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BRASIL JR. PassagensParaTeoriaSociologica-Florestan e Germani
BRASIL JR. PassagensParaTeoriaSociologica-Florestan e Germani
75 Menção Honrosa do Prêmio Capes de Tese 2012 da área de Sociologia FLORESTAN FERNANDES 75
E GINO GERMANI
25 HUCITEC EDITORA ISBN: 978-85-64806-84-9 25
PARA VOCÊ LER E RELER
0
Projeto de capa: Yvonne Sarué 42
1971 2 013 9 788564 806849
HUCITEC EDITORA
5
PASSAGENS PARA A
TEORIA SOCIOLÓGICA:
Florestan Fernandes e Gino Germani
HUCITEC EDITORA
São Paulo, 2013
© Direitos autorais, 2013, de
Antonio da Silveira Brasil Jr.
Direitos de publicação da
Hucitec Editora Ltda.,
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17 Agradecimentos
23 Introdução
Capítulo 1
42 O problema de uma “sociologia latino-americana”
PARTE I
Capítulo 2
83 O moderno e suas semelhanças
Capítulo 3
124 O imigrante e seus irmãos
PARTE II
Capítulo 4
157 Assincronia e demora
9
10 | Sumário
Capítulo 5
188 Dilema e paradoxo
Capítulo 6
232 Esquema de etapas e capitalismo dependente
287 Referências
qual o seu trabalho está ligado na área de pensamento social brasileiro. Refiro-
-me a dois elementos cruciais: a valorização da pesquisa empírica e a busca
de sentidos teóricos heurísticos para as formulações da tradição intelectual
brasileira.
No que diz respeito ao primeiro aspecto, percebe-se também no trabalho
de Brasil Jr. a ênfase na ideia de leitura em processo e, consequentemente, a
exigência de um novo corpo-a-corpo com os textos e diferentes materiais de
pesquisa cujos nexos intertextuais podem revelar novas camadas de sentidos.
Uma das forças de Passagens para a teoria sociológica está justamente na
ampla pesquisa empírico-documental que lhe dá suporte, realizada durante
quatro anos ou mais em bibliotecas e arquivos em São Paulo, Rio de Janeiro,
Buenos Aires e, em menor escala, nos Estados Unidos. Assim, nexos intertextuais
entre notas de marginalia, e livros publicados, e entre estes e correspondências,
esboços ou anotações de aulas de Florestan Fernandes, por exemplo, ajudam não
apenas a desvendar novas dimensões de significado e sentido das suas ideias,
como também uma aproximação mais matizada aos contextos de suas formula-
ções. Nessa metodologia de pesquisa opera-se a passagem da noção de obra
acabada para a de um movimento de criação ou de artesanato intelectual.1
Já quanto ao segundo aspecto, o livro mostra de modo muito coerente,
contrariando uma das ortodoxias do senso comum acadêmico, que tem sido
possível sim teorizar sociologicamente no Brasil e na Argentina, ou seja, na
periferia do sistema mundial do conhecimento, cuja divisão internacional do
trabalho intelectual parecia nos relegar ao papel social de meros reprodutores
acríticos das teorias centrais consumidas avidamente por aqui. Talvez seja
bom dizer que o livro não propõe nenhuma celebração sobre a condição perifé-
rica, tão comum, no limite, em tempos de estudos pós-coloniais. Mas tampouco,
por outro lado, faz tabula rasa das assimetrias de poder envolvidas para come-
çar na definição do que é ou não teoria sociológica; assimetrias que, se não
replicam simplesmente a divisão geopolítica mais ampla, não lhe são inteira-
mente indiferentes, como querem fazer crer versões mais recentes do cosmopo-
litismo sociológico, para as quais já não haveria centro ou periferia e ainda
menos divisão de papéis entre eles.
1 Sobre essa metodologia ver, por exemplo, o livro de Andre Veiga Bittencourt, O
Brasil e suas diferenças: uma leitura genética de Populações meridionais do Brasil,
também publicado nesta coleção Pensamento político-social.
Nacional por comparação | 13
Antes, o livro tira consequências e, a seu modo, atualiza a ideia tão cara
a certa tradição do marxismo acadêmico uspiano a que, em parte se filia, de que
também na sociologia, i.e., na vida cultural em geral, como noutros sistemas
mundiais, há sempre um desenvolvimento desigual, mas combinado, e que
nada impede a priori que o que parece desvantagem ou atraso, numa conjuntu-
ra, possa se tornar efetivamente vantagem, noutras. Assim, mostra como a
relação de Florestan Fernandes e Gino Germani com a sociologia da moderni-
zação norte-americana não apenas não é da ordem de um consumo passivo de
teoria, como ainda que a aclimatação dela em contextos exógenos — e até
mesmo exóticos — permite potencialmente desnaturalizar os próprios pressu-
postos da teoria central. É isso que mostra especialmente em relação a Talcott
Parsons que, embora não tenha sido um praticante direto da “sociologia da
modernização”, muito contribuiu para seu desenvolvimento, e cujos textos, ao
longo dos anos de 1950-70, apresentam uma teorização cada vez mais com-
plexa e refinada sobre a mudança social, que dá continuidade às principais
pressuposições contidas naquela vertente intelectual, especialmente sua visão
linear e ordeira dos processos históricos.
Assim, especialmente os ajustes históricos implicados nessa aclimatação,
e não especificamente os empíricos ou teóricos como poderíamos esperar de
antemão, ajudam a desvelar o próprio caráter contingente de uma teoria que,
como o funcionalismo de Parsons, se pretendia acima e além da história. Por
exemplo, nas traduções intelectuais ativas de Fernandes e Germani, a concep-
ção parsoniana de que as sociedades modernas convergiriam para um único
padrão societário independente das suas sequencias históricas perde o pé. E de
alguma forma o que num contexto central, o que de fato os Estados Unidos
passaram a ser também para a sociologia no pós-segunda guerra, foi obra
coletiva de diferentes gerações de sociólogos, como sugere a reação da sociologia
macro-histórico-comparada que se lhe seguiu, na periferia teve de ser enfren-
tada pelos mesmos atores, ao mesmo tempo em que eles recepcionavam o fun-
cionalismo. Sem triunfalismos, porém, Brasil Jr. mostra não apenas as dife-
renças entre os contextos brasileiro e argentino em relação ao norte-americano,
como entre eles mesmos, apontando possibilidades e limites de cada um, sempre
em relação aos outros.
Aqui, a passagem de uma versão tão otimista quanto mais ou menos
ingênua das vantagens do atraso para uma visão crítica sobre a tradução
14 | André Botelho
Como seus autores-objetos, num certo sentido, também Antonio Brasil Jr. pare-
ce não ter tido outra saída senão a de, interagindo com suas matrizes teóricas,
reinventar-se e reinventá-las. Aí, certamente, sua contribuição mais signifi-
cativa para a área de pensamento social brasileiro, que, a meu ver, precisa
mesmo assumir a comparação em sua agenda de pesquisas — a comparação
sincrônica, como Brasil Jr. faz, mas também a diacrônica.3 Fronteira analítica
— senão ontológica — ainda a ser transposta nas ciências sociais praticadas no
Brasil, em geral, a comparação suscitará sempre novos problemas e a produção
de novas categorias, acentuando ainda mais o caráter transitório daqueles já
formulados. O que não deixa de ser uma realização da ideia de “dom da eterna
juventude” das ciências sociais, de que fala Max Weber.
— A NDRÉ BOTELHO
Universidade Federal do Rio de Janeiro
3 Em diversas ocasiões, Elide Rugai Bastos tem chamado a atenção para esta
possibilidade, explorada em variadas direções pela chamada “escola sociológica paulista”
(Bastos, 2002). Mais recentemente, a autora retomou o problema: “Do ponto de
vista metodológico, reabre-se uma velha questão: a partir da «periferia» do sistema
social (e não apenas territorial), onde os conflitos sociais se apresentam em sua
pluralidade, o analista encontra-se numa perspectiva que lhe permite visualizar
melhor os problemas, o que nem sempre resulta na ampla sistematização dos mes-
mos. Trata-se de mais uma possibilidade a ser levada em consideração para se refletir
sobre o lugar do pensamento social brasileiro no quadro geral das ciências sociais”
(Bastos, 2011, p. 67).
Introdução | 27
A. S. R. R. F. S. A. L. R. L. S. R. M. S.
Norte-americanos 93 60 56 89 56
Europeus 29 79 31 55 42
Latino-americanos 1 – 75 69 50
Outros 1 2 2 – 5
8 Para uma análise dessa questão no caso brasileiro, cf. Pulici (2008). Para o
caso argentino, cf. Blanco (2006).
Introdução | 33
9 Também no Brasil há em larga medida uma visão que associa Germani sem
mediações ao “estrutural-funcionalismo”, como podemos ver nos trabalhos de Maria
Sylvia C. Franco (1970, 1972, p. 38), Octavio Ianni (1972, p. 80) e de Fernando
Henrique Cardoso & Enzo Faletto (2004, p. 28).
10 Cabe lembrar que, sempre que se mostrou pertinente e necessário, foram
utilizados, além dos livros publicados dos autores, materiais de natureza empírico-
-documental coligidos nos arquivos do Fundo Florestan Fernandes, disponível na
Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), e da biblioteca da Faculdade de Ciên-
cias Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA).
34 | Introdução
resume às instituições que ela nos legou, a maioria delas existente até hoje
— é o caso da Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (Flacso) e do
Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso). Até porque, em-
bora vigentes, estas instituições nem de longe conseguem produzir a mes-
ma adesão à “sociologia latino-americana” tal qual experimentada nas
décadas de 1960 e 1970. Num momento em que a articulação entre as
diferentes sociologias é pensada em novas chaves cognitivas — teorias
“pós-coloniais”, sociologia global, southern theory, etc.3 —, creio que a prin-
cipal contribuição da “sociologia latino-americana” resida no extenso reper-
tório crítico que ela produziu, no qual temas como as relações entre centro
e periferia, dependência científica, “neutralidade” valorativa, os limites do
método monográfico e das técnicas de survey, a associação entre conheci-
mento e ideologia, etc. foram intensamente debatidos.
Este capítulo está dividido em duas partes. Na primeira, traço um
breve panorama da constituição da “sociologia latino-americana”, tal como
a entendo aqui, o que faço principalmente através da releitura de alguns
textos dos protagonistas deste processo. Na segunda parte, recupero as
principais linhas de clivagem que tensionaram o debate a respeito da “so-
ciologia latino-americana”, as quais estão diretamente relacionadas a um
acerto de contas crítico em relação à sociologia norte-americana que então
se difundia mundialmente. Afinal, esta última, ou pelo menos seu main-
stream, constituiu o outro por excelência da “sociologia latino-americana”.
Quando o seu prestígio e sua centralidade declinaram no âmbito mundial,
igualmente refluiu grande parte da força da “sociologia latino-americana”
enquanto empreendimento coletivo.
A “latino-americanização” da sociologia
Como notaram Blanco (2005, 2007) e Trindade et al. (2007), a ins-
titucionalização das ciências sociais na América Latina sempre esteve, em
alguma medida, marcada por impulsos de integração regional. É digno de
nota que a Asociación Latinoamericana de Sociología (Alas) tenha sido a
primeira organização sociológica de caráter regional do mundo, criada em
Modernização ou efeito-demonstração?
