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Olá livro.

Permite que
ao passar as
tuas páginas,
uma a uma,
eu te habite.
Onde estão as mulheres? Beatriz Lemos Ações Curatoriais
—5
Beatriz Lemos

profissão da curadoria, que é o ou simplesmente passam desa-


momento de revirar o arcabou- percebidos por curadores – cura-
ço de artistas que conhecemos, doras mulheres inclusive. Basta
acompanhamos e gostamos para uma rápida pesquisa em artistas
dar corpo ao Congresso Extraordi- selecionados ou convidados para
nário. Tínhamos uma variante que grandes ou médias exposições
não era uma escolha apenas por coletivas ou uma olhada no staff de
obras, mas pela fala do artista que galerias pelo mundo para ter uma
deveria ser dirigida a um público ideia desta desproporção. Com
Você acha curioso ou inusitado Esta publicação foi idealizada específico – pessoas ligadas à arte certeza não é pela quantidade de
esta pergunta aparecer aqui, em coletivamente pelos 10 curadores ou não, que viriam das cidades mulheres artistas no meio da arte
uma publicação de um encontro residentes. Levantamos em lista catarinenses contempladas com o ou tão pouco pela qualidade de
de curadores? Pode ter certeza que os assuntos mais pertinentes que projeto – e que pudesse reunir seus trabalhos. É notório exemplos
nada tem a ver com o fato deste surgiram naquela semana entre questões pertinentes dos univer- de artistas que fizeram e fazem a
encontro ter sido organizado por as tardes na pousada, visitas a sos de suas pesquisas artísticas história da arte recente e que se fa-
três mulheres. Também nada tem espaços de arte pela cidade, ateliês com o nosso naquele então em zem presentes na arte contemporâ-
a ver com o dado de que éramos de artistas, falas na universidade, que estávamos submersos entre nea ativamente em suas múltiplas
10, as vezes 12, as vezes 20 pes- no passeio de barco, nos encontros ilhas. Éramos 10 curadores ativos, linguagens e reflexões. E se formos
soas compartilhando processos e, com ilhas e nas noites de canto- de diferentes cidades do país e adentrar em expoentes da arte
independente das configurações, rias à beira-mar. A intensidade uma lista de quase 20 nomes de brasileira chegaremos na maioria
sempre estávamos em maioria desta residência foi de tal tamanho artistas, onde a maioria esmaga- à mulheres, curiosamente. Assim
de mulheres. Aliás, a população inesperado, se mesclando manei- dora de nomes citados eram de como, na música ou literatura. O
brasileira é composta de quase ras pessoais de ser com práticas homens. Nenhuma artista mulher. que de fato acontece então?
4 mulheres para cada 1 homem de como fazer/atuar profissional- E por que isso acontece? Não con-
(são 3,9 milhões de mulheres a mente. Ou seja, se a experiência seguimos responder de imediato. Vivemos e somos todos parte de
mais que homens). Eu venho de coletiva de residência é confundir Mesmo pausando o brainstorm de uma estrutura cultural patriarcal.
uma cidade que para cada um vivências e se deixar afetar pelo nomes e exemplos de trabalhos E o meio da arte apenas repro-
são 10 mulheres. Mundialmente, outro o Ações Curatoriais foi um para questionarmo-nos sobre o duz o que acontece em todos os
a percentagem se equivale um bom trabalho para todos nós. Sim, fato e mesmo que chegássemos a demais meios profissionais. São
pouco mais, ao ponto de quase we are just working now. Desta uma definição final que não con- muitas as mulheres trabalhan-
chegar a 50% para cada (homens lista de aflições e instigações que templasse as artistas foi frustrante do nas mais diferentes áreas,
são mais numerosos em 1%). São nos arrebatou durante aqueles dias, e constrangedor não haver sequer cada vez mais assumindo ofícios
3.561.051.160 mulheres no mun- cada um escolheu o assunto que, uma sugestão feminina para as antes ditos masculinos, lideran-
do, mas, ainda assim, os homens por afinidade, gostaria de escrever, oratórias (1) que condissesse com do equipes, chefiando empresas,
ocupam um número significamen- pensando em qual poderíamos dar nossas expectativas. Pelo menos tocando instrumentos musicais.
te maior de cargos de poder e, em o melhor de si em poucas páginas. naquele momento de urgência. Muitas cientistas, engenheiras,
muitos casos, mesmo realizando E eu fiquei com a frase que dá o astronautas, policiais, políticas,
as mesmas funções profissionais título desse texto. Por incrível que pareça, esta cons- motoristas. Porém, ainda são
que uma colega mulher seus sa- tatação se repete com frequência raros os empregados domésticos,
lários são mais altos. Apenas por Estávamos todos reunidos na em muitos momentos como este, cozinheiros (quando não chefs de
serem homens. Sim, isso ainda é varanda da pousada para uma decisivos na curadoria. Contudo, cozinha), cuidadores de crianças,
uma realidade em 2014. das tarefas mais prazerosas desta raramente são expostos a público bordadeiros. A luta pela inclusão
Beatriz Lemos Ações Curatoriais Beatriz Lemos Ações Curatoriais
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da mulher no mercado de trabalho em 13%, sendo que a mulher


não se deu no episódio histórico negra tem uma taxa 71% superior
há mais de 100 anos atrás. Acon- à dos homens brancos (2).
tece desde então, diariamente. Se-
gundo dados do IBGE, em 2010, o Estas estatísticas são atuais e
percentual de mulheres no Brasil nada mais comprovam que para
com curso superior é maior 16,3% uma análise crítica da situação
em relação aos homens, porém da mulher no mundo do trabalho
já para o PNUD (Programa das é necessário o entendimento de
Nações Unidas para o Desenvolvi- convenções arraigadas em nossa
mento) os dados de 2011 indicam sociedade e a reformulação deste
que a participação das mulheres quadro passa pela revisão das
no mercado de trabalho é inferior funções sociais da mulher, além
21,3%. Ou seja, as desigualdades da noção convencional do que constata que a dupla jornada femi- feministas que colocassem em
de gênero existente na sociedade seja trabalho e suas formas de nina (trabalho e casa) ou a dedica- xeque a dualidade de poder social
brasileira (que não se difere muito avaliação/validação. ção ao lar (donas de casa) são ofícios entre gêneros. Esta escolha de
da realidade mundial) são relacio- incorporados como naturais à nossa não confrontação com a realidade
nadas mais a questões culturais e A divisão do tempo entre trabalho cultura, tendo arcaicas conjunturas patriarcal e falocêntrica do mundo
sociais do que econômicas, cons- e vida pessoal no mundo contem- para quebras de paradigmas. Em condiz com o perfil de nossa socie-
tituindo assim, a representação porâneo é para homens e mulheres paralelo, os impedimentos de ascen- dade, visto o histórico de luta por
social da mulher no trabalho, na uma tarefa cada vez mais etérea. são profissional da mulher recaem, inserção, absorção e compreensão
família e nas relações de afeto. No universo das artes, muitos de quando não se tratando somente de do próprio movimento feminista
nós (e aqui relembro as conversas estruturas organizacionais de tra- no país. Contudo, não há como
O maior contingente de mulhe- exaustivas sobre o tema entre os balho machistas ou misóginas, na negar presenças referenciais de
res no mercado de trabalho é curadores residentes na varanda condição da maternidade. O pânico artistas como Tarsila do Amaral,
composto pelo serviço domésti- da pousada em Santo Antônio), vigente instaurado em grandes cor- Lygia Clark, Márcia X, Letícia Pa-
co remunerado, sendo no geral vivemos a angústia de não alcançar porações de que uma profissional rente que, independentemente de
mulheres negras, com baixo nível o tempo eficiente para as deman- competente tenha que se ausentar posicionamentos pró ou contra as
de escolaridade e com os menores das da vida e passamos dia a dia para ter filhos, beira a estupidez diretrizes do movimento político,
rendimentos da sociedade brasi- acelerados em busca de solicitações humana, mas causa a inevitável inauguram na arte brasileira o
leira. As carreiras que seguem em inerentes à nossa profissão. Apesar desistência de muitas mulheres do discurso crítico da mulher e sobre
maior número são professoras, de a curadoria ser uma prática direito de serem mães. a mulher como representação na
cabeleireiras, manicures, funcio- deveras exigente na atualização de sociedade. São as obras dessas
nárias públicas ou trabalhadoras visões de mundo, esta exigência de Voltando ao contexto da arte, artistas que abrem caminho para
em serviços de saúde. Apenas “ter que dar conta” pertence a toda a condição de trabalho da mu- uma produção atual de jovens
20% de mulheres empregadas população economicamente ativa, lher ainda encontra uma tímida artistas que ativam uma maior
ocupam as demais áreas profis- mas também para a mulher que reflexão em pesquisas artísticas no consciência política da condição
sionais existentes no país e, ao trabalha em âmbito familiar não Brasil. Em um panorama geral, a feminina no mercado de trabalho,
exercerem suas ocupações, são remunerado. Esta função, embora produção brasileira com interesse como Graziela Kunsch, Cristina
corriqueiros os casos de opressão contribua para a renda familiar, em políticas da mulher, voltou-se Ribas, Denise Alves-Rodrigues, ou
e machismo. No que diz respeito não entra em análises estatísticas para abordagens acerca do universo do direito da mulher na gerência
ao mercado informal, a presença no contexto brasileiro e tão pouco subjetivo feminino, negando ou do próprio corpo, como Sara Pa-
da mulher é superior a do homem possui valorização social, o que até mesmo rechaçando discursos namby, Michelle Matiuzzi, Cíntia
Beatriz Lemos Ações Curatoriais
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Guedes, Fabiana Faleiros e algumas E onde mesmo estão as mulheres? Es-


ações ativistas-performáticas como tão aqui, ali e lá, todas em ação, aten-
o trabalho Xereca Satânica, do tas às micropolíticas do cotidiano.
coletivo Coiote, ocorrida este ano
no Campus da UFF - RJ, que gerou
polêmica abissal, chegando à amea-
ças de estupro corretivo (visto que
o sexo sem consentimento é uma
arma de poder do homem sobre a (1) A artista Raquel Stoff participou do Con-
gresso Extraordinário com um trabalho de
mulher) nos meios sensacionalistas intervenção, intitulado “Abafador de ruídos”.
de comunicação de massa (3).
(2) Dados de pesquisa do BNDES e PNUD.

