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‘Inventário’ informal de trocadilhos da

cidade mostra vocação do carioca para a


piada pronta
 As história por trás de nomes curiosos dos estabelecimentos comerciais do Rio




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Mariana Filgueiras (Email · Facebook · Twitter)

Publicado: 25/08/13 - 7h00


Atualizado: 25/08/13 - 18h35

Rafael Sampaio e Tatiana Abramant, donos do bar Barthodomeu, em Ipanema Daniela


Dacorso / O Globo

RIO - O sujeito chega do Ceará para tentar uma vida melhor no Rio de Janeiro. Isso lá
nos anos 70. Começa carregando madeira, passa a comprá-las para revenda, o negócio
vai indo bem, obrigado, e ele abre uma loja em Copacabana. Na hora de batizar o local,
pensa: “Eu sou do Ceará... Vim de pau de arara. E a loja é de madeira. Pronto. É Pau de
Arara o nome da loja.”
Mas a mulher faz um muxoxo. E como é ela quem manda, o nome da loja fica sendo
Pau Mandado.

Parece piada, mas é a história por trás do letreiro de uma madeireira na Rua Barata
Ribeiro, em Copacabana.

— Para o marketing é uma beleza, porque ninguém esquece o nome da loja — justifica
o proprietário brincalhão, Augusto Sarmento, de 63 anos.

Tascar um trocadilho em nome de estabelecimento comercial é uma prática tão


tupiniquim quanto pendurar santo no retrovisor, levar marmita no fim da festa ou
colocar fralda na gaiola do passarinho. Ainda que nenhum Gilberto Freyre, Sergio
Buarque de Hollanda ou Câmara Cascudo tenha se aprofundado no fenômeno social, o
“trocadilhismo” nos entrega tanto quanto a mestiçagem, a cordialidade ou o curupira. E
o Rio, se bobear, é o campeão nacional de letreiros com jogos de palavras. Basta uma
volta pelos endereços comerciais da cidade para notar o apreço do carioca pela piada
pronta — e começar uma coleção pessoal dos preferidos.

Foi o que fez a Revista O GLOBO: um inventário informal dos trocadilhos cariocas. Só
em Copacabana, além da Pau Mandado, há a clínica veterinária Cãopacabana, o
botequim BomBARdeio, a loja de bolsas Mala Amada, a livraria Baratos da Ribeiro, a
“croassanteria” Croasonho e a creperia Crepe Diem.

Na Tijuca, há o restaurante Umas & Ostras e a lanchonete Faceburger. Em Vila Isabel,


na Rua Teodoro da Silva, o nome do motel é... Teadoro. No Flamengo, uma boleira pôs
o nome da sua empresa caseira de James Brownie, e uma lavanderia em Botafogo se
chama Lava Isso & A Quilo. Em Madureira, há o restaurante Kill Grill, uma clara
alusão ao filme de Quentin Tarantino “Kill Bill”. Em Bonsucesso, há uma pizzaria
chamada Bonsussexo, acreditem, e em Bangu, uma academia de nome Habeas Corpus.

— Não queria abrir mais uma academia chamada não-se-o-quê-fitness ou body-


qualquer-coisa. Fiquei pensando, pensando... E tive a ideia de chamar de Habeas
Corpus. É legal, não é? — explica o dono, Celso Cunha.

Ao ouvir o nome, o acadêmico Antônio Carlos Secchin o achou tão legal que fez uma
sugestão a Celso: abrir ao lado da academia o botequim Habeas Copus.

— Tecnicamente, o trocadilho é uma figura de linguagem chamada paranomásia. É a


junção de palavras de som próximo e sentido distante. Você fala uma coisa e imagina
outra. Há uma referência implícita a um segundo sentido. Seu uso deflagra uma relação
prazerosa com a língua portuguesa, quando usada como um jogo, uma brincadeira.
Ainda mais pelos cariocas, que já criam tantas gírias — explica o imortal, um fã de
trocadilhos. — O recurso foi parar no comércio, mas sempre esteve na literatura. Basta
lembrarmos do “Manifesto Antropofágico” de Oswald de Andrade, que tinha o
trocadilho dos trocadilhos, “Tupi or not tupi”.

Foi esta lógica lúdica que norteou o batismo do Barthodomeu, em Ipanema:

— Antes de abrirmos o bar, este ponto era considerado uma caveira de burro. Mas só
podia ser. Quem viria para um lugar chamado Espelunca Chic? Ou o camarada sai de
casa para beber numa espelunca ou num lugar chique — espeta o empresário Rafael
Sampaio, que escolheu o nome com a mulher, Tatiana Abramante.

O ramo dos bares poderia ter até um concurso informal de trocadilhos, tantos são os
exemplos. No Vidigal, há o Barlacubacu. No Anil, o Barbudo. No Flamengo, o
Zanzibar. Em Del Castilho, o Zombar. Em Madureira, o Bar Bosa. No Catete, o
Bartman.

— Sou fã de quadrinhos e cultura pop desde menino. Quando abri o bar, queria que a
decoração fosse inspirada em filmes, mas não sabia o nome que queria dar. Pensei em
alguns ruins, como Perdizes no Espaço, e decidi fazer uma votação entre os clientes.
Bartman ganhou, com 250 votos — relembra Rogério Cardoso, o proprietário.

O ramo de toldos também merecia um torneio próprio. Em Anchieta, há a Tempra


Toldos. No Grajaú, a Toldos Dias. E em Todos os Santos, quem adivinha?

