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Quem sou eu?

Eu às vezes não entendo!


As pessoas têm um jeito
De falar de todo mundo
Que não deve ser direito.

Aí eu fico pensando
Que isso não está bem.
As pessoas são quem são,
Ou são o que elas têm?

Eu queria que comigo


Fosse tudo diferente.
Se alguém pensasse em mim,
Soubesse que eu sou gente.

Falasse do que eu penso,


Lembrasse do que eu falo,
Pensasse no que eu faço
Soubesse por que me calo!

Porque eu não sou o que visto.


Eu sou do jeito que estou!
Não sou também o que eu tenho.
Eu sou mesmo quem eu sou!
Pedro Bandeira
Cântico Negro
Maria Bethânia
Nossos Momentos

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces


Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos laços,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não,eu não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,


Redemoinhar aos ventos,
Feito farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Somente para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós


Que me dareis machados, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

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Ide! Tendes estradas,
Tendes tratados, Tendes filósofos, tendes sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,


Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!"

Compositor: José Régio


Tabacaria (trecho)

Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Fernando Pessoa

Minha Culpa

Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem


Quem sou? um fogo-fátuo, uma miragem...
Sou um reflexo...um canto de paisagem
Ou apenas cenário! Um vaivém

Como a sorte: hoje aqui, depois além!


Sei lá quem sou?Sei lá! Sou a roupagem
De um doido que partiu numa romagem
E nunca mais voltou! Eu sei lá quem!...

Sou um verme que um dia quis ser astro...


Uma estátua truncada de alabastro...
Uma chaga sangrenta do Senhor...

Sei lá quem sou?! Sei lá! Cumprindo os fados,


Num mundo de maldades e pecados,
Sou mais um mau, sou mais um pecador...
Florbela Espanca
É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso
dizer. Sobretudo tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar
não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no
que eu digo...
Sou como você me vê.
Posso ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania,
Depende de quando e como você me vê passar.
Não me deem fórmulas certas, porque eu não espero acertar sempre. Não me
mostrem o que esperam de mim, porque vou seguir meu coração. Não me
façam ser quem não sou. Não me convidem a ser igual, porque sinceramente
sou diferente. Não sei amar pela metade. Não sei viver de mentira. Não sei
voar de pés no chão. Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a
mesma pra sempre.
Clarice Lispector

Eu, eu mesmo...
Eu, cheio de todos os cansaços
Quantos o mundo pode dar. –
Eu...
Afinal tudo, porque tudo é eu,
E até as estrelas, ao que parece,
Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças...
Que crianças não sei...
Eu...
Imperfeito? Incógnito? Divino?
Não sei...
Eu...
Tive um passado? Sem dúvida...
Tenho um presente? Sem dúvida...
Terei um futuro? Sem dúvida...
A vida que pare de aqui a pouco...
Mas eu, eu...
Eu sou eu,
Eu fico eu,
Eu...
Fernando Pessoa

O cego e a guitarra

O ruído vário da rua


Passa alto por mim que sigo.
Vejo: cada coisa é sua
Oiço: cada som é consigo.
Sou como a praia a que invade
Um mar que torna a descer.
Ah, nisto tudo a verdade
É só eu ter que morrer.

Depois de eu cessar, o ruído.


Não, não ajusto nada
Ao meu conceito perdido
Como uma flor na estrada.

Cheguei à janela
Porque ouvi cantar.
É um cego e a guitarra
Que estão a chorar.

Ambos fazem pena,


São uma coisa só
Que anda pelo mundo
A fazer ter dó.

Eu também sou um cego


Cantando na estrada,
A estrada é maior
E não peço nada.

Fernando Pessoa

INCENSO FOSSE MÚSICA

isso de querer ser


exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além
Paulo Leminski
Mãos dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.


Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,


não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
Carlos Drummond de Andrade
,,,

A última flor

A décima segunda guerra mundial, como todos sabem, trouxe o colapso da civilização.
Vilas, aldeias e cidades desapareceram da terra.
Todos os jardins e todas as florestas foram destruídas. E todas as obras de arte.
Homens, mulheres e crianças tomaram-se inferiores aos animais mais inferiores. Desanimados
e desiludidos, os cães abandonaram os donos decaídos.
Encorajados pela pesarosa condição dos antigos senhores do mundo, os coelhos caíram sobre
eles.
Livros, pinturas e música desapareceram da terra e os seres humanos ficavam sem fazer nada,
olhando no vazio. Anos e anos se passaram.
Os poucos sobreviventes militares tinham esquecido o que a última guerra havia decidido.
Os rapazes e as moças apenas se olhavam indiferentemente, pois o amor abandonara a terra.
Um dia uma jovem, que nunca tinha visto uma flor, encontrou por acaso a última que havia no
mundo.
Ela contou aos outros seres humanos que a última flor estava morrendo.
O único que prestou atenção foi um rapaz que ela encontrou andando por ali.
Juntos, os dois alimentaram a flor e ela começou a viver novamente.
Um dia uma abelha visitou a flor. E um colibri.
E logo havia duas flores, e logo quatro, e logo uma porção de flores.
Os jardins e as florestas cresceram novamente. A moça começou a se interessar pela própria
aparência.
O rapaz descobriu que era muito agradável passar a mão na moça.
E o amor renasceu para o mundo.
Os seus filhos cresceram saudáveis e fortes e aprenderam a rir e brincar.
Os cães retornaram do exílio.
Colocando uma pedra em cima de outra pedra, o jovem descobriu como fazer um abrigo.
E imediatamente todos começaram a construir abrigos. Vilas, aldeias e cidades surgiram em
toda parte. E a canção voltou para o mundo.
Surgiram trovadores e malabaristas alfaiates e sapateiros
pintores e poetas
escultores e ferreiros
e soldados
e soldados
e soldados
e soldados
e soldados
e tenentes e capitães
e coronéis e generais
e líderes!
Algumas pessoas tinham ido viver num lugar, outras em outro. Mas logo as que tinham ido viver
na planície desejavam ter ido viver na montanha.
E os que tinham escolhido a montanha preferiam a planície. Os líderes, sob a inspiração de
Deus, puseram fogo ao descontentamento.
E assim o mundo estava novamente em guerra.
Desta vez a destruição foi tão completa
Que absolutamente nada restou no mundo.
Exceto um homem
Uma mulher
E uma flor.

MILLOR FERNANDES

Versos Íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável


Enterro de sua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Augusto dos Anjos

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