Enfim, somos apresentados ao (3) Para saber mais sobre este trabalho, sugiro
mundo através do olhar da mu- o texto “O caso das xerecas satânicas contra
as boas almas inquisidoras”, escrito por Sara
lher (mãe), contudo a um mundo Panamby para a revista virtual Pulso, n.1 (http://
construído por homens. Da lin- www.plataformapulso.com)
guagem aos códigos sociais. Uma
base estrutural que vai muito
além da classificação de gênero
entre masculino e feminino. O
que ficou claro para nós, cura-
dores em residência, lá, naquele
momento descrito no início do
texto, é que, se por uma especifi-
cidade do meio, são os curadores
que detêm o aval de escolha e
seleção e, assim, legitimação da/
do artista, a verdadeira inserção e
não apenas tolerância da mu-
lher na arte também depende de
nossas decisões políticas enquan-
to profissionais. É necessário
fugir do receio de que o assunto
se trata de medidas sociais de
cotas – ponto de vista muito
característico da elite – e ampliar
a reflexão sobre a real presença
em números, não só de mulheres,
mas também de negros, pobres ou
representantes LGBTT. Redese-
nhar mundos é um dos ofícios
mais potentes de um curador.
O extraordinário do congresso da Paulo Miyada Ações Curatoriais
fortaleza sem ilha de Anhato-Mirim, — 11
descrito obsessivamente.
Foi com isso que nós, curado- têm hora para acontecer é que eles
Paulo Miyada res, pesquisadores, escritores e podem ser enxutos, dotados da
críticos de ocasião, artistas em fragilidade poderosa das coisas que
pontuação, quisemos trabalhar. não são ditas com todas as letras.
Isso: a capacidade poética de – ou Vamos apelar para uma metáfora
melhor, a coreografia espontânea parabólica adolescente. Quem é o
entre – discursos inacadêmi- conquistador mais eficiente: aquele
cos, caymicizados. i.e. feitos por que redige uma carta de muitas
evocação, sem pressa e enxugados laudas para sua pretendente, esta-
de adjetivos, verbos e preposi- belecendo uma competente expla-
ções: presenças substanciadas. Um nação sobre os motivos e intenções
Foi para isso que fomos para a mos (“Nós estamos apenas traba- congresso de coisas elas mesmas, de sua paixão e garantindo que há
ilha, aquela que ocupa posição lhando agora”). Foi para descobrir no lugar da fala sobre as coisas. mais em seu desejo do que o apelo
estratégica para defesa do terri- que não sabíamos para que ir que Uma extraordinária demonstração irresistível de conhecer-lhe a car-
tório ainda que tendo sido tão fomos para a ilha. performática do que pode ser dito ne, podendo até mesmo adiantar
facilmente driblada; para a ilha, a na margem do discurso associado quais o benefícios de um eventual
mesma que abriga uma fortaleza Por isso quisemos levar para a à prática curatorial. Ao invés da matrimônio para ambas as partes;
virgem de disparos de canhões e ilha nossos convidados, aqueles estrutura hierárquica em que os ou o que orquestra um dia de
lasciva na prática de assassinatos que vinham de quatro cidades artistas fazem coisas e nós fazer- convívio repleto de pequenas e
em nome da recém-instaurada muito diferentes, nem sempre mos elaborações retóricas para ad- grandes surpresas, coreografando
república e do truculento que aquosas, por vezes aquosas em jetivar as coisas, nós faríamos (um o vento para que sopre delicado
acabou dando nome à outra ilha, demasia nos dias de chuva forte convite) e iríamos nós, artistas no momento do encontro, e muito
maior, nas proximidades; enfim, e longa. Aqueles que poderiam e público negociar suas próprias forte lá pelo entardecer, forçando
para a ilha, que recebeu o dia de ter os mais variados repertórios coisas, deixando o discurso como um abraço e, talvez, um algo mais
lazer e descanso dos curadores e posturas no campo da arte, ar- efeito colateral final indetermina- que manifeste, por metonímia,
convidados pelo projeto Ações tistas mais e menos apaixonados, do. Foi para experimentar outro uma paixão nunca dita diretamen-
Curatoriais depois de dias de gerentes mais e menos escla- jeito de estar juntos e junto com te? Ora, talvez o primeiro tenha
debates e conversas; ilha que fica recidos, cabeças mais e menos a arte que chamamos os artistas e mais segurança de ser claro, mas ao
a quase uma hora de escuna desde permeáveis. Aquele muito magro as pessoas que fizeram o extraor- segundo é reservada a virtude de
Florianópolis e é muito bonita e com os olhos saltados, aquela dinário do congresso da fortaleza, se esquivar de recusas - quando seu
em dias de Sol; ilha que revela muito larga e de risada exage- ainda que sem Anhato-Mirim (já recado é compreendido é porque
o rigor despojado do terraplano rada, o outro mediano e muito que a ilha entendeu que nos rece- provavelmente foi aceito.
português na implantação de parecido com o rapaz do outro ber uma vez tinha sido suficiente).
seus edifícios militares; ilha que ônibus, alguém mais disposto a Ou, digamos de outra forma. Con-
também recebe certo número de se deixar levar pela fala mansa Vamos tentar de novo. O proble- sagrou-se, desde meados da década
marcos orientalistas trazidos por dos artistas, outrem mais preo- ma dos discursos a priori é que de 1990, que o trabalho curatorial
um construtor viajado em escala cupado em entender o que ali era eles podem acabar se reduzindo a deveria ser praticado como uma
global (precursor dos star-archi- curadoria e o que coreografia. apologias muito bem articuladas. O tarefa de demonstração de capaci-
tects do século XXI); finalmente, Foi, portanto, para ter chance de problema dos discursos a posteriori dade teórica, vocabulário filosófico
para a ilha em que deveríamos compartilhar algo de bom com é que podem acabar se reduzindo atualizado e organização visual e
descansar mas acabamos traba- essas pessoas que as convidamos a apologias muito bem arquiteta- temática coerente, clara e sintética.
lhando fingindo que descansáva- para ir conosco para a ilha. das. A graça dos discursos que não Isto – essa convenção sobre a “boa
Paulo Miyada Ações Curatoriais Paulo Miyada Ações Curatoriais
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curadoria” – foi um acidente de de presentes inesperados e sem se não fosse a impossibilidade de de escala. Areia de Itapuã, Areia - e
percurso. Por que é que a curadoria tantas justificativas ou promessas definir um ideal comum… se não agora já temos um lugar, a praia, e
tem que ser um alinhavo legível e de casamento ou instruções para fosse o fascínio pelos ônibus, pelos podemos sentir seu calor. Morena
elegante de obras, sob a proteção apertar a pasta de dente começando circos e pelos festivais temporá- de Itapuã, Morena - sobe o calor,
por vezes hermética de uma capa pela ponta. E as obras? Pode ser pre- rios… se não fosse a tendência a sugere-se a iminência do encontro,
discursiva semi-filosófica, um pouco ferível falar de arte e deixar que as pensar residências como chance de desejo e prazer. Saudade de Itapuã,
erudita nas suas referências e outro obras sejam um modo circunstan- fugir de si mesmo… se não fosse Saudade - e vai tudo embora para
tanto acadêmica na sua sintaxe? Esta cial de sua manifestação no mundo. a verdade de que independência é o passado: praia, calor e desejo
é a iniciativa adequada para se ter No frigir dos ovos, ninguém precisa uma circunstância e não uma divisa passam a estar presentes como
um determinado tipo de exposição, de arte - quer dizer, ninguém sabe ideológica…se não fosse o nosso Sol lembrança e falta, aí aí. E tudo sem
com certo tipo de obras e contan- de que arte precisa até encontrá-la. em Aquário… se não fosse a necessi- conectores. Se pudéssemos fazer
do com uma postura específica do Por isso, é melhor fazê-la porque se dade de seguir juntos… se não fosse curadorias e encontros assim.
público. Seria natural que outras acredita que não há nada de melhor o aceite dos convidados…
posturas e habilidades curatoriais que se possa dar para o mundo e,
estivessem em jogo quando outros por analogia, é melhor produzir si- Por isso saíram todos com a
tipos de exposição/obra/público esti- tuações de mostração de arte (como sensação de que a ilha, aquela,
vessem no campo. Pode-se imaginar, exposições, mas não apenas) porque não quis nos receber de novo e
por exemplo, a curadoria como se acredita que é a melhor forma mandou avisar com frio, neblina e
convite construído coletivamente de alguém receber algo e então ter chuva – mas que, ainda assim, os
para artistas proporem espontanea- chance de retribuir esse recebimen- que caíram cedo da cama em um
mente formas de ocupar o tempo e to com uma ideia, uma sensação, ou domingo frio encontraram uma
o espaço de um público reunido por uma irritação violenta e inexpugná- ilha feita de gente, um pouco paz
novos convites feitos em rede, para vel, se necessário. e amor, um pouco experimento
produzir discursos abertos e atra- de linguagem, e muita disponi-
vessados por poéticas não lineares. Mas, se não fosse pelo ideal da ilha bilidade de pensar junto. Vai ver
Neste caso, a curadoria seria uma e da viagem… se não fosse pela ex- existe mesmo uma disposição ao
tarefa de comunicação e agencia- periência da residência vivida pelos obsessivo nesse povo de um estado
mento, sobre o alicerce da confiança curadores… se não fosse a brisa do cuja capital é uma ilha. Essas pes-
na arte e nas pessoas e instigada a dia ensolarado em um dia de lazer… soas cujo eixo compartilhado é a
condensar ideias e discursos casuais se não fosse o desejo de descobrir arte, ela mesma um aglomerado de
em cadeias de reflexão que gerarão algo novo, no lugar da necessidade ilhas em arquipélagos provisórios.
novos convites e parcerias. de legitimar o já feito… se não fosse
a atitude obsessiva praticada por Se assim for, haverá quem tenha
E a filosofia? Pode ser preferível tantas pessoas que conhecemos em tido paciência de acompanhar este
procurar a literatura e deixar a Florianópolis… se não fosse o jeito texto em sua escrita sincopada,
filosofia conviver com a química, o de falar através da repetição… se compulsivamente aderida aos
urbanismo e a mecânica dos fluídos não fosse a insistência das metáfo- apostos e às substantivações das
no cabedal de referências que ar- ras de isolamento e solidão… se não coisas. José Miguel Wisnik chamou
tistas, curadores e públicos podem fossem as histórias dos viajantes atenção ao modo como Caymmi
evocar ad hoc para melhor estar bem e mal sucedidos… se não fosse construía histórias sem precisar
junto com a arte e com o mundo. E a preocupação de empoderar redes de verbos e adjetivos. Coqueiro
as cartas de amor de muitas laudas? de encontro… se não fosse a falta de Itapuã, Coqueiro - e assim se
Podem ser preferíveis as trocas de espaços institucionais ideais… evoca um marco, uma referência
“Eu preferiria não fazer” Kamilla Nunes Ações Curatoriais
e Júlio Martins — 19
(I would prefer not to)

Correspondência entre contigo, ou com Santi, Fernando, Andreza, Bia, Gabi, Paulo, Marta ou Maria,
Kamilla Nunes e Júlio Martins tive essa impressão chocante que certas epifanias nos geram. Sensação de que
as palavras compartilhadas nos movimentam. Além disso, a arquitetura de
pedras exibe a palavra “sonho”. A imagem mental que guardo da fortaleza de
Anhatomirim, que me vem como num sonho, preserva essa escala dupla, que
oscila entre o monumental, inalcansável (que pode ser também pensado como
uma imagem do próprio tempo) e a escala do afeto, da conversa próxima...

Um bjo,
Júlio Martins

Nova Lima, junho de 2014

Querida Kamilla,

espero que tudo siga bem. Te escrevo para compartilhar e fazer prolongar
alguns dos sentimentos e aprendizagens que nasceram da nossa convivência
diária aí na Ilha de Santa Catarina. Impossível voltar o mesmo depois de dias
pensando, falando e discutindo na primeira pessoa do plural. Intensidade de
convívio. Saudades, já, de todos do nosso grupo...

Mas há uma urgência em mim que me persegue desde que nos encontramos
previamente em São Paulo, participando do seminário Longitudes, por um acaso
que nos levou a um dia inteiro de conversas, aguardando amigos e aviões entre
trânsitos e imaginando como seria a residência dali algumas semanas em Flo- Florianópolis, junho de 2014
ripa. Foi depois de nos encontrarmos em São Paulo e conversarmos muito que
“Bartleby, o escrivão” de Herman Melville, se tornou um emblema no horizonte Ei Júlio, bom dia!
da minha viagem. A resistência passiva que ele oferece a sistemas normativos e
consolidados me inspirou a questionamentos de natureza institucional e sobre Querido, também sinto falta da primeira pessoa do plural, tão marcante
nosso ofício de jovens curadores frente a um sistema de arte já “dominado”, durante nossa convivência na residência. “NÓS” colabora, irreparavelmente,
digamos, ou simplesmente ao estado das coisas. Bartleby é “um destroço de nau- para não virmos a nos tornar, tão e somente, seres humanos inqualificáveis
frágio em pleno Atlântico”, “levemente arrumado, lamentavelmente respeitável, e supérfluos. Talvez Eu esteja sendo um pouco radical e hipócrita, dadas
extremamente desamparado”, “ele era uma pessoa mais de preferências do que as condições que nos são oferecidas: somos protagonistas fadados a serem
suposições.” Fico encantado com essas descrições, são incríveis! esquecidos pelo narrador no final da história. Acredito no “NÓS” como uma
possibilidade de construção de uma humanidade emancipada.
Você ficou de me contar mais detalhadamente sobre um trabalho da Graziela
Kunsch a respeito disso, fiquei curioso, o Bartleby nos oferece muitas possibili- Nossa conversa amparada pelo acaso aconteceu em meio a dois momentos
dades críticas... Envio novamente o Magritte que é para mim uma “imagem de ainda latentes para mim: o passado coberto por uma discussão sobre disparida-
recordação do C.E.F.A.”, ainda que tenha sido impossível estar presente, o que, des regionais oriunda de um seminário do qual participamos na mesma mesa
aliás, é muito frustrante. Esse é o cenário em que na minha mente imagino o (não posso aqui deixar de lembrar as duas colocações do Armando Queiroz que
reencontro com todos. Visitar a Fortaleza de Anhatomirim me levou pra este nos fizeram pensar por um bom tempo: 1) entender a Amazônia como centro
lugar aí da pintura. Chama-se “A arte da conversação”. Por vezes, conversando do mundo e 2) a afirmação de que seu interesse por arte fez com que cruzasse
Kamilla Nunes Ações Curatoriais Kamilla Nunes Ações Curatoriais
e Júlio Martins — 20 e Júlio Martins — 21

as fronteiras sem precisar sair de seu lugar de origem, o Norte do Brasil) e o São Paulo, junho de 2014
futuro completamente tomado pela ansiedade das possibilidades de convivên-
cia, presença e abolição do tempo corrente para imersão no registro do “NÓS”, Ei, Kamilla,
que rompe com a pretensão do Eu de bastar-se a si mesmo.
sua reposta me instiga muito pois ensaiei te escrever, no último email/carta,
Entre uma coisa e outra, Bartleby aparece como protagonista da nossa conver- sobre uma confusão de pessoas em mim, sobre minha dificuldade em en-
sa. Isso explica precisamente que o lugar que ficou vazio, esse vazio do vivido, contrar aqui, em casa, no meu cômodo isolamento, o mesmo Júlio (eu?) que
é a chave de leitura do Bartleby em relação a nós, “jovens curadores frente a eu experimentei por aí, diante de tantas vozes, reagindo a elas, me identifi-
um sistema de arte já ‘dominado’”, como você mesmo colocou. Respondendo cando, discordando, sendo afetado por elas... Me explico melhor. É que em
à sua pergunta, passei a conhecer o trabalho da Graziela a partir de uma fala grupo, o solilóquio povoado do nosso universo psicológico, sobretudo o meu,
do público no seminário Longitudes. Acho que 2 ou 3 dias depois, ainda em que sou uma pessoa mais reclusa, é provocado e certamente somos transfor-
São Paulo, fui jantar com a Bia em um restaurante vegetariano ali no começo mados pela convivência e oportunidades de encontro com o outro. Deixamos
da Augusta e a encontrei: nós sentadas, ela de pé com a comida esfriando nas momentaneamente de responder por aquele ‘eu’ e passamos a pensar a partir
mãos. A obra chama-se “Sem título (Prefiro não fazer)”. Não que eu me lembre da consciência de um “nós”. É um esforço, é novamente parte dessa abertura
de memória tantos detalhes, mas é que recuperei uma conversa de facebook de que propomos. Por outro lado, essa noção vaga que temos do eu às vezes se
alguns dias depois do meu aniversário: “ei Kamilla, tudo bem? feliz aniversário torna mais tangível quando instável... Viu que é mesmo uma confusão de vo-
atrasado!!! de presente te envio uma imagem que você me pediu da obra ‘Sem zes? Eu estava aqui tentando encontrar o Júlio que conheci, junto com tantas
título (Prefiro não fazer)’, 2011. beijo! (se der um zoom acho que dá para ver pessoas que conheci por aí, mas me parecia desativado. É mesmo essa troca
bem as letrinhas)”. E me mandou junto a foto do trabalho: de escritos que relampeja uma faísca por aqui e me move a te escrever, ainda
que com a consciência de que muito do que me inquieta permanece e resiste
a se transformar em palavras compreensíveis, apaziguadas.

Concordo com o que você diz sobre a primeira pessoa do plural. Penso
mesmo que a ideia de indivíduo e da ênfase no ‘eu’ teve sua importância
histórica e encontra importância também nas nossas trajetórias pessoais,
como processo de individuação, correlato ao processo de constituição da
ideia de cidadão na história, por exemplo. Mas seu excesso é uma traição
que chega ao individualismo exacerbado, esse do capitalismo, que não
prevê abertura para relações sociais emancipadoras, e termina por condi-
cionar e interditar o “nós”.

