não é obrigatório que eu fique a ver-te aí a
PRIMEIRA Uma vez que estávamos no quarto e ouvimos uma mergulhar os pobrezinhos.
grande chíadeira... a mãe até nos fechou a porta à chave..,
PRIMEIRA Em que ficamos, merda?
TERCEIRA Lembras-te?
TERCEIRA Enches o balde e eu vou buscá-los.
SEGUNDA Assim de repente... estávamos as três?
PRIMEIRA E a gata não te faz mal?
PRIMEIRA Sim, num dia qualquer do Verão...
TERCEIRA E suposto fazer?
TERCEIRA Lembro-me é do pai um dia a dizer-nos que a chia-
deíra que estamos a ouvir era uma injecção que estavam a PRIMEIRA E a mãe, não?
dar na cadela do senhor Narciso.

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TERCEIRA Mas não vai desconfiar de mim, sempre a tratei PRIMEIRA Tenho que ir encher o balde, não é?
bem.
SEGUNDA Sim, já vais... deixa-a chegar...
PRIMEIRA E se tirássemos outra vez à sorte?
PRIMEIRA Meto a mão no balde e pronto é só isso, não custa
SEGUNDA Desculpa, não fizemos batota, por que é que tens nada... também o que custa, não é? Há coisas bem piores,
que desconfiar sempre de nós? não sei porque estou com esta cantilena. As mãos são as
mesmas, antes e depois... Silêncio, regressando ao seu tom
PRIMEIRA Também qual é o mal? Tiramos outra vez à sorte, normal Precisamente... é isso... é disso que tenho medo...
se calhar numa de vocês não há problema, pelos vistos tenho medo que as minhas mãos nunca mais voltem a ser
qualquer uma faz o que eu não sou capaz de fazer. as mesmas... Entra a Terceira Rapariga

SEGUNDA Não é bem senão não tínhamos tirado à sorte. Si- TERCEIRA A gata desapareceu, não encontro os gatos.
lêncio
SEGUNDA Não acredito! Não os viste em lado nenhum?
TERCEIRA Assim não dá! Okei, dá aí os fósforos. Segunda ra-
pariga entrega-lhe uma caixa com fósforos e ela retira três, PRIMEIRA Sorrindo Pois é, quando menos se espera as gatas
partindo a cabeça de um deles, entrega a caixa Estamos têm esse gosto de mudar de lugar... já a mãe dizia o
todas a ver, não estamos? Três fósforos, um deles não tem mesmo, não se lembram? Quanto dá sete vezes sete? Escu-
cabeça. Quem ficar com este é quem afoga os gatos. E não ro, bruscamente.
há mais conversa. Mostra a ponta dos três fósforos escondi-
dos na mão e as duas raparigas tiram cada uma o seu. O fós-
foro sem cabeça fica na posse da Primeira

PRIMEIRA Pronto, está bem, já percebi que tenho que ser eu.

SEGUNDA Giro... ficou tudo na mesma.

TERCEIRA Então, vou buscar os gatos. Sai, silêncio

PRIMEIRA Subitamente enérgica, num tom alto, levantando-se


e caindo o banco. Muito bem, se é isso que querem, muito
bem! Vamos a isso! Onde estão os gatos?

SEGUNDA Calma, ela já vem.

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instrumento musical a personagem está em pé e nas mãos o RING T H E B E L L PLEASE
cesto num gesto de oferta, algum tempo também Nunca
pensei que tudo fosse tão rápido... o senhor é que é o se-
nhor vereador? Não?... Mas pensei... disseram-me...
Muito bem, foi tudo muito rápido... sim, gostaria muito,
sim, não tenho lareira mas gostaria muito, sim, é um lume
bom agora pelo S. João, é verdade, é o que farei... e talvez
possa até aproveitar para fazer uma mesinha, quem sabe?, Ouve-se o toque de uma campainha. Uma mulher espera
dum cedro fizeram a cruz de Cristo, não esqueça... olhe, junto a uma cadeira. Um homem vem ao seu encontro.
eu gostava de oferecer a todos vós... Silêncio Esperem...
estes pêssegos... Não se vão já embora... por favor... Es-
perem... Olhem, digam lá ao senhor vereador... Escuro. HOMEM Bom dia, em que posso ser-lhe útil? Breve silêncio, a
mulher olha-o fixamente Às suas ordens, faça o favor...
Breve silêncio Esteja à sua vontade... Deseja o catálogo da
loja? Não quer sentar-se? Breve silêncio, a mulher senta-se
Muito bem, vou buscar-lhe o catálogo... Deseja conhecer o
espólio mais antigo?... Este século?... Tem preferência por
alguma época? O homem sai e volta pouco depois com um ca-
tálogo que oferece à mulher Naturalmente que não estão aqui
representadas todas as nossas colecções mas os clichés foto-
gráficos referem as peças talvez mais sugestivas e que se en-
contram ainda para venda. Uma ou outra poderá estar assi-
nalada com um círculo colorido o que significa que não está
disponível... é o caso por exemplo deste relógio italiano da
renascença... esta cadeira chinesa do princípio do século
dezanove... Disponha, estou à sua disposição... O homem
coloca-se atrás da mulher, silêncio, a mulher vai fixando al-
guns pontos em seu redor e nunca dá atenção ao catálogo

