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O trabalho que mistura artes visuais (projeções em vídeo operadas ao vivo), narração de histórias
(a transposição para o palco de relatos biográficos gravados durante o processo) e documentá-
rio (a vida e obra de Leonilson) se misturam em um ateliê de arte que é também um palco. Em
cena, Laerte expõe não só a sua biografia (em relatos íntimos gravados durante o processo e
reencenados diante do público), mas também seus quadros, bordados e criações audiovisuais
- operando, narrando e expondo suas criações ao vivo. Trata-se, portanto, de um evento bio-
gráfico e multimídia que tenta unir elementos do próprio teatro, das artes plásticas e do vídeo.
Esse trânsito sem fronteiras entre o relato pessoal e a criação artística traz para o palco questio-
namentos urgentes: como uma obra de arte tão pessoal pode servir a uma discussão pública?
Como a exposição sem pudores de uma intimidade pode ser um ato revolucionário em meio à
falência social?
Assim como a obra de Leonilson não pode ser desassociada da vida do artista, por expressar
sempre o caráter confessional de um diário íntimo, o duplo Laerte/Leonilson - uma ponte entre a
vida e obra do artista morto em 1993 à vida e presente obra do sujeito artístico Laerte Késsimos,
e as coincidências e dissonâncias entre as obras e vidas dos dois artistas. Aproximando-se de
forma direta da obra de Leonilson, o próprio processo de investigação de Laerte, os vestígios da
criação, os áudios que dão dimensão histórica ao cotidiano criativo são, eles próprios, a obra. Um
bordado em que frente e verso são compartilhados publicamente – suas amarras, cortes, sobras
de linha, correções, imperfeições, pontos e nós. Diários cartografados, mapas geométricos, ma-
pas que são retratos, geometrias brancas, brancos que são páginas de diário ou autorretratos,
relatos sonoros, referências íntimas e cotidianas sustentam o diálogo com o público - resultado
do desejo íntimo de Laerte Késsimos em jogar o jogo favorito de Leonilson – a intersecção entre
ficção e realidade; entre o íntimo e o público; entre o diário e a afirmação política; entre o borda-
do real e a descrição de uma paisagem; entre a biografia de Laerte e os bordados de Leonilson.
Organizada como um documentário poético em que a vida de Laerte (e a feitura desse espe-
táculo) se entrelaça aos diários, gravações e depoimentos de Leonilson, a montagem não está
preocupada em levantar um edifício ficcional. Antes, contenta-se com o relato e a descrição de
obras, criando um ambiente poético que não abandona a narrativa e o contato direto com o pú-
blico. Os artifícios técnicos, como a projeção de imagens e a tessitura de palavras em tecidos,
pretendem trabalhar para reunir o humano na direção de um objeto estético que não nos pede
necessariamente o mesmo olhar, mas nem por isso deixa de nos reconhecer como coletivo.
Diante do público, constrói-se um panorama não só interior, mas também exterior, de nosso tem-
po e do mundo ao nosso redor. Nos tempos atuais, em que a opressão e o conservadorismo se
erguem como uma onda alta que pode nos derrubar com força, trazer à tona um artista gay (vale
ressaltar a tragédia que é esse ainda ser um tema controverso em nosso país); HIV positivo (esse
tema migrou de uma epidemia para um preconceito escondido e silencioso) e a favor de uma
política subjetiva e íntima (quando a subjetividade e a intimidade são os primeiros alvos de polí-
ticas opressivas) é, em si, um ato político. Cada vez que as ondas conservadoras nos derrubam,
mergulhamos mais e mais fundo, com o momento de alívio passa antes que possamos agarrá-lo,
pois a onda já está juntando forças para atingi-la novamente. Esse trabalho acredita que a tábua
a que nos agarramos nesse naufrágio só pode ser poética – a um só tempo pessoal e política.
José Leonilson
Leonilson é um dos principais nomes da arte contemporânea brasileira, conhecido por sua obra
singular e autobiográfica. Nascido em Fortaleza, em 1957, Leonilson mudou-se com a família para
São Paulo ainda pequeno, e logo cedo começou a demonstrar o seu interesse pela arte. Fez cursos
livres na Escola Panamericana de Arte e depois ingressou no curso de Artes Plásticas da Fundação
Armando Álvares Penteado, deixando-o incompleto, para iniciar sua trajetória artística.
Na década de 1980, fez parte do grupo de artistas que retomou a prática da pintura, conhecido como
‘Geração 80’. Participou de importantes mostras no Brasil e no exterior, como Bienais, Panoramas
da Arte Brasileira, e a emblemática Como vai você, Geração 80?. Interessado em moda, trabalhou
com o grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone, com a criação dividida de cenários e figurinos
do espetáculo A Farra da Terra. A convite de Gloria Kalil, apresentou sua interpretação sobre moda
em evento de lançamento de coleção da grife Fiorucci.
O artista faleceu jovem, em decorrência do vírus HIV, na cidade de São Paulo, em 1993, aos 36
anos de idade. Deixou cerca de 4.000 obras, além de múltiplo acervo documental. Sua poética
trata sobre sua existência, debate sentimentos, alegrias, conflitos, dúvidas e principalmente,
no final de sua vida quando descobre ser portador do vírus HIV, sobre suas angústias, medos, a
convivência com a doença e o impacto que ela causa na sua vida. Sua produção é considerada
por críticos brasileiros e internacionais de grande valor conceitual para a arte no Brasil, sendo o
retrato autêntico e incansável de uma geração e, que por abordar questões cruciais inerentes à
subjetividade humana, se faz capaz de gerar identificação e diálogo universal.
direção geral
AURA CUNHA
Cenografia
MARISA BENTIVEGNA
Graduada em Artes Visuais e Pós Graduada em Lighting Design na Faculdade Belas Artes em 2016. Es-
tudou com o fotógrafo Carlos Moreira e foi assistente do iluminador Wagner Pinto e Gerald Thomas.
Trabalha com iluminação há 19 anos e realizou trabalhos com grandes diretores, companhias, artistas de
teatro, dança, performance e artes visuais em São Paulo e também executa projetos de iluminação para
exposições. Atua como performer e cria instalações visuais. Indicada quatro vezes ao prêmio Shell e ven-
cedora do prêmio Denilto Gomes no ano 2017com o espetáculo de dança SHINE. Indicada duas vezes ao
prêmio APCA de dança. Em 2019 foi uma das artistas selecionadas a representar o Brasil na Quadrienal
de Praga. Ministra oficinas de iluminação cênica em Oficinas Culturais, Sesc e SP Escola de Teatro. Parti-
cipou de festivais nacionais e internacionais de teatro e dança na Alemanha, Croácia, Argentina, Bolívia,
Portugal e Irlanda.
direção de produção
GUSTAVO SANNA
Produção executiva
YUMI OGINO
Produtora cultural formada em Rádio e TV, iniciou como assistente de diretor em projetos audiovisuais do
resgate do Cinema Marginal Brasileiro. Projetos de restauração, mostras e exibições como “A Saga Negra
do Norte – de King a Obama” no Museu Afro Brasil e “Mostra do Cinema Marginal Brasileiro”. Fez parte
do núcleo de dramaturgia e documentários da TV Cultura - produção, assistente de edição e pesquisa de
imagem. Documentários sobre o Centenário do Theatro Municipal de São Paulo, e a Pinacoteca do Esta-
do. Participação também na produção do documentário “A Mostra” sobre a Mostra Internacional de Cine-
ma de São Paulo em homenagem a Leon Cakoff e início das pesquisas para o documentário sobre o MAC
– Museu de Arte Contemporânea. Produziu o documentário dos 100 anos da empresa CPFL de energia,
uma série de 13 episódios para o SESC TV chamada “Habitar|Habitat” e outra para o Canal Curta!, “Brasil
2050”. Integrante da companhia de teatro Cia Hiato, desde 2013, na função de produtora executiva, ten-
do participado de temporadas de peças como “O Jardim”, “Ficção”, “02 Ficções”, “Amadores” e “Odisséia.
Curiosidade e desejo
Como observa Lisette Lagnado, “na obra de José Leonilson (1957-1993) cada peça foi rigorosamente
construída como uma carta para um diário íntimo. Discípulo de um ideal romântico malogrado,
Leonilson foi movido pela compulsão de registrar sua interioridade a fim de dedicá-los aos objetos
do desejo. Esse legado, enunciado por um “eu” cuja expiação é incessante, reavalia a subjetividade
após as experiências conceituais. Isto é, desgastada a reflexão sobre o destino da arte, que teve a
metalinguagem como ápice, a obra volta-se neste momento para o questionamento do destino do
sujeito.” A obra “O que você desejar, o que você quiser, estou aqui, pronto para servi-lo”, de 1991
serve de exemplo para essa ideia.
O bordado aparece, em muitas obras de Leonilson, como uma técnica fundamental para imprimir
sua pessoalidade. A simplicidade - da forma, do traço, do bordado - não se traduz, necessariamente,
por uma igual simplicidade na experiência. Os espaços vazios, as formas simplificadas e o
posicionamento das figuras, muitas vezes sem a preocupação com o equilíbrio, conferem às obras
do artista uma intensidade e uma potência expressivas, capazes de oferecerem ao espectador uma
experiência. O próprio artista seus bordados de “objetos de curiosidade”.
Assim como nas obras de Leonilson, o espetáculo “Ser José Leonilson” quer transferir sentimentos
da vida de Késsimos para sua obra de forma direta e ao mesmo tempo subjetiva, procurando traçar
paralelos entre sua vida e a vida de Leonilson, aprofundando a ideia de que o encontro entre o artista
e o espectador pode gerar um objeto de desejo. Um objeto feito diante e com a ajuda do público.
Organizada como um documentário poético em que a vida de Laerte se entrelaça aos diários,
gravações e depoimentos de Leonilson, a montagem não está preocupada em levantar um edifício
ficcional. Antes, contenta-se com o relato e a descrição de obras, criando um ambiente poético que
não abandona a narrativa e o contato direto com o público. Os artifícios técnicos, como a projeção
de imagens e a tessitura de palavras em tecidos, pretendem trabalhar para reunir o humano na
direção de um objeto estético que não nos pede necessariamente o mesmo olhar, mas nem por isso
deixa de nos reconhecer como coletivo.
“Nunca gostei muito de me olhar no espelho. Nem tinha espelho no meu
quarto, evitava o espelho do banheiro. Para que se olhar no espelho? Não
há nenhuma necessidade. Eu estava no centro da cidade e comprei este
espelhinho. Quando cheguei em casa, pintei de laranja bem forte. Com-
prei um pano listrado... Usei a palavra ‘porto’ por causa da receptividade.
O porto recebe. O Leo com 35 anos, 60 quilos e 1,79 metro é um porto que
fica recebendo. Acho que hoje eu recebo muito mais do que dou, porque
preciso canalizar minhas energias para minha intimidade. É isso, simples-
mente. Precisava fazer um objeto com estas características para mim. Eu
queria fazer um objeto de desejo. Aliás todos os trabalhos são objetos de
desejo. [...] Eu falo do objeto do desejo, mas também fico pensando nas
pessoas que vão levantar a cortina e se ver. Elas podem ficar chocadas, ou
surpresas. O trabalho é muito simples, mas ele não entrega uma verdade.
Pelo contrário, oferece várias opções.”
LEONILSON