Mas por que será que tudo isso me faz lembrar e relembrar de Bartleby?
Fiquei tentando levantar no texto possibilidades de ler a personalidade
Talvez você também tenha que dar zoom para ver bem as letrinhas, mas pare- dele, mas é mesmo impenetrável. Ele é um mistério, e seus gestos não
cem escritas à mão, como fazia Bartleby, o escrivão. Talvez, ainda, a gente pos- são somente descompromissados, eles revelam um pensamento singular
sa falar mais sobre essa obra em outro momento. Acordei muito cedo e ainda que desarma a lógica dominante, a deixam sem resposta. Também me
não coloquei nada no estômago. Me lembra de te contar sobre uma conversa chama atenção que o comportamento de resistência dele, censurado
que tive essa semana com o Jorge Menna Barreto a respeito do Bartleby? por todos, passa, no entanto, a inspirar e a legitimar os colegas para
também agir guiados por suas preferências... Sorrateiramente a ética de
Um beijo e boa semana! resistência de Bartleby provoca um efeito no grupo. É assim que passei
a interpretar a passagem do Melville que diz que Bartleby “projeta uma
Ká melancolia no ambiente”.
Kamilla Nunes Ações Curatoriais Kamilla Nunes Ações Curatoriais
e Júlio Martins — 22 e Júlio Martins — 23

artista. Travava-se uma luta, na qual a artista, a Bourgeois, já sabia quem


Me conta mais do trabalho da Graziela Kunsch? Gostei da fragilidade sairia vencedora. Isso tudo me faz pensar que nossa insistência em traba-
do escrito dela frente à imensidão alva da página, um vazio eloquente lhar frente a um sistema de arte já “dominado” se dá por que, ao fazer esta
ao redor e entre as palavras, a alvura da página que assustou Mallar- escolha, criam-se oportunidades de viver mais intensamente o inexistente,
mé... Me conta sim do Jorge Menna Barreto, queria tambem ouvir suas recorrendo sempre àquilo que ele não dá.
leituras do Bartleby.
Se por qualquer circunstância diminuir de tal modo a vontade de esculpir
Seguimos nos falando, um bjo, pelo viés da subtração e do embate, então já não será Bartleby o prota-
gonista de nossas trocas. Ainda na conversa com o Jorge, veio à tona um
JM poema do João Cabral de Melo Neto, “Uma faca só lâmina”, onde tudo (a
linguagem, o substantivo, o adjetivo e o predicado) é mutável. E apenas
no final, depois de toda a luta com a matéria (a pedra, o livro, a página em
branco, a linguagem), João Cabral finalmente revela:
Ilha de santa Catarina, julho de 2014
“e daí a lembrança
Júlio querido, que vestiu tais imagens
e é muito mais intensa
Desculpa a demora do retorno. “Querido”, aliás, é uma palavra que do que pôde a linguagem,
tenho utilizado com muita frequência no dia-a-dia, nos e-mails e ao
atender o telefone. Estou aqui pensando se Ela, a Palavra, tornou-se um e afinal à presença
amuleto de entrada nas proposições dialógicas através da escrita ou é da realidade, prima,
mesmo parte de um sentimento que me faz refutar um “prezado”, “esti- que gerou a lembrança
mado”, “caro”, embora eu pudesse substituí-la por “amado”, “apreciado”, e ainda a gera, ainda.
“rico”. Muito raramente você vai ouvir de mim, presencialmente, um
“Querido” em começo de frase. No predicado é possível. Mas como viver Por fim à realidade,
no modo “NÓS” sem “Querido”, não é mesmo? Prima e tão violenta
Que ao tentar apreendê-la
E de “Querido”, convenhamos, Bartleby passa longe. Querido ele é por nós, toda imagem rebenta.”
críticos, curadores, artistas e amantes da literatura, pelo que ele nos faz ver,
sentir e pensar. Mas jamais poderia, jamais e em hipótese alguma eu conse- Me diga você se Bartleby não é exatamente isso, uma realidade prima e tão violen-
guiria, em nenhum tipo de ocasião, escrever uma carta ao Bartleby referindo- ta que ao tentar apreendê-lo, toda imagem rebenta?
me a ele como “Querido”. A distância provocada por Bartleby rebate em nós,
ao mesmo tempo em que nos fascina. Sua vida é, aparentemente, tão bem Bartleby é só lâmina.
organizada e governada que encontrar um ponto de fuga para a intimidade é
um privilégio que nem mesmo a Melville foi concedido. Um beijo, e até logo.

Mas o que me deixou fascinada foi você ter apontado que ele, o Bartleby, Vejo você no lançamento dessa publicação em São Paulo!
inspira e legitima os colegas para também agir guiados por suas preferên-
cias. Foi exatamente esse o assunto da conversa que tivemos, eu e Jorge, na Ká
semana passada. Ele lembrou uma fala da Louise Bourgeois que gostava de
esculpir em pedras pelo que a pedra não dá, pelo que ela resiste, pelo que a
pedra insiste. E a pedra, na sua insistência, acabava por alterar o gesto da
Kamilla Nunes Ações Curatoriais Kamilla Nunes Ações Curatoriais
e Júlio Martins — 24 e Júlio Martins — 25

Brasília, julho 2014 São Paulo, agosto de 2014

Ká, querida, Oi Júlio, boa noite!

Sim, vc tem razão, “nós” implica em gente que se interessa em ter o Ou bom dia, não sei exatamente como se comportam os tempos na madrugada...
outro como querido. É uma abertura que se propõe, um oferecimen- Gosto mais de pensar o agora como amanhã, porque já passou da meia noite,
to de mutualidade, enfim as relações são feitas desses vínculos, né?... mas ainda não dormi. Em todo caso, ainda está escuro.
‘Querer’ também me diz sobre partilhar visões em comum, estar em
debate com comprometimento. Mas ultimamente tenho a sensação de Amanhã (ou hoje) será o lançamento do livro que contém esse texto, já não
escrever frases cujo significado vai se perdendo antes de alcançar o temos mais tanto tempo de conversas e, além disso, estou me esforçando para
papel, fica retido lá só um subproduto informe. E sim, fiquei pensando escrever sem erros porque o texto já foi revisado. Uma pena que não podere-
na vida privada e especulando sobre a possível consciência de Bar- mos nos ver e continuar essa conversa pessoalmente.
tleby, o que podemos inferir de seu linguajar, de seus gestos, de suas
incontinências... Tudo isso também revela um pensamento, nem tanto Tem algumas peculiaridades do Bartleby que vez ou outra podem passar desa-
uma pedagogia a partir de Bartleby. Me interessa mesmo Bartleby percebidas. Você lembra que ele passava horas olhando através de uma janela
como modo de aprender, de se aproximar do mundo, de responder, branca atrás do biombo, para uma parede cega de tijolos? Sempre me pego
mas sobretudo de reagir com um não –um não que desestrutura os pi- pensando nessa imagem e no quanto ela me afeta pela semelhança. Não que
lares do pensamento e do comportamento de todos ali no escritório. E eu tenha uma janela branca, mas tenho a página. A Graziela, em letras miú-
ainda mais curioso é que ele estende sem cerimônia estes limites para das que até com o zoom é difícil de ler, nos deu um retrato fiel do Bartleby.
em seguida os ocupar também. Entre o comovente e o incoveniente, Uma página tão branca quanto a janela branca atrás do biombo emoldurando
Bartleby traça um posicionamento, constrói um lugar. E o domina ao sua mais significante expressão, também branca: “preferiria não fazer”.
ponto de acreditar ter posse dele. Sabe? Ele toma uma posição. Acho
que é uma invasão também, é furtar uma possibilidade. Isso fica mais Estou um pouco cansada da viagem, mas gostaria de continuar essa conversa,
claro, por exemplo, nos diálogos em que ele constrange o patrão. para que surjam outras oportunidades de não fazê-la.

De fato, Bartleby é impenetrável. Numa leitura possível, nem tanto Um beijo, meu querido. Espero que estejas bem!
prioritária, ele poderia ser aquele território selvagem de diferença e
singularidade, da consciência de ser eu um indivíduo, de me reconhe- Ká
cer, mas isso diante da falha e do total desconcerto e susto de também
perceber-se deslocado dessa noção, por vezes frágil, mesmo incompre-
ensível... Volto a perseguir e te escrever sobre o ‘eu’ (motivado por um
convívio que estabelecemos), sobre vozes da subjetividade... E Bartleby Vitória, outubro 2014
fala muito pouco e em tons um tanto indecifráveis.
Querida Ká,
Fico pensando, enquanto escrevo, em nossas dinâmicas de grupo, mas
prefiro nem tentar escrever sobre isso. Fico ruminando por aqui entre as li- Te agradeço, pois foi você quem me indicou Bartleby, naquele seminário que
nhas desse poema lindo do João Cabral de Melo Neto. Obrigado pelo envio! participamos em São Paulo, e agradeço novamente por trazer à memória esse
dado fabuloso! Sim, Bartebly tem o olhar anestesiado pela paisagem, passa ho-
Um bjo, ras a fio à janela, posso vê-lo frente à mesa ociosa, poucos papéis. Fico tentan-
do pensar algo que crie correspondência – como uma qualidade ou intensidade
J do olhar reconhecível por nós, que escrevemos sobre e a partir da arte –, com
um olhar que experimente e desvende essa visualidade estática, contemplativa,
Kamilla Nunes Ações Curatoriais Kamilla Nunes Ações Curatoriais
e Júlio Martins — 26 e Júlio Martins — 27

manipulação temporal que põe o tempo pra dormir em nós. Desaceleração do Sorocaba, outubro de 2014
tempo. É uma pausa que está plena de atividade psicológica, como quando nos
perdemos num pensamento que nos leva pra longe de onde estamos. Oi Júlio, como você está?
Saudades também!
Conheci um rio numa cidadezinha norueguesa e passei uma tarde inteira
lá tentando ficar encharcado do rio, de fora dele. Consegui no máximo Há tanto tempo que não conversamos sobre o Bartleby, que também dele
suar o colarinho da camisa... Você sabia que depois de nadar determinada fiquei com saudade. Relendo nossas trocas de palavras revestidas de senti-
quantidade de km, o corpo entra num estado de transe e nada novamente mento e memórias, dei-me conta que, por fim, pouco falei do trabalho da
aquela distância sob uma percepção alterada do tempo? Lembrei que em Graziela, que provocou em você tanta curiosidade. Linda a imagem que você
minhas notas durante a viagem à ilha de Anhatomirim está registrado trouxe do Bartleby, no sentido de que ele opera na intensidade de não inter-
que viajar é desacelerar o tempo. Lembrei que Deleuze era uma pessoa ferir na vinda dos devires. Ele sequer sai do escritório para comer ou dormir,
que não gostava de viajar, pois preferia “não retardar a chegada dos devi- e descobrimos isso apenas no final do livro. Mesmo curtos, os deslocamen-
res”, ou “não interferir muito na vinda dos devires”, ou algo parecido... O tos parecem impraticáveis. Fico me lembrando do pensamento de Walter
fato é que ficava em casa, esperando. Certamente a visualidade estática de Benjamin acerca da imagem. De algum modo, o Bartleby, sendo “só lâmina”,
Bartleby opera nessa intensidade. é primeiro um cristal de tempo, a forma construída de um choque onde o
outrora encontra o agora em um relâmpago para formar uma constelação.
Determinados textos que escrevemos parecem ir se escondendo no tempo
e relê-los, anos depois, é redescobri-los, é tambem lê-los pela primeira vez... Estou conversando com o Jorge Mena Barreto no “WatsApp” enquanto te
Tudo se passa no tempo. Já faz um tempo que olhava pra esta página espe- escrevo e, por coincidência, ele me mandou uma mensagem há 2 minutos que
rando mais palavras. Ainda sob efeito da experiencia aí em Floripa, temo que diz assim: “Acordei pensando no Bartleby, que ele renuncia a tudo, mas não
a fala sobre tudo o que vivenciamos, discutimos, aprendemos e compartilha- à fala. Se ele preferisse não, ele calaria. Dizer “eu preferiria não” é um fio que
mos seja sempre empobrecida. Lendo agora nossas últimas correspondências, escapa à completa negatividade”. Não havia pensado sobre isso, o Bartleby para
de meses e meses atrás, um sentimento me vêm, sem nome e sem genealogia. mim sempre foi a imagem da resistência, essa mesma que perdemos, talvez nos
Fico imaginando que o tempo é mesmo algo que se percebe em silêncio, as anos 70, depois que o mundo se transformou em imagem. Já não temos a força
palavras quase nunca dão conta. (Ainda que o fraseado longo de Proust seja poética e profética dos “Provos”, embora continuemos lutamos por direitos
lindo e influencie nosso ritmo respiratório de imediato, ao ler). emancipatórios, igualmente políticos, mas provavelmente mais mascarados.

Mas queria insitir contigo sobre o trabalho da Graziela Kunsch, a Quando falamos em resistência, pensamos sempre no macro, no sistema capi-
página em branco, parece mesmo jogar com a oficiaidade de um lema, talista, nas zonas de guerra, nas doenças devastadoras, na luta dos sem terra.
marca uma posição... Este trabalho tem a força de uma barreira de Mas a resistência também está no micro, do dia-a-dia, no nosso processo vital
interdição, de área envolvida por faixas de isolamento. Me fala mais e nossa função de resgatar os mundos que se perderam nesse regime vertigino-
desse trabalho, sigo curioso a respeito. so da globalização. Lembro uma fala da Marisa Flórido em Recife: “Não temos
mais como construir um mundo em comum, então nós vivemos a catástrofe
Queria te contar uma coisa, sem contexto mesmo: depois de conhecer o em comum”. Mas o Bartleby, Júlio, o Bartleby nem a catástrofe, ele vive em
trabalho do Bill Lühmann, me pego em manhãs livres andando pela rua comum. E aí, talvez o Jorge tenha razão, ele só não resiste à fala. Talvez porque,
e recolhendo pequenos objetos para uma coleção de achados. Determi- ao se escutar, ele lembre que é humano. Tem uma parte do livro que me como-
nados trabalhos que vemos parecem definir estratégias de olhar, que se ve muito, uma pequena conversa em que seu chefe tenta, apela, implora para
utilizarmos ou replicarmos na vida nos oferecem o horizonte alargado que o Bartleby se abra com ele, converse. Chega ao ponto de dizer “Eu sou seu
da experiência estética. amigo, eu gosto de você”. E ele estava sendo sincero, tenho certeza.

