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Cátedra Humanismo Latino

Humanismo Latino na Cultura Portuguesa


Reflexos na Música
José Luís Borges Coelho

Intervenção no colóquio internacional Humanismo Latino na


Cultura Portuguesa, 17 a 19 Outubro de 2002, FLUP/Porto

derem à benevolência de me escutar, para a mais


Senhor Presidente da Fundação Cassamarca de que certa transgressão, no que aqui trago, da-
Treviso, Avv. On. Dino de Poli, quela compostura que sei dever exornar toda e
Senhora Professora Elvira Mea, Coordenadora qualquer comunicação que se apresente em foro
da Cátedra “Humanismo Latino” da Faculdade científico. Não sou um académico. Movo-me em
de Letras da U.P. meio artístico, embora tenha alguma relutância,
Senhores Professores, ou, se quiserem, algum pudor, em considerar-
me a mim mesmo artista. Mas, tal como os ar-
Ilustres participantes neste Colóquio, tistas, que só verdadeiramente o são se nos to-
Senhoras e Senhores: cam, sensibilizam, emocionam, se nos questio-
nam, se nos obrigam a repensar o estabelecido,
não me importo de sair fora da norma, e, se ne-
Costumam as palavras iniciais debitar-se sem o cessário, de assumir, com mais ou menos jeito,
recurso ao papel, ou à muleta de qualquer cábula. às vezes apenas informalizando o tradicional-
Logo aqui começo à revelia dos hábitos. É sim- mente formal, não me importo – dizia – de assu-
ples a razão. A minha já não é idade para experi- mir o incómodo de incomodar.
ências novas e o risco desta era o de por tal modo
Aqui chegado, deveria abandonar a primeira
me embrulhar que nada se chegasse a perceber
pessoa, e limitar-me a dar voz a uma exposição
do que, enfim, acabasse por tartamudear.
impessoal, distanciada, analítica, escrupulosa-
Naturalmente, não é para a acta um arranque mente não engagée, irrepreensível no encadear
assim. Serve ele, em primeiro lugar, para apre- dos argumentos, requintada no agenciamento dos
sentar cumprimentos às entidades que tornaram contornos formais, sólida, enfim, tal um baluar-
possível este Colóquio – à Fundação Cassamarca te inexpugnável. E que fosse direita ao assunto.
de Treviso, na pessoa do seu Presidente, Que ela, isto é, eu, me pusesse, de imediato, a
Avvocato Onorebole Dino de Poli, e à Cátedra dar conta, sem tergiversações nem
Humanismo Latino da Faculdade de Letras da circunvagações, do que por aí ande na música
Universidade do Porto, na pessoa da sua Coor- portuguesa que possa ter-se como
denadora, a quem não sei se agradecer se perdo- iniludivelmente tributário do humanismo latino.
ar o ter-me trazido aqui. Posto o que, na maré
Mas, como encerrar numa formulação
ainda dos cumprimentos, desejaria estender as
conceptual suficientemente precisa e, necessa-
minhas saudações aos Senhores Professores par-
riamente, sucinta o que deva entender-se, exac-
ticipantes neste Colóquio e, naturalmente, à Di-
tamente, por humanismo latino, quer na Europa
recção e aos Professores desta Faculdade, que
de Quatrocentos e de Quinhentos quer depois,
foi a minha há muitos anos atrás.
para, arrimando-me a esse bastão e a ele arri-
Por último, acho que devo aproveitar o ensejo mando também os meus ouvintes, partir seguro
para prevenir e mesmo alertar todos os que se para a abordagem do que aqui, finalmente, me 1

