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Permite que
ao passar as
tuas páginas,
uma a uma,
eu te habite.
Onde estão as mulheres? Beatriz Lemos Ações Curatoriais
—5
Beatriz Lemos
Enfim, somos apresentados ao (3) Para saber mais sobre este trabalho, sugiro
mundo através do olhar da mu- o texto “O caso das xerecas satânicas contra
as boas almas inquisidoras”, escrito por Sara
lher (mãe), contudo a um mundo Panamby para a revista virtual Pulso, n.1 (http://
construído por homens. Da lin- www.plataformapulso.com)
guagem aos códigos sociais. Uma
base estrutural que vai muito
além da classificação de gênero
entre masculino e feminino. O
que ficou claro para nós, cura-
dores em residência, lá, naquele
momento descrito no início do
texto, é que, se por uma especifi-
cidade do meio, são os curadores
que detêm o aval de escolