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Transformação pela arte e pelo gesto: Grace Passô fala sobre a cultura, racismo

e teatro político

A necessidade de dar voz às próprias ideologias e de não reverberar preconceitos e


visões que não lhe cabem serve como espécie de mola propulsora para os trabalhos da
artista mineira Grace Passô. Dona de um talento balizado pela crítica e que vai da
interpretação à dramaturgia, ela vive bem no estilo “tudo/ao mesmo tempo/agora”.
“Esse ano estive mais na interpretação”, comenta Grace, que recentemente circulou com
a peça “Vaga Carne”, parte do projeto Grãos da Imagem, reunião de peças em torno de
temas identitários, e que já prepara livro com o texto do espetáculo.

Não bastasse, no próximo ano ela também estreia um espetáculo com a Companhia
Brasileira de Teatro, com a qual fez o espetáculo “Krum”. O trabalho será uma
coprodução Brasil/Alemanhã. Uma das fundadoras do grupo Espanca!, de Belo
Horizonte, Grace Passô conversou com o Hoje em Dia sobre assuntos como racismo,
cultura na capital mineira e teatro político.

“Nós vivemos em regime de urgência. Um tempo de transformações muito aceleradas.


Isso é perceptível também nas artes cênicas. Você vê grupos pensando sobre temas que
estão em voga como a negritude e as relacionadas ao gênero”

Você defende um teatro genuinamente brasileiro. O que o caracteriza?


Essa pergunta é difícil de responder, mas uma primeira coisa que caracteriza o teatro
brasileiro é a forma de produção. De um modo geral falo do teatro do qual faço parte. As
companhias no Brasil representam nichos de resistência mesmo em uma lógica
mercadológica. Acho que isso é o que mais define. São esses coletivos e os
ajuntamentos de artistas de teatro que buscam uma conversa com o poder público para
criar políticas mais consistentes. Esteticamente, existe uma diversidade muito grande, e
quando você viaja pelo Brasil vê que essa diversidade é feroz. É tão difícil definir o que é
o teatro brasileiro como é difícil definir o que é o Brasil. Em cada parte do país os
artistas sobrevivem e vivem de formas diferentes com o teatro.

Como foi a decisão de sair do Espanca!?

Fique no grupo durante 10 anos. É um projeto importante na minha vida e foi um


período de um nítido amadurecimento particular em relação ao teatro. Ainda me
apresento com o grupo e viajo com parte do repertório. O processo de saída foi muito
natural. Não foi um desejo de saída para desenvolver projetos particulares, porque
mesmo dentro do Espanca! eu já desenvolvia trabalhos com outros coletivos. Minha vida
continua assim, ligada sempre às mesmas turmas do teatro brasileiro. Foi um processo
natural de reconhecimento, em um determinado momento, de que funcionaríamos
melhor com certa distância. Tanto o próprio grupo quanto eu. Isso é algo recorrente com
muitos artistas. Isso ia arejar as nossas produções.

Lucas Prates

Latitudes Latinas – música e cultura latino-americana


O grupo (Espanca!) teve rápido reconhecimento e conquistou alguns prêmios.
Isso pode viciar o olhar de quem está em um processo de amadurecimento do
trabalho?
Pode. Você pode fazer um trabalho quando está começando um grupo e esse trabalho
ser muito reconhecido. “Por Elise” foi uma loucura. Isso é um grande privilégio porque é
muito difícil circular com os espetáculos, mesmo estando na região Sudeste e em uma
capital. A dificuldade de começar com uma peça muito reconhecida é que isso pode
minar o amadurecimento artístico. Isso pode desacelerar um processo de pesquisa do
coletivo. Um grupo ou um artista precisa de tempo para entender e elaborar um
pensamento mais profundo sobre o que faz. Desde o início tínhamos consciência disso. O
que buscamos foi continuar a fazer pontes, estabelecer parcerias e aprofundar as
pesquisas, ter coragem de inovar e não repetir determinados procedimentos que deram
muito certo. Ou seja, teve muita preocupação em continuar em movimento.

Latitudes Latinas – música e cultura latino-americana


As oportunidades para os artistas e criadores negros ainda são limitadas?
Sim, ainda são limitadas. Não tenho dúvida que, de alguma forma, consciente e
inconsciente, em um determinado momento da minha vida a opção de criar uma
companhia, os próprios textos, dirigir os trabalhos e abraçar a concepção dos meus
projetos foi e é uma forma de sobrevivência ao racismo brasileiro. Isso porque existe
para as artistas negras brasileiras diariamente a necessidade de se comprovar uma série
de coisas. Não só para si mesma, mas para o outro, que você é bonita, inteligente,
competente. Uma forma de sobreviver a toda a elaboração de uma estética que é sem
dúvida nenhuma de uma elite branca brasileira. Não tenho dúvida de que eu significo
uma porção de coisas da nossa sociedade hoje, e posso dizer que estou em um lugar
privilegiado. Ser uma artista negra do teatro brasileiro...é quase impossível você não ter
batalhado muito e ter passado por milhares de coisas. Você inevitavelmente é uma
pessoa que luta contra uma certa maré. Eu busco fazer trabalhos que sejam necessários
de serem vistos e ouvidos. De ser uma artista necessária.