Como vimos, a “sociologia latino-americana” começou a se delinear
em fins dos anos 1950, ganhando rapidamente a adesão dos sociólogos da
58 | O problema de uma “sociologia latino-americana”
media terciaria, han sido educados por éstos, se han casado con miem-
bros de otras familias ubicadas en el mismo compartimiento [. . .].
En la medida en que esto es válido, la experiencia social se limita al
sector terciario, de alta clase media urbana, e incluso principalmente
a un estrecho segmento de este sector. De tal modo pocos intelectua-
les, según nuestra experiencia, poseen conocimiento de primera mano
del sector comercial; las distancias sociales son, desde luego, conside-
rablemente mayores que en Europa del norte (Idem, 1965, p. 86).
6 Nos termos de Charles Wright Mills (1965, p. 23): “I want to make it clear
in order to reveal the political meaning of the bureaucratic ethos. Its use has mainly
been in and for nondemocratic areas of society — a military establishment, a
corporation, an advertising agency, an administrative division of government. It is in
and for such bureaucratic organizations that many social scientists have been invited
to work, and the problems with which they there concern themselves are the kind of
problems that concern the more efficient members of such administrative machines”.
64 | O problema de uma “sociologia latino-americana”
which is very different from the North American. This is what hap-
pened for instance with Dilthey and the German historicists. In L.
America we have perhaps too much “imagination” and too little rou-
tine. But perhaps you will think that I am an incorrigible positivist,
which I am not (Transaction-Horowitz Archive, 1.o de abril de 1963).
proceso temporal con una relación muy específica con el país “de-
sarrollado”, con ese mismo país que hoy — como si hoy naciera la
historia — se ofrece generosamente para salvarnos del subdesarro-
llo en que estamos sumidos? ¿Es científico hablar de “desarrollo”
como si se tratara de un valor universal, y olvidar describir el modelo
en forma completa, llamándolo por su nombre científico, a saber,
“desarrollo por parasitismo” o “desarrollo por dependencia”? (Idem,
1962, p. 35).
Até aí, digamos, não há muita novidade. Salta aos olhos, no entanto,
a diferença da leitura de Ianni em relação ao prefácio de Germani a The
sociological imagination: o primeiro não apenas acompanha as críticas de
Mills aos excessos da racionalização da sociologia nos Estados Unidos
como indaga a respeito de suas possíveis consequências em outros contex-
tos. Até porque, esclarece Ianni, “certas manifestações do pensamento so-
ciológico na Inglaterra, na França, na Itália, no Brasil podem ser encaradas
como resultantes diretas ou indiretas das influências exercidas pela socio-
logia instaurada nos Estados Unidos” (Idem, 1971, p. 156). No Brasil, a
influência da sociologia norte-americana teria se expressado relativamente
cedo no âmbito dos estudos de “relações raciais” e nos “estudos de comu-
nidade”. Em relação aos últimos, ele chegou a publicar um artigo a respeito,
intitulado “Estudo de comunidade e conhecimento científico” (1961), no
74 | O problema de uma “sociologia latino-americana”
I. Parsons + Lazarsfeld
A “sociologia da modernização”, cuja sistematização data de fins da
década de 1950, foi o resultado de uma série de inovações paralelas que,
uma vez reunidas, mostraram um elevado poder de difusão e persuasão.
Os seus produtos intelectuais mais típicos — surveys destinados a medir o
grau de modernidade de um grupo ou sociedade — não podem ser enten-
didos sem a conjugação de três elementos: (a) a releitura parsoniana da
teoria clássica europeia, em especial a sua versão da distinção “comunida-
de”/“sociedade”; (b) a expansão e o refinamento das técnicas quantitativas
de pesquisa realizados por Paul Lazarsfeld e sua equipe em Columbia; e
(c) um novo padrão de financiamento às investigações sociológicas, combi-
nando grandes recursos provenientes seja de órgãos governamentais (es-
pecialmente da área de segurança), seja de fundações privadas. A síntese
entre estes três elementos coube a uma série de autores, como Daniel
Lerner, Marion Levy, Bert Hoselitz, Wilbert Moore, Alex Inkeles,1 etc.,
1 Daniel Lerner publicou o que talvez tenha sido o primeiro livro da “sociologia
da modernização” em sentido estrito — The passing of traditional society (1958). Marion
Levy, ex-aluno de Parsons em Harvard, escreveu em dois volumes Modernization and
the structure of societies (1966), no qual contrapunha aspectos das sociedades “relativa-
mente modernizadas” e “relativamente não modernizadas”. Bert Hoselitz foi o autor
de The sociological aspects of economic growth (1960), que conheceu relativa circulação
O moderno e suas semelhanças | 85
nos meios sociológicos latino-americanos. Wilbert Moore, junto com Hoselitz, editou
o importante manual da Unesco Industrialization and society (1960), que reuniu (e
divulgou) diversos textos da “sociologia da modernização”. Sobre Alex Inkeles e suas
pesquisas, teremos a oportunidade de discutir ao longo deste capítulo.
2 “Beyond such direct connections between social scientific argument and
policy design, however, modernization also functioned powerfully as a perceptual
and cognitive framework. In that sense, modernization was often far more than a set
of analytical, instrumental tools used to produce a given outcome. It was also an
ideology that established the connections between mutually reinforcing ideas. Through
its claims to objective, scientific knowledge, modernization gave forcefully expres-
sion to deeply rooted cultural assumptions about America’s ability to project a
nation-building power” (Latham, 2000, p. 70).
3 Para uma visão mais ampla do conjunto da produção de Talcott Parsons, cf.
Alexander (1984), Domingues (2001) e Gerhardt (2002).
86 | O moderno e suas semelhanças
4 “An action in Parsons’ frame of reference acquires meaning for the actor
when he adopts a set of relevant orientations about the situation. Every situation, in
Parsons’ view, presents five pairs of “meaning alternatives”, and the actor’s choice of
one alternative from each pair determines his orientations. Parsons refers to these
pairs of alternatives as pattern variables” (Park, 1967, p. 187). A tradução desta
categoria ao português é extremamente problemática: por isto optei por uma versão
quase literal. José Maurício Domingues, por exemplo, prefere traduzi-la como “variá-
veis de parâmetro”. Para situar o leitor, aqui reproduzo o resumo feito por Domingues
(2001, pp. 51-2) destas variáveis: “Afetividade-Neutralidade afetiva: o ator deve deci-
dir-se, dada uma oportunidade determinada, pela gratificação que esta pode propor-
cionar, sem atenção para as consequências, ou, ao contrário, avaliando-as disciplina-
damente. Auto-orientação-Orientação para a coletividade: estabelece-se a direção da
ação em termos do compromisso do ator com o seu interesse individual ou da solidarie-
dade com o coletivo. [. . .]. Universalismo-particularismo: refere-se à avaliação e ao jul-
gamento dos objetos da situação em termos uniformes e gerais ou em termos de seu
significado para o próprio ator. Performance-atributos: define se um objeto deve ser ava-
liado em termos de seu desempenho ou de suas qualidades inatas. Difusão-especificidade:
implica a extensão e explicitação das obrigações devidas em uma relação, no escopo
de significação do objeto para o ator”.
O moderno e suas semelhanças | 87
Os outros dois tipos societários, que não nos cabe comentar aqui
— o padrão “universalistic-ascriptive”, cuja expressão típica seria a Ale-
manha, e o padrão “particularistic-achievement”, referido sobretudo à Chi-
na “clássica” —, completariam o quadro das principais variações empíricas
da estrutura social. Parsons não descarta a existência de casos de difícil
análise, como os tipos “mistos” ou “transicionais”, mas pouco desenvolve
essas alternativas. A rigor, essa discussão de Parsons é uma versão um
pouco mais complexa e matizada das distinções, que seriam feitas poste-
riormente à exaustão pela “sociologia da modernização”, entre as socie-
dades moderna e tradicional como tipos contrapostos de estrutura social
(Bendix, 1967).
Mas em que medida essas formulações de Parsons foram relevantes
para a “sociologia da modernização”? Em primeiro lugar, pela maior com-
plexidade que os seus cinco pares de “variáveis-padrão” introduzem na
especificação de dicotomias como Gemeinschft/Gesellschaft [comunidade/
sociedade]. Ao “quebrar” esses dois grandes blocos dicotômicos em oposi-
O moderno e suas semelhanças | 89
reunindo-as de novo, ainda que noutro registro. Como vimos, a sua discus-
são sobre a moderna sociedade industrial assinalou que ela é conformada
fundamentalmente por um sistema de papéis orientados para o desempe-
nho [achievement], definidos de maneira afetivamente neutra [affectively
neutral], voltados para tarefas específicas [specific] e regulados por normas
universalistas [universalistic]. Esse tipo societário padronizaria as ações
sociais sempre “escolhendo” um lado dos pares das “variáveis-padrão” —
elas não seriam combinadas de maneira aleatória. Segundo Parsons, have-
ria certos imperativos “estruturais” para que isso ocorresse: uma sociedade
industrial não poderia conviver, por exemplo, com uma estrutura de paren-
tesco que não o da família conjugal, posto que apenas ela seria capaz de
limitar o alcance dos papéis orientados pelo “outro lado” das “variáveis-
-padrão” — particularismo, qualidade, afetividade, etc. — a um nicho espe-
cializado. Quer dizer: a sociedade industrial não seria puramente “societá-
ria”, mas as componentes “comunitárias” nela presentes não dariam a tôni-
ca de seu funcionamento. Em seus termos:
7 Para Adorno (2009, p. 120-1), que integrou o Radio Project quando de seu
exílio norte-americano, a “administrative research” era uma das expressões da reificação
da consciência, embora manifestada no próprio plano das técnicas de pesquisa soci-
ológica. Referindo-se ao seu trabalho com Lazarsfeld, assinala: “Me irritaba en par-
ticular un círculo metodológico: que para asir, según las normas imperantes de la
sociología empírica, el fenómeno de la coisificación cultural debiese uno servirse de
métodos también cosificados, como los que se me ofrecían amenazadoramente en la
forma de aquel program analyzer. Si me veía, por ejemplo, confrontando con la exigencia
de “medir la cultura”, como literalmente se decía, recordaba que la cultura constituye
precisamente ese estado que excluye una mentalidad que lo pudiese medir. En
general, me resistía al empleo indiferenciado de aquel principio, entonces todavía
poco criticado en las ciencias sociales, según el cual science is measurement”.
8 Como nota Lazarsfeld (1962a, p. xv) na introdução de uma compilação de
textos de Samuel A. Stouffer, The American Soldier (1949-50) completou o processo
de legimitação acadêmica da survey research: “By the time that World War II broke
out, attitude surveys had acquired scientific validity, but they were mainly used for
commercial purposes. Stouffer’s monumental work on the American soldier estab-
lished the link between the revolutionary technique and academic sociology”. Cf.
também, Lazarsfeld (1962b).
94 | O moderno e suas semelhanças
O “homem moderno”
A fim de detectar os graus relativos de “modernismo” ou “moderni-
dade” dos indivíduos a serem entrevistados em suas pesquisas, Joseph
Kahl e Alex Inkeles tiveram de construir, analiticamente, um modelo do
“homem moderno”, descrevendo quais seriam as suas características fun-
damentais. Partindo das dicotomias correntes na literatura sociológica, es-
pecialmente das “variáveis-padrão” de Parsons, ambos transformaram os
atributos que em geral definem uma sociedade ou uma personalidade
como tradicional ou moderna em variáveis operacionalizáveis num questio-
nário, de modo que cada resposta pudesse registrar uma pontuação não
ambígua num continuum linear entre estes dois polos. Vejamos, pois, como
cada autor elabora estas variáveis.