MULHER E u ia a subir para o miradouro de Santa Luzia...


Silêncio

HOMEM Sim?...

MULHER Tenho um gosto muito especial por ver o Tejo jio


miradouro de Santa Luzia.

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f
HOMEM Ah, sim? HOMEM Sorrindo Tenho que confessar que é a primeira vez,
exactamente como está a acontecer é a primeira vez. Mas
MULHER Sinto-me verdadeiramente a respirar o ar de Lis- desculpe a indiscrição, costuma visitar o miradouro de
boa no miradouro de Santa Luzia. Santa Luzia?

HOMEM Compreendo... Muita gente faz o mesmo, e bem... MULHER O senhor, por exemplo, tem o hábito de ir ao ci-
chegam ao miradouro e olham para o Tejo... a outra nema?
banda... O vandalismo é que deu cabo daqueles azulejos
lindíssimos na murada e que refrescavam de azul a vista HOMEM Olhe, mais facilmente vou a um concerto de músi-
das pessoas... ca que a uma sessão de cinema.

MULHER Refrescavam de azul... não é costume dizer-se... MULHER Mas tem o hábito...
Silêncio
HOMEM Sim, com alguma frequência vou aos concertos.
HOMEM Não vai consultar o catálogo?
MULHER E U é O hábito dos miradouros e este de Santa Luzia
MULHER Não sei porque hei-de consultá-lo. Eu vinha só a sempre me atraiu, é muito, muito bonito. Breve silêncio
subir para o miradouro. Tenho passado muitas vezes aí no passeio, olho a montra
da sua loja e continuo para cima, outras vezes, claro, quan-
HOMEM Mas entrou na loja... Breve silêncio Há-de querer do venho para baixo, e sento-me um pedaço ali na Sé Ca-
ver algumas das nossas peças expostas... tedral... e, lá está, refresca tudo o que há dentro de nós e
que não sabemos exactamente o que seja. Sorriem Nunca
MULHER Realmente não sei. Há muita gente assim como eu tinha visto essa placa aí na porta.
que entra na sua loja?
HOMEM Como?
HOMEM Sorrindo É possível que muitos dos clientes se diri-
jam ao miradouro de Santa Luzia, é bem possível, nunca MULHER A placa que está na porta.
me deu para perguntar, os turistas muitas vezes perguntam
pelo Castelo e demoram-se por aqui um pouco. HOMEM Ah, sim, a placa.

MULHER E compram? MULHER Toque a campainha por favor... Ring the bell
please... Silêncio Hoje em dia já todos mais ou menos
HOMEM Há os que compram, sim. Breve silêncio compreendemos um pouquinho de inglês mas quem não
sabe não vai tocar a campainha, só mesmo quem saiba. To-
MULHER Mas pergunto-lhe se é normal entrarem na sua loja camos a campainha e ficamos aqui sentados. Eu por acaso
assim pessoas como eu. vou para o miradouro mas quem não vá, quem por acaso

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só passe, vai tocar a campainha e ficar aqui como eu? Há HOMEM Mas é possível que eu possa alguma vez fazer aqui
sempre coisas para fazer, não se pode estar de passagem uma festa tal como a senhora está a imaginar?
num lugar e de repente tocarmos uma campainha e en-
trarmos numa loja. O que fazemos a seguir? MULHER E U ainda não imaginei festa nenhuma, noto apenas
que estão criadas as condições objectivas para que tal acon-
HOMEM Mas eu trouxe-lhe o catálogo. teça, rua, pessoas, campainha, ring the bell please e loja.