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convoca, se o assunto não se farta de dar pano deou mais chacinas, perpetrou mais crimes (ca-
para mangas, se o assunto foi objecto, é objecto, tolicismo era, proselitamente, na época em que
há-de ser objecto de um número absolutamente o cristianismo se estilhaçava numa profusão de
impossível de inventariar de comunicações, de fracturas, a palavra para globalização), andava
estudos, de dissertações, de volumosas teses a Bíblia – dizia – a tombos com a filologia e,
universitárias e de gordas publicações das mais consequentemente, com o desconforto de novas
ínvias naturezas? exegeses.
Desde logo – reparo – não era oriundo do espa- Latim, grego, hebraico: línguas, afinal, das cul-
ço linguístico romance o mais celebrado dos turas em que se caldeava a cultura europeia, a
humanistas, conquanto se tivesse ele feito ad- primeira na história a ter, precisamente por essa
mirar como o mais exímio dos scriptores do la- época, condições para abraçar num planetário
tim recuperado, língua em que se exprimia, ain- amplexo o inteiro orbe, aos ombros que cami-
da oralmente, com o à-vontade que muitos não nhava da gesta marítima dos povos peninsula-
têm nem na sua língua madre, embora não se res. Aí, verdadeiramente, começou o mundo a
devesse somente ao latim aquela impres- globalizar-se: “... E viu-se a terra inteira, de re-
sionantíssima formação, tão cedo decantada em pente, / Surgir redonda do azul profundo” – es-
sabedoria, que o trouxe guindado nos píncaros creveria, a bronze, o autor da “Mensagem”. Nem
da fama, para sua glória e escarmento. Pelo do- é preciso ir buscar o que a respeito se contém no
mínio do grego e do hebraico passava também, brônzeo “Manifesto” de 1848...
a esse tempo e no capítulo das línguas, uma in-
teira formação humanista, mesmo no espaço
geográfico estritamente latino. Mesmo neste país Assim fincada a mão, deste modo esconso, numa
periférico que Portugal é, não escasseiam os mais ínfima parcela do subentendido sobre que se er-
luminosos exemplos disso mesmo, ainda entre guem todas as doutíssimas congeminações
os músicos. De D. Heliodoro de Paiva, um dos trazidas a foros como este, deveria passar lesto
primeiros e mais celebrados compositores de adiante.
Santa Cruz de Coimbra, diz-se, no seu assento Só que este arranque, que já vai longo, este
de óbito (21 de Dezembro de 1552) que foi “mui- exórdio, melhor direi, para mais
to bom ebraico, grego, latino, philosopho musico, concordantemente me entrosar, lançou irreme-
muito perfeito universal em toda a música”. diavelmente o sujeito que vos fala, espírito aves-
No tratamento tu cá tu lá dessas línguas mortas so a construções esquemáticas e arrumadinhas –
redivivas, se jogava, de resto, entre as gentes como já se deixa ver – na perigosíssima e
dadas às letras, às humanas como às divinas, a incomodíssima via da perguntice:
mais estimulante e a mais nova das humanas dis-
ciplinas, aquela sobre a qual assentava a
Por que se adjectiva de latino, visto isso, o dito
imparável curiosidade que aos mais audazes
humanismo? Pela adopção do latim como lín-
movia a procurar restabelecer em seus fundamen-
gua de comércio intelectual no seio da comuni-
tos o texto de que se reclamavam e em torno do
dade dos doutos, grosso modo disseminada por
qual se reuniam e se desavinham cristãos e ju-
um espaço geográfico que largamente extrava-
deus, católicos romanos e cristãos reformados
sava o da latinidade? Enfileiramos, então,
das mais desvairadas confissões. Vale a dizer que
Desiderius Erasmus Rotherodamus no número
andava o ‘livro dos livros’, esse que é um dos
dos humanistas latinos? Também o seu particu-
mais belos e lapidares repositórios das grande-
lar amigo do outro lado da Mancha, Thomas
zas e misérias do ser humano, também o mais
More? Ou será porque de um país latino partiu
controvertido dos textos e, seguramente, aquele
o renovado interesse por essa Antiguidade que
em nome do qual uma parte muito significativa
precisamente no seu solo conheceu, em tantos
da humanidade se envolveu em mais guerras,
domínios, um esplendor que nunca antes andara 2
organizou mais máquinas de tortura, desenca-
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visto? É este humanismo que volta a preocupar, Mas não era justamente na oposição à ditadura,
no sentido de um seu re-renascimento, as men- no quotidiano da luta contra o regime, no
tes que a Fundação Cassamarca de Treviso vem, envolvimento solidário com os oprimidos e ex-
desde há anos a mobilizar, em colóquios, plorados, que se vivia o mais encendrado dos
convénios e congressos, por Europas e Améri- humanismos, protagonizado, por vezes lado a
cas? É por aí que se espera erguer a grande re- lado, por ateus e agnósticos, de raiz marxista na
sistência, a muralha inexpugnável, a maior parte dos casos, mas também por
intransponível barragem à torrente monocolor humanistas cristãos e católicos, bem latinos to-
que, a partir do espaço anglo-saxão, e mormente dos eles? E – para me reportar ao espaço euro-
do estado-unidense, está a engolir o Planeta? É peu estritamente latino e ao momento presente
de um perscrutar da virtus latina, diversamente – quando o critério do progresso é o lucro, quan-
traduzida em virtù por humanistas e condotieri, do em nome dele o desemprego alastra, atingin-
que se trata? Persegue-se uma sua refundição / do por vezes famílias inteiras, às quais se apre-
refundação, natural e convenientemente senta como um novo cavaleiro do Apocalipse,
aggiornata? Ou é de um conceito um pouco mais quando vastas camadas são empurradas para o
lato, que tende a idealizar como centradas no vazio, para a exclusão e para a marginalidade, é
homem e com ele eminentemente preocupadas com as nossas comunicações herméticas, parti-
as culturas que nos países latinos da Europa de lhadas, entre quatro paredes, com uma pequena
Quinhentos se desenvolveram e daí irradiaram comunidade de eleitos, que esperamos mudar o
para os mundos recém-descobertos? Mas há al- nosso mundo? Ai! Ai!... Onde, num ápice, já
guma compatibilidade humanista entre Pizarro vamos... Onde a mão, de novo a fincar-se, aca-
e Las Casas? Entre os senhores do engenho e bou por ir parar...
Vieira? Não se formavam na frequentação do E a música?
trivium e do quadrivium os inquisidores e tantas
das suas vítimas? Por outro lado, não é europeia, À música, de um modo ou doutro, não há nada
e grandemente latina, a matriz civilizacional mais que fique alheio.
presente no mundo ora globalizado? Terão os Quantas irreprimíveis interrogações, tantos de-
Estados Unidos gerado, a partir sobretudo da safios, tantas possíveis linhas de desenvolvimen-
revolução informática, uma outra coisa? Crerá to para o que aqui se trouxesse.
alguém que, no discurso político, algum dos res-
ponsáveis da superpotência – ou qualquer dos
seus mais reverentes yes-men – deixará de assu- Impossível, contudo, ir por aí; tomar, ainda que
mir, em discursos incendiados, os valores hu- sinteticamente, cada um desses pontos
manos, de propagandear que o homem é, sim escaldantes, por onde se deixou escapar tanta da
senhor, o centro das duas preocupações, mesmo humana contradição.
se se dão, uns e outros, há decénios, a tripudiar
sobre isso tudo? Não é a Casa Branca quem mais
enche a boca com aquilo a que chama ‘direitos Impossível, também, se revelou, de resto, mes-
humanos’? Mesmo se despudoradamente mo a consideração da totalidade dos tópicos desta
recalcitra em não respeitar os mais elementares comunicação anunciados no resumo posto a cir-
desses direitos, como a recente Cimeira da Terra cular, quando ela era ainda projecto. Falta de tem-
deixou bem claro, e se a sua sanha belicista se po meu para a todos convenientemente tratar;
não cansa de afiar as garras e de, ‘cirurgicamen- completa desmesura do cometimento futurado,
te’, as aplicar, razão iniludível para o regime de face ao tempo disponível para o acolher.
excepção que pretendem para os seus homens Do que trago, enfim, muito beneficiaria com um
de mão no TPI? E, chegando-nos mais a nós, ao último esforço de síntese. Detive-me, porventura,
nosso passado recente: admitiria Salazar não ser tempo demais, fora de Portugal. Espero, contu-
um humanista provado, um humanista dos qua- do, que o facto não venha a ser tido por larga-
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tro costados, latino e, ademais, cristianíssimo? mente injustificado.
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Antes ainda de me embrenhar pelos desvãos grandes sobressaltos desenvolvida desde que a
musicais da matéria em apreço – que se me es- invenção de uma escrita musical tornou possí-
cuse mais esta delonga –, haverei de meter, por vel esse desenvolvimento, só episodicamente e
momento breve, e do único modo que o enge- muito de passagem (género: então a música não
nho me permite, digamos que com uma altura teve nada a ver com o assunto?) o terá sugerido,
de voo toda ao rés da terra, a minha foice na pois que é objecto de referências, comparativa-
seara alheia da reflexão historiográfica, para me mente breves, em obras historiográficas de certa
desfazer de alguns engulhos que o presente de- envergadura, dedicadas aos séculos do
safio me levanta. Explico-me: um comum Renascimento. Já se perceberá porquê.
factótum, um daqueles habilidosos artesãos que Contudo, o carácter – digamos – focalizado des-
vão a todas, é diante da empresa que decide das sas abordagens, o limitarem-se elas a dedicar
ferramentas que vai utilizar para a levar a bom expressamente algumas breves páginas à consi-
termo. A própria natureza do que se lhe apresen- deração dos efeitos imediatos do pensamento
ta lhe suscita os instrumentos de que é mister humanista na música, não significa que os refle-
servir-se. Ora, na presente situação – venho fa- xos desse pensamento não extravasem largamen-
lar de música (recorde-se, porque, para já, não te os aspectos considerados, não remanesçam
vai parecendo) – figura-se, a este especialista de para lá do que as abordagens circunscritas iso-
coisa nenhuma, que lhe fornecem, se não pro- lam, antes, abandonadas estas – a vida não se
priamente a totalidade das ferramentas, a funda- compadece com umas quantas considerações
mental, ou seja aquela a partir da qual haverá ele analíticas –, o mais natural é que tais reflexos,
de se servir de todas outras, o que virá pratica- ainda se não de um modo ostentoso, se façam
mente a dar no mesmo. E essa ferramenta é logo, sentir duradouramente: mais não seja, na maneira
nem mais, o instrumento de análise, um como de agenciar o discurso musical. A retórica con-
telescópio, com lentes e filtros sobrepostos, taminou – não o dizemos aqui em sentido pejo-
(des)afinados por séculos, através do qual, ou rativo – todas as artes, e sobremaneira a arte
dos quais, é mister que enfoque (na impossibili- musical, e não apenas quando ela se enlaça com
dade ontológica da realidade transcorrida ela o verbo. Já se perceberá como.
mesma, sequer a parcimoniosa documentação
onde factos e ideias acabaram por ter algum re-
moto, desgarrado, disperso eco, documentação A música é das artes a mais efémera. De tal modo
que lhe é, na emergência, perfeitamente inaces- fugidia que ainda se escuta e já se vai desvane-
sível) a possível historiografia que por aí anda cendo. Sem memória ficaria reduzida a uma se-
feita sobre essa realidade. quência pontilhista de vibrações sem nexo: não
Dito de outro modo: aquilo que para um histori- existiria como linguagem, menos ainda como
ador das letras, do pensamento – também das arte. Divina entre todas, vieram os homens, de
artes figurativas e visuais (com a eventual ex- tempos imemoriais, a designá-la, por isso. As
cepção da pintura, que se pôs a caminhar sem pinturas murais de Pompeia, a Vénus de Milo, o
que conhecesse uma imagem que fosse da pin- Parténon, o Coliseu, oferecem-se de imediato ao
tura antiga) –, ou para um historiógrafo tout desfrute de quem quer, pelo tempo que quiser
court, constitui um próprio objecto de pesquisa ou dispuser. Sejam quais forem os graus de
(debruçar-se sobre aquelas matérias nos séculos aprofundamento na captação do que nelas o ar-
que testemunharam o humanismo é o mesmo, tista aprisionou para que se libertasse nuns olhos
ou praticamente, que indagar sobre o próprio fruidores. Nenhuma intermediação entre a sua
humanismo), não parece ser, na circunstância, imutável materialidade e a vista deslumbrada que
para um amante das demandas musicológicas, logra pousar-lhes em cima.
mais que um novo ângulo oferecido à observa- Não assim a música. Para que exista não basta o
ção de uma realidade que, até ao presente, na- compositor. É (quase) sempre necessário que um
quilo em que se constituiu como prática, sem como medium, dotado da capacidade de pene- 4