Um beijo pra você, saudades Hoje acordei confusa, acho que essa carta demonstra um pouco desses confli-
tos. Talvez eu tenha nadado muitos km e minha percepção da vida e do tempo
Kamilla Nunes Ações Curatoriais Kamilla Nunes Ações Curatoriais
e Júlio Martins — 28 e Júlio Martins — 29

esteja alterada. É como se o Bartleby me impedisse de agir como de costume. população por causa das férias de verão. Se pudesse ser um pouco de
Sempre fico em estado de suspensão quando escrevo para você. Quando falo Bartleby, eu preferiria não estar aqui.
sobre ele. Seria inveja? Você percebe a força que tem essa personagem, para
repetir, repetidamente, a palavra “não”? Dizemos sim a tudo, Júlio. Até àquilo Ká
que sabemos que irá nos machucar e, mais do que isso, machucar o outro.
Acho que tenho inveja do Bartleby. PS: envio anexo uma imagem do momento da queda.

Estou no meio de uma montagem de exposição, exausta, mas achei que


deveria parar e te responder imediatamente. Me parece que chegou o
momento, não de consolidar o que se estabiliza, mas de mostrar a crise,
quebrar o que chamamos de realidade por meio de alucinações não adap-
tadas, a fim de trocar os valores do real.

Um beijo, querido. Espero que estejas bem em Vitória. Acho uma cidade com
paisagens lindas.


Nova Lima, março de 2031

Ei Kamilla, tudo bem?


Ilha de Santa Catarina, fevereiro de 2031
Que felicidade o acaso não! Os acidentes, por vezes, se passam por providên-
Querido Júlio, cia. Eu precisava mesmo reler Bartleby, fui até meu livro assim que te li. Essa
edição era daquelas páginas que se abriam com um rasgo, cada página era
Estive buscando por Bartleby na prateleira de cima, onde alcanço apenas descoberta... Bons tempos, bom reler as notas que escrevi no canto das pági-
quando fico na ponta dos pés. Não que seja alta, mas como você sabe, eu nas. Veja essa polaroid que te envio em anexo. Encontrei visitando arquivos
não passo de um metro e meio de altura. O livro, já empoeirado, caiu no daquela época. Como é misterioso o que tempo provoca na gente, não?
chão com as páginas abertas, mas a imagem que apareceu foi justamen-
te a de Bartleby, uma parede cinza. A edição é aquela da Cosac, lembra? Volto a ter saudades de você, um bjo,
Costurada nas bordas… A supresa é que guardei as nossas correspondências
dentro do livro, deixei dormir junto com Bartleby todos esses anos. E ago- j
ra, relendo, fui tomada por uma vontade enorme de poder, novamente, ser
contaminada pelas nossas conversas, pelos nossos desejos.

Depois de ver uma entrevista ontem com o Frederico de Morais no


Art1, gravada em 2014, resolvi reler Bartleby. Ele diz que a velhice nos
dá o privilégio de reencontro com nossos mais estimados escritores. E
liberdade também, de não se deixar contaminar pelo turbilhão de in-
formações e autores contemporâneos, guardando o tempo, tão escasso,
para reler os da juventude.

Um beijo desde a ilha, que está com cinco vezes o número de sua
Dez minutos, uma semana, um ano. Maria Monteiro Ações Curatoriais
— 33
Maria Monteiro

O cada um tornou-se um corpo de ser, pensar, viver e articular


único de trabalho. o pensamento.

A vida em comum nos atravessou Não parece possível tudo aquilo


momentaneamente: o dia começa- ter acontecido no espaço banal de
va com muitos bons dias e termi- uma semana. Dividida assim: dia
nava com muitos boas noites. 1 na universidade; dias 2 e 3 visi-
tando locais da cidade onde a arte
Foi pouco mais de uma sema- Devíamos, portanto, aproveitar Quem são essas pessoas todas? acontece de modos diversos, dos
na, uma breve fração de ano, o a oportunidade daquilo que nos institucionais aos marginais; dia
equivalente a 10.080 minutos, o foi oferecido: o encontro entre Marta Mestre; a curadora brasilei- 4 e 5 recebendo artistas que nos
tempo que passamos juntos na curadores de diferentes partes ra, era portuguesa (ou vice-versa). apresentaram generosamente suas
ilha de Florianópolis. do Brasil, o pouso, a comida, a Tinha pois, outra noção sobre produções, um bando de curadores
convivência, e a Ilha. embarcações, sobre alteridade. de pijama, largados em almofadas,
A simpática pousada tinha vista Kamilla Nunes era a potência vivendo um labirinto de novas
para o mar. Os quartos aconche- Aquilo estava dado. O resto have- local, de uma energia insular. informações por minuto, na tenta-
gantes rodeavam uma piscina ria que inventar. Paulo Miyada nos perseguiu com tiva de incorporar as diversas
onde apareceu “dez minutos, uma a tal ideia contagiante de dar o camadas daquele acontecimento.
semana, um ano”. Não parecia complicado já que as melhor de si. Santiago Navarro
cabeças ali reunidas eram extra era o argentino, de Mar del Plata, O dia 6 era lazer: o barco, claro,
A brincadeira era para espairecer inventivas, e por certo, muito que não é Punta de Leste, escritor uma sutileza da ilha.
as nossas tão ocupadas mentes. comprometidas. Uma compilação , deixou o mar de lá e vive cá no
de multifacetadas possibilidades de mar do Rio de Janeiro. Júlio Leite A música era alta. Pedimos silêncio,
O trabalho disfarçava-se sorrateira- interpretações poéticas do mundo. parecia o mais silencioso, nos o mar precisava falar conosco.
mente de lazer. Passatempo. seus 20 minutos, porém, dizem A ilha de Anhato-mirim era um
Sabemos das naturezas misteriosas Era o primeiro dia. Ainda não que falou 60, e o fez de modo tão presente, o céu estava de um azul
do tempo, que quando sagrado ou estávamos inventando nada de calado que ninguém se deu conta, indescritível, o sol brilhava e a
festivo assume outras formas, um novo: uma fala aberta no ambiente falava muito bem com livros Fortaleza firme e sólida era ba-
corpo contínuo, infinito. Se expande da universidade. Ficamos nervosos e páginas. Gabriela Motta foi nhada pela lua semi-transparente.
ou contrai de acordo com certas com as falas públicas. minha amiga de quarto, não sei Caminhávamos explorando o novo
intensidades de experiências vividas. quanta intimidade se pode trocar território: a ilha noutra ilha.
Unanimidade: vinte minutos para com uma pessoa estranha e para Os 2 dias que seguiam eram àque-
Os sábios gregos possuíam duas cada um não é nada. Mas foi. aproveitar fizemos o possível para les de definição sobre as ações que
palavras para designar a noção de usufruir cada segundo de assuntos teríamos que articular em 4 cida-
tempo: chronos, Deus das esta- Mas já? Exclamávamos frustrados densos, íntimos, desses que não des diferentes de Santa Catarina.
ções, aquele que se mede, portanto ao final de cada fala. se compartilha com estranhos.
sequencial, e kairós, tempo exis- Andreza Gomes veio através de O tempo novamente se espremia.
tencial, indeterminado, a experi- Os minutos foram severamente limi- um edital aberto, foi doce, amável
ência do momento oportuno. tados, mas há no tempo, inevitavel- e inspiradora sua companhia. Mas o balançar do barco já havia
mente, sua serventia: nós, estranhos, Beatriz Lemos sabia bem sobre ocupado nossos imaginários,
O mapa astral desenhando pelo estrangeiros na ilha, tivemos a chance redes e lastros, muito pertinente. assim como a experiência de não
artista Carlos Asp confirmou a de escutar o outro no seu espremido e Fernando Boppré deu o prumo. apenas estar juntos, mas pensar
profecia: o momento era nitida- instante cronológico. juntos a noção de deslocamento
mente oportuno. Comigo eram dez. Dez jeitos em grupo, síndrome da trupe.
Maria Monteiro Ações Curatoriais
— 34

Assim aconteceu: vamos trazer as 4 teriormente aos outros, poucos


cidades para a ilha dentro da ilha. recordavam suas respostas, que fo-
ram dadas com tanto entusiasmo.
Nasceu o Congresso Extraordinário
da Fortaleza de Anhato-mirim. Penso que esse fenômeno é como a
ilha (a outra). São meros recursos
No dia propício, a ilha encantada que usamos para enfrentar o outro
fez a chuva cair forte no mar. e seus desejos.

Antes disso voltamos cada um para No fim, nada resta além da esfuma-
suas solitárias casas, ligados por çada memória dos momentos com-
um laço que o tempo não explica, partilhados, do tempo poético que
esperando a hora de regressar. adquiriu forma elástica e infinita.

Chegou o dia do Congresso e nosso Sem dúvida, escolheríamos todos


encontro com mais uma dezena de novamente uma semana, dez mi-
participantes, foi no “restaurante nutos, um ano juntos refletidos no
de tainha”. Extraordinário? espelho do outro, sem esperar ne-
nhuma espécie tangível de retorno.
Como chovia, todos vestiam capas
de chuva, sacos plásticos nos pés e Era véspera de não partir nunca.
abafadores de ruído nos ouvidos.
Que imagem inesquecível.

Tudo de uma estranheza conforta-


velmente familiar.

O resto é história.

Durante nossos 10.080 minutos to-


tais de vivência, falamos muito sobre
modos de agir e pensar: traços de
personalidade, infância e mapa astral
pareciam ser determinantes.

A brincadeira era assim: se pudés-


semos escolher qualquer pessoa,
de qualquer tempo, com quem
passar dez minutos, uma semana,
um ano, quem seria?

Não consigo agora lembrar de nenhu-


ma das respostas. Nem da minha.
Curioso que ao perguntar pos-
Fernando Boppré Ações Curatoriais
— 37

Da Barra do Sambaqui à Ilha de Anhatomirim nas


frias águas do Canal Norte da Ilha de Santa Catarina
A partida – Baía que é canal – Barra norte – Felicíssima posição
hidrográfica – Sistema triangular de defesa – Porto seguro –
Agrofloresta por George Anson – Baterias, trincheiras, fortes
e fortalezas – Sobre o fascínio rodoviário e aéreo – A disputa
entre portugueses e espanhóis – Anhato-mirim por Virgilio
Varzea – A imagem de Duperrey – Muito mar

A Congregação zarparia por volta setentrional3 onde se situa a Ilha


das 11h da manhã em três escunas. de Anhato-mirim.
Com o sol a estibordo, o vento, pro-
vavelmente, sopraria em quadrante A barra norte, fácil de fundear, tem
nordeste, o mais comum nessa “grande número de ancoradouros
época do ano, o outono austral. abrigados e fundos, oferecendo
entrada absolutamente franca a
O ponto de partida, a Barra do Sam- todos os navios, ainda os de mais
baqui, na Ilha de Santa Catarina1. alto bordo, mesmo de noite e com
Destino: Ilha de Anhato-mirim, as maiores borrascas”, escreveu em
pertencente ao município de Gover- 1900 o marinheiro e marinhista
nador Celso Ramos. A distância per- Virgilio Varzea, o dito “Herman
corrida, cerca de 2,5 milhas náuticas; Melville tropical”, em seu livro
a velocidade de cruzeiro, 9 nós. “Santa Catarina – A Ilha”.
A paisagem seria avistada com o
corpo e os olhos a aproximadamen- Nela, José da Silva Paes fez cons-
te 17 km/h. Um cinema às avessas: truir três fortalezas e desenhou
corpo movente, imagens cadentes. assim o sistema triangular de defesa
Costuma-se chamar, ordinariamen- marítima da Ilha de Santa Catarina,
te, a porção de água que corre, em atuante até a Segunda Guerra Mun-
paralelo, a separar a Ilha de Santa dial. Compunham-no a Fortaleza
Catarina do continente, de baías de Santa Cruz de Anhato-mirim e
norte e sul. Preciso seria denominá- a de São José da Ponta Grossa (na
las canais. Baías são fechadas, pos- atual praia do Forte) que tinham à
suindo apenas uma entrada por mar. retaguarda a de Santo Antônio (na
Canais são abertos nas extremidades. ilhota de Ratones Grande).
No caso da Ilha de Santa Catarina,
as barras2 que desenham as entra- Importante ressaltar a função es-
das para os canais norte e sul são tratégica da Ilha de Santa Catarina
generosas à marujada. Sobretudo a em tempos das grandes navega-
Fernando Boppré Ações Curatoriais Fernando Boppré Ações Curatoriais
— 38 — 39