“Vejo uma cena realmente diversa, pulsante e que não está concentrada em apenas uma
região da cidade, mas em muitos lugares de Belo Horizonte com iniciativas muito
potentes”

omo você percebe o teatro em BH atualmente? Está mais pulverizado?


Vejo um teatro mais pulsante. Belo Horizonte é reconhecida pela consistência dos
coletivos que nascem aqui. Obviamente, temos uma referência fundamental em teatro
brasileiro que é o grupo Galpão. Vejo uma cena realmente diversa e que não está
concentrada em apenas uma região da cidade. Projetos extremamente originais e
iniciativas mais potentes que partem de grupos e companhias e não de grandes
instituições. Partem de artistas locais. O teatro local segue numa luta contínua pelo
reconhecimento na esfera pública. Do teatro como bem simbólico e não só
necessariamente como mercadoria. Essa luta é árdua, tem a ver com gestões da
prefeitura e do governo do Estado. Fico triste em ver uma série de espaços públicos e
teatros públicos, e também privados que de certa forma viram patrimônio local, que são
sucateados, subutilizados ou que não estão atendendo a velocidade das criações locais.
As políticas para o teatro da cidade ainda estão muito aquém da velocidade que os
artistas criam. Existe uma conversa com a comunidade artística local ainda muito menor
do que se deveria. Mas acho que continuamos vivendo de teatro e sobrevivendo a tudo
isso por meio de iniciativas dos artistas locais.

Lucas Prates

Latitudes Latinas – música e cultura latino-americana


A arte enquanto política vem aparecendo de forma cada vez mais potente?
Muito se fala de que toda arte é política e não tenho dúvidas disso. A arte é algo político
não só porque uma peça de teatro trata de assuntos políticos. Mas também pelo seu
modo de produção e como se cria essa arte. A forma como se vive coletivamente para
criar determinadas obras. Tudo isso deflagra a política diária entre as pessoas. É
inevitável dizer que com todo o processo que a cidade vem vivendo há alguns anos
surge também como resistência a certos lugares da política local. O carnaval da cidade
significa muito isso. Acabou virando a bandeira dos novos tempos da arte local, em que
a noção do que significa o espaço público se transformou completamente. Os trabalhos
artísticos começam a agregar esses pensamentos. Tudo que ferve na cidade começa
obviamente a fazer parte dos trabalhos. A gente vive em regime de urgência. Um tempo
de transformações muito aceleradas. A cena é mais diversa. Você vê questões que estão
muito em voga, como a negritude brasileira e as relacionadas ao gênero muito
recorrentes nas obras. Então, acho sim que temos feito uma arte mais politizada.

“Me preocupo em não ser um instrumento de repercussão do racismo, mesmo que de


forma sutil. O racismo repercute de formas múltiplas. Ele é um camaleão complexo”

Qual é o tempo, o lugar onde vive e suas urgências hoje?

Vivo num vulcão que é o Brasil, país que é puro encantamento e barbárie. Lugar tão
desigual que só nos resta estar sempre muito atentos, conscientes e politizados. Mas ao
mesmo tempo tem coisas lindas acontecendo. É provável que há alguns anos nem você
me perguntaria sobre a negritude. E talvez eu nem falaria também. Hoje existe uma
porque existe uma pujança das militâncias que me transformam profundamente e me
fazem uma pessoa mais consciente. A contradição disso tudo é o fato de vivermos novas
ideologias e pensamentos que transformam a forma de ver o mundo, mas existe junto
disso um desfile e uma ascensão de um pensamento retrógrado muito resistente a tudo

Latitudes Latinas – música e cultura latino-americana


isso e muito medroso. Urgente para mim é viver todos esses pensamentos,
transformações e militâncias na ação e no gesto.

Fonte: http://hojeemdia.com.br/primeiro-plano/2.783/transforma%C3%A7%C3%A3o-
pela-arte-e-pelo-gesto-grace-pass%C3%B4-fala-sobre-a-cultura-racismo-e-teatro-
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Latitudes Latinas – música e cultura latino-americana

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