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trar o que haja de mais recôndito naquele cúmu- sica, triunfadora da doença e da morte, virtudes
lo de sinais gráficos, inertes e esotéricos (ao que só poderiam advir-lhe do especialíssimo
menos para o comum dos mortais), que consti- agenciamento dos modos – o dório, o frígio, o
tui uma partitura, a execute, isto é, transforme lídio e o mixolídio, mais os seus respectivos hipo-
em sons o que o um inventor visionário, por uma –, e dos géneros – o diatónico, o cromático e o
prodigiosa associação entre ouvido e cérebro e enarmónico –, da quantidade vária, mas adequa-
vista e mão, traçou, a golpes de engenho, num damente combinada, dos ‘pés’ – o pírrico (∪∪),
papel pautado. o troqueu ou coreu (– ∪), o jambo (∪ ), o tríbraco
(∪∪∪ ), o espondeu (– ), o dáctilo (– ∪), o
anapesto (∪∪), o proceleusmático (∪∪∪∪), o
Ora, o humanismo latino renascente – isto é, anfíbraco (∪∪), o baquio (∪– –), o anfímacro (–
aquela espécie de estado de espírito que, a partir ∪ –), o antibáquio ( ∪), o péon I (– ∪∪∪), o
de Itália, sob o impulso pioneiro dessas desme- péon II (∪– ∪∪), o péon III (∪∪ – ∪), o péon IV
didas figuras que foram Dante, Petrarca, (∪∪∪–), o jónio maior (– – ∪∪), o jónio menor
Boccacio e, sobretudo, a reboque da agitação (∪∪–), o molosso (– – –), o epítrito I (∪ – – –), o
provocada um pouco mais adiante, ao longo de epítrito II (– ∪ – –), o epítrito III (– – ∪ –), o
todo o Quatrocento, por gente como Poggio epítrito IV (– – – ∪), uns só com breves, outros
Bracciolini, Leonardo Bruni, Marsílio Ficino, com longas só, todos os demais combinando, de
Lorenzo Valla, Picco de la Mirandola, Alberti, modo vário, longas e breves –, pés que se junta-
Angelo Poliziano, Pietro Bembo (este já a en- rão dois a dois para formar os “metros”, conju-
trar pelo séc. XVI), foi sendo partilhada pela eli- gando-se pés e metros para formar o ‘verso’ –
te culta europeia – , ao dar-se ao cultivo das lín- meios, todos eles, propiciadores (uma vez con-
guas clássicas e a um comércio intelectual que venientemente combinados e adequadamente en-
tinha o latim por veículo privilegiado(1), tinha cadeados), de todo o tipo de emoções e senti-
forçosamente que se defrontar com o pensamento mentos. Propiciadores? – que digo eu? –
de que essas línguas eram veículo. O deslum- catapultadores, capazes de construir de Tebas a
bramento dessa nova intelectualidade diante do muralha, ao som magríssimo da lira que
que velhos palimpsestos traziam até ela de mui- Amphion dedilha, que não apenas de amansar
tos séculos atrás, atirou-a, num primeiro feras – o que não seria já coisa pouca – como o
idolátrico impulso, para a imitação e para o co- fazia Orfeu, antes de se meter a amansar as
mentário. Imitavam-se poetas e autores de tra- potestades infernais, no intento, finalmente vão
gédias; comentavam-se, sobretudo, os filósofos. (e não em razão da perda de qualquer capacida-
Sob o influxo dos humanistas, uma febre de imi- de persuasiva da sua música), de arrebatar ao
tação percorreu os cultores de todas as artes. reino das trevas a sua belíssima Euridice?

O que haveriam os músicos de imitar, dessa De que modo encontraram os músicos


Antiguidade erigida em modelo, atenta a impos- renascentistas no que faziam, à míngua mani-
sibilidade de ouvirem a arte de gregos e roma- festa de tamanhas maravilhas, correspondênci-
nos? Resignaram-se a deixar para os teóricos o as com o que se vinha realizando nas outras ar-
comentário do que os velhos filósofos – tes e nas letras? Preocuparam-se com isso ou
Pitágoras, Nicómaco, Aristoxeno, Filolau, passaram adiante?
Arquitas, Ptolomeu, Platão, Aristóteles –, e es- Teve Portugal – país, à época, no cerne dos prin-
critores – Varrão, Salústio, Juvenal, Horácio, cipais desenvolvimentos à escala planetária –
Ovídio, Virgílio, Cícero, Quintiliano – , alguma coisa a ver com essa aventura, ou con-
expenderam sobre as suas vivências e reflexões servou, a tal respeito, o estatuto, a que habitual-
musicais? Não se terão sequer aventurado a ten- mente vem condenado, de país periférico, sem-
tar traduzir experiencialmente o que a autorida- pre a reboque e, tardiamente, de gostos e modas
de dos antigos relatava sobre os poderes da mú- 5
alheias?
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Naturalmente que a empresa humanista chegou é a teoria, o lado nobre da arte, a – digamos as-
à música, como não podia deixar de ser. De mo- sim – filosofia ou, se quisermos, ciência da
dos vários. Desde logo, pela mão de muitos dos música, o mais são cantores e tocadores. Ele
humanistas, como foram os casos de Marsílio mesmo, Marsílio Ficino – ainda que os historia-
Ficino, Pico de la Mirandola, Ângelo Poliziano, dores do humanismo raramente o refiram – foi
Leão Baptista Alberti, António di Guido, António um respeitado teórico da música, não se limi-
d’Agostino, Baccio Ugolini, que todos foram tando a condensar apenas no seu De rationibus
excelentes executantes: uns, como Ficino, da lira, musicae, dedicado a Domenico Benivieni,
muito grega e, assim, sobremaneira humanista; “musicus absolutissimus” (de quem se não co-
outros, como Poliziano, do alaúde, bem árabe, nhece música alguma), as suas considerações
até na sua mesma designação, e, portanto, bem sobre ela, pois se lhe referiu detidamente em
pouco clássico, mas sobremaneira renascentista. vários dos seus escritos, e foi, também, para além
Pois, por estranho que possa parecer, atenta a disso, o mais que provável mais ilustre dos
impossibilidade de ouvir, de presenciar, de con- improvisadores cantantes: era maravilha vê-lo
templar, auditivamente falando, a música da improvisar sobre os Hinos Órficos, que ele mes-
Grécia Antiga, o que move a muitos é mesmo a mo vertera do grego para o latim, acompanhan-
imitatio. Quando Castiglione entende ser a mú- do-se à lira – a sua famosíssima lyra orphica –,
sica indispensável à completa composição do seu possuído de um órfico arrebatamento: “olhos
Cortesão, é porque – e ele não se esquece de o ardentes, muito direito na sua pequena estatura,
dizer – os antigos a celebravam e a tinham na a alma penetrada de inspiração divina, apanha-
conta de coisa sagrada(2). “O facto de Sócrates, do por aquele furor que Platão projectava nos
já velho, ter aprendido a tocar cítara, e de, quer poetas” – para usar, em tradução livre, as pala-
Platão, quer Aristóles, entenderem que todo o vras com que Nanie Bridgman(3) sintetiza a des-
homem de bem a deve praticar, são motivo para lumbrada descrição do poeta Campano. E, com
que a recomende como o meio mais eficaz de ele, de novo a música curava. Ao menos da me-
atingir a virtude”. lancolia e dos acessos de bílis. Francesco
Musano, aqui trazido pela mão de Nanie
Marsílio Ficino (1433-1499) converter-se-ia Bridgman, veio um dia agradecer-lhe os seus
mesmo num dos mais activos promotores do bons cuidados, que o haviam libertado de certas
humanismo musical: febres, rogando-lhe que tivesse a amabilidade “de
“É este um século de ouro, pois que trouxe à voltar a executar para ele alguns cantos ao som
luz as disciplinas liberais quase extintas, a gra- da sua lira”.
mática, a poesia, a eloquência, a pintura, a ar-
quitectura, a música, a arte de cantar sobre a
antiga lira de Orfeu, e tudo isso em Florença” – Antes de Ficino, já um Coluccio Salutati consi-
haveria de escrever, para que, hoje ainda, o sou- derara que “ela (a música) ilumina a gramática e
béssemos. Só que, quando assim deparamos com aplanando os conflitos da dialéctica, aljofra com
a ‘arte de cantar sobre a antiga lira de Orfeu’, a sua maravilhosa doçura as flores da retórica;
imediatamente precedida da referência à ‘músi- atrai tão fortemente os espíritos para a contem-
ca’, como se verdadeiramente fora outra coisa plação do belo que foi a primeira e a mais activa
(a sinonimia, ou mais exactamente, a particula- investigadora das proporções dos números, e,
rização, não a faz relativamente a nenhuma das medindo a voz como um corpo sólido, é plausí-
outras disciplinas), temos nós que ir além do vel que ela realce a subtileza da geometria. E
sentido que hoje damos às palavras. Se, por um como poderia a medicina, sem a ajuda desta ci-
lado, é a Antiguidade que por ali paira ressurgi- ência, examinar e estudar a boa adaptação dos
da, algo de medievo remanesce, e isso é a membros e a harmonia que reina, diz-se, nos
medieva destrinça entre teoria e prática, aliás mortais”?
herdada da Antiguidade: a música de que se fala 6