ções. Encontrá-la era, bem dizer, infalível.... Inúmeros são os navios, Além disto, há aqui em grande na caiu após a investida da esquadra
uma graça de Nossa Senhora dos e inúmeras as vidas que têm sido abundância duas outras produções (a maior que já se viu cruzar o Atlân-
Navegantes. É o que diz, impli- salvas, mediante a felicíssima posi- de um uso infinito nos navios, a tico Sul desde então) comandada
citamente, o Almirante Proença, ção hidrográfica de Santa Catarina, saber, as cebolas e as batatas”. por D. Pedro de Cevallos, na ocasião,
em idos do século 19: “Todas as sem dúvida admissível uma das governador de Buenos Aires...
embarcações, pois, mesmo as que se melhores do mundo”.
acham em grande distância, correm O intenso fluxo de estrangeiros que Nessa invasão não houve morte,
a abrigar-se no ancoradouro da Além disso, a Ilha de Santa Ca- atingiam suas praias fez com que a drama algum. Os portugueses que
barra do norte de Santa Catarina, tarina é um dos últimos portos Ilha de Santa Catarina fosse guar- guarneciam a Ilha de Santa Catarina
sempre pronto a recebê-las, debaixo seguros entre o Rio de Janeiro e necida desde as bordas. Havia uma debandaram continente afora. Ou
de qualquer tempo, a qualquer hora, o Rio da Prata, caminho quase quantidade considerável de baterias, se entregaram sem disparar tiro
e em quaisquer circunstâncias que obrigatório para descanso, aguada e trincheiras, fortes e fortalezas: sequer. As ações militares navais
sejam. Que sensação agradável, que reabastecimento de víveres. Sobre aproximadamente trinta. A maioria daqueles tempos tinham algo de
prazer compensador não é aquele este último quesito, a fertilidade da delas desapareceram ante ao fascínio cena teatral – o que nos causa certa
que sente o coração do marinheiro, terra e a quantidade de alimentos rodoviário e aéreo que tomou conta inveja, sem dúvida.
quando, tendo consumido dias e (sobretudo a laranja que, em tem- da gente moderna e dos estados
noites na luta titânica dos elemen- pos de escorbuto, servia de comida nacionais4. Em Florianópolis, ao A coisa seria decidida, menos de
tos desencadeados, avista aquele e remédio) era sempre anotada mar restou o extrativismo (a pesca, a um ano depois, no tapetão. Melhor
alteroso Arvoredo, as altas cumia- com certo espanto pelos viajantes maricultura), o lazer e o turismo. O dizendo, nas salas atapetadas,
das do Ribeirão e do Cambirela, que nela aportavam, como o inglês porto há muito mudou de endereço. mobiliadas com homens brancos e
e, fazendo direta rota, com suma George Anson, em 1740-41. Obser- Nem posta restante chega aqui. bem alimentados do corpo diplo-
confiança, para o imenso claro que ve-se a descrição muito próxima ao mático ibérico. O Tratado de Santo
se lhe apresenta, vai vendo aquelas que hoje se chama de agrofloresta: Mas, voltando ao canal norte, rota Ildelfonso, em 1778, devolveria a Ilha
montanhas se lhe crescerem, “A terra de Santa Catarina é muito que a Congregação cobriria no aos portugueses que, por sua vez,
aquelas ilhotas se lhe aproximarem, fértil e produz quase por si mesma sentido sudeste-noroeste. Ele é devolveriam a Colônia do Sacramen-
aquele mar encravado substituindo variadas espécies de frutos. Está tão aberto que por ali mesmo, há to aos espanhóis. Realmente, ambos
o mar tempestuoso, e depois, os coberta de uma floresta de árvores 237 anos, os espanhóis tomaram os lados tinham razão: o que estava
habitantes pelas praias, as plan- sempre verdes, que, pela fertili- de assalto a Ilha de Santa Catari- em jogo não merecia tiro, facada ou
tações espalhadas pelos morros, dade do solo, são de tal maneira na. Razões eles tinham: o Tratado impropério qualquer. Era troca de
e afinal, o abrigo, o ambicionado entremeadas de sarças, espinheiros de Tordesilhas (1494), aquele que figurinhas ou coisa assim. Meninos
abrigo, sonho do seu navio já meio e arbustos, que o todo forma um dividiu o Novo Mundo entre lusos medindo o tamanho de seus respec-
desmantelado, da sua equipagem já conjunto impossível de atraves- e hispânicos, havia sido atropelado tivos pintos. Que o valham!
meio morta de fadiga! Nos ancora- sar, a menos que se torne algum primeiro pelos portugueses. Eles
douros dos Ratones, de Sambaqui, caminho que os habitantes fizeram tiveram a petulância de fundarem Por fim, cabe descrever o destino da
das Caieiras, do Saco de São Miguel, para sua comodidade. Os frutos a Colônia do Sacramento em meio Congregação, a Fortaleza de Santa
da Praia de Fora, dos Barreiros, da e as plantas próprias de outros ao território espanhol, bem nas Cruz da Ilha de Anhato-mirim.
Ponta do Leal, enfim, do Desterro, países crescem aqui quase que sem entranhas do rico Rio da Prata, em Para tanto, tomemos de emprésti-
tudo sorri ao marinheiro! Uma vez cultura, e em grande quantidade, frente a Buenos Aires... mo novamente os olhos costeiros
reconhecida a terra, pelo alteroso de maneira que não faltam nunca de Virgílio Várzea: “A ilhota é alta e
da Ilha, pela posição do Arvoredo os abacaxis, os pêssegos, as uvas, as Vai saber se desejoso de vingança ou rochosa, coberta aqui e ali de curta
e seu farol, o ingresso em Santa laranjas, os limões, as limas, os me- apenas soldado leal à Corte Espanho- vegetação. O forte tem as suas mu-
Catarina é infalível, completamente lões, os abricós, nem as bananas. la, o fato é que a Ilha de Santa Catari- ralhas voltadas para a barra e ocupa
Fernando Boppré Ações Curatoriais Fernando Boppré
— 40

a bem dizer o perímetro inteiro da próxima àquela que o comandante destino do Congresso... Alguns movimentos reivindicam

ilhota, com os seus quartéis, casa do da corveta Coquille, Louis-Isidore a mudança de nome da cidade de Florianópolis. Dentre

comando, caso dos oficiais e outras, Duperrey, registrou em seu diário as sugestões se encontra o nome “Ondina”, a deusa dos

todas encerradas na parte inacessí- em 1822: “Penetra-se nesse forte mares, como Cruz e Sousa e Virgilio Várzea, escritores cá

vel das rochas e tendo somente um por um pórtico notável pelo seu nascidos, faziam grafar a cidade em seus escritos.

grande portão de entrada, que desce estilo gótico e pela sua antiguida-
por uma ampla escadaria de pedra de, depois de haver subido uma 2. Cabe dizer, nauticamente, que a barra, de modo ge-

até a pequenina praia ao sul, onde centena de degraus onde enormes ral, é realmente uma barra. Muitas delas, como a Barra

há um cais de desembarque”. barbatanas de baleias estão postas à Diabólica, entrada e saída da Lagoa dos Patos, entre Rio

guisa de corrimão”. Grande e São José do Norte, no Rio Grande do Sul, eram

Em tempos da disputa entre por- conhecidas até o século 20 pelas impetuosas dificuldades

tugueses e espanhóis, era a maior Seguindo o caminho até o local que inflingiam aos capitães e mesmo aos práticos mais

e mais bem guarnecida do Sul do onde ocorreria a maior parte das experimentados.

Brasil. A construção se iniciara em atividades do Congresso, é possível


1739, servindo de sede e casa para o que capivaras dessem o ar da graça. 3. A barra meridional é mais estreita, de mares revoltos.

primeiro governador da Província de Esses grandes roedores (ratones?) Não por acaso, lá, apenas uma Fortaleza, a de Nossa Se-

Santa Catarina, o engenheiro militar abundam por ali. Ao observá-las, nhora da Conceição de Araçatuba, vigia o oceano que se

Brigadeiro José da Silva Paes. com o mar ao fundo, talvez alguém estende em direção ao Cabo Horn, esse sim violento e

O fato de estarem preservadas lembrasse verso italiano, de poeta dificultoso à navegação.

quase todas as edificações, incluin- que à beiramar viveu: “Muito mar.


do o quartel da tropa, a casa da Nossos olhos já viram bastante de 4. Talvez a hipótese mais plausível para a explicação do

farinha, o paiol, as escadarias, os mar” (Cesare Pavese). abandono das fortalezas seja militar: quando os Estados

canhões, dentre outros, faz ver que Nacionais decidiram por bem guerrear mais por terra e

ali a engenharia militar lusitana por ar, as fortalezas da Ilha de Santa Catarina (e tantas

atingia um de seus pontos áureos. Notas outras litorâneas) caíram em desuso. A prova disso é que

Cada construção assentada sobre a hoje servem, majoritariamente, aos turistas. Nem a Mari-

topografia natural do terreno numa ** De acordo com Virgílio Varzea, pampeiro sujo é “como nha as quer mais...

distribuição assimétrica e arritmíca dizem os marítimos, trovoada e relâmpagos terríveis, chu-

que respeita às contingências geoló- va grossa, açoitadora, incessante e de alargar tudo”. 5. O mesmo fundara a Vila de São Pedro (atual cidade de

gicas e faz dela sua verdadeira força. Rio Grande, no Rio Grande do Sul). E concebeu a vinda de

1. A Ilha de Santa Catarina é mais conhecida como Flo- imigrantes açoreanos e madeirenses para a Ilha de Santa

A Congregação acessaria Anhato- rianópolis. Até 1894 a cidade tinha o nome de Desterro. Catarina.

mirim pela face sul ao desembarcar Chegado o republicanismo e o seu regime de violência ins-

em seu pequeno ancoradouro. tituída, passou a se chamar Florianópolis em homenagem

Haveria de subir altos e numerosos a Floriano Peixoto, primeiro vice-presidente (1889-1891) e

degraus, estrategicamente constru- segundo presidente (1891-1894) da República Federativa do

ídos para dificultarem a chegada Brasil. O fato é que Floriano não desperta boas lembranças

ao local, afinal, tratava-se de uma aos ditos florianopolitanos. Em 1894, durante a Revolta

fortaleza. A vista que se teria, ao Federalista, o “Marechal de Ferro” autorizou o massacre

sopé da montanha de degraus – de dezenas de pessoas, consideradas contrárias ao regime.

exceto as barbatanas de baleia, já A chacina promovida pelo Estado Brasileiro (mais uma...)

consumidas pelo tempo – seria bem ocorreu na Fortaleza de Santa Cruz do Anhatomirim,
Afinal, quando vamos ser sul-americanos? Santiago G. Navarro Ações Curatoriais
— 51
Santiago G. Navarro

de los modos colectivos de pensar hecho de que para un brasileño no


y de ser hablados por esa lengua. existe lengua más fácil de aprender
que el español. Y sin embargo, un
Entre otras cosas, se hizo cada brasileño ilustrado nunca encon-
vez más evidente para mí que en trará dificultades para aprender
la conversación de los brasileños francés o inglés, ni para circunscri-
todo lo más que se puede llegar a bir su área de acción intelectual a
decir del resto de Latinoamérica un triángulo formado por Francia
son tres o cuatro clichés genera- (ocasionalmente algún otro país
Cuando me vine a vivir a Brasil, a en una traducción que no fuese
les, y otros tres o cuatro especial- europeo), Estados Unidos y el
principios de 2011, traía un plan: al español me hubiera parecido
mente dedicados a los “herma- propio Brasil, cuya cultura, según
difundir la cultura del resto de cómico, porque el portugués, para
nos”, como si los únicos que el imaginario local, es tan rica que
Latinoamérica. Tuve varias ideas el restringido repertorio cultural
pudiésemos aspirar a ese título parecería poder autoabastecerse
al respecto, traté de ponerlas en con el que yo estaba condenado
fuéramos los argentinos. (Térmi- durante siglos sin precisar de otros
práctica también como modo a enfrentar la diferencia local
no, por otra parte, que nunca se intercambios.
de ganar un dinero y empezar a hasta tanto no la hiciera propia,
pronuncia sin un dejo de ironía y
instalarme en el país, pero fue más me sonaba demasiado dulce o de-
una involuntaria sonrisa: hasta el El latiguillo de la dimensión
difícil de lo que me imaginaba. masiado blando para el universo
tono de voz decae). continental de Brasil, por su parte,
En parte, supuse, porque llevaría de problemas y de aspiraciones
siempre suena más a una negaci-
tiempo conocer a las personas que en el que podía estar sumido un
Siempre que le preguntaba a mi ón del resto del continente real
podrían ayudarme. La urgencia de personaje japonés o uno ruso. Sin
interlocutor ocasional por qué creía (aquello que en Brasil se conoce,
conseguir trabajo y el laberinto embargo, en algún momento, leer
que en Brasil no había interés por justamente, como “Latinoamérica”)
burocrático en el que un residente rusos y japoneses en portugués
el otro lado de la frontera, saltaba que a una afirmación de las propias
extranjero está obligado a perderse empezó a no parecerme forza-
automáticamente alguna de estas riquezas y posibilidades del país.
al menos durante los primeros do. Como si las formalidades de
dos respuestas: el problema es la Del mismo modo que el elogio a la
años, hicieron el resto. Y así, aban- la lengua se hubieran retraído
diferencia lingüística, el problema heterogeneidad brasileña siempre
doné el plan. Temporariamente. del primer plano y les hubieran
es la dimensión continental de Bra- es un poco la manera que tiene
dejado lugar a las sensaciones de
sil. (Es verdad que también llegué a el Sudeste de disculparse de su
Entre tanto, escuchaba a las per- las que los textos se alimentaban.
escuchar, de un aspirante fracasa- predominio sobre el “interior”,
sonas hablar. Prestaba atención Como dejar de leer con las orejas.
do a Itamaraty, una interminable él sí heterogéneo respecto del eje
a las construcciones gramatica- También escuchaba a las personas
exposición sobre la formación del cosmopolita Rio-San Pablo.
les, a los giros del lenguaje, a las por lo que decían. Y al final, entre
Brasil moderno, que si bien explica-
entonaciones, a los acentos, y lo que decían y la manera en que lo
ba por qué históricamente se había El problema, como por fin empecé
los memorizaba y reproducía a decían, algo inesperado empezó a
tendido a fortalecer la endogamia, a entender gracias a una crónica
la primera ocasión. Además, leía. revelárseme: que podía oír también
por el otro sonaba también a una de Paulo Mendes Campos, era más
Leía y leo mucho en portugués. cómo el portugués de Brasil y su
justificación, en el mismo to no de profundo que la habitual indiferencia
Al principio, sólo a autores bra- Weltanschauung hablaba a través
las dos respuestas estándar). del colonizado frente a lo que no pro-
sileños, porque quería conocer de las personas. El privilegio de la
viniese de las fuentes del colonizador.
tanto como me fuera posible la extranjería, en estos casos, es po-
En efecto, estas dos frases, lejos (Condición que, desde luego, compar-
literatura que me acogía. Pero der reconocer lo que para un local
de explicar algo, reafirmaban timos todos de México para el Sur).
además, en ese momento, leer es la parte invisible e inaudible de
inconscientemente el problema. El problema era el desprecio activo de
a Kawabata o a Dostoiesvsky la estructura de la propia lengua y
Porque cae por su propio peso el Brasil por lo latinoamericano.
Santiago G. Navarro Ações Curatoriais Santiago G. Navarro Ações Curatoriais
— 52 — 53