Ainda que as variáveis escolhidas por Kahl tenham sido bastante
abrangentes, elas remetiam sobretudo a questões relacionadas com mu-
danças de atitudes em relação ao trabalho e à carreira profissional. As
perguntas do questionário foram confeccionadas em torno de quatorze
eixos, dentre os quais podemos mencionar:
100 |O moderno e suas semelhanças
Uma vez feita a tradução dos valores e atitudes modernos para itens
de um questionário, os autores deveriam definir e justificar os universos
empíricos de suas pesquisas. Num âmbito muito geral, ambos queriam
averiguar se o modelo de “homem moderno” que eles reconstruíram a partir
da bibliografia sociológica resistiria ao teste da empiria, isto é, se os indiví-
duos mais “modernos” de acordo com os seus índices apresentariam, em
todos os países pesquisados, as mesmas características. Noutros termos,
tanto Kahl quanto Inkeles pretendiam investigar se os vários atributos
usualmente utilizados para definir uma personalidade moderna configura-
riam, de fato, uma “síndrome” universal, ou, ao contrário, eles seriam apenas
elementos contingentes de uma determinada forma de cultura, a “Ociden-
tal”. No âmbito mais restrito de cada pesquisa, os critérios usados para
selecionar os seus universos empíricos variou de acordo com os interesses
teóricos de cada um. Kahl priorizou a garantia da representatividade das
amostras nos diferentes níveis da estratificação social e nos diferentes lo-
cais de residência (se no interior ou nas capitais). Ele tinha como hipótese
que altos índices na escala de “modernismo” coincidiriam com níveis eleva-
dos na hierarquia social e ambiente metropolitano. Já Inkeles preferiu in-
troduzir distinções finas entre os distintos grupos de trabalhadores urba-
no-industriais, apesar de não desconsiderar a diferença da origem rural ou
urbana. O sociólogo de Harvard tinha como principal hipótese que a expe-
riência fabril contribuiria para aumentar de maneira consistente o score dos
indivíduos em sua escala de “modernidade geral”.
Britain, Japan (1968), que replicou o mesmo modelo de autoria compartilhada. Mas
seria em Modernization, exploitation and dependency in Latin America: Germani, González
Casanova and Cardoso (1976), livro montado a partir de entrevistas com os sociólogos
listados no título (e que pretendia divulgar o que, a seu ver, constituía o melhor da
“sociologia latino-americana” à época), que a sua abertura teórica perspectivas
alternativas à “sociologia da modernização” atingiria o seu ponto máximo. No entanto,
vale a pena ressaltar que a introdução a The measurement of modernism já traz um certo
toque de ceticismo quanto à validade do estudo ali empreendido por Kahl (1968, p.
ix): “[. . .] I could not hope in so short a time to understand the richness of Brazilian
culture as well as could local scientists, like Juarez Rubens Brandão Lopes, for in-
stance, who already engaged in qualitative studies of new factory workers; I had hopes
of developing some measuring instruments that later could be used in other countries.
So instead of doing a longitudinal and qualitative study, I developed a questionnaire
and generated some statistics, thereby satisfying the expectations of my colleagues at
the Center that I could behave like a typical North American sociologist”.
O moderno e suas semelhanças| 103
Vale ressaltar também o modo pelo qual Kahl procedeu para sele-
cionar as cidades do interior, todas com população entre cinco e dez mil
habitantes. No caso do México, foram analisadas “diversas comunidades
do estado de Hidalgo; algumas possuíam pequenas fábricas têxteis, ou-
tras eram centros de comércio agrícola”; no caso do Brasil, as escolhas foram
feitas “por um acidente feliz”, já que os dois principais assistentes de pes-
quisa procediam de duas pequenas cidades, uma em Minas Gerais e ou-
tra no Rio Grande do Sul — e foram eles que conduziram as pesquisas
nessas localidades, após “terem acumulado experiência com o questionário
no Rio de Janeiro” (Idem, 1968, pp. 25-6).15 Para a escolha das diferentes
empresas e fábricas designadas para garantir a variabilidade das posições
ocupacionais presentes na amostra, o critério não foi o sorteio, mas contatos
pessoais:
15 Joseph Kahl não esclarece, no livro, nem quais eram as cidades, nem o
nome de seus assistentes de pesquisa em cada uma delas.
O moderno e suas semelhanças| 105
They travel, they go to school, they read the newspapers and maga-
zines that come from the metropolis; they listen to the radio. They
may not be participating physically in the life of the big city, but to a
considerable degree they are sharing its mentality. [. . .] they are
experiencing “anticipatory socialization” toward urban patterns
through empathy, in a process that has been vividly described by
Daniel Lerner (Idem, 1968, p. 135).
pela pesquisa diriam menos respeito ao “contraste geral entre valores tradi-
cionais e valores modernos”, e mais às “incongruências comuns aos mo-
mentos de mudança rápida”, quando “o modernismo se propaga através de
padrões inconsistentes e contraditórios”. Embora reconheça que a transi-
ção leva tempo, Kahl acredita existir “uma tendência em prol do equilíbrio”,
e que essa tendência seria “uma das pressões para a mudança social”,
fazendo com que os homens “reajustem todos os seus valores para as novas
circunstâncias” (Idem, 1968, p. 146).
Na pesquisa coordenada por Alex Inkeles, a variável educação apa-
receu, em todos os países, como aquela com maior poder de predição dos
índices de “modernidade geral” [overall modernity, OM]. A correlação, signifi-
cativa em todas as amostras, variou de .34 em Bangladesh a .65 na Índia
— na média, “para cada ano a mais que um homem passa na escola, ele
ganha mais ou menos dois ou três pontos adicionais numa escala de mo-
dernidade de zero a 100” (Inkeles, 1969a, p. 212). No entanto, como essa
evidência empírica já teria sido apontada por diversos outros estudos, o
autor preferiu concentrar-se nos efeitos — menos fortes, mas igualmente
presentes — da fábrica “como uma escola para a modernização”, expressão
cunhada por Inkeles para ser “o slogan do [seu] projeto”.16 As correlações
entre experiência de fábrica e OM estão todas na faixa dos .20, com exce-
ção da Índia, país no qual a correlação alcançou apenas .08 — segundo
Inkeles, essa diferença seria consequência dos problemas da amostra in-
diana, que estava “limitada a onze fábricas”, e “duas destas não eram
verdadeiramente industriais”, mas ligadas ao “processamento de minérios”
(Idem, 1969a, p. 213).
The results support the position of Alex Inkeles that social structure
tends toward convergence in industrial (or industrializing) countries,
creating sets of cultural values that reflect status positions and the
exigencies of life that are associated with them, regardless of previ-
ously different national traditions. [. . .] [It] imply that with respect
to those beliefs most closely associated with the world of work, there
is emerging a world-wide set of institutions reflecting industrial and
bureaucratic modes, and that all modernized cultures accommodate
themselves in parallel ways to these institutional requisites (Kahl,
1968, p. 51).
I affirm that our research has produced ample evidence that the
attitude and value changes defining individual modernity are ac-
companied by changes in behavior precisely of the sort that I believe
give meaning to, and support, those changes in political and econom-
ic institutions that lead to the modernization of nations (Inkeles,
1975, p. 340).
Comparações e contrapontos
Em que pesem as diferenças assinaladas entre as perspectivas de
Joseph Kahl e Alex Inkeles, ambos avançaram um duplo argumento. De
um lado, (a) as diferentes dimensões que caracterizam a “modernidade” em
seu aspecto sociopsicológico — ou seja, no plano dos valores e das atitudes
— estão interligadas entre si de maneira sistêmica, isto é, a presença de
O moderno e suas semelhanças| 119
structures of production are introduced in isolation from the larger economic and
political context in which they appear. The result is a description of the individual
and the factory as atomized elements suspended in a social vacuum. [. . .] There is
no attempt to convey a sense of what the historic circumstances were which pro-
duced contemporary underdevelopment societies in their interpretation. And in the
final analysis, it is less the process of modernization and development in which they
seem interested, than the description of what they regard as the characteristics of
modernity”.
O moderno e suas semelhanças| 121
***
Ao final da leitura dos trabalhos de Joseph Kahl e Alex Inkeles,
ficamos com uma sensação ambivalente. Por um lado, não deixam de ser
admiráveis algumas soluções aventadas para resolver problemas metod-
ológicos específicos, bem como a amplitude das amostras como um todo.
Por outro, temos também a sensação de que o enorme esforço empreendido
nessas pesquisas joga pouca luz nos processos que eles pretendiam es-
clarecer. Como o próprio Kahl diz à certa altura de The measurement of
modernism: “[. . .] amigos cínicos me acusaram de ter trabalhado duro para
provar o óbvio” (Kahl, 1968, p. 136). Do ponto de vista do debate promo-
vido pela sociologia latino-americana contemporânea às duas pesquisas
aqui analisadas — lembrando que o trabalho de campo das duas começou
no início da década de 1960 —, os resultados obtidos pouco avançaram na
produção de conhecimento relevante: só para dar um exemplo significativo,
embora a equipe de Inkeles tenha entrevistado mais de oitocentos indi-
víduos na Argentina (e cada entrevista durava, em média, quatro horas!),
não há nenhuma reflexão a respeito do “peronismo” — e, mais digno de
122 |O moderno e suas semelhanças
nota ainda, a palavra nem sequer aparece nos inúmeros artigos e livros de
Inkeles. Sabemos que o “peronismo” se constituiu como assunto obrigatório
para qualquer análise do processo de mudança social naquele país. Mesmo
que Kahl possa ter levantado algumas sugestões pertinentes acerca dos
padrões culturais no Brasil, em contraste com o México — e, curiosamente,
essas sugestões não foram feitas a partir do survey, mas de seu contato
pessoal com as duas sociedades —, tampouco somos esclarecidos se o pro-
cesso de modernização é compatível ou não com formas autoritárias de
poder político, ou se ele gerará maior democratização nas relações entre
brancos e negros.
Essas formulações de Kahl e Inkeles, que podemos tomar, em certa
medida, como representativas da “sociologia da modernização” produzida
nos Estados Unidos, parecem girar no vazio devido à visão linear que elas
pressupõem existir na relação entre valores, atitudes e estrutura social,
como se a “síndrome moderna” se realizasse num vazio de relações sociais,
acarretando os mesmos efeitos independentemente do tempo e do espaço.
Esta “linearidade” histórica, longe de ser apenas consequência dos resulta-
dos “empíricos” dessas pesquisas, foi na verdade um princípio que orientou
praticamente todos os procedimentos adotados pelos autores, seja no re-
corte dos universos empíricos, seja na construção das escalas, seja no critério
comparativo adotado. À luz de uma matéria social tão variada — lembre-
mos que Inkeles realizou pesquisas em seis países situados em três conti-
nentes diferentes —, a utilização de uma mesma escala de “modernidade”
não poderia acarretar senão uma imagem muito simplificada da estrutura
social de cada país. Afinal, ela não nos permite tratar de grupos sociais
específicos, historicamente localizáveis e em relações de conflito, mas ape-
nas de somatórias abstratas de indivíduos, cuja caracterização nos permite
dizer apenas que alguns são mais “modernos” que outros num mesmo país.