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E se a música, com Ficino, curava, também era se tratava de tema preexistente, sacro ou profa-
capaz do contrário. À fé de Giovio, a morte de no) tinha antes a ver com inventio, esta sim, de,
Poliziano constituiria um elucidativo exemplo por portas travessas, plausíveis ligações
de arrebatamento (furor) poético. Um belo dia analógicas à toda humanista retórica, a qual su-
de 1494, com tal ardor se entregava ele, acom- punha – como é sabido – quatro campos de in-
panhando-se ao alaúde, a fazer o panegírico de vestigação: inventio, dispositio, elocutio, actio,
um adolescente, que uma febre mortal súbita o a pautar os seis passos mais salientes da ‘ora-
atirou por terra, e não tinha mais de quarenta anos ção’, ocorrendo na música – por que não o ad-
de idade... mitir ? – algo semelhante ao percurso igualmen-
te analógico que Alberti recomenda ao pintor,
sem a elisão, que Alberti faz, da actio, a qual, no
Da música mesmo, da música prática destes caso vertente, se verá traduzida na execução,
humanistas, ainda de La Favola di Orfeo deste embora quase sempre desgarrada no tempo.
mesmo Ângelo Poliziano, representada em
Mântua em 1480, quando do casamento de Os processos compositivos franco-flamengos
Isabella d’Este com Francesco Gonzaga, na qual concretizavam-se, objectivamente, em três direc-
um outro célebre improvisador, Baccio Ugolini, ções fundamentais: na chanson, no motete e na
discípulo de Ficino, encarnou o semideus, co- missa polifónica. E vieram a marcar toda a evo-
nhecemos, contudo, tanto como conhecemos da lução da música no séc. XVI, designadamente,
música dos gregos: descrições. Tratava-se – as- em Itália, que lhe tomaria, a partir sensivelmen-
sim se pensa – de música monódica, essencial- te de meados de Quinhentos, a dianteira.
mente declamatória, construída sobre presumi- A magna questão é a de se saber o que prevale-
dos modos gregos ressuscitados a partir da in- cia, nas obra concretas dos mestres franco-
terpretação dos textos antigos, que toda esta gente flamengos, se o agenciamento musical, a lógica
porfiava em, como agora se diz, descodificar. construtiva resultante da aplicação inventiva dos
processos contrapontísticos, na sua alternância
entre marés de ‘complexização’ e fases de sim-
E, se desta música nada resta, o que haverá, na plificação, num processo histórico que mergu-
que abundantemente chegou até nós, que possa lhava as suas raízes na Idade Média; se, ao me-
reclamar-se da marca do pensamento humanista? nos a partir de certa altura, a percepção do texto,
melhor, a sua valorização, a exploração das
inflexões do verbo, ou do sentido do discurso (o
Diga-se, antes de mais, e salvaguardando todos
que não é bem a mesma coisa), pela música, tor-
os riscos que o excessivo simplismo sempre car-
nada, então, serva da palavra, uma das marcas
rega, que o século XV foi marcado, no que às
seguras da penetração dos ideais humanistas.
manifestações mais avançadas de música culta
respeita (havia, naturalmente, uma música po-
pular, e polifonias locais mais frustes, florescen- Na sua maior parte, os manuscritos (e mesmo
tes, designadamente, em ambas as penínsulas impressos), no que à música sacra concerne (mas
ocidentais europeias), pela omnipresença da não só), não curam de colocar o texto sob as notas
matriz franco-flamenga, a qual, por ramificações musicais a que respeite. O facto, que constitui,
várias, se estendeu um pouco por toda a Europa, por vezes, um verdadeiro quebra-cabeças para
e, grosso modo, se caracteriza por construções os musicólogos que se dão às transcrições para
polifónicas, progressivamente mais e mais ela- notação moderna, origina, não raro, as mais va-
boradas, pelo uso mais que recorrente de um riadas soluções. Higino Anglés – relata Miguel
contraponto em que a prática da imitatio não Querol Gavaldá (4) (que relembra, na oportuni-
carregava nenhuma conotação que a ligasse à dade, a transcrição, pelo grande mestre, do
Antiguidade, sendo que o era de um tema, ou da Cancionero Musical de Palacio) – “punha espe-
sua “cabeça”, ou seja, de algo que (quando não cial cuidado em que o texto cantasse bem”. 7

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Ora essa arreliadora, até por sistemática, ocor- popular, e por tal modo que – para encurtar a
rência, dá campo largo aos que sustentam man- história – foi como se os fizesse o que faziam.
ter-se por ali o primado da música. Não tiveram, durante décadas e décadas, como
Sabe-se, contudo, que os mais representativos sair duma menoridade dir-se-ia sem préstimo
dos compositores franco-flamengos, nem glória, não lhes valesse Nanie Bridgman:
designadamente os que se fixaram na Itália, ou «se faltam os «heróis», encontramos aí (ao lon-
que por lá se detiveram algum tempo, fosse por go do século XV) todo um povo de artistas que
influência directa do pensamento humanista, nem por serem mais modestos deixaram de apla-
fosse pela interposição (de humanista influên- nar o caminho para os ‘homens ilustres’ do sé-
cia) dos ideais de perceptividade dos textos sa- culo seguinte». Inútil, pois, procurar, na Itália de
grados defendidos pelas igrejas reformadas, se então, vulto musical para se medir com qualquer
foram tornando progressivamente mais sensíveis dos que, nas múltiplas disciplinas das outras ar-
à expressão e valorização das palavras pela mú- tes e das letras, formam a extensa e ímpar gale-
sica. E não é difícil, em muitos casos, mesmo na ria que do Olimpo e do Parnaso transalpinos,
situação atrás descrita, encontrar, no jogo das contempla o resto do universo, hoje ainda estu-
imitações temáticas, na importância das notas de pefacto (Brunelleschi, Ghiberti, Masaccio, Luca
apoio que semeiam o discurso musical, que o della Robia, Fra Angelico, Paolo Uccello, Andrea
pontuam e lhe mantêm, renovando-o, o interes- Mantegna, Piero della Francesca, Botticelli,
se, processo que vai transitando de voz para voz, Ghirlandaio, Leonardo da Vinci, Verrocchio,
discernir que palavra atribuir a que notas, de Alberti, Miguel Ângelo, Perugino, Filelfo,
modo a que não saia o acento defraudado, mas Nicolau de Cusa, Leonardo Bruno, Marsílio
sim valorizado. Porque – diga-se – não nos pa- Ficino, Lorenzo Valla, Poliziano, Gaffurio,
rece que, antes como depois da experiência fran- Sannazzaro, Pico della Mirandola, Ariosto – al-
cesa da musique mesurée à l’antique (aliás apli- guns entraram pelo séc. XVI).
cada à poesia em vernáculo, à qual se não ade- Por isso se tornou a Itália terra de promissão para
quava minimamente), a quantidade latina clás- os músicos franceses e, sobretudo, flamengos (os
sica tivesse ali, de uma forma tão abertamente franceses gostam que se diga franco-flamengos).
ostensiva, alguma coisa que ver. (Não há como De Dufay a Josquin e deste a Willaert – para ci-
o percepcionar, auditivamente, para compreen- tar os expoentes maiores – gerações de músicos
der o sentido exacto do que aqui se afirma. Ouça- excepcionais por lá andaram, ao serviço da Igre-
se, de Claude Lejeune, uma das mais conheci- ja e seus príncipes, ao serviço dos Médici, dos
das chansons: Revecy venir du Primpemps (5) – Sforza, mas também, e sobremaneira, dos Este,
musique mesurée à l’antique da mais sugesti- dos Gonzaga, da Veneza dos doges, dos reis de
va.) Nápoles.”
Por isso é que, também – ironia das ironias –, o
A repetida referência que aqui se tem feito aos madrigal, esse supremo refinamento da música
músicos franco-flamengos era absolutamente no seu casamento com a poesia, que tão intima-
incontornável. Na verdade, “nos séculos que vi- mente associamos ao génio italiano, o madrigal
ram a espantosa floração do Renascimento em que marca de um modo tão soberbo o ressurgi-
Itália, nas belas letras como nas belas artes, a mento da música na pátria que ao depois, por
música cultivada por italianos, depois da pro- dois largos séculos, ia ser a sua, começou por
missora colheita de ballate, madrigali, caccie, ser cultivado aí, essencialmente, por músicos
istampite... do tardo Trecento e do Quatrocento franceses e flamengos.” (6)
nos seus alvores, conheceu um inesperado apa- “Não há, afinal, nada de surpreendente nisso.
gamento. Não que tenham pura e simplesmente Numa Itália onde pontificavam esses consuma-
desaparecido os músicos. Certamente que não. dos artesãos da arte do contraponto, com que se
Davam-se é a géneros menores, de sabor antes faziam, em suas regiões de origem, motetes e 8