Mendes Campos escribe “Afinal de su dependencia de los ciclos simplemente consolida circuitos mericanas. Sólo me pregunto si
somos sul-americanos” como muy económicos sostenidos por la de recepción distanciados de los han sido recibidas de otra manera
temprano en 1969. Ninguna de las producción exhaustiva de materias parámetros de sofisticación de las que como buenas mercancías de la
ediciones que conozco aportan la primas requeridas por los países elites. ¿Y cuál podría ser el círculo al oferta global, con el mismo mérito
fecha de publicación de esa crónica, que controlaban el mercado mun- que alude Mendes Campos sino el de deslocalizado y neoexótico que las
pero ella misma da una pista: el au- dial, de sus poblaciones mestizas la modernidad ipanemense?). Mucho películas de Abbas Kiarostami o las
tor inicialmente se había propuesto (¿Brasil más mestizo que Colombia, más exquisito hubiera sido leer –y novelas de Sandor Márai. (Rober-
hablar de “o excelente romance que que Cuba, que Venezuela?) y de su esto teniendo en cuenta apenas a to Bolaño, que inventó una épica
é Cem anos de solidão” (publicada diferente posición relativa frente a los escritores chilenos– a Augusto contemporánea para el imagina-
por primera vez en Buenos Aires en la modernidad y la posmodernidad D’Halmar (autor de Pasión y muerte rio cultural latinoamericano y la
1969), pero había terminado refiri- europeas. ¿Quién sabe, en Brasil, del Cura Deusto, la primera novela transformó en eje de su obra, tal
éndose a la negación de la América que el ensayo de Borges “El escri- de asunto homosexual del continen- vez constituya una excepción).
hispanohablante en Brasil. ¿Por qué? tor argentino y la tradición” con- te), José Donoso o Braulio Arenas. Pienso, entre tanto, que la lección
Se desprende del propio texto que, tiene, en esencia, el mismo planteo geopolítica que podría comportar
para poder elogiar a un autor hispa- del Manifesto Antropófago, y que Quizás el texto de Mendes Campos una recepción madura de la incre-
noamericano en Brasil, antes hacía le es contemporáneo? era importante para mí por la íble película paraguaya 7 cajas, es
falta superar una no despreciable fuerza del testimonio. Llegué a que para muchos actuales aspiran-
barrera de prejuicios. Dice Mendes Campos: “Na litera- preguntarme, de cualquier manera, tes a realizadores, mejor opción
tura, a esnobação brasileira chegou qué método de relevamiento crea- que Rio o San Pablo para estudiar
Si después del modernismo, à sublimidade do grotesco. Para ría o aplicaría un estudio socioló- cine podría ser Asunción.
Brasil por fin había aceptado ser desprezar melhor e com mais força gico que se propusiese analizar la
brasileño y no una extensión os escritores hispano-americanos, extensión territorial de esa actitud Yo me acuerdo bien de cuándo fue
del parnasianismo (francés) en deixávamos de lê-los, não lhe de- despectiva dentro del campo que caí de rodillas ante la cultura
literatura y del academicismo corávamos os nomes. [...] Quem lia cultural brasileño; por qué vías se brasileña. La primera vez, durante
(también francés) en pintura, escritores sul-americanos passava reproduciría, por qué no generaría los tres días que pasé estudiando, su-
después del disco de João Gilberto por picareta, chato ou maníaco. Sei resistencias (¿o las generó?). pongo que hipnotizado, las claves del
con Stan Getz, del de Tom Jobim por experiência. Como, através de Al final, si “um professor de litera- sistema que aplicaba un historiador
con Frank Sinatra y, sobre todo, meu pai, acabei me interessando tura hispano-americana nos parecia del arte brasileño para interpretar
del tricampeonato mundial de um pouco pelas obras deles, fiquei sempre o primo pobre do corpo obras de épocas y regiones del mundo
fútbol, Brasil estaba a la altura suspeito entre amigos e companhei- docente”, no había nada que hacer: muy diversas (Paulo Herkenhoff apud
de las grandes potencias y, como ros. Era indício de mau gosto ou quien pensase lo contrario se queda- Oswald de Andrade en la primera
dice Mendes Campos, “prontinho birutice gostar dos sul-americanos, ba hablando solo. Es esa la sensación Bienal de San Pablo –fue en 1998– a
para embasbacar o mundo com o a não ser Pablo Neruda”. que tengo en Brasil. Con la diferen- la que asistí en mi vida); y la segunda,
Brazilian Way of Life”. cia a favor de que el desprecio activo la noche de lluvia torrencial de 2004
La mención a Neruda no deja de ser de los años sesenta perdió asidero que pasé en vela en una casa en el
Pero para poder despegar mejor, curiosa, si se tiene en cuenta que conceptual y consenso afectivo, morro de Santa Teresa, en Rio de
Brasil creyó necesario olvidarse varios de sus poemas ocupan desde reduciéndose a simple apatía. Janeiro, leyendo Dom Casmurro.
de su matriz latinoamericana. No hace décadas un puesto merito- Que la historia del arte pudiera ser
digo de su identidad, sino de su rio dentro del repertorio kitsch No obstante, esa indiferencia reescrita en Brasil y que en Brasil pu-
matriz. De su matriz colonial, de latinoamericano. (Desde luego, la parecería haber sido sacudida diese escribirse un clásico de tamaña
sus núcleos de poder reconcen- apropiación pop de su obra no im- recientemente, con la distribución modernidad, redefinieron mi manera
trado y de su pobreza dilatada, plica el rebajamiento de su calidad: local de buenas obras hispanoa- no sólo de entender Brasil, sino de
Santiago G. Navarro Ações Curatoriais Santiago G. Navarro Ações Curatoriais
— 54 — 55

posicionarme como latinoamericano. tanto habérselos repetido? partimos a bordo de balões imagi-
¿Pero cómo hablarle a un brasileño ¿O informándole de la existencia nários. Estamos aprendendo a nos-
de todo lo que se pierde por no de una historia del conceptualismo sa geografia continental: assombra-
ver más allá de las fronteras del latinoamericano que comienza con dos com a semelhança fraterna que
sub continente Brasil, y de todo los poemas gráficos del tutor de antes não queríamos ver”. Cerca
lo que podría hacer y de todo en Simón Bolívar y posible precursor de de cuarenta años después, ese
lo que podría transformarse si Mallarmé, Simón Rodríguez, y que final, ya que no se hizo realidad,
las atravesara? ¿Contándole, por afirma que la performatividad de podría servir como materia de
ejemplo, que no existe en todo el los operativos del grupo guerrillero meditación. Al final, quizás no se
imaginario brasileño nada com- Tupamaros inspiró a los conceptua- trate de torcer el rumbo, sino de
parable al horror y la fascinación listas uruguayos, entre ellos el pro- suscitar un sutil pero indispensable
que transmite la selva amazónica pio Luis Camnitzer, autor del libro movimiento triple: 1) reconsiderar
de La vorágine, del colombiano referido, Didáctica de la liberación? los lugares comunes de la dife-
José Eustaquio Rivera, una de las ¿O que el modelo museológico más rencia lingüística y la dimensión
mayores novelas de la literatura osado, complejo y de mayor viru- continental de un país en realidad
latinoamericana (incluyendo, desde lencia crítica del planeta probable- subcontinental; 2) revisar los pará-
luego, la brasileña); y que tendría mente se encuentre en Lima, aunque metros culturales que uno utiliza
más sentido, para poder pensar lo lo de “encontrarse” sea un decir, normalmente y cuestionarlos con
amazónico, poner en primer lugar porque una de las características del material proveniente del resto
precisamente lo amazónico, de Micromuseo de Gustavo Buntinx y de Latinoamérica y, desde luego,
manera de reconocer las realidades colectivo es que, por propia decisión, también del resto del mundo; y 3)
comunes y las diferencias entre Be- carece de sede fija, porque la propia atravesar físicamente la frontera,
lém e Iquitos antes que la genérica creación carece de ella? con frecuencia y con sed.
y antepuesta realidad abstracta de
un Brasil percibido como sinónimo ¿O que la idea de ready made fue Porque ni el Rey Salomón dejó en
excluyente de amazoneidad? definitivamente afectada por la herencia riquezas como las que
observación circunspecta que hizo en la América llamada hispana
¿Proponiéndole la lectura de la tetra- su autor de las aguas del Río de la les aguardan a los brasileños de
logía del chileno Manuel Rojas que Plata y de las técnicas de prepara- buena voluntad.
comienza con Hijo de ladrón, cuyos ción de un asado, así como por la
honrados vagabundos anarquistas conversación erótica que mantu-
recorren la faja costera chilena, vo con la artista brasileña Maria
borrachos y hambrientos, solida- Martins, según el libro (Maria con
rizándose con el cosmos y con los Marcel. Duchamp en los trópi-
hombres; y que serían justamente cos) de un argentino-catarinense
esos olvidados del mundo quienes llamado Raúl Antelo?
podrían permitir al lector brasileño
contemporáneo ampliar y cuestionar Mendes Campos terminaba su
su visión del nomadismo, ahora que crónica así: “Pois é. De repente,
la filosofía de Deleuze y Guattari se estamos descobrindo que somos
redujo a un repertorio de palabras sul-americanos. Estamos caindo
gastadas y gestos automáticos de onde sempre estivemos, de onde só
Gabriela Motta Ações Curatoriais
— 57
Prólogo — Sobre caminhos
enviesados no qual cruzam-
se experiências andantes e
sentantes Parte I — no qual apresento próximos editais. A montagem do advogado para tratar legalmente do
a desventura do Salão de Salão de Abril correu muito bem, assunto. Foi aí que novamente vimos
com uma excelente equipe do CCB- o quanto ainda existem instituições
Abril e aponto a permanente NB, local da exposição. Na ocasião, que alegam a suposta visibilidade que
Gabriela Motta reincidência de equívocos ainda não havíamos recebido nossos os artistas teriam ao participarem de
institucionais em relação cachês, artistas e curadoria. Mesmo suas programações como algo com o
a pagamento de artistas e assim, alguns artistas viajaram a For- qual deveriam se satisfazer, conten-
clareza de editais. taleza para montagem de suas obras tar. Recebemos como resposta a frase
ou para realizar a performance com sinto muito pelo fato desse atraso
Em janeiro de 2014 fui convidada a qual haviam sido selecionados. O financeiro ter apagado o significado
O que o Salão de Abril, o projeto
para assumir a seleção e curadoria processo todo, desde o lançamento e a importância do fato de jovens
Ações Curatoriais e o livro Dom
da 65a edição do Salão de Abril. do edital até a abertura de exposição, artistas terem sido selecionados p/
Quixote de La Mancha tem em
Aceitei o convite ainda antes de foi bastante rápido – as inscri- participar de uma dos salões de arte
comum? Mesmo quem nunca leu as
ler o edital, por considerar uma ções abriram dia 20/02/2014 e dia mais tradicionais do país.
aventuras do destemido cavaleiro
boa possibilidade de trabalho e 15/04/2014 a exposição estava aberta
de Cervantes, sabe de sua “loucu-
um bom cachê tanto para mim ao público. Ou seja, atribuíamos a Por favor, alguém me diga qual o
ra”. Capaz de confundir moinhos
quanto para os artistas. Os valores isso, a rapidez de todo o processo do significado, qual a importância de
de vento com gigantes, Dom
combinados foram: R$10.000,00 Salão, a lentidão do pagamento de participarmos como curadores ou
Quixote é incansável na sua missão
para seleção e curadoria do salão cachês. Okey. Chato, mas okey. como artistas de qualquer exposi-
e conta sempre com o apoio do
e R$3.000,00 para cada artista ção? Muitos, certamente, mas todos
fiel Sancho Pança, que entra na
selecionado, mais três prêmios Abril seguiu seu curso, emails foram significados possíveis estarão condi-
aventura por acreditar que será
de R$15.000,00 para três artistas mandados, recebemos respostas, cionados a qualidade do nosso tra-
recompensado com o título de
premiados. O salão, como explíci- ninguém sabia dizer quando o paga- balho, do quanto dermos o melhor
Governador da primeira ilha que
to no edital, não custeava o trans- mento seria feito, devíamos esperar. de nós mesmos ao nos envolvermos
conquistarem. Entre o idealismo
porte de obras nem viagem dos No dia 07/05 enviei nova mensagem com a instituição A, B ou C. As
de um e o pragmatismo do outro,
artistas para a exposição e pedia cobrando o pagamento de todos e instituições em si, obviamente, tem
constrói-se a história na qual
muitos documentos daqueles sele- indicando que a situação urgia ser a sua importância, mas esta é inca-
ambos partilham o que cada um
cionados. Tudo bem, aqueles que resolvida, que o próximo passo seria paz de validar por muito tempo um
tem de melhor, sonhos e tenência.
se inscreveram estavam cientes fazermos deste um debate público. artista ou um curador se este não
É por essa leitura sobre competên-
disso e, ao inscreverem-se, indica- Logo recebi a feliz (?) resposta de que for em si comprometido com o seu
cias, compromissos e liberdade que
vam aceitar estas condições. sim, a Secultfor havia conseguido a fazer. Ou seja, a questão é comple-
insisto em entrelaçar o romance
liberação apenas do meu pagamen- xa, cada caso é um caso, mas o certo
com os projetos citados.
A reunião de seleção aconteceu to, através da empresa VC Eventos. é que a relação não é unilateral e
em março de 2014 em dois dias de Mandei documentos, dados, e final- sim uma via dupla em que artistas e
trabalho insano, pois o Salão recebeu mente recebi no dia 26/05. instituições precisam um do outro e
mais de 600 inscrições. O edital se beneficiam mutuamente através
tinha vários problemas, como todos, A exposição terminou dia 31/05, da qualidade e seriedade que inves-
normal. Junto com a comissão de quando outra vez enviei uma men- tem em si mesmos.
seleção, formada por Ana Cecília sagem para a secretaria de cultura
Soares e Herbert Rolim, redigi um de Fortaleza cobrando o pagamento Bem, depois de todo esse blá, blá,
documento e encaminhei a Secultfor dos artistas. Nesta ocasião, expus blá extremamente desgastante, os
com sugestões e propostas para os que pretendíamos consultar algum artistas receberam um email avi-
Gabriela Motta Ações Curatoriais Gabriela Motta Ações Curatoriais
— 58 — 59