MULHER Sim, mas o problema não é o catálogo, o problema HOMEM Creio que nenhuma pessoa segue tão longe no ra-
é uma pessoa vir a subir ou a descer a rua e ring the bell ciocínio, minha senhora...
please, uma pessoa toca e entra. Silêncio
MULHER Poderia comentar de mil maneiras, meu caro se-
HOMEM Está descontente com alguma coisa? nhor mas não vou fazê-lo, deixe-me apenas dizer-lhe que o
acho muito atraente. Silêncio Não acredito que o ring the
MULHER É que podia já estar no miradouro, como sabe a luz bell please seja uma frase inocente.
sobre Alfama é muito, muito variável e uma visão nunca se
repete. O que podia ter visto estando lá não posso imaginá- HOMEM Essa agora!
-lo estando aqui depois de ter tocado a campainha da sua loja.
MULHER É verdade.
HOMEM Compreendo.
HOMEM Como assim?
MULHER E pode-se dar o caso de acontecimentos que exi-
jam a nossa presença absoluta, e então? ring the bell plea- MULHER Não lhe ocorreu inocentemente, tenho a certeza..
se e alguém toca a campainha da sua loja e não poderá No fundo intuiu que uma mulher como eu havia de apare-
estar ao mesmo tempo no lugar onde reclamavam a sua cer-lhe na sua loja disponível para falar consigo sobre a
presença urgente. E uma responsabilidade, não sei se está atracção que exerceu sobre ela. Aliás, a frase nem é sua, é
a ver. Mas seja para o que for. Repare, alguém que vai às um dito comum, é uma frase do mundo".
compras, sobe a rua carregado de sacos, não interessa
agora o quê, massas, legumes, açúcar, fanecas, o que for, e HOMEM Nesse caso não tenho que sentir a responsabilida-
ring the bell please e essa pessoa, sabendo um pouco de in- de de que falava há pouco. Ufn antiquário tem o direito de
glês, entra na sua loja. E pouco depois, um estudante, e um convidar as pessoas a visitá-lo na sua loja...
turista, e mais alguém, e pouco depois todos os que leram
ring the bell please entraram na sua loja e o senhor que MULHER Ring the bell please!
faz? Uma festa? E isso? Uma festa com pessoas que toca-
ram a campainha, que a única razão para estarem juntas HOMEM Lembrei-me, há outros colegas que têm a mesma
dentro da sua loja é o facto de terem todas tocado a cam- frase nas portas também.
painha? Pense bem.

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MULHER A S lojas de antiguidades usam muito a frase, é isso? MULHER Avançando para o escuro E então?
Breve silêncio
HOMEM Seguindo atrás dela Terei que substituir a frase
HOMEM Mas a senhora entrou aqui livremente. porta...
Desaparecem os dois no escuro. Ouve-se pouco depois o sc
MULHER Graças a Deus, mas embora delicada a frase é im- breve, da campainha.
perativa. Uma pessoa vai na rua e ring the bell please. Não
me vai levar a mal mas gostava de fazer amor consigo.
Breve silêncio

HOMEM Mas... mas assim de repente... deve calcular que


não estou preparado... uma pessoa abordada assim... de
repente... tocam a campainha, a senhora entra e de um
momento para o outro e sem que nada o fizesse prever
convida-me para fazer amor consigo... desculpe mas não é
uma situação que me seja familiar... talvez que possamos
conhecer-nos um pouco mais, conversar sobre alguns
temas que sejam do nosso agrado, só para estimular um
pouco o nosso encontro e depois, sim, quem sabe, talvez
possamos trocar um beijo e depois... 9

MULHER O meu tema favorito é o miradouro de Santa Luzia.


Gostaria de falar sobre o miradouro de Santa Luzia?

HOMEM Com muito gosto, sim, adoro a Santa Luzia. Trau-


teia a melodia popular napolitana Santa Lúcia

MULHER Levantando-se Tem por acaso algum gabinete na


sua loja, um espaço mais íntimo?

HOMEM Sabe, tenho receio duma coisa... Breve silêncio

MULHER Não está capaz de o dizer? Breve silêncio

HOMEM Indicando4he uma direcção Tenho receio que você


seja o amor da minha vida.

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