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chansons , natural mesmo era que ocorresse a Estando ao serviço de Sua Serena Alteza de
algum deles a ideia que todos, afinal, tinham mais Mântua, não sou senhor do tempo de que precisa-
à mão, porque fazia parte do seu comum ria para tal. Porém, escrevi uma resposta, para
apetrechamento musical, ideia que o futuro se que se saiba que não faço as coisas ao acaso, e,
assim que estiver revista, virá a lume (nunca veio),
encarregaria de revelar como absolutamente ex-
trazendo no frontispício o título Seconda Pratica
plosiva: fecundar in ovo a chanson / motete fran-
overo Perfettione Della Musica Moderna. Alguns
co-flamengos com a fúria versejadora acharão isto estranho, não acreditando que exista
transalpina. Se bem o pensou, melhor o fez. E outra prática para além da ensinada por Zarlino.
foi assim que da união dos processos Mas a esses posso garantir, a respeito de conso-
compositivos da chanson e do motete com uma nâncias e dissonâncias, que há uma forma de as
lírica amorosa em vernáculo italiano, entre pla- considerar diferente dessa já determinada, que
tónica e erótica, de raiz petrarquista, nasceu, pela defende a moderna maneira de compor com o as-
segunda década de quinhentos, essa feliz sentimento da razão e dos sentidos. Quis dizer isto
simbiose de poesia e música, a que foi posto o tanto para que outros se não apropriassem da mi-
nome de madrigal”. (7) nha expressão “seconda pratica” como para que
os homens de inteligência pudessem considerar
Tão abençoada foi essa união entre música e outras reflexões sobre harmonia. E acreditai que o
verbo que Luzzasco Luzzaschi, no Sexto Livro moderno compositor constrói sobre alicerces de
de Madrigais a 5, de 1596, pôde escrever, con- verdade. Sede felizes.» (Cláudio Monteverdi –
fundindo num único género o todo separado de Prefácio ao 5º Livro de Madrigais - 1605).” (8) (Ou-
duas distintas artes: “A Música e a Poesia são çamos, do Quarto Livro de Madrigais, Ohimè, se
tão semelhantes e de natureza tão conjunta que tanto amate (9))
bem se pode dizer que nasceram ao mesmo tem-
po no Parnaso. Não só estas duas gémeas se Colocadas, a largas pinceladas, algumas indis-
assemelham no seu ar e no seu aspecto, como pensáveis premissas, e levando nisso uma gorda
além disso gozam também da semelhança das meia hora, de duas uma: ou vem aí, agora, uma
suas formas e das suas qualidades. Se uma muda avalanche de dados tamanha que necessitará de
a sua maneira, a outra modifica o seu aspecto”. mais três meias horas, pelo menos, para que su-
ficientemente se explane, ou a montanha que por
tal modo veio a avolumar-se tem cerca de dez
“E se, no princípio, o princípio foi ‘primo la minutos para dar à luz o rato.
musica doppo la parola’ – que, ao depois, se
identificaria como a ‘prima prattica’, onde tam- Assim será, em larga medida e a explicação é
bém predominava a poesia per musica fornecida simples: a extrema escassez de fontes musicais.
por um número apreciável de versejadores As histórias da música em Portugal, diante do
petrarquizantes, alinhados atrás do cardeal facto, desunham-se para encontrar referências à
Bembo, não tarda espreite a ‘seconda’ (‘prattica’, vida musical, na corte e alhures, ao longo dos
claro), em que o cuidado posto na escolha dos séculos XV e XVI. E referências não faltam.
poemas, tornado de regra, haveria de ditar: - ‘pri- Bombásticas muitas delas. Revelando, outras,
mo la poesia, doppo la musica’, com o que se um fausto régio surpreendente, face à mudez dos
fartou a música de ganhar, como acontecerá de resultados que chegou até nós.
outras vezes, noutros contextos, lugares e tem-
Razões para isso apontam-se muitas. Entre as
pos.
principais, avulta o nenhum cuidado posto na
Aí deixo o registo de nascimento dessa outra impressão da música que se foi criando. Tam-
expressão que haveria de cobrar tão radioso êxi- bém a falta de bibliotecas que cuidassem de cen-
to, para eterna irrisão de todos os ‘artusis’: tralizar os manuscritos, como em outras partes
«Não vos admireis por eu dar estes madrigais à se fez. Vem, depois, o Terramoto de 1755 e o
estampa sem antes responder às objecções que incêndio que se seguiu, o qual, ao destruir a
Artusi colocou a algumas breves passagens deles. riquíssima biblioteca musical reunida pelos 9

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Braganças e, essencialmente, por D. João IV, terá de Tarazona e é seu autor Pedro do Porto. Não
roubado ao País e, eventualmente, ao mundo, as muito longe dessa, em data, hão-de andar as
mais apuradas finezas dos cometimentos pátrios obras de dois compositores coimbrãos, ligados
em tal domínio, deixando-lhe, em troca, a des- à Sé local. São eles Fernão Gomes, a quem a
culpa perfunctória da catástrofe, donde algum crónica se refere, dizendo-o “lusitanus et optimus
alento vem cobrando a honra da grei que, a não in arte”, e Vasco Pires, cujas obras – no dizer de
ser assim, sofreria de perpétuo, insuportável aba- R. Stevenson – “mostram que foi um perfeito
lo. As Invasões Francesas e as lutas liberais te- contrapontista”.
rão feito o resto. A despeito das mais que prováveis formações
Por outro lado, o trabalho musicológico que tem dos músicos coimbrãos terem contado com o seu
sido desenvolvido em torno das fontes que exis- quinhão de humanidades, não parece que qual-
tem, tem-se ficado, na esmagadora maioria dos quer das suas obras venha marcada com o selo
casos, pela descrição dos in-folios, pela caracte- do culto da Antiguidade, qualquer que seja o as-
rização dos aspectos formais mais imediatos dos pecto por que esse culto se manifestou noutras
espécimes – caso dos cancioneiros –, pela tenta- partes. Inscrevem-se, tal como o Magnificat de
tiva, largamente infrutífera, de biografar os com- Porto, na tradição contrapontística franco-
positores, e de atribuir a autores conhecidos o flamenga. O texto sacro não passará aí de pre-
maior número possível de espécimes da enorme texto.
profusão de anónimos que são a maior colheita
dos cancioneiros.
R. Stevenson lançou, contudo, a tese, até hoje
sem nenhuma contestação sólida, de que aquele
Mas, a crua verdade, é que das descrições que Pedro do Porto é nome por que também andou
nos chegam das grandes festividades, no Paço, conhecido o compositor Pedro ou Pero Escobar,
como ao ar livre, se faz manifesto que a presen- até então julgado espanhol. Vale a dizer que o
ça de música profana é largamente – aqui se não repertório musical de autor português, a despei-
diz absolutamente – subsidiária da matriz popu- to de séculos de atraso, começa logo por um con-
lar, essencialmente monódica, a não necessitar, junto de obras de elevada valia artística, mesmo
tradicionalmente, de qualquer registo. para o tempo.
A música culta feita em Portugal foi, com Para nos quedarmos pela consideração do motete
raríssimas excepções, essencialmente destinada que propiciou ao distinto musicólogo america-
ao culto. Dessa, resistiu, ainda assim, aos des- no a identificação de Porto com Escobar – o
cuidos editoriais, à traça, aos ratos e às calami- celebradíssimo Clamabat autem mulier
dades, um apreciável espólio, que a Fundação Chananaea – agora que nos munimos da tal fer-
Gulbenkian se tem dado a dar a lume, de há cer- ramenta analítica humanista, quase os ouvidos
ca de três décadas a esta parte, e que tem sido se fazem olhos, perplexos de não terem visto
objecto do interesse dos mais destacados grupos ainda, ou de não terem visto do mesmo modo, a
europeus que se dedicam à interpretação de claridade solar com que uma música nos devol-
polifonia renascentista, sobretudo dos ingleses. ve um texto, comprazidos da felicidade com que
Mas essa música nossa é, quase invariavelmen- uma e outro se casam; e a mente, subitamente
te, tardia. Desenvolve-se profusamente quando desperta, percepciona, com uma definição toda
em outros lugares já se partiu para outras direc- visual, que aquela teatralidade que atravessa de
ções. ponta a ponta o motete, e em que, quiçá, não se
detivera antes, ou que, antes, não se dera a rela-
A mais antiga obra indubitavelmente de autor cionar com o que quer que fosse, reproduz, sem
português conhecida, chega-nos, provavelmen- artifício, uma cena viva, condensada num mo-
te, dos finais do século XV. Trata-se de um mento de puro encantamento. Há ali retórica em
Magnificat do 8º tom, que se contém no ms. 2/3 estado puro, incontaminada ainda de qualquer 10