Com as empresas de estética, não é muito diferente. Em toda a cidade, encontram-se


filiais da rede Spé (cujo slogan é “o spa do pé”), e toda sorte de derivativos da palavra
“pelo”.

— Quando criamos a empresa, quisemos dar um nome que ninguém esquecesse.


Vieram inúmeras ideias, e uma das sócias falou: “Pelo menos um desses nomes vai ser
o escolhido.” Ficamos em silêncio e percebemos que o nome só podia ser aquele, Pelo
Menos. Era perfeito. Todo mundo usa essa expressão todos os dias — diz a empresária
Regina Jordão.

Foi a largada para surgirem concorrentes como a Pelo Sim, Pelo Não, presente também
em vários lugares do Rio.

— Tive a ideia tomando banho. Ia abrir uma empresa com um sócio que já tinha um
nome caretinha para ela, mas ele saiu, e eu quis um mais criativo — conta a publicitária
Márcia Amorim, de 42 anos.

Foi passando de carro em frente à filial de Botafogo que o humorista Cláudio Torres
Gonzaga, um dos redatores do programa “A Grande Família”, da TV Globo, teve a ideia
de uma piada para um stand up comedy que faz com o grupo Comédia em Pé.

— Fiquei pensando: “O que quer dizer Pelo Sim, Pelo Não? Será que eles tiram um pelo
sim e um pelo não? E a mulher sai de lá parecendo um código de barras?” — brinca
Cláudio. — E aí juntei com outros nomes curiosos de lojas que já tinha visto e montei
uma esquete do espetáculo. Tem uma loja de artigos de pesca em Jacarepaguá que se
chama Minhoca Feliz. E se tem alguém que não é feliz na pescaria é a minhoca... Em
Nova Friburgo, vi uma loja de plotagem chamada Harry Plotter. Deu vontade de abrir
uma concorrente, a Senhor dos Painéis!

Quando soube da esquete, a dona da rede de depilação correu para o teatro. Achou tão
divertida a propaganda involuntária que propôs uma parceria: em troca da logomarca
exposta no cartaz do espetáculo, os humoristas fariam depilação de graça.
— Mas nenhum de nós tinha o hábito de depilar as pernas — lamenta Cláudio,
lembrando que as únicas beneficiadas com o patrocínio foram as mulheres dos
integrantes.

Nenhum ramo, no entanto, supera o trocadilhismo ostensivo das pet shops. É um


fenômeno nacional, que já inspirou até uma crônica do escritor Antônio Prata. Vejamos.
Na Barra, há o Au Q Mia. Na Urca, o Urcão. Em Olaria, o Pet Shop.cão.br. Na
Pechincha, o Gato pra Cachorro. No Leblon, o Pet Shop Toy, uma referência à dupla
pop Pet Shop Boys. Em Nova Iguaçu, o Cãobeleireiro. E em Ipanema, o hors-concours
Au Cão Kur — que está com os dias contados.

— Esta loja existe com este nome há 17 anos, mas os novos donos vão mudar em breve
para Animaleria — antecipa o gerente, Vinícius Molinaro.

O que é uma pena, como observa o diretor de criação e sócio da empresa de publicidade
DM9 Rio, Álvaro Rodrigues. Para ele, o humor “baixa a guarda” do cliente, seja de uma
pet shop ou de uma multinacional. Na última campanha que fez, para uma marca de
cachaça, pôs o ator John Travolta fingindo ser brasileiro, tentando jogar bola e sambar
na praia, no Recreio.

— Na propaganda, o humor tem que ser visto como meio, não como fim. A piada pela
piada não funciona. Se eu rio e esqueço o nome da marca, não adianta. Por isso, o
recurso da piada, do trocadilho, tem que ter uma estratégia por trás — analisa o
publicitário, falando de grandes campanhas.

No comércio de bairro, como os citados nesta reportagem, ele diz que o humor traz
muitas vantagens:

— Aumentam as chances de fixação da marca. A “gaveta” da memória emocional é


uma das mais certeiras de se abrir no consumidor, e o bom trocadilho faz isso. Além
disso, imprime essa “carioquice” na marca, essa maneira peculiar do morador do Rio de
enxergar o que acontece sempre com graça. O carioca tem uma miopia bem-humorada
da vida.

Uns trocadilhos vêm, outros vão

Alguns trocadilhos antológicos do Rio faliram juntamente com os estabelecimentos


comerciais aos quais pertenciam. Mas permanecem na memória. Quem pegava a
Rodovia BR-101 com frequência certamente já tinha notado a churrascaria A Novilha
Rebelde, um jogo de palavras com a tradução para o português do filme “A noviça
rebelde”. Há três anos, no lugar funciona a churrascaria Mano’s Grill. Ao lado do
Engenhão, alcunha do Estádio João Havelange, havia uma lanchonete chamada Have
Lanches, outro belo exemplo da perspicácia carioca. Em Madureira, na Avenida Edgard
Romero, até pouco mais de um ano atrás, na altura do Mercadão, havia um Banco Safra.
E, ao lado, o bar Safradão, que foi demolido para virar uma agência do Santander.

Na Barra, o restaurante Filo Porque Quilo também fechou as portas, levando com ele a
referência à célebre frase dita pelo ex-presidente Jânio Quadros quando de sua renúncia
ao cargo. No Humaitá, quem morreu foi o boi do nome do restaurante Boi Vivant, que
há dois meses ganhou nova mobília e letreiros, transformando-se em Espaço Vivant.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/inventario-informal-de-
trocadilhos-da-cidade-mostra-vocacao-do-carioca-para-piada-pronta-
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