sando-os que a partir do dia 11/06 é de R$135.000,00. Quanto vale o envolvidos no projeto. E pos- velmente estas questões.
a Secultfor iniciaria os pagamen- salão de abril? Entender-se como so dizer, parafraseando um dos
tos. Me pergunto por quê tudo isso valor em si é o primeiro equívoco bordões da Kamilla, foi incrível. Durante o mês de maio produzimos
foi necessário? Por quê precisamos que qualquer instituição ou pessoa Nesse período, discutimos práticas este encontro – convites aos artis-
nos expor com mensagens nada pode cometer ao relacionar-se com curatoriais, conhecemos artistas tas e às pessoas das cidades, locação
gentis, com exigências tão elemen- o outro. Valemos o quanto nos e instituições locais, relatamos de ônibus para o transporte dessas
tares como ser pago pelo trabalho? envolvemos em sanar as arestas de experiências individuais, trocamos pessoas, locação da escuna, taxa de
Se de fato o pagamento sair nesta qualquer processo, em darmos o muito, falamos quase sem parar, uso da ilha, reserva de hotéis, com-
data, não terá sido mesmo um nosso melhor de acordo com o que ouvimos o tempo todo e ainda pra de passagens aéreas, capas de
tempo muito longo de espera, três tratamos fazer. E isso nem quer planejamos uma atividade, o Con- chuva, alimentação, produção das
meses. Mas será que teria saído dizer conseguir fazer, mas tentar gresso Extraordinário da Fortaleza propostas dos artistas e, inclusive,
sem a pressão que fizemos? Será com todas as forças, sendo claros e de Anhato-Mirim. Chegamos plano B, caso o tempo meteoroló-
que ao alegarmos consulta jurídica explícitos quanto às adversidades nessa proposta do Congresso de- gico nos impedisse de navegar. Dia
conseguimos acelerar um processo inerentes aos diferentes papéis. pois de muito debatermos sobre o 08/06 estávamos todos, curadores,
sem data para ser concluído? Não que gostaríamos de compartilhar? artistas e cerca de 100 pessoas
sei. O fato é que tudo isso poderia Como poderíamos nos relacionar trazidas das cidades de Joinville,
ser evitado de pelo menos duas com pessoas de outras cidades Criciúma, Itajaí e Jaraguá do Sul,
formas: constando no edital que a de Santa Catarina? O que seria reunidos na beira da praia da Joa-
prefeitura poderia levar meses para Parte II — em que narro interessante propor como “ação” quina para o início do congresso.
pagar, com emails explicando deta- os momentos que resultante desse encontro?
Choveu, choveu muito durante
lhadamente o processo de liberação antecedem a aventura do
de verba e assumindo a responsa- Assim, a partir dessas e de outras todo aquele final de semana. O
Ações Curatoriais e seus perguntas e da certeza de que que- plano B foi acionado, as capas de
bilidade e desconforto da situação
ou remunerando os envolvidos desdobramentos alucinantes ríamos trabalhar juntos, sem nos chuva foram totalmente usadas
durante o período de exposição. dividirmos em pequenos grupos, e o Congresso Extraordinário
Em abril, enquanto me prepara- decidimos todos que não faríamos da Fortaleza de Anhato-Mirim
va para a montagem deste Salão nem exposição, nem debate, nem aconteceu na capital-ilha de
Penso que uma das razões disso
– exposição que chamei de Alerta palestra, nem relato, nem pergun- Santa Catarina. Não sangramos
ainda ocorrer envolve justamente
Laranja! enfatizando o caráter tas. A nossa proposta era organizar o mar, mas fomos encharcados
a noção de valor, normalmente
explicitamente político de boa parte um encontro reunindo pessoas de pela chuva e pela certeza de
reduzida a ideia de custo. Porque
dos trabalhos selecionados – ima- quatro cidades de Santa Catarina na que estávamos fazendo o que de
valor e custo são tidos como sinô-
ginava também como seria a minha Fortaleza de Anhato-Mirim, uma melhor poderíamos fazer. Carlos
nimos no âmbito burocrático que
participação no projeto Ações Cura- das ilhas que visitamos no período Asp, Jorge Menna Barreto, Nelson
engolfa essas instituições. Custo é
toriais. Este programa, idealizado da residência. Este encontro seria Felix, Rafael RG e Raquel Stolff
o que todos temos para sobreviver,
pelas curadoras Bia Lemos, Kamilla basicamente vivenciarmos juntos, foram os artistas que participa-
valor é o quanto somos engajados e
Nunes e Marta Mestre, propunha curadores e convidados, desloca- ram desta ação. Foram convi-
respeitamos aquilo que escolhemos
que dez curadores participassem mentos literais – vir por terra ou dados porque estavam conosco
fazer para viver e para oferecer ao
de uma residência de oito dias em pelo ar até Florianópolis e depois durante o período da residência,
outro. Seja como artistas, curado-
Florianópolis, no final de abril. todos pelo mar até a ilha – e des- através das conversas e discussões
res, mecânicos, diaristas, palhaços,
Viajei bastante apreensiva para locamentos metafóricos – através que tivemos sobre arte e sobre
políticos. Quanto custa o salão de
a imersão, pois conhecia apenas de propostas de cinco artistas cujas o que acreditamos. E juntos, ar-
Abril? Na internet somos informa-
dois dos outros nove curadores pesquisas e práticas discutem sensi- tistas, curadores e nosso público
dos que o orçamento desta edição
Gabriela Motta Ações Curatoriais
— 60

carinhosamente convidado, pas- Epílogo — uma conclusão


samos um dia inteiro convivendo, que reitera a apresentação
trocando experiências. Provamos
os sucos feitos pelo Jorge a partir
sobre partilhas, compromisso
de plantas comestíveis colhidas e sonho de todos os
na Fortaleza de Anhato-Mirim, cavaleiros e escudeiros
caminhamos sob a chuva na areia
da Joaquina com os abafadores de Quixote cai no mundo de tanto ler
ruídos da Raquel, ouvimos o Asp romances de cavalaria. A arte o ine-
ler o mapa astral do encontro, bria a tal ponto de sandice. Sancho
assistimos o Rafael contracenar não sabe ler, mas é inebriado tam-
com o seu passado, acompanha- bém pela eloquência do cavaleiro
mos o Nelson derivando sobre e suas promessas de recompensas.
ilhas Caymmianas. Ambos são leais aos seus propósitos
Cada curador recebeu R$ 2.700,00 e vivem intensamente as aven-
reais, estadia e alimentação no turas e desventuras que se lhes
período em que ficamos em apresentam. Mesmo movidos por
Santa Catarina. Cada artista que propósitos diferentes, entendem-se
participou do Congresso, recebeu dependentes de suas capacidades
R$1.000,00, estadia e alimenta- complementares. Assim, Sancho
ção. Produtores, colaboradores, transforma-se também em um
artistas, restaurantes, hotéis, esta sonhador, ao mesmo tempo fiel e
publicação, os curadores, viagens, desconfiado do seu materialismo.
locação de espaço, produção de
sucos específicos do artista Jorge O encanto, a magia das coisas,
Menna Barreto, performance do não são planejadas ou construídas,
artista Rafael RG, absolutamente acontecem surpreendendo-nos. Cla-
tudo que envolveu este projeto foi ro que é preciso preparar o terreno,
pago pelo, claro, próprio projeto. estar atento para criar as condições
Custo total do Ações Curatorias: para que isso ocorra. Creio – e uso
R$100.000,00. Valor? Incalculável. este verbo de fé – que arte é isto,
a razão e a loucura abraçadas, uma
alimentando-se da outra, já que
isoladas não conseguem a fricção
que produz a faísca da epifania.

E se é sobre, com, através da arte


que queremos viver – artistas,
curadores, produtores, instituições
– que a gente diariamente possa
dar o melhor de nos mesmos.
A.G. x A.V. – Je avec Agnès Varda Andreza Gomes Ações Curatoriais
— 63
Andreza Gomes

deixam um pouco cansada... A.G.: não consigo designá-lo,


voltando ao que eu estava ele é móvel, agora pare de fazer
falando; foi neste passeio com perguntas, porque senão isso vai se
curadores, artistas e amigos que tornar uma entrevista as avessas...
tivemos as principais ideias para A.V.: (risos)
o que chamamos de congresso A.G.: diante da dificuldade de
extraordinário da fortaleza de demarcar um começo, nós
anhato-mirim. como vivemos o criamos, como estamos
uma experiência incrível durante fazendo agora... e foi ali que nos
“ela está atrasada, deve ser o mar geri o mar, ela disse “incroyable”.
o passeio, ficamos pensando encontramos, quando nós, os dez
agitado” suponho eu enquanto “podemos continuar conversando
nas ampliações disso: e se isso curadores, queríamos construir
a espero na marina do sambaqui, quando estamos em terra, porém
acontecesse durante um dia um começo de algo em comum,
conforme combinamos para pegar tais informações não poderão ser
assim, com mais de cem pessoas, que não sabíamos bem ao certo
o barco e irmos em direção a outra registradas” - d’accord, eu digo.
dois barcos (...) o que, mas era uma vontade
ilha. ela chega depois de meia hora, como eu teria alguns minutos
A.V.: e porque não me convidaram?! pulsante coletiva...
já a bordo do barco e diz: como sou somente, peguei em seguida meu
A.G.: não foi por falta de vontade, A.V.: isso não é comum...
mais velha, pedi para que viessem caderno com anotações e comecei
mas de tempo e orçamento... A.G.: sim, é raro e delicado, porém
me buscar onde eu estava. cogitei a disparar as perguntas:
enfim, mas agora você está aqui... é daí que surge o encontro
a possibilidade do barco ter atra-
(A.V.: Agnès Varda / A.G.: Andreza Gomes) A.V.: oui, oui... e como foi este A.V.: então foi no encontro de
vessado o atlântico para buscá-la
congress extraordinaire ? vocês de uma vontade comum
na bélgica, um tanto imprevisível
A.G: talvez você não saiba muito A.G.: inusitado, eu diria... você já -e (in)comum- que vocês me
e irreal, mas se tratando de Agnès
bem porque está aqui, ou qual morou em ilhas e sabe que existem encontraram e foi de onde tudo
varda, pode ser que sim. eu entro
o motivo que a fez estar agora coisas que vão além do que se começo... muito bem, já consigo
a bordo do pequeno barco de pes-
neste barco comigo; foi em programa e a natureza é quem dar partida a minha imaginação....
cador, o capitão é um manezinho,
uma residência de curadores acaba batendo o martelo para sim A.G.: é engraçado você falar de
um nativo fidedigno da ilha que
que participei no outono deste e para não... no fim de semana imaginação, porque se podemos
escuta no seu radinho as notícias
ano. eu, juntamente com outros que seria o congresso o tempo falar do lugar que foi este
locais e resmunga qualquer coisa
nove curadores ficamos 8 dias estava bastante nebuloso e não encontro com você, seria ali...
que não consigo entender bem -
em imersão ali na praia de santo fosse só isso, o “vento da terra” A.V.: na ilha?
algo sobre o avaí ( time de futebol
antônio, perto de onde tomamos resolveu mostrar as suas forças nos A.G.: na ilha dentro de nós
local). Agnès me olha e movimen-
o barco. nós fizemos este mesmo impedindo de retornar a esta ilha. A.V.: este barco está tomando um
ta a cabeça para frente como quem
passeio que estamos fazendo acabamos fazendo o evento na ilha rumo interessante
quer dizer “ o que ele está falando”
agora... primeira, aquela que inclusive já A.G.: é que vamos começar a
e eu respondo levantando os om-
A.V.: oun, très bien, você é curadora? recebeu o nome de desterro. entrar agora em mar aberto
bros como quem dá a entender “je
A.G.: sim, quero dizer, je ne sais... A.V.: parece-me interessante todo A.G.: qual é a diferença entre
ne sais pas”. saímos de florianó-
A.V.: artiste? este evento, mas confesso que não paisagem e praias para você?
polis e agora estamos em direção
A.G.: ...pas, aussi, est complexe... compreendo bem onde eu entro A.V.: não são uma mesma coisa?
a ilha de anhato-mirim. Agnès
A.V.: mm, nem que sim nem não... nessa história... A.G.: eu não sei, mas em as
concordou em fazer esta entrevis-
entendo o que você quer dizer, na A.G.: pelo começo Agnès, pelo praias de Agnes você diz que
ta se, no entanto, esta ocorresse
verdade ainda hoje me descubro começo... se abríssemos as pessoas
em movimento, entre-lugares,
tantas outras coisas A.V.: e onde é o começo? como encontraríamos paisagens, mas
des-locando-(de)si; então eu su-
A.G.: justamente, adjetivos me designá-lo ? se abrissem você , encontrariam
Andreza Gomes Ações Curatoriais Andreza Gomes Ações Curatoriais
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praias... A.V.: quem ?! a Zgougou?! não, mas podemos dizer que existe entender apenas algumas pala-
A.V.: bem, é porque vivi grandes A.G.: não, outro, que sempre o semelhante, como duas esferas que vras: ilha, abarcando, doze reais.
memórias da minha vida em praias aparece junto, preto com branco.. se interceptam entre si- há o que se olho para frente e lá se encontra
A.G.: eu sei, mas da maneira A.V.: sim ! sei, sei... qual era compartilha, que é de ambos, e há o o belo forte em ruínas. Agnès é a
que você disse parece ter mesmo o nome dele? que é individual, que os diferencia. primeira a saltar do barco e segue
uma diferença entre praias e A.G.: tanto faz o nome, o gato A.G.: o que é semelhante é o que na frente ansiosa para desbravar o
paisagem... que me interessa perguntar na nos faz gerar encontros, e o que lugar. de longe grita para mim: “se
A.V.: tem para você? verdade, é aquele que Chris nos diferencia é o que nos faz gerar apresse que não temos todo tempo
A.G.: o horizonte marker representa, Guillaume en o começo, ou melhor, os começos do mundo” ! logo eu que ficava
A.V. sorri: pode ser que dentro de égypte ... eu o acho fantástico e A.V.: é por isso que é tão difícil contando as passadas do ponteiro,
você haja também praias se pudesse gostaria de sê-lo nesta marcar um começo como o coelho da Alice, torcendo
A.G. sorri de volta: acho que entrevista, que na verdade está se A.G.: sem falar que geramos para que o relógio esquecesse das
sim... mas enfim, as suas praias tornando uma conversa... começos e encontros diversos e, horas e que pudéssemos ficar ali
ou as praias de Agnès, nos A.V.: não sei se entendi porque não, simultâneos... até todas as perguntas se esgo-
encantou; casava muito bem com A.G.: bem, assim como Chris A.V.: est complexe... tarem. o que começa, termina
a atmosfera em que estávamos... marker era o grande gato amarelo A.G.: por isso para mim é difícil dizer alguma hora sem que nem um mi-
éramos quase uma trupe circense, que a entrevistava, gostaria que eu que sou artista ou que sou curadora... lésimo das perguntas tenham sido
só que de curadores, e tudo que fosse agora ele A.V.: artista E curadora? mencionadas. a memória ainda
queríamos era sair em caravana, A.V.: você gostaria de ser A.G.: é um modo de ver, o modo guarda os cheiros, as cores e som
num barco ou em um caminhão... Chris Marker? do comum, compartilhado, do mar com as gaivotas daquela
A.V.: um caminhão? A.G.: não, queria ser o gato. interseccionado entre as duas esferas, tarde de sol. foi deste lugar da me-
A.G.: é, mas isso requer mais tempo A.V.: mas você não é uma raposa? mas e o restante que as diferenciam? mória que comecei estas palavras.
porque envolve outra situação, A.G.: sou mas queria ser agora A.V.: é importante que exista eu ainda não conheço Agnès varda
outros artistas e imaginários e o gato amarelo que sempre a A.G.: ah sim, mas é difícil dizer as pessoalmente, embora já a tenha
isso me tomaria um tempo que entrevista duas coisas ao mesmo tempo sem encontrado inúmeras vezes nos
não tenho... posso falar disso A.V.: e porquê? entrar numa fórmula matemática meus pensamentos, na minha ima-
enquanto estivermos visitando A.G.: porque isso me faz lembrar A.V.: do ponto de vista da razão, ginação. consigo imaginar os seus
anhatomirim... vários diálogos importantes entre da lógica, quase impossível trejeitos ao falar, o sotaque belga
A.V.: você parece o coelho da Alice um gato e um humano, como não chegar a esta equação de francês, até a sua pele um pouco
falando Alice através do espelho, assim conjuntos... mas a imaginação enrugada. Agnès varda certamente
A.G.: prefiro ser uma raposa como Derrida e o gato que o vê nu pode ser um bom caminho esteve neste nosso encontro entre
A.V.: mas porque uma raposa? em o animal que logo sou A.G.: como uma outra grande os curadores e com cada um inau-
A.G.: assunto número dois para A.V.: mas são encontros diferentes, esfera que engloba essas duas? gurou um começo de fantasias que
ilha, tenho muitas coisas para um é a figura de uma menina A.V.: que por sua vez se encontra e nos moveu com nossas diferenças
perguntar e falar com você antes com a figura de um gato e outro se separa com outras esferas e semelhanças a criar um outro
de falar do caminhão e da raposa... é Derrida, um ser, com seu gato, A.G.: não parece que estamos encontro, com mais pessoas, que
A.V.: mm...pode se tornar uma outro ser. falando sempre de ilhas? por sua vez continua a encontrar
fábula isso A.G.: sim, eu sei da diferença, mas A.V. ri: ilhas sempre me inspiram com outros e porque não, talvez,
A.G.: ou um roteiro, mas já que há algo em comum, não? ou Chris com Agnès varda novamente.
você está falando de animais marker e o gato Guillaume en terminando de dizer isso, o capitão
tenho a dizer que tenho um gato égypte não são um mesmo? nos interrompe e de novo resmun-
igual ao seu... A.V.: um mesmo todo possivelmente ga algo no seu dialeto que me faz
Visto Bueno 2010 — 2014 Marta Mestre Ações Curatoriais
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Marta Mestre