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lixo formalista. Tudo aquilo flui, tudo aquilo se do Colégio das Artes.
encaminha, sabiamente conduzido por mão in-
visível mas certeira, para um fim em que o mila-
gre, pedido e realizado, como que faz parar o A Companhia de Jesus instalou-se em Portugal
tempo, suspendendo-o na miraculosa em 1542(11), oito anos decorridos sobre a sua fun-
circularidade daquele entrosamento de vozes em dação.
repetição quase minimalista! Há-de andar por ali, Nascida para combater a Reforma, cedo se aper-
na eficácia com que se traduz a emoção duma cebeu de que o meio mais eficaz para alcançar o
mulher que clama e suplica e insiste, e na sole- seu objectivo e o defender duradouramente era
nidade com que se caracteriza o ar, distanciado entregar-se com todas as suas energias ao ensi-
primeiro, logo muito chegado, como coloquial, no.
do interpelado, tomado de uma ternura súbita,
Não se vai referir aqui, factualmente, o modo
compadecida e finalmente rendida, há-de andar
quase fulminante como a Companhia se difun-
por ali – dizia – nessa única cena, que se reduz
diu e se apoderou, a breve trecho, dos mais re-
a uma mulher aflita e a um Deus que se amercea,
presentativos e apetecidos estabelecimentos de
tocante de humanidade, talvez que a primeira e
ensino, por toda a Europa católica e ainda pelas
uma das mais conseguidas manifestações do
colónias das Américas e do Oriente (Índia, Ja-
humanismo em música, no Portugal de Quinhen-
pão e China), aonde se entregou também à
tos. (Espero, sinceramente, não ter entrado já em
missionação.
delírio... Ouçamos: (10))
A música começou por não ter, nesse ensino,
Pura intuição do autor que, ao que dele se sabe,
espaço algum. O fundador da Companhia nutria
nada habilita a supor preocupado com tais ador-
em relação a ela, mesmo à destinada aos actos
nos do espírito? Concordância feliz dos factos
do culto, uma desconfiança que se traduzia em
com o que os tempos iam semeando nas ideias?
interditos.
É bem possível. Escobar frequentou as cortes
peninsulares dos Reis Católicos e d’El Rei D. Nos primeiros anos, a palavra proibição é cor-
Manuel. Na corte portuguesa para além do co- rente no que respeita quer à sua prática, ainda
nhecimento certo que manteve com Gil Vicente, em contexto litúrgico, quer ao seu ensino.
com quem seguramente conviveu em data pos- Mas, como tem sido sobejamente notado, nesta
terior ao Auto da Sibila Cassandra (1513), obra coisas da Santa Madre Igreja, a notícia das proi-
que, para alguns, marca o início do Renascimento bições não revela só o lado negativo dos factos,
em Portugal, há-de ter-se cruzado com Garcia quando não sejam eles, de sua natureza, negati-
de Resende, Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda. vos. Nunca é preciso proibir o que não existe, o
A corte portuguesa vivia um ambiente cultural que se não pratica. A notícia da proibição do
verdadeiramente renascentista. Freitas Branco ministério da música, feita aos membros da Com-
fala d’ “uma onda de intelectualismo humanista panhia, revela que por algum modo se tinham
que inundou o meio aristocrata”. alguns deles tornado aptos a fazê-lo.
Seja como seja, parece-me inegável que, por toda Seja como seja, tais proibições, volveram-se, a
o obra de Escobar, mormente pela sua obra sa- páginas tantas, restrições, e umas e outras fo-
cra, perpassa, invariavelmente, se nem sempre a ram-se tornando paulatinamente de difícil ob-
mesma impressiva luminosidade, um riquíssimo servação. Não tardaram as excepções. Pretextos
filão de humaníssima emotividade. não faltavam: o respeito de costumes locais, as
solenidades centrais da cristandade – os ciclos
do Natal e da Paixão.
Mas para nos acercarmos mais do humanismo
A música polifónica, naturalmente, conheceu
português no domínio da música, teremos que
mais dificuldade em justificar-se e só muito ex-
nos ir a Coimbra, ao Mosteiro de Santa Cruz e,
cepcionalmente foi admitida. 11
imperativamente, que nos acercar dos Jesuítas
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Passaram breve, porém, os rígidos tempos dos nos modelos clássicos, Virgílio por um lado,
severos princípios. A música foi-se tornando aos Séneca por outro. (Por toda a parte a imitatio.)
poucos presença qualificada nos actos culturais Todos os demais aspectos da representação ca-
através dos quais os jesuítas propagandeavam a biam debaixo da designação ornatus. Assim
qualidade do que faziam. aquilo que hoje designamos por cenografia, que
Claro que as deliberações do Concílio de Trento, conheceu, com os jesuítas coimbrãos, um desen-
no que respeita à polifonia, designadamente volvimento não muito distante do que viria a dar-
quanto à inteligibilidade dos textos, eram toma- se no teatro barroco italiano: nem máquinas ge-
das muito a peito. Não tendo o Concílio cedido radoras de vento e de trovões, ou capazes de pro-
na questão do uso do latim, aos jesuítas impu- vocar a ilusão de voos e de levitações, faltaram.
nha-se que bem o ensinassem e que, ao cantá-lo, Para captar os auditórios, que chegaram a atu-
mormente em contexto litúrgico, zelassem para lhar os grandes espaços públicos, havia absolu-
que se não obnubilasse a sua percepção. tamente que produzir coisas capazes de encher
o olho, de embasbacar. Que umas cenas arreba-
tassem, outras suscitassem terror, e que o todo
O teatro escolar, viria acelerar a atitude de tole- fosse, finalmente, edificante.
rância da Companhia relativamente à música.
Esse teatro, inteiramente novilatino, inseria-se Os actores eram alunos, de retórica na sua maior
nos ludi litterarii, que ocorriam em média duas parte, meticulosamente ensaiados pelos seus
vezes ao ano, constituindo o seu ponto culmi- mestres. O sexo dito fraco nem mesmo na assis-
nante. Durante um ludus literarius tinham os tência era admitido (salvo especialíssimas ex-
alunos que exibir as competências adquiridas nas cepções), pelo que os papeis femininos eram re-
áreas que formavam o núcleo duro da sua edu- presentados por rapazes, trajados a preceito, de
cação. A destreza na composição em latim, por mulher. As récitas podiam durar entre duas e sete
exemplo, deveria demonstrar-se pela apresenta- horas.
ção de epigramas, ou outros trechos curtos, que
eram expostos, ao longo de todo o ludus, nas A despeito de tudo o que atrás se deixou acerca
paredes do Colégio. Mais importante, contudo, das reservas e interditos dos jesuítas, nos
era a demonstração das aptidões no domínio da primórdios da Companhia, as representações le-
retórica, devidamente postas à prova em dispu- vadas a cabo pelo Colégio de Coimbra, vieram a
tas e diálogos. incluir, cada vez com mais frequência, música
O fecho da abóbada cabia, porém, ao teatro. As vocal, nelas desempenhando um papel bem mais
capacidades de toda a máquina de ensino que decorativo, como pode depreender-se do
jesuítico viam-se levadas aí a extremos de relato de um espectador de Saul Gelboaeus, uma
apuramento. O objectivo era claro: impressio- das primeiras peças de Miguel Venegas, repre-
nar para poder influir. sentada em 9 de Julho de 1559:
O texto devia-se, por via de regra, a um profes- “Avia em cada acto um choro de letra muy devota,
sor do Colégio. Distinguiram-se, entre esses hoje y muy bien compuesto en puncto de canto de
obscuros autores, Miguel Venegas e Luís da órgano, y 8 ó nueve músicos que los cantavan muy
Cruz, seu discípulo, que viram as suas obras se- bien; y contentáronse tantos todos destes choros,
máxime los religiosos, que no sólo los que estavan
rem exportadas para outras províncias da Com-
presentes, pero aun los de Sancta Cruz... los
panhia e executadas em muitos pontos da Euro-
pedieron con mucha instancia, y dándoseles dizían
pa, chegando, mesmo, a ser publicadas no es- que no avían visto cosa semejante”.
trangeiro (as de Luís da Cruz conheceram edi- Pelo que, estes coros não tardaram a fazer-se
ção póstuma, em Lyon, em 1605). indispensáveis: “Chori sunt in omnibus istis
O assunto era, em princípio, bíblico, e quer a actionib(us). Sine harmonia theatrum non
linguagem quer as técnicas dramáticas baseadas delectat...” , pode ler-se no prefácio à edição de 12