E, em termos de dinâmica histórica, essa forma de entendimento da mu-
dança social é muito pouco sensível a quaisquer contingências: ela se limita
a afirmar a “universalidade” de certas causas que estariam elevando de
maneira consistente a adesão aos valores “modernos”.
Em resumo, a “sociologia da modernização”, uma espécie de síntese
do que havia de mais prestigioso na sociologia norte-americana de seu
tempo — as formulações de Talcott Parsons e as técnicas de pesquisa de
O moderno e suas semelhanças| 123
(p. 217) A esse respeito, o autor publicou apenas dois artigos: “A aculturação dos
sírios e libaneses em São Paulo” (1956) e “O Brasil e o mundo árabe” (1967). No
entanto, no “Fundo Florestan Fernandes”, disponível na Universidade Federal de
São Carlos (Ufscar), há abundante material coletado pelo autor, como jornais, ques-
tionários, histórias de vida (incluindo uma de Azis Simão, colega de Fernandes na
USP) e até provas de alunos. Em 1949, como parte dos exames do primeiro ano do
curso de ciências sociais, Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni escreveram,
respectivamente: “Contribuição para o estudo de uma família síria; estudo de uma
personalidade marginal” e “Contribuição ao estudo sociológico da família síria: reli-
gião e miscigenação”. Por esses dois trabalhos, nos quais abundam referências a
Emilio Willems (A aculturação dos alemães no Brasil, publicado no ano anterior), Robert
Park e Everett Stonequist (autor de The marginal man), podemos ter uma dimensão
mais concreta da importância que a pesquisa sobre os sírio-libaneses assumiu para
Fernandes tanto na esfera da pesquisa quanto na docência.
4 Não seria a primeira vez que Gino Germani trabalharia na confecção de um
survey. De modo quase amadorístico, ele atendeu à solicitação de Ricardo Levene,
diretor do Instituto de Sociologia da UBA nos anos 1940, para a realização de uma
pesquisa sobre a “classe média” em Buenos Aires. Como disse em entrevista a Joseph
Kahl (1976, p. 28), Germani não recebeu nenhuma orientação de Levene: “[. . .]
the professor would assign us some subjects, like a study of the middle class, but he
gave no orientation and the students did it their own way. [. . .] I got something from
the U.S. Bureau of Labor Statistics, and compared Chicago and Buenos Aires; I
found the American material in the library of the Ministry of Labor, almost by
accident. [. . .] I was just searching for models; I didn’t have any formal methodology
at the time. Then a little latter we prepared a questionnaire, and did one of the first
128 |O imigrante e seus irmãos
A dimensão histórica
Nos dois livros de Florestan Fernandes que se originaram direta-
mente das pesquisas sobre as relações raciais em São Paulo, Brancos e
negros em São Paulo (em parceria com Roger Bastide) e A integração do
negro na sociedade de classes, não só o recurso ao passado ocupa um peso
central na explicação,7 como a sua reconstrução tem alcances distintos em
cada um, como veremos mais à frente. No primeiro, o autor especifica o
papel econômico e social desempenhado pelas populações negras desde o
começo da colonização do planalto paulista, ressaltando de que o modo a
escravidão, no período posterior à decadência da mineração, agiu como um
“fator social construtivo” (Fernandes, 2008a, p. 42), ou seja, criou as bases
8 A esse respeito, cf. a reconstrução feita por Elide Rugai Bastos (1987) dos
argumentos de Fernandes sobre a dinâmica de ressocialização. Neste texto, ela
afirma que a “discussão sobre a socialização ultrapassa o nível explicativo meramente
psicossocial. [. . .]. Mostrando que o negro é expulso não apenas da estrutura de
trabalho tipicamente capitalista mas do sistema contratual como um todo, Florestan
Fernandes aponta para os obstáculos à conquista dos direitos de cidadania” (pp. 144-5).
132 |O imigrante e seus irmãos
Ainda que repelisse “as condições de vida que não fossem «decentes»”, o
imigrante “percebia com clareza que somente vendia sua força de traba-
lho”, ao passo que os negros “se ajustavam à relação contratual como se
estivessem em jogo direitos substantivos sobre a própria pessoa” (Idem,
2008b, 46). Como assinala o autor, os negros,
10 Para uma análise deste projeto político, cf. Halperín Donghi (2007).
11 Apesar da crítica negativa de Germani ao “ensaísmo” argentino, incluindo
a produção de José Luis Romero (a quem critica, neste texto, em nota de rodapé),
essa forma de reconstrução do passado argentino tem algumas afinidades com a
visada histórica proposta por este último. Porque também para Romero, com quem
Germani dividia a responsabilidade do projeto “El impacto de la inmigración masi-
va. . .”, seria possível distinguir uma Argentina “criolla”, de corte marcadamente
rural e tradicional, e uma Argentina “aluvial”, cada vez mais urbana e europeizada,
sendo justamente o “aluvião imigratório” o principal responsável por esta transmuta-
ção histórica. Para uma análise da noção de “aluvião imigratório” e suas relações com
o ensaísmo argentino, cf. Altamirano (2005). Para uma comparação entre as formu-
lações de Romero e Germani a respeito da “imigração massiva”, cf. Blanco (2009).
134 |O imigrante e seus irmãos
15 Nesse sentido, Elide Rugai Bastos (1996) nos ajuda a pensar — embora no
texto em questão trate de Octavio Ianni — que, em mais de um sentido, as formu-
lações de Fernandes ultrapassaram o marco funcionalista mais convencional do perío-
do, como a tese da “demora cultural”. Isso porque existiriam, em sua análise, “ele-
mentos totalizadores da explicação”, não sendo “por acaso que as diferentes esferas do
social desenvolvem-se de forma descompassada” (p. 90). Duarcides Mariosa (2003),
ao percorrer as pesquisas de Fernandes sobre os negros em São Paulo e sobre os
Tupinambá, chama a atenção para a inovação teórica aí realizada, dado o uso criativo
noção de “integração” num registro em que convivem formas de exclusão e de
hibridismo. Também no que se refere a Germani, Alejandro Blanco atenta para a
lógica de apropriação bastante heterodoxa das formulações da sociologia da moderni-
zação (especialmente as de Talcott Parsons) pelo autor de Política y sociedad en una
época de transición. Além disso, posteriormente Germani (1973) tratou do tema da
marginalização e de seu estatuto teórico na sociologia.
138 |O imigrante e seus irmãos
Essa relação foi decisiva não só na maneira pela qual foi levada a
cabo a pesquisa, mas também porque, em mais de um sentido, a própria
armação do argumento desenvolvido ao longo do livro é um espécie de
diálogo crítico, embora mediado pelas categorias sociológicas, com as re-
presentações coletivas desenvolvidas no interior da coletividade negra.
Exemplificando: na discussão sobre a existência ou não do “preconceito de
cor”, questão que polarizou a bibliografia referida sobre o tema, Fernan-
des trabalha o problema num duplo registro: num plano, o “preconceito de
cor” funciona como uma noção sociológica, mobilizada pelo autor ao lado
de outras; noutro, como uma “categoria histórico-social”, forjada no seio
das próprias organizações da população negra e difundida por meio de
sua imprensa periódica. Nesse sentido, diz Fernandes que a noção de
“preconceito de cor” atuava também como “uma categoria inclusiva de
pensamento”, isto é, como uma categoria que permitia aos negros “desig-
nar, estrutural, emocional e cognitivamente, todos os aspectos envolvi-
dos pelo padrão assimétrico e tradicionalista de relação racial” (Idem,
2008c, p. 44). Noutras palavras, a “contraideologia” racial elaborada pelos
movimentos negros é ela mesma incorporada, ainda que apontando os seus
limites e recalibrada pela explicação sociológica, nas formulações de Fer-
nandes.18
No caso da pesquisa liderada por Germani na Grande Buenos Aires,
a escolha do survey como instrumento metodológico já de saída se explica-
ria pelas possibilidades de estabelecer comparações precisas com outras
trajetórias nacionais. Desenhado no âmbito de uma pesquisa mais ampla
patrocinada pelo CLAPCS sobre “Estratificação e mobilidade social em
quatro capitais latino-americanas” (Costa Pinto, 1959), embora também
servisse para fornecer os dados para a pesquisa sobre a “Assimilação de
aventada pelo autor para explicar essa divergência seria a natureza distin-
ta dos setores médios “recentes”, que exigiriam maior nível de escolarida-
de. Contrastando o período da migração interna com o da imigração exter-
na, afirma:
classificação social dos negros em São Paulo, diz Germani que àqueles lhes
“corresponderam os lugares menos favorecidos”. Ainda que estejam “pro-
vavelmente repetindo”, embora num “ambiente distinto e talvez mais difí-
cil, a experiência de seus predecessores” (Idem, 1962b, p. 224), isto é, os
imigrantes estrangeiros, a escalada dos grupos migrantes internos se limita-
ria aos primeiros degraus da pirâmide social. Germani não esclarece, neste
momento, se os grupos recém-imigrados passarão, com o tempo, a uma
situação de integração mais ou menos completa às pautas modernas de
comportamento, mas sugere que o caminho deles será mais complicado.
respeito das razões pelas quais os grupos de imigrantes não teriam conse-
guido abrir o sistema de dominação conformado pelas antigas elites senho-
riais. Pela própria posição ocupada na sociedade de classes, diz Fernandes,
os imigrantes e seus descendentes se situavam como “um dos polos huma-
nos do desenvolvimento da ordem social competitiva”, parecendo-lhe “ób-
vio que daí poderia ter nascido uma oposição ferrenha à dominação das
antigas elites” (Fernandes, 2008b, p. 322). Contudo, em vez de um choque
antagônico, teria ocorrido “uma sorte de acomodação mecânica de interes-
ses paralelos”. Para o autor:
imediata para elas”. Desse modo, “as velhas elites contaram com um tempo
de quase três gerações de domínio absoluto, ao sabor do antigo regime, e só
então começaram a sofrer os efeitos diretos ou indiretos da presença de
outros interesses organizados na luta pelo poder”. Essa situação histórica,
algo desconcertante, permitiria ao autor esclarecer “por que a substituição
populacional [isto é, a imigração] foi tão importante para a diferenciação da
ordem socioeconômica, refletindo-se quase nada nas estruturas políticas e
no clima moral da sociedade inclusiva” (Idem, 2008b, p. 324).
Nesse ponto, reveste-se de interesse a comparação com os argumen-
tos de Germani sobre a escassa participação política dos imigrantes. Não
obstante a enorme gravitação destes nos setores mais dinâmicos da economia
argentina, assim como as novas possibilidades de participação política ins-
titucionalizada a partir de 1916, quando, aproveitando-se da reforma polí-
tica, sobe ao poder um partido representante das classes médias, a Unión
Cívica Radical (UCR, também conhecida como “radicalismo”), o peso po-
lítico efetivo desses setores teria sido bastante diminuído em virtude da
própria condição de “estrangeiro” (o que lhes retirava os direitos políticos).
É claro que Germani não deixa de apontar para a importância da ação dos
imigrantes nos “grandes movimentos de protesto das primeiras décadas do
século”. No entanto, ressalta que “é muito provável que os efeitos políticos
da aparição dos estratos médios se vissem consideravelmente retardados
por sua formação principalmente estrangeira”, o mesmo acontecendo com
as classes populares: “o fracasso na formação de um partido capaz de re-
presentá-la politicamente obedeceu muito provavelmente a razões seme-
lhantes” (Germani, 1965b, p. 221). O autor ainda calcula que em termos
eleitorais isto significava que “entre 50% e 70% dos habitantes se encon-
trava à margem de seu exercício legal” (Idem, 1965b, p. 220), tornando o
país “eleitoral” bastante distinto do país “real”. Em sua hipótese, o fato de
que justamente os setores mais “modernizados” tivessem limitado ou anu-
lado o seu acesso aos canais políticos teria feito do “radicalismo”, um ator
histórico pouco comprometido com as transformações estruturais requeri-
das na Argentina, o protagonista deste período:
***
Na primeira parte deste trabalho, analisamos algumas pesquisas
empíricas realizadas tanto pela “sociologia da modernização” — mais espe-
cificamente, por Joseph Kahl e Alex Inkeles — quanto por Florestan Fer-
nandes e Gino Germani. Neste momento, é possível delinear quais são as
diferenças mais significativas entre a produção feita pelos dois primeiros em
relação aos textos de Fernandes e Germani que discutimos aqui. Não creio
que as principais diferenças se situem no plano dos assuntos tratados, que,
com efeito, são equivalentes: todas as pesquisas se debruçaram sobre os
processos de modernização das sociedades brasileira ou argentina. No
mesmo sentido, as quatro pesquisas, a despeito da variedade de posições
teóricas existentes entres os autores, mobilizaram um vocabulário socioló-
gico mais ou menos afim, baseado na conexão entre certas variáveis —
urbanização, industrialização, etc. — e a modernização das condutas de
certos grupos sociais. No entanto, essas aproximações entre as pesquisas de
Fernandes e Germani e as da “sociologia da modernização” não devem
obscurecer a percepção dos principais deslocamentos operados em relação
àquela matriz teórica.
Em primeiro lugar, tanto Fernandes quanto Germani tensionaram a
perspectiva “sistêmica” de que o processo de modernização geraria sempre
os mesmos efeitos independentemente dos contextos sociais e das trajetó-
rias históricas particulares. Não por acaso, os dois tiveram de incorporar a
dimensão histórica como uma componente explicativa em seus argumen-
tos, já que a modernização não parecia seguir um caminho em linha reta.
Antes, as desigualdades legadas pelo passado eram reencontradas no seio
154 |O imigrante e seus irmãos
etc.) nas instituições sociais. Além disso, foi pioneiro no uso das novas técnicas
estatísticas na mensuração dos fenômenos sociais, fenômeno que apenas se generali-
zaria a partir do ação institucional e intelectual de Paul Lazarsfeld em seu Bureau.
Também se tornou conhecido pela publicação de manuais como Sociology, este último
traduzido ao castelhano pela editora madrilenha Aguilar. Para maiores informações
a respeito de Ogburn, cf. Huff (1973) e Laslett (1991).
2 “The thesis is that the various parts of modern culture are not changing at
the same rate, some parts are changing much more rapidly than others; and that
since there is a correlation and interdependence of parts, a rapid change in one part
of our culture requires readjustments through other changes in the various correlat-
ed parts of culture” (Ogburn, 1922, pp. 200-1).
160 |Assincronia e demora
3 Como assinala Parsons em sua monografia escrita a quatro mãos com Edward
Shils, “Values, motives and systems of action” (1962: 232): “There are, furthermore,
powerful tendencies, once the ethos of science is institutionalized in a society
sufficiently for an important scientific movement to flourish, to render it impossible
to isolate scientific investigation so that it will have no technological application.
Such applications in turn will have repercussions on the whole system of social
relationships. Hence a society in which science is institutionalized and is also assigned
a strategic position cannot be a static society”. No fundo, trata-se de uma releitura,
em seus próprios termos, da hipótese da cultural lag desenvolvida por William F.
Ogburn ainda na década de 1920 (cf. Parsons, 1964a: 505).
Assincronia e demora| 161
4 “[. . .] In the broadest terms it would seem that the development has
strongly accentuated the general trend to isolation of the conjugal family, above all
because professionalization and bureaucratization have both operated to accentuate
the universalistic-specific-achievement pattern of an increasingly large proportion of
occupational roles. [. . .] This obviously means that family and occupational unit
must be sharply segregated, and that the process of allocation of personal within the
occupational system must be relatively independent of kinship solidarities” (Parsons,
1964a, p. 510).
5 Trata-se do fenômeno que Parsons chama de vested interests, isto é, o interes-
se (no sentido amplo do termo) criado pelos autores na conformidade com as expec-
tativas previamente institucionalizadas, que por sua vez estariam conectadas — se-
gundo o teorema da “internalização” que ele toma emprestado de Freud — às
gratificações esperadas pelo sistema da personalidade. Para o autor, uma sociedade que
passa por uma mudança acelerada necessita lidar de maneira crônica com os vested
interests: “A society where rapid technological change is going on would be expected
to show many signs of strain centering about this process, and of defensive behavior
on the part of groups which are threatened with the supersession or less drastic
upsetting of their established ways. This may indeed be interpreted as one of the
primary sources of the «security mindedness» which is so prominent in certain
sectors of our society” (Parsons, 1964a, p. 507).
162 |Assincronia e demora
In the first place, all Western societies have been subjected in their
recent history to the disorganizing effects of many kinds of rapid
social change. It has been a period of rapid technological change,
industrialization, urbanization, migration of population, occupation-
al mobility, cultural, political and religious change. As a function of
sheer rapidity of change which does not allow sufficient time to “set-
tle down”, the result is the widespread insecurity — in the psycho-
logical, not only the economic sense — of a large proportion of the
population, with the well-known consequences of anxiety, a good
deal of free-floating aggression, a tendency to unstable emotional-
ism and susceptibility to emotionalized propaganda appeals and
mobilization of affect around various kinds of symbols. If anything,
this factor has been more prominent in Germany than elsewhere in
that the process of industrialization and urbanization were particu-
larly rapid there. In addition, the strain and social upset of the last
Assincronia e demora| 163
war were probably more severe than in the case of any other bellig-
erent except Russia (Idem, 1964b, pp. 117-8).
“Assincronia” e catástrofe
Em 1944, Gino Germani publica no Boletín do Instituto de Sociolo-
gía da Universidad de Buenos Aires o artigo “Anomía y desintegración
social”, um de seus primeiros trabalhos teóricos. Nesse texto, ele passa em
revista diferentes visões sociológicas a respeito dos problemas de integra-
ção social no mundo moderno, começando pelas noções de “anomia” for-
muladas por Émile Durkheim e Maurice Halbwachs, passando pelos tra-
balhos de William I. Thomas e Florian Znaniecki (da “Escola de Chicago”),
sobre os processos de “desintegração social”, até chegar às questões coloca-
das por Karl Mannheim e Erich Fromm acerca das formas “totalitárias” de
ajustamento social. Ao percorrer esse extenso arco de autores e perspecti-
vas, Germani se posiciona no interior do debate referido à “crise contempo-
rânea”, como ele e outros a denominavam. O seu ponto específico, nesse
texto, é ressaltar que os efeitos “desintegradores” experimentados pelas
sociedades modernas (a ele) contemporâneas não poderiam ser tomados
como um traço estrutural deste tipo de sociedade. Eles seriam antes de um
processo de “demora cultural”, isto é, uma consequência da não universali-
zação do “espírito moderno” para toda a sociedade:
10 Uma análise muito bem cuidada a este respeito, e que mobiliza uma enor-
me quantidade de material empírico-documental, pode ser encontrada em Blanco
(2006).
Assincronia e demora| 167
pela primeira vez em 1962, mas que reúne textos também da década
anterior, Germani expõe as suas proposições mais gerais no que tange ao
estudo da mudança social.11 Embora a noção de “demora cultural” esteja aí
presente em diversos momentos, ele prefere designá-la a partir do termo
mais amplo assincronia, posto que ele permitiria dar conta dos “atrasos” de
todo e qualquer tipo, sejam eles de ordem cultural, econômica, ou so-
ciopsicológica. No entanto, o termo atraso requer, logo de saída, uma justifi-
cação sobre o sentido dos processos de mudança. Afinal, quais são os crité-
rios usados para avaliar o que está atrasado, o que está avançado e o que
está sincronizado? Neste particular, Germani é bastante atento aos riscos
de se reificar os “modelos de referência”, já que eles sempre trariam consigo
alguma carga valorativa. Assim, ao enunciar o que ele chama de “juízos de
funcionalidade” (Idem, 1965a, pp. 42-3), isto é, a avaliação acerca do rela-
tivo “ajuste” ou “desajuste” de determinada esfera social em relação à so-
ciedade global em mudança, o sociólogo deveria sempre, em seu entender,
explicitar as suas escolhas teóricas. Em seu caso, Germani analisa as “assin-
cronias” a partir das tipologias, convencionais àquela época, que contras-
tavam uma “sociedade tradicional” a uma outra “sociedade moderna”,12
11 Estes capítulos, que deram azo para toda uma série de acusações quanto à
adesão irrestrita de Germani às teses de Parsons, eram originalmente material didático
usado pelo autor em seus cursos na Universidade de Buenos Aires — e, no caso do
terceiro capítulo, ele era uma compilação de uma série de intervenções de Germani nos
congressos de sociologia da região. Esta ressalva é importante, conforme nos lembra
Alejandro Blanco, para que possamos situar de maneira correta a recepção das teses
de Parsons por Gino Germani. Continuando aqui o movimento iniciado por Blanco
no artigo “Política, modernización y desarrollo: una revisión de la recepción de Talcott
Parsons en la obra de Gino Germani” (2003), pretendo mostrar como há diferenças
fundamentais entre Germani e Parsons até mesmo nos textos considerados como os
mais “parsonianos”. Apesar dos trabalhos bem documentados de Blanco a este respeito,
a adesão de Germani ao “parsonianismo” continua uma questão polêmica, como pode-
mos ver no artigo de Carlos Acevedo Rodríguez, “Germani y el estructural-funcionalis-
mo, evolucionismo y fe en la razón: aspectos de la involución irracional” (2009).
12 Gino Germani (1965, p. 116) chama a atenção para “as limitações e os
perigos de semelhante esquematização, que são os de toda tipologia”, haja vista que
ela minimiza, dentre outras coisas, as variações internas a cada tipo de sociedade.
Em seus termos: “[. . .] por un lado, carecemos todavía de formulaciones claras que
permitan construir una tipología de la sociedad industrial «en general», capaz de
incluir, como variedades, los diferentes tipos de sociedad industrial que han ido
apareciendo hasta el presente; en segundo lugar, la intención del esquema [. . .] era
sobre todo la de su posible aplicación a los países de América Latina y a la Argentina en
particular, y para este propósito, el modelo ‘occidental’ parecía el más adecuado históricamente”
168 |Assincronia e demora
hipótesis de que una sociedad compleja por definición funciona sin consenso de
valores — como afirmaría Niklas Luhmann — pero en todo caso no veía que la
historia corriera, de acuerdo al sentido común funcionalista (pero también al marxis-
ta) por carriles científicamente predecibles, pues la modernización podía seguir
trayectos variados y contradictorios”.
172 |Assincronia e demora
social que lhe seja inerente ou para qual tenda de forma irreversível” (Idem,
1979, p. 317). À primeira vista, essa formulação parece indicar, como sugere
a expressão “de forma irreversível”, que o autor está confiante de que, a
despeito de seus arcaísmos e desigualdades, a sociedade brasileira poderia
realizar, pelo menos a longo prazo, as potencialidades inscritas na “socie-
dade de classes”. Mas que potencialidades seriam estas? Assim Fernandes
expõe a questão:
***
Vimos neste capítulo os primeiros resultados teóricos da “aclimata-
ção” da “sociologia da modernização” nos textos de Gino Germani e Flo-
restan Fernandes. Mesmo concentrando a análise tão somente nos textos
dos autores, pudemos localizar de que modo as suas inscrições específicas
em contextos sócio-históricos problemáticos lhes permitiram colocar, no ní-
20 Como nos mostra Ana Alejandra Germani na biografia que escreveu sobre
o seu pai, Gino Germani sofreu ameaças constantes à sua liberdade ao longo de toda
a vida. A começar pelo confinamento, ainda muito jovem, na ilha de Ponza, na Itália,
em virtude de suas atividades antifascistas. Depois, já na Argentina, a derrota do
fascismo tampouco o livraria de ameaças: “El destino de Gino Germani parecía ser el
de huir de una tiranía para caer en otra. Con la derrota del fascismo, logra por fin
liberarse de la supervisión policial que ejercía el régimen a través de la embajada
italiana en Buenos Aires. La libertad durará poco. En cuanto el peronismo accedió al
poder, Germani fue uno de los primeros en ser alejado de la Universidad, «censura-
do» como intelectual y directamente despedido de todos sus cargos junto con tantos
otros profesionales, autoridades académicas y estudiantes que se opusieron al nuevo
régimen” (Germani, 2004, p. 101). Em entrevista a Joseph Kahl, Germani afirmou
que, desde a sua prisão na Itália, a questão da liberdade passaria a ser uma dimensão
fundamental em suas reflexões: “I remember the first day I was put in jail — what
was impossible to understand, even to conceive, was that someone should be put in
jail because he thought something. The central question for me became freedom”
(Kahl, 1976, p. 25).
186 |Assincronia e demora
isto não quer dizer que ele tenha capitulado na defesa de uma ordem social de corte
tão estamental. Sempre crítico à ideia de que “direitos” e “favores” são intercambiáveis,
Fernandes — justamente por saber da precariedade da noção de “direitos” numa
sociedade que não queria se despir dos privilégios do “antigo regime” — faz da
pergunta sobre a “universalização” dos direitos o seu ângulo permanente de observa-
ção da “sociedade de classes”.
Capítulo
188 |Dilema 5
e paradoxo
Dilema e paradoxo
3 Nos termos de Beatriz Sarlo e Carlos Altamirano (2007, 23): “El derroca-
miento del peronismo en 1955 llevó al debate todas las cuestiones y planos de la
existencia nacional. Si, como había escrito José Luis Romero en 1951, las masas no
renunciarían ya al progreso que habían alcanzado bajo Perón y sería «ineficaz cualquier
planteo que se haga retrotraer su situación a la de hace diez o veinte años atrás»,
¿cuál debía ser la fórmula del posperonismo, dado que quienes tenían el poder
tampoco permitirían el retorno del régimen que acababan de abatir? Toda discusión
intelectual en torno del significado del peronismo, que sucederá al momento de la
euforia triunfante, estará regida por esta problemática política”.
Dilema e paradoxo| 197
4 Para uma análise detalhada das relações entre os membros das associações
do “meio negro” em São Paulo e os sociólogos da Universidade de São Paulo (com
Florestan Fernandes em seu núcleo), cf. a tese de doutorado de Mário Augusto M.
da Silva (2011). Para uma análise da produção de Fernandes em torno da Campanha,
cf., do autor, Educação e sociedade no Brasil (1966), e a tese de doutorado de Débora
Mazza (1997).
5 Se, por um lado, a metropolização de São Paulo se conectou a um dinamis-
mo até então inaudito no campo da produção cultural — e a sociologia de Florestan
Fernandes seria um de seus produtos mais significativos (Arruda, 2001) —, por
outro, as relações da cidade com a esfera política são mais labirínticas. Nesse parti-
cular, a literatura é vasta e seria ocioso querer dar conta das complicadas relações
entre o desenvolvimento industrial de São Paulo nos anos 1950 e o seu aparente não
predomínio político na República de 1945. Uma boa revisão desta literatura, que
passa por autores como Simon Schwartzman, Eduardo Kugelmas e Gildo Marçal
Brandão, pode ser encontrada na dissertação de Fabrício Vasselai (2009). Nesse
trabalho, ele sugere, ou retoma, uma série de hipóteses sobre a pouca penetração dos
grandes partidos nacionais em São Paulo, como o antigetulismo de sua elite política
— o que teria debilitado o PSD — ou os receios de Vargas quanto à movimentação
autônoma dos trabalhadores paulistanos — o que teria tirado poder do PTB local.
Ainda, é claro, a existência do PSP de Adhemar de Barros constituía um travo à
efetiva “nacionalização” da política partidária de São Paulo. Seguindo as pegadas de
Brandão, Vasselai mostra igualmente como “a trajetória do PCB ao ser ilegalizado
contribui sobremaneira para castrar uma das principais possibilidades de quadros
198 |Dilema e paradoxo
nacionalizáveis que restaria a São Paulo” (p. 24). O que me parece decisivo, nessa
questão, é menos dar conta do processo “real” e mais chamar a atenção para a pouca
penetração do tema da política partidária como questão sociológica para Florestan
Fernandes e seu grupo, apesar de existirem estudos — poucos, é verdade — nas
outras cadeiras da USP, como no trabalho de Azis Simão sobre o “voto operário” em
São Paulo ou nas pesquisas de Oliveiros Ferreira. Para uma análise do “atraso” na
formação de uma “sociologia política” em São Paulo (ou melhor, no grupo nucleado
em torno de Florestan Fernandes), cf. o artigo de Basilio Sallum Jr. (2002).
Dilema e paradoxo| 199
dente, que realiza progressos tardios e mitigados, através de penosos esforços de imita-
ção” (Fernandes, 1966, p. xxii). “Isso nos coloca diante de uma escolha sem alterna-
tiva. Ou admitimos que o povo constitui a fonte dos dinamismos essenciais ao equilí-
brio e ao aperfeiçoamento da democracia, e trabalhamos nesta direção, ou nos man-
teremos «atrasados» e «dependentes» em relação às nações de que recebemos, aos
trambolhões, um «progresso» de teleguiados à distância” (Idem, 1976, p. 225, grifos do
autor). Como fica claro nesta última passagem, Fernandes “monta” um dilema, mas
tem clareza sobre a “opção” a tomar. Clareza, no entanto, que não estaria necessaria-
mente presente no “horizonte prático” dos homens de ação. Aliás, ele entende a sua
proposta de “sociologia aplicada” justamente como uma tentativa de promover critérios
“científicos” de “opção”, capazes de clarificar o horizonte prático do homem comum
na reconstrução “racional” da sociedade de classes. Em seus próprios termos: “Ao
envolverem-se em movimentos sociais, os sociólogos não só podem conhecer melhor a
natureza, os fundamentos e as perspectivas de semelhante dilema. Eles ficam sabendo
por que ele não tem sido combatido com êxito, como modificar o estilo de intervenção
do leigo para atingir esse fim e, principalmente, quais seriam as técnicas sociais
recomendáveis para alterar, ao mesmo tempo, a mentalidade dos homens e a estru-
tura da situação” (Idem, 1976, p. 133). Os movimentos sociais, além disso, possui-
riam um sentido heurístico porque chamariam a atenção para a tensão que é constitutiva
da sociedade, acionando o conhecimento sobre a mesma (Bastos, 2002p. 201).
7 Germani, assim como Fernandes, promoveu a ideia do planejamento demo-
crático como uma forma de reconstrução racional da sociedade moderna num con-
texto de “crise” — e aqui a referência mannheimiana é explícita (Germani, 1962c).
No entanto, a emergência do “fato peronista” causou um grande debate e desorienta-
ção na intelectualidade argentina a respeito da “natureza” desse movimento —
debate que, até hoje, está longe de ser encerrado. O panfleto de Ezequiel Martínez
Estrada, ¿Qué es esto? (1956), como o próprio nome indica, é significativo nesse
sentido. Mas, a meu ver, esta sensação de desconcerto atingiu uma de suas expressões
literárias mais marcantes no romance Los premios (1960), de Julio Cortázar. Aí, um
cruzeiro contendo diferentes tipos sociais representativos da sociedade argentina é
conduzido por uma tripulação estrangeira, que, ao invés de levar os seus passageiros
à Europa, toma o caminho do Oriente — para, no final, ficar à deriva na costa
argentina.
Dilema e paradoxo| 201
porque ele teria se dado conta de que a adesão aos valores de uma “ordem
social democrática” por parte dos segmentos “cultos” das camadas domi-
nantes seria mais superficial que o previsto, coadunando-se com interesses
profundamente “egoísticos” e “particularistas”. Noutras palavras, os setores
supostamente ajustados e adaptados ao horizonte cultural da “sociedade
de classes”, apesar de “verbalmente” afinados com os seus fundamentos
morais, poderiam permanecer agindo “irracionalmente” (à luz daqueles
valores) em prol da manutenção do statu quo — haveria, portanto, uma
“racionalidade” aparente que encobriria uma “irracionalidade” de fundo.
Assim, em sua “endoscopia” da sociedade brasileira, Fernandes teria che-
gado à seguinte percepção:
democrática” por parte dos círculos sociais dominantes. Ela não passaria, a
rigor, de uma forma de “compensação simbólica”, isto é, seria apenas epi-
dérmica e superficial — não levaria às últimas consequências as exigências
de universalização dos direitos e garantias sociais. A despeito da verbaliza-
ção de compromissos “progressistas”, o comportamento profundo dos agen-
tes sociais continuaria se pautando em direção contrária à efetiva democra-
tização da sociedade. Aqueles compromissos seriam, a rigor, simples
“racionalizações”:
vida social”. Noutro momento, ele questiona os índices quantitativos usados por
Germani para medir a “secularização” da sociedade argentina: “toma índices quan-
titativos como explicativos do grau de integração estrutural-funcional. É o aspecto
discutível. Deixa de lado a constituição estrutural do sistema societário = o que é
mais importante para a análise”. Em geral, nessas anotações há um movimento
comum, a saber: Fernandes sempre põe em suspeição as formulações de Germani
que sugiram uma “modernidade” avançada na Argentina, mesmo que no contexto
latino-americano.
210 |Dilema e paradoxo
Como fica sugerido na última frase do trecho acima, que faz menção
aos países “subdesenvolvidos”, a linearidade histórica formalizada pelo
mainstream da “sociologia da modernização” reaparece, mesmo que noutra
roupagem, no esquema “cibernético-evolucionário” que Talcott Parsons
passa a desenvolver ao longo da década de 1960. A despeito de suas
pretensões de trabalhar num registro histórico de longa duração, e de assi-
nalar certas variações no processo de institucionalização dos quatro compo-
Dilema e paradoxo| 217
nentes básicos nos diferentes países, o autor terminou por repisar a visão
“sistêmica” que previa uma convergência final — e democrática — das
sociedades modernas.
O contraste entre esse esquema parsoniano e as formulações desen-
volvidas por Florestan Fernandes e Gino Germani no mesmo período é
bastante evidente. Aliás, não deixa de ser irônico que no mesmo ano de
publicação de “Evolutionary universals in society” tenha ocorrido o fecha-
mento político da sociedade brasileira, ao qual se seguiram vários processos
de natureza análoga na América Latina. Nesses contextos periféricos, a
noção de que a democracia e desenvolvimento se encontrariam “necessaria-
mente” começou a girar no vazio. Vejamos agora como Fernandes e Germa-
ni tiveram de desembrulhar o “pacote sistêmico” da “sociologia da moderni-
zação” a fim de explicar a não linearidade da trajetória de seus países.
No fechamento teórico de A integração do negro na sociedade de classes
(1964), Florestan Fernandes lidou com problemas muito diferentes dos
enfrentados por Parsons em “Full citizenship. . .”. Apesar de ter investiga-
do “uma das comunidades industriais em que o regime de classes sociais se
desenvolveu de modo mais intenso e homogêneo no Brasil”, a cidade de
São Paulo, os resultados encontrados não apontavam para uma tendência
à democratização das relações raciais. Antes, chamavam a atenção para a
debilidade da “ordem social competitiva” aí constituída. Essa não teria sido
capaz de “abranger, coordenar e regulamentar as relações sociais” em sua
totalidade, funcionando de forma “fragmentária, unilateral e incompleta”
(Fernandes, 2008b, p. 571). Em vez da linha reta parsoniana, ele usa uma
imagem muito expressiva para dar conta das relações entre brancos e ne-
gros no contexto paulistano:
orientação mais ampla do então catedrático. Embora não nos caiba explorar essa
questão aqui, vale a pena notar que tal fato não foi sem consequências para os
argumentos de Fernandes, que realinhou o seu quadro teórico ao longo da década de
1960 em diálogo com os demais membros do “seu grupo” na USP. Imagino que a
resenha publicada por Gabriel Cohn em 1966 simultaneamente na Revista do Museu
Paulista e na Revista Latinoamericana de Sociología seja em parte representativa das
inquietações do “grupo” ante os problemas teóricos levantados por Fernandes em A
integração. . . Nesse texto, Cohn pondera, por exemplo, sobre “até que ponto os
elementos de desequilíbrio estrutural, «disfuncionais» ou não integráveis em situa-
ções típicas, podem resultar inerentes ao tipo empírico estudado”. Noutra passagem,
diz que o livro de Fernandes pode levar “à conclusão de que a sociedade de classes
está viciada estruturalmente pelos vestígios da ordem estamental, que dão forma às
relações ao nível racial” (Cohn, 1966, p. 275, itálicos no original). Isto é: Gabriel
Cohn está sugerindo que os elementos que Fernandes via como “irracionais” ou
“desequilibrados”, já que a “sociedade de classes” não conseguia impor os seus dinamis-
mos de maneira exclusiva, deveriam ser vistos de uma outra forma, como parte do
dinamismo de uma “ordem social” que está estruturalmente marcada pela presença
de formas estamentais de orientação das condutas.
20 Vale a pena notar, como ficará claro a seguir, que a introdução do “elemen-
to político” não levará a uma discussão da política partidária ou institucional, mas aos
diferenciais de poder entre os diferentes grupos sociais. Como esta posição do autor
se mantém mais ou menos constante, creio que nela podemos encontrar uma melhor
perspectiva para avaliar a sua “sociologia política”.
220 |Dilema e paradoxo
A meu ver, essa inflexão é o modo pelo qual o autor incorpora o golpe no
interior das balizas interpretativas que ele vinha delineando a respeito da
sociedade brasileira — o que terminou carreando elevadas tensões para o
interior de sua argumentação, como já veremos.
Essa introdução do “elemento político” no andamento da análise
permitiu que Fernandes conferisse maior peso explicativo às contingências
históricas. Isso porque o sentido das mudanças estaria, particularmente em
etapas mais avançadas de “diferenciação social” — caso da sociedade bra-
sileira —, cronicamente associado às disputas de poder entre os diferentes
grupos sociais. Neste diapasão, o problema da mudança seria um problema
político porquanto dependeria “de mecanismos de ação grupal que tradu-
zem posições relativas dos grupos na estrutura de poder da sociedade
nacional” (Idem, 1975, p. 101). Assim, a fim de entender o “ponto morto”
ou o “estancamento” das mudanças estruturais na sociedade brasileira —
termos que usa para se referir à persistência dos elementos “tradicionais”
—, Fernandes começa a inquirir sobre a atuação dos grupos que lideraram
a revolução burguesa. Para ele, os limites da ação do fazendeiro e do imi-
grante, ambos comprometidos, ainda que em níveis diferentes, com um
horizonte cultural arcaico — argumento que ele já havia avançado em A
integração. . . —, associando “processos econômicos débeis e estruturas
sociais rígidas”, marcariam um travejamento histórico diverso da “socie-
dade de classes” no Brasil. Nos termos de Fernandes, “as origens e o desen-
volvimento da revolução burguesa explicam razoavelmente a persistência
e a tenacidade de um horizonte cultural que colide com as formas de con-
cepção de mundo e de organização da vida inerentes a uma sociedade
capitalista” (Idem, 1975, p. 105).
Diante deste princípio explicativo mais amplo — os limites da revo-
lução burguesa no Brasil —, Fernandes assinala que esta situação histórica
comporta “duas tendências contraditórias”, que “se configuram dinamica-
mente” (Idem, 1975, p. 105). É como ele explica a falta de linearidade
histórica: haveria tanto “polarizações” favoráveis quanto “polarizações” des-
favoráveis à expansão da “ordem social competitiva”. As primeiras corres-
ponderiam “aos fatores de inovação mais profundos” e expressariam, “em
graus variáveis, o tipo de racionalidade exigido pelo presente” (Idem, 1975,
p. 106). As segundas, “no fundo, fatores arcaizantes herdados do passado”,
Dilema e paradoxo| 221
23 Devemos lembrar que este texto foi escrito no contexto pós-crise do governo
“desarrollista” de Arturo Frondizi, ao qual se seguiu uma grande polarização social e
política (e que desaguou no golpe de Onganía em 1966). Uma análise bem pondera-
da dos limites do “desenvolvimentismo” na Argentina, em comparação com o “desen-
volvimentismo” no Brasil, podemos encontrar em Sikkink (1991). Para a autora, hou-
ve no Brasil um “consenso desenvolvimentista” muito mais intenso que na Argentina,
a despeito do fato de Raúl Prebisch ser argentino — as próprias teses da Cepal teriam
circulado em escala reduzida no país platino, posto que o compromisso com o “desen-
volvimentismo”, em vez de se generalizar, ficou subsumido no interior da polarização
mais ampla “peronismo”/ “antiperonismo”. Em relação ao debate político ligado ao
“desenvolvimentismo” na Argentina, cf. Altamirano (2007).
Dilema e paradoxo| 227
***
Para fechar este capítulo, vale a pena juntar as duas pontas da refle-
xão que fizemos aqui. Em que sentido as interpretações dos autores sobre
certos movimentos sociais reforçou ou esboroou a perspectiva “dualista” de
entendimento da mudança social e do desenvolvimento? Em que medida
as tensões imprimidas por aquelas tentativas de democratização das so-
ciedades norte-americana, brasileira e argentina reverberaram ou não para
o interior dos quadros interpretativos elaborados por Talcott Parsons, Flo-
restan Fernandes e Gino Germani?
No caso de Parsons, os conflitos abertos pelos movimentos negros
não o levaram a questionar o potencial democrático da “comunidade so-
cietária” norte-americana. E, mais ainda, as tensões que aqueles conflitos
suscitaram foram rapidamente minimizadas em seus argumentos. Aquelas
tensões apontariam, antes, para um processo em curso de efetiva “univer-
salização” das formas de pertencimento social — o autor removeu quais-
quer arestas históricas que pudessem flexionar para uma visão menos li-
near do processo de democratização. Em termos mais amplos, vimos também
que a perspectiva “dualista” reaparece em seu esquema “evolucionário-ci-
bernético”, que acaba se fechando num entendimento algo formalista dos
quatro “universais evolutivos” da sociedade moderna.
Nos textos de Fernandes, há um procedimento bastante diferente.
As tensões imprimidas pelos movimentos sociais no “meio negro” e pela
Campanha são como que amplificadas no interior de suas formulações. Isso
porque ele “traduz” essas tensões como índices da inconsistência de uma
“sociedade de classes” que não é capaz de estender as suas promessas
emancipatórias ao homem comum. Assim, ao lidar com esta dinâmica histórica
travada, com esses “dilemas”, Fernandes teve de desmontar a perspectiva
“dualista”, chamando a atenção para os limites da revolução burguesa no
Dilema e paradoxo| 231
qualificar mais à frente. Nesse passo, e como consequência dos pontos que
enumeramos acima, o processo já em curso de adensamento histórico da
análise ganha ainda mais fôlego, acompanhando cada momento da teori-
zação sociológica. Noutros termos, Fernandes e Germani se viram na con-
tingência simultânea de ampliar os seus campos de visão, como vemos no
registro alargado da “América Latina” como instância empírica e na incor-
poração dos elementos “externos”, e de aprofundar em termos explicativos
as especificidades do desenvolvimento na região vis-à-vis os casos “clássi-
cos” de revolução burguesa. Por fim, but not least, acompanha essas infle-
xões uma série de críticas às limitações ou até mesmo à inadequação da
“sociologia da modernização” na compreensão do dinamismo peculiar da
mudança social nesses países de história problemática. O que permitiu que
os autores ganhassem considerável perspectiva em relação a uma das hipó-
teses mais difundidas (e persuasivas) já elaboradas pela sociologia. Evi-
dentemente, apesar de comparáveis, as inovações que acompanharam a
introdução do termo “capitalismo dependente” e do “esquema de etapas”
não são intercambiáveis. Esses construtos são, a rigor, formalizações do
funcionamento do sistema social em escala ampliada observado a partir de
posições periféricas, cujas diferenças nos importa qualificar aqui.
Essas inflexões, no entanto, não são apenas movimentos idiossincrá-
ticos de Fernandes e Germani, ou de outros sociólogos situados em condi-
ções periféricas. Também nos Estados Unidos a “sociologia da moderniza-
ção” começava a sofrer um processo consistente de revisão crítica. Dois
artigos publicados em 1967, “Tradition and modernity reconsidered”, de
Reinhard Bendix, e “Tradition and modernity: misplaced polarities in the
study of social change”, de Joseph Gusfield, levantaram uma série de
problemas à visão linear e disjuntiva da mudança social formalizada por
aquela vertente intelectual. Um ano antes, Barrington Moore Jr., em Social
origins of democracy and dictatorship, tornou a análise das conexões entre
desenvolvimento e democracia muito mais contingente e historicamente
orientada. Até mesmo Talcott Parsons, cujo percurso viemos acompanhan-
do até aqui, se aventurou a realizar um movimento análogo. Em Societies
(1966) e em The system of modern societies (1971), Parsons se propôs a
articular uma análise de longa duração do surgimento e do funcionamento
das sociedades modernas, atentando também para as variações históricas
Esquema de etapas e capitalismo dependente| 235
2 Como vimos até aqui, Talcott Parsons, apesar de ser considerado como o
“incurável teórico” da sociologia norte-americana, sempre manteve a sua própria
sociedade como o foco primordial para a constituição de seus problemas sociológicos
(Gerhardt, 2002). Ele mesmo assinala que a análise da estrutura social norte-ame-
ricana foi tema permanente de seus cursos na Universidade de Harvard: “It was
perhaps a not unusual experience for sociologists with macro-social interests to
become rather especially concerned with problems of the nature of their own society.
In the very early 1940’s, just as the crisis of Western society over Nazism was coming
to the climax in the generalized Second World War, I introduced a course under the
title «Social Structure of the United States», which, with a few interruptions, I have
continued to teach ever since” (Parsons, 1971, p. 133).
236 |Esquema de etapas e capitalismo dependente
The use of the plural form of the word “society” in the title is quite
deliberate and centrally important. We can of course meaningfully
speak of “modern society” as a type, but I do not think it would be
useful for sociologists to speak of the Soviet Union, Britain, France,
the Scandinavian countries, and the United States — to name a few
of the most important — as constituting one society. But if they are
many, it does not follow that their differences from each other follow
a pattern of random variation, explained in each case by unique
“histories” (Idem, 1971, p. 108).
Esquema de etapas
Durante a sua estadia em Harvard, já na segunda metade da década
de 1960, Gino Germani viu-se na contingência de elaborar uma visão mais
242 |Esquema de etapas e capitalismo dependente
outro lado, ele também aponta para a existência de “uma ampla gama de
variações estruturais e culturais”, isto é, “para muitos tipos diversos de socie-
dade industrial” (Germani, 1969, p. 16, itálicos no original). E, a fim de
conferir inteligibilidade sociológica a esta variação, o autor é levado a questio-
nar uma série de premissas da “sociologia da modernização”. Senão, vejamos.
Em primeiro lugar, ele põe em suspenso o real poder explicativo das
correlações estatísticas tabuladas pela “sociologia da modernização” em
relação às diferentes dimensões da modernização. Germani pondera que
“essas correlações estão longe de serem perfeitas e não devem ser inter-
pretadas senão como a expressão da tendência à associação por parte de
certos indicadores” (Idem, 1967, p. 17). Noutras palavras, elas apenas apon-
tariam para traços genéricos da modernização. No plano histórico concreto,
as relações entre as diferentes dimensões da modernização seriam muito
mais complexas:
las rigideces mantenidas por factores internos, por oposición con las
fuerzas favorables a la introducción de reformas realmente significa-
tivas (Idem, 1969, p. 41).
Capitalismo dependente
Na primeira metade da década de 1960, como vimos, o encontro dos
termos “sociedade de classes” e “subdesenvolvimento” se dava, nos textos
de Florestan Fernandes, na chave da “irracionalidade”. Essa maneira de
conectar os termos abria, sem dúvida, um campo alternativo de possibilida-
des históricas, já que ela sinalizava para uma repulsão mútua entre eles:
caso operasse à eficácia máxima, a “sociedade de classes”, universalizando
a “ordem social competitiva”, expurgaria o “subdesenvolvimento”. Essa
forma contrafactual de encarar os termos dessa relação, que instaurava,
ainda que de maneira tênue, um certo campo de possíveis, sai de cena com
a introdução do construto “capitalismo dependente”.3 A partir dessa intro-
dução, que se dá em fins da década de 1960, o modo pelo qual o autor
conecta esses termos muda: agora o encontro entre “sociedade de classes”
e “subdesenvolvimento” opera na chave da “racionalidade”, da “normali-
dade”, isto é, o sistema social assim conformado funcionaria estruturalmente
3 Como nos sugere José de Souza Martins (1998, p. 85, itálicos no original),
“o interesse sociológico [. . .] pelo possível depende de uma circunstância social e
política que não esteja marcada pelo fechamento autoritário, absoluto e irremediável
das alternativas históricas”.
Esquema de etapas e capitalismo dependente| 253
do “capitalismo dependente”, tal qual descritas por ele. Com esse constru-
to, o autor logrou introduzir uma série de contingências históricas que ex-
plicariam o porquê da associação crônica entre “sociedade de classes” e
“subdesenvolvimento”, formalizando em nível teórico mais amplo a mar-
cha recalcitrante da modernização em contextos periféricos. Isso posto, Fer-
nandes não se limitou apenas a retificar o esquema interpretativo da “socio-
logia da modernização”; nesse registro, ela simplesmente não poderia dar
conta dos processos histórico-sociais que se afastassem dos casos “clássi-
cos” de revolução burguesa. Como a possibilidade de se replicar as formas
“democrático-burguesas” de transformação capitalista teria saído de cena,
a potência explicativa da “sociologia da modernização” se esvaziaria quase
que inteiramente.6 Sobre o “modelo autocrático” de revolução burguesa, o
autor assinala:
7 Este ponto foi muito bem colocado por Elide Rugai Bastos em seu texto sobre
o “Pensamento social da escola sociológica paulista” (2002). Não se limitando apenas
a Florestan Fernandes, mas discutindo um conjunto de trabalhos que compartilham
de seu ponto de partido metodológico, a autora aponta: “a análise a partir da periferia
permite indagar sobre os princípios que articulam o sistema” (p. 201, itálicos no original).
266 |Esquema de etapas e capitalismo dependente
***
“Produtos finais”, portanto, inteiramente diferentes, frutos de pro-
cessos relativamente longos de “aclimatação” que remontamos desde as
pesquisas empíricas dos dois autores. Diferenças que, no entanto, coinci-
dem na necessidade de se introduzir a dimensão da contingência histórica
como princípio explicativo, o que afasta tanto Germani quanto Fernandes
da síntese final parsoniana. Como vimos, Parsons parecia deduzir, pela sua
análise do “sistema das sociedades modernas”, toda a marcha do mundo a
partir das diferenciações funcionais formalizadas em seu esquema AGIL.
Mas ainda nos cabe perguntar: esses “produtos finais” trazem consigo as
marcas das sociedades argentina e brasileira? Caso afirmativo, onde deve-
mos encontrá-las?
Considerações finais| 273
One can hence formulate the hypothesis that the structural tension
inherent in all modern society between growing secularization and the
necessity of maintaining a minimum prescriptive central nucleus suffi-
cient for integration, constitutes a general causal factor in modern au-
thoritarian trends. Such trends and the historical processes leading
to them, as well as the manner in which societies confront these
crises, will depend on a series of other conditions studied at medium-
range level, in terms of epoch, time, and sociocultural specificity, that
is, within given sociohistorical contexts. [. . .] Authoritarian “solu-
tions” are possible, and under certain conditions probable, in any of
the crisis generated by structural tensions inherent in modern soci-
ety. Their outcome will depend upon the medium and short-range
causal and conditioning factors (Idem, 1978, pp. 7-8, itálicos no ori-
ginal).
matriz prática — ou essas matrizes, para sermos mais exatos — que, nos
dois casos, empurrou a teorização para a incorporação das componentes
históricas como princípio explicativo. Os dois autores haviam partido de
uma perspectiva “estrutural-funcional” da mudança social; os dois termi-
naram praticando, ao final de um longo processo de “aclimatação”, varia-
ções de uma sociologia historicamente orientada. A compreensão dessa
transformação foi o objetivo principal deste trabalho.
***
Esses dois processos de “aclimatação” que reconstituímos aqui, em
larga medida exitosos, podem dizer alguma coisa para o cenário contempo-
rânea da teoria sociológica? Imagino que sim, pois o problema das compli-
cadas relações entre condição periférica e vida intelectual não é um dado
conjuntural, mas estrutural, permanecendo de pé, talvez de forma mais
grave ainda.6 Já muito se escreveu sobre as dificuldades de “aplicação” das
formulações de Jürgen Habermas ao Brasil (Souza, 1998) ou sobre a neces-
sidade de readequação da teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann
aos contextos periféricos (Neves, 2006, pp. 236-58; Galindo, 2007), ou
mesmo para os equívocos da aplicação sem mediações da teoria dos “cam-
pos” de Pierre Bourdieu (Bastos & Botelho, 2010). Isso para ficarmos
apenas em alguns exemplos. Mal-estar inescapável, no entanto, já que as
sociologias brasileira e argentina não podem virar as costas para os avanços
mais recentes em seu campo disciplinar.
Creio que o caso de Niklas Luhmann é o mais significativo, porque,
à primeira vista, ele tensiona as formulações de Talcott Parsons num senti-
do convergente aos autores aqui analisados: no lugar da linearidade dos
7 De acordo com José Mauricio Domingues, estaria seria uma nota comum da
sociologia alemã contemporânea, marcada por um evolucionismo que, à exceção de
Peter Wagner e Hans Joas, enxerga a “modernidade como um porto seguro, ainda que
por vezes difícil, da história humana” (Domingues, 1998, p. 174).
Considerações finais| 285
A integração do negro na sociedade de classes (1.o vol.). São Paulo: Globo, 2008b
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Referências| 289
Referências gerais
P R
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Park, Robert [Ezra] (1864-1944) – 127n ra] – 17
Parsons, Talcott [Edgar Frederick] Ramos, [Alberto] Guerreiro (1915-
(1902-1979) – 24, 27, 29, 29n, 33, -1982) – 35, 128n
34, 35, 38, 38n, 40, 41, 60, 62, 63, Rebón, Julián – 286n
64, 64n, 66, 71, 79n, 83, 84, 84n, Reis, Elisa [Maria da Conceição Perei-
85, 85n, 86, 86n, 87, 88, 89, 90, 91, ra] – 285
92, 93, 94, 94n, 95, 98, 99, 122, Ribeiro, René (1914-1990) – 128n
128n, 137n, 158, 159, 160, 160n, Ricupero, Bernardo – 18, 254n
161, 161n, 162, 163, 163n, 164, Riesman, David (1909-2002) – 163n,
164n, 165, 167n, 176, 189, 190, 172n
191, 191n, 192, 193, 194, 195, 195n, Rodríguez, Carlos Acevedo – 167
198n, 212, 213, 214, 215, 216, 217, Romero, José Luis (1909-1977) –
230, 234, 235, 235n, 236, 237, 238, 133n, 196n
240, 241, 268, 270, 271, 273, 276, Rosas [y López de Osornio], Juan
281, 282n, 283 Manuel [ José] Domingo Ortiz] de
Paz [Lozano], Octavio (1914-1998) (1793-1877)– 133
– 101, 113 Rostow, Walt W[hitman] (1916-
Peña, Milcíades (1933-1965) – 35, 64, -2003) – 92, 173
64n
Pena, [Roque] Sáenz (1951-1914) – S
207n Salum Jr., Basílio [ João] – 198n
Perlman, Janice – 96n Santos, Heloísa Helena – 19
Perón, [ Juan Domingo] (1895-1974) Santos, Thiago – 19
– 151, 196n Sarlo, Beatriz – 196n, 210n, 277n
Petito, Gonzalo Varela – 170n Sarmiento, Domingo F[austino]
Pierson, Donald (1900-1995) – 129n (1811-1888) – 75, 277n
Pinto, Luiz [de Aguiar] Costa (1920- Schwarz, Roberto – 23, 36, 37, 37n,
-2002) – 38, 45, 47, 48, 49, 50, 52, 286
58, 70, 76, 77, 78, 79, 80, 98, 101, Schwartzman, Simon – 197n
128n, 233 Schmitter, Philippe [C.] – 96n
304 | Índice onomástico