DELEGACIA DE POLÍCIA DE IMIGRAÇÃO/


Núcleo de Registro de Estrangeiros

Marta A. Teixeira Mestre, Portuguesa,


curadora, registrado(A) como LEGAL/
ILEGAL sob o nr. 1/75876XF de acordo
com o Art. 58 do Dec. 85.715/81.

Chegada: 18/07/10
Permanência:
Rio de Janeiro, cidade Maravilhosa
Brasil, país do Futuro
Apêndice Ações Curatoriais Apêndice Ações Curatoriais
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Um projeto, uma discussão e um to aplicado, no planejamento dos corpo e batidas como única de chão e gresso”, momento em que as falas
futuro. As sistemáticas por parte trabalhos em arte contemporânea, coração na introdução da importante se dirigiam da pronta sensação aos
do Congresso Extraordinário da e assim comprometidos com a temática que é organizar um processo pensamentos já trazidos. A trajetó-
Fortaleza de Anhato-mirim – CEFA constituição de suas poéticas. Assim, cultural. Por mim, suficiente como a ria de um artista recebe, antes de
–, onde a presença da curadoria na continuidade do projeto proposto justificar o dia proposto a reflexões. se constituir, um cuidado pessoal
sem a ausência dos artistas em uma pelo instituto Meyer Filho, o CEFA, O Museu da Escola Catarinense ofe- que transpassa o emocional para
conversa direta. Um experimento uma outra etapa acontece, quando a rece ao espaço uma simbologia forte, ganhar a razão de um mercado de
de diálogo em dois sentidos às duas noite ainda se impõe, na madrugada e a ação de Rafael RG promove outra arte, de uma estrutura inquieta e
principais partes do sistema da arte. de 8 de junho, enquanto artistas se discussão importante: o erro, o que na busca de um espaço, por peque-
No encontro de 8 de junho, o do- preparam para ganhar estrada por poderá ser e em qual nível se trata, na no que seja, apresentar uma que
mingo molhado e frio de formata- entre algumas cidades. Somos então arte, o acerto ou o engano. Um artista seja a razão da arte. Outros eventos
ção com importância seca e quente uma curiosidade a iniciar o trajeto narra e interpreta, seja qual a postura devem acontecer, seja na estrutura
aos interessados de uma possibili- de sentires do CEFA. Com a situação oferece a poesia e nos apresenta a tão planejada ou não, pelos atores de
dade real a um sentimento comum, climática do dia, o percurso se altera discutida linguagem, esta caminha um processo de construção esté-
único onde emissor e receptor, com quando o mar ganha o filtro cerrado sobre nossas cabeças, altiva e irônica. tico/curada. Afinal, se curadoria é
o processo expositivo a criadores e da chuva forte, que recepciona as Outro discurso afirma ao ritual da um cuidar do processo, quem cuida
cuidadores das poéticas de um todo cabeças prontas a dividir o contato arte um postulado sempre presente do que? A palavra está posta, que o
pronto a uma tradução. pessoal e as perspectivas de um gru- ao lado do artista locutor. Nelson congresso continue sem se pautar
po anunciado como seleto. Uma se- Félix menciona e traz para a sua fala isoladamente em ações, créditos
A introdução neutraliza verbos leção, que me permitem, necessitar Caymmi, porém com um discurso ou qualidades. Na espera de outro
[sintaxe de ações nominadas] e adje- de alguns urgentes ajustes. Afinal, duro se posiciona em sua própria momento em juntar os cacos e
tivos [posicionamentos elogiosos] o universo da produção simbólica é trajetória, numa consciência da as reflexões do CEFA, a minha
para representar um possível e real complexo e a sua ampliação precisa geografia da arte em que se basta por conclusão é reconhecer o silêncio
caminho na relação entre artistas e de uma atenção especial por várias sua palavra, sem o ouvir de outrem. de nosso entorno para chamar a
curadores. Conhecemos, das mani- das instituições comprometidas no Mas, podemos adocicar o paladar ao linguagem ao erro no diálogo, ou
festações artísticas, as suas caracte- processo como um todo. Aqui consi- saborear uma das partes propostas descrever o postulado da geografia
rísticas dinâmicas e variáveis pre- dero instituição: o artista, o curador, do trajeto, Jorge Menna deposita em de uma arte suficiente a transpor
sentes em seu processo de criação. o investidor, os profissionais da nossas gargantas o verde composto os sentidos, ao transformar o gosto
Uma participação direta de artistas imprensa, os gestores de espaços pela receita líquida e permite uma da garganta à paisagem recortada
que junto aos curadores promovem expositivos, sejam eles alternativos, troca cromática, do visual ao paladar pela sensibilidade de um universo
a fruição da arte dirigida a possíveis oficiais públicos ou particulares. de uma vegetação, como nas ações maior que o nosso umbigo.
visitantes e, todos, em busca de de nossas propostas simbólicas. O
uma experiência estética. O mundo No evento previsto para analisar os guru, Carlos Asp, nos confere uma TiroTTi
contemporâneo em sua dinâmica caminhos da arte de Santa Catarina, outra atividade, que por sua ação de artista visual
requer a atualidade sempre presente os convidados são recebidos por que não estamos soltos em nossas 30jun2014
a atender as reações, do sentir às Raquel Stolf, sempre pautada na investigações poéticas, ele reforça um
reflexões propostas presentes nas segurança de sua trajetória poética, e pensamento mapeado do universo
exposições de arte. nos convida a ouvir o silêncio, ouvir como força de sua vigilância ao reca-
sim, mas com um banho de júbilo do dos cosmos em nossas vidas, estão
Ouvir, refletir, manifestar e com- no misto de ver amigos artistas a ali como um viver pela e na arte.
partilhar são comandos importantes participarem de uma ação perfor-
para ampliar o convívio entre os mática num caminhar com sentidos Na etapa final, todos os seletos
atores principais de tudo o que diz mais aguçados à compensar o sentido convidados podiam manifestar as
respeito à formatação e ao concei- auditivo, os passos marcados em suas considerações sobre o “con-
Peço de
Ações Curatoriais Som

Rodrigo Ramos

Assessoria de Imprensa
Organização

Beatriz Lemos Luciana de Moraes

volta toda
Kamilla Nunes
Programação visual do catálogo
Marta Mestre
Estúdio Drüm
Curadores
Abertura/Fechamento
Andreza Gomes
Beatriz Lemos Bernardo Zabalaga

porção que
Fernando Boppré
Realização
Gabriela Motta
Instituto Meyer Filho
Júlio Martins
Kamilla Nunes Patrocínio
Maria Montero Edital Elisabete Anderle

me pertence.
Marta Mestre de Estímulo à Cultura
Paulo Miyada
Santiago Garcia Navarro Apoio

Universidade do Estado de Santa


Artistas
Catarina, Museu da Escola Catarinense,

Mas que
Bernando Zabalaga Universidade Federal de Santa Catarina
Carlos ASP
Jorge Menna Barreto Agradecimentos
Nelson Félix Sandra Meyer, Sandra Makowiecky, Joi,
Rafael RG Pousada Mar de Dentro, Fred Gorsky,
Raquel Stolf Juliana Schmidt, Nilton Santo Tirotti,

a memória
Carlos Franzoi, Ane Fernandes, Mery
Colaboração
Nunes, Josué Mattos, Daniele Zacarão,
Karina Zen Fabíola Scaranto, Karina Zen, Roberta
Cláudia Cárdenas Tassinari, Fê Luz, Diego de los Campos,
Bil Luhmann Bill Luhmann, Joelson Bugila

permaneça,
Gregori Homa e Bianca Tomaselli.

Design Gráfico

Leandro Pitz

Produção

para aqueles
Elisa Schmidt
Sarah Pusch

Fotografia

Giba Duarte
Sarah Push

depois de mim.
Elisa Schmidt

Filmagem e edição

Rosana Cacciatori
Sumário

02 Mapa Astral do Congresso Extraordinário da Fortaleza de Anhato-Mirim

04 Beatriz Lemos – Onde estão as mulheres?

10 Paulo Miyada – O extraordinário do congresso da fortaleza


sem ilha de Anhato-Mirim, descrito obsessivamente.

14 Raquel Stolf – Abafador de ruídos.

18 Kamilla Nunes e Júlio Martins – Eu preferiria não fazer (I would prefer not to).

32 Maria Montero – Dez minutos, uma semana, um ano.

35 Rafael RG – Tudo poderia ter sido diferente do que foi


da forma que conhecemos.

36 Fernando Boppré – Se caso não houvesse rompido o pampeiro


sujo na ilha de Santa Catarina aos oito de junho do ano da graça
de dois mil e quattorze, dia da realização do congresso Extraordinário
da Fortaleza de Anhato-Mirim, ter-se-ia avistado e tomado
ciência das seguintes notícias:

42 Nelson Félix – Concerto para encanto e anel.


44 Jorge Menna Barreto – Anotações sobre suco específico.

50 Santiago G. Navarro – Afinal, quando vamos ser sul-americanos?

56 Gabriela Motta – Prólogo — Sobre caminhos enviesados


no qual cruzam-se experiências andantes e sentantes.

62 Andreza Gomes – A.G. x A.V. – Je avec Agnès Varda.

66 Marta Mestre – Visto bueno.

68 TiroTTi – Apêndice.

Legendas

07 Do Women Have to be Naked to Get Into the Met. Museum?


Cartaz de Guerrillas Girls, 2012.

12 Performance de Rafael RG

12 Curadores residentes em visita à Ilha de Anhato-mirim


12
Abafador de ruídos de Raquel Stolf. Ação na praia da Joaquina.

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