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Lyon das Tragicae, comicaeque actiones, de Luís mo fora de Coimbra, optando, depois, pela que
da Cruz. lhes parecesse adequar-se melhor.
É de toda a oportunidade trazer para aqui mais E a música de Dom Francisco de Santa Maria,
um naco desse prefácio, pela muita luz que pro- especialmente a que destinou à colaboração que
jecta sobre a importância que a música vocal veio manteve com os dois principais dramaturgistas
a atingir no teatro jesuítico coimbrão: de Coimbra, a ajuizar-se pela que sobrevive no
“Nós (os portugueses) sempre esperamos que se MM 70, “evidencia ... um estilo conforme aos
cante. E por que é que o canto haveria de ser exe- princípios do humanismo, onde há indícios se-
cutado entre cortinas se, desse modo, se não pode- guros de um esforço consciente tendente a res-
ria ouvir claramente? Conduzido do proscénio taurar certas características da música destinada
para cena, encanta de um modo admirável. Por ao coro no teatro antigo”. (12)
isso fizemos que os cantores apareçam trajados. E
De que modo? Pois, desde logo, distanciando-
é conhecido até onde podem ir as aptidões dos
Portugueses nesse domínio”. se das convenções do stile antico.
Não há repetições, excepto no fim, e aí, nitida-
Fanfarronada? A verdade é que Owen não a vê, mente para o enfatizar. Os ritmos não se organi-
pois não se coibe de falar, certamente que zam em obediência ao tactus mas em ordem a
alicerçado em dados sérios, de “um tipo de mú- sublinhar os acentos e o sentido do verbo (e nis-
sica – já existente nos anos 1550 – que era com- so se distingue dos processos da musique
pletamente integral ao drama (e que contrasta, mesurée, que se dava a sublinhar a quantidade),
portanto, com a tradição italiana do intermedio)”. e o uso das semínimas é de molde a incutir na
interpretação um canto discursivo, não muito
distante do futuro recitativo que veio a ser uma
O teatro escolar novilatino dos jesuítas – como das molas propulsoras da irrupção da ópera em
já se deixou entender – foi cultivado por todas Itália, poucas décadas mais adiante.
as suas províncias. Música abundante há-de ter Facto que não espanta o musicólogo, porquanto
sido produzida, um pouco por todo lado. Mas – Coimbra era, na altura, com Salamanca, “o mai-
ao que parece – ao contrário do que é hábito, o or centro académico da cultura clássica e
maior número de peças conservadas, ainda que, humanista na península”.
em muitos casos, em estado fragmentário, en-
contra-se na Biblioteca Geral da Universidade Foi, provavelmente, em razão disso, que João
de Coimbra. Pouca é, de qualquer modo. Maria de Freitas, num dos textos com que se deu
a actualizar a História da Música Portuguesa,
de seu pai, não teve dúvidas em escrever:
Pelo obituário do Dom Francisco de Santa Ma- “Se o humanismo tivesse conhecido em Portugal
ria ficamos a saber que foi ele um dos composi- um desenvolvimento com aderências musicais com-
tores: paráveis às da Itália, talvez a ópera tivesse nascido
neste extremo da Europa”.
“Compos muitos choros pera tregedias, especi-
almente pera hua grande que el Rei dom Sebas-
tião veo ver a esta Cidade, e os seus foram esco- Compulsando os trabalhos que os Professores
lhidos entre muitos, porque pera isto tinha es- Joaquim de Carvalho e Américo da Costa
pecial graça”. A tragédia em referência foi Ramalho dedicaram ao humanismo renascentista
Sedecias de Luís da Cruz e a música, juntamen- em Portugal, fica-se impressionado com o nú-
te com a caracterização e os cenários, impressi- mero inimaginável de cultores do latim em ter-
onou a valer. ras lusas, e com o brilhantismo com que alguns
deles se saíam, mesmo na própria corte
Sabe-se, aliás, que, a páginas tantas, os jesuítas, pontifícia. Esse número, sobretudo depois da
na sua escalada de apuro e de exigência, enco- chegada a Portugal de Cataldo Parísio Sículo,
mendavam a música a vários compositores, mes- 13

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em tempos d’El Rei D. João II, quase se vê cres- fazia, não há mesmo como o provar.
cer. A colheita de epigramas, éclogas, odes, ora- Desse ornamento do humanismo português que
ções de sapiência, discursos laudatórios se chamou Damião de Góis, nunca será demais
construídos no mais clássico dos latins e na ob- sublinhar que, por todas as partes por onde pere-
servância de todas as boas regras da métrica e grinou, era conhecido como musicus, embora não
da retórica, é impressionante. Alguma dessa li- tivesse feito da música a sua actividade princi-
teratura novilatina irá mesmo além da pura pal. Mas a música haveria de o acompanhar até
imitatio. Fica a saber-se que casas nobres houve aos tribunais da Santa Inquisição, aonde foi cha-
onde a aprendizagem do latim se iniciava pelos mada à matéria de acusação. Se compôs muito
três anos de idade. D. Pedro de Meneses pro- ou pouco não o sabemos. Apenas três peças de
nuncia, aos 17, uma oração de sapiência que sua autoria chegaram até nós, todas elas
continua a causar espanto aos investigadores publicadas em prestigiadas colectâneas da épo-
destas artes. Jovem dotado este, que seu mestre ca, onde figuram ao lado de obras de alguns dos
Cataldo revela, alguns anos mais tarde, na Visio nomes cimeiros da música do seu tempo. Ne
tertia, hábil em todas as artes (mesmo no tou- laeteris é mesmo usado por Glareano, no
reio), de todos adorado, verdadeiro derriço das Dodecachordon, como um dos exemplos
damas da corte, e ademais bom tocador de har- ilustrativos do modo eólio. E mostra o seu autor
pa, a solo, ou acompanhando o seu próprio can- perfeitamente sintonizado com uma das magnas
to! (pre)ocupações do humanismo musical – o eter-
Anda por ali um brilho pátrio que passa larga- no perscrutar dos modos antigos, aos quais
mente despercebido. Os nomes que emergem na Glareano, “como bom humanista”, acreditando
ribalta das letras lusas raramente coincidem com “ter reconstituído os modos antigos” e “escan-
os desses latinistas provados. dalizando-se de os ver amputados de dois no-
Dos escritos latinos de Damião de Góis se diz mes” acabava justamente de juntar este eólio e
mesmo que não primam por elevado apuro. mais o jónio. (13)
As obras de Góis (14) revelam, todas elas, que não
era um neófito nas artes do contraponto. Longe
Estas coisas se chamam aqui para se dizer que, a disso. A sua arte sai inteirinha dos moldes fran-
despeito desse ambiente que se pressente a bor- co-flamengos. São suas “linhas límpidas, flui-
bulhar de cultura, a despeito das recheadas ca- das, de um requintadíssimo gosto(15)”. E se nes-
pelas dos reis, dos príncipes e mesmo de alguns sas obras encontramos ainda o gosto antigo de
nobres, a despeito de algumas explendorosas um texto que a música distende em dilatados
descrições, como a da chegada a Évora da filha melismas, parece inegável que nem por isso dei-
dos Reis Católicos, que vinha para unir os seus xam elas de traduzir o que nesses textos se con-
destinos aos do príncipe herdeiro de Portugal, tém de verdadeiramente essencial: Dominus lux
durante a qual Cataldo enalteceu, num latim mea est, esse confiado apaziguamento na Luz,
magnífico, as virtudes que exornavam o sobera- depois da provação, com que se conclui Ne
no português, cujos súbditos tão longe haviam laeteris, é, do que aqui se diz, um luminoso
penetrado já o mar oceano que tinham a Índia à exemplo.
vista, ou daquela outra, carregada de humor, de
Gil Vicente, na Tragicomédia das Cortes de
Júpiter, escrita para a festa da partida da Infanta O grosso da música mais antiga feita em Portu-
Beatriz para Sabóia, descrições todas elas apon- gal e que nenhuma vicissitude impediu de che-
tando para a existência relativamente abundante gar até nós, não nos vem do tempo que viveu as
de músicos práticos no Portugal que viveu a Descobertas mas dos tempos que desataram a
aventura das Descobertas, autóctones ou prove- viver das Descobertas. Sacra é ela, quase toda.
nientes de todas as partes da Europa, mormente Os seus autores, parte deles nomes prestigiados
da Flandres, a despeito de tão fartos indicado- no espaço ibérico d’aquém e d’além mar, tive-
res, se reflexos deles houve na música que se ram, em seus anos de formação, convívio com 14

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os clássicos. As humanae litterae, em versão A concluir:
mais ou menos light, posto que condensadas em Humanismo haveria de fazer-se termo de largo
textos ‘antológicos’ criteriosamente selecciona- abrangimento. A sua conotação estrita com as
dos para que pudessem ter o nihil obstat e o letras e culturas clássicas e, no encalço destas,
imprimatur, instalaram-se no ensino da Igreja, com as artes coetâneas do novo favor de que es-
por centúrias, até praticamente aos nossos dias. sas letras e essas culturas se tornaram alvo, deu
(Ainda nos anos cinquenta do século passado, em alargar-se a significações mais amplas, vin-
se estudava, nos seminários maiores, embora já do a abranger todos os supremos valores do ho-
não em latim, a arte da oratória.) Os fundamen- mem. Valores que, se verdadeiramente o são,
tos da cultura do homem adulto radicarão sem- aspiram à universalidade.
pre aí, naquilo com que conviveu nos anos de
aprendizagem. Ainda que depois tenha deixado Nesse sentido, quando se lhe associa um adjec-
para trás esse convívio. O que remanesceu dos tivo, não se resume o gesto à necessidade de
ideais do humanismo depois dos ardores dos objectivação verbal / conceptual de uma reali-
primeiros tempos, mesmo que tenha deixado de dade, nem se fornece apenas um novo ângulo de
se fazer evidente, é impossível que não continu- observação ao investigador: é o próprio âmbito
asse a informar o gesto criador. Isso explica toda significante do termo que se restringe. Ou se
a arte e toda a cultura barroca. Os músicos não amplia? E aí está uma profusão de humanismos
escaparam a isso, mesmo os nossos, por mais que, a páginas tantas, mesmo perseguindo ob-
presos que se mantivessem ao culto do estilo jectivos comuns, competem, conflituam, se de-
antigo, da prima prattica. savêm.
Permita-se-me um exemplo apenas, em abono Ao tratar-se aqui de humanismo latino e das in-
do que acabo de dizer: o dos responsórios de fluências que tenha ele tido na cultura portugue-
Sexta-feira Santa do padre mestre Francisco sa, como que nos vamos chegando a um
Martins, um obscuro compositor português de fenómeno de características tão absolutamente
Seiscentos. Tenho-os como caso paradigmático peculiares que temos que de novo adjectivar:
de música que nasceu para dar vida a um texto e ademais de latina, é já portuguesa a matéria subs-
o consegue com uma eficácia exemplar. São, tantiva com que o novo adjectivo, redutor do
contudo, de uma simplicidade difícil de igualar. âmbito digamos assim geográfico, vem afinal
Escondido por detrás de uma figuração indutora enriquecer e, por conseguinte, alargar semanti-
de uma pulsação de largo fôlego, figura-se-me camente o conteúdo significante do étimo inici-
andar por ali um como persistente recitativo al.
polifónico. Moderno nisso. Viveu, contudo, o
seu autor a vida inteira como mestre de capela
da Sé de uma cidade fronteiriça. Longe de tudo. A variedade de humanismos que o nosso vezo
Entregue tão-só – que se saiba – ao seu humilde perscrutador e analítico se dá a descortinar no
ofício. E porque viveu em plena Guerra da Res- humano percurso desde que se baptizou o pri-
tauração, pois chegou a Elvas em 1640 e lá dei- meiro, manifestaram-se – ainda os da mesma
xou os ossos em 20 de Março de 1680, não lhe matriz - de modos às vezes bem contraditórios.
foi certamente estranho o espectáculo horrendo Não raro mesmo, uma comum formação
das carnificinas. Aí terá aprendido – quem o po- humanista se resolveu em antagonismos de ac-
derá saber ? – o outro lado do homem, a fatuida- ção absolutamente inconciliáveis. E aparece sem-
de da vida quando se dá ela a adornar-se de ven- pre alguém que não deixa a música eximir-se a
to. Por isso que, destinando praticamente toda a tais andanças.
sua obra às celebrações da paixão e morte do Mas, aonde a exploração desta simples ideia nos
que era para ele, como certamente para muitos poderia levar ainda!
dos presentes, o Homem Deus, a quis assim con-
(Va, pensiero... (17))
cisa, assim despojada. Eficaz. (De Francisco
Martins, Tenebrae factae sunt (16))
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tura Portuguesa”, Comissariado para a Europália NOTAS
91, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1991. (1) O que supunha aturada frequentação dos clássicos, só
possível graças, afinal, aos estudiosos medievais que, sé-
- Vários, História da Literatura Portuguesa, das culo após século, por mais de mil anos, os copiaram ou
Origens ao Cancioneiro Geral, Publicações Alfa, fizeram copiar, naturalmente que para seu próprio consu-
2001. mo e deleite, a despeito das ‘trevas’ que eles próprios,
certamente, nunca viram, com o que chegaram os ditos
- Vito Pandolfi, histoire du théatre 1, marabout clássicos à posteridade.
universitaire, 1968. (2) Nanie Bridgman, La vie musicale au Quattrocento,
Gallimard, 1964.
(3) O. cit..
(4) Miguel Querol Gavaldá, La Música Española en tor-
no a 1492, Vol I, Antología Polifónica Práctica da la Épo-
ca de los Reyes Católicos, Diputación Provincial de Gra-
nada, 1992.
(5) CD Amour, amours – Florilège des chansons françaises
de la Renaissance, Ensemble Gilles Binchois, dir.
Dominique Vellard, Virgin Veritas, 2001.
(6) J. L. B. C., Notas ao programa do agrupamento ‘La
Venexiana’, in “XXIV Festival Internacional de Música
da Póvoa de Varzim, 5 a 31 de Julho de 2002, p. 51.
(7) J.L.B.C., ibid. p. 53.
(8) J. L. B. C. , ibid., p 53-54.
(9) CD Monteverdi – Quarto Libro dei Madrigali, Con-
certo Italiano, dir. Rinaldo Alessandrini, Opus 111, 1993.
(10) Clamabat autem mulier Chananae, in CD ‘Introitus’,
Hilliard Ensemble, EMI Classics 7243 5 55207 2 2, 1994.
(11) No que concerne o teatro escolar novilatino coimbrão,
os dados apresentados relevam fundamentalmente de dois
autores: Owen Rees, Polyphony in Portugal c. 1530 – c.
1620, Sources from the Monastery of Santa Cruz,
Coimbra, Garland Publishing, Inc., New York & London
/ 1995; João Maria de Freitas Branco, in João de Freitas
Branco, História da Música Portuguesa, 3ª Edição, Pu-
blicações Europa-América, 1995.
(12) Owen Rees, Polyphony in Portugal c. 1530 – c. 1620
– Sources from the Monastery of Santa Cruz, Coimbra,
Garland Publishing, Inc., New York & London, 1995, p.
106.
(13) Jacques Chailley, L’imbroglio des modes, Alphonse
Leduc, Paris, 1960.
(14) Publicadas em Antologia de Polifonia Portuguesa,
Fundação Gulbenkian, 1982.
(15) J.L.B.C. – in “à volta de Pedro do Porto”, Casa da
Música, Porto 2001.
(16) CD Polifonistas dos séculos XVI e XVII da Sé de
Évora, Coro polifónico EBORÆ MVSICA, editado por
EBORÆ MVSICA, 1996.
(17) CD giuseppe verdi, Chor und Orchester des
Deutschen Oper Belin, dir. Giuseppe Sinopoli, Deutsche
Grammophon Panorama 469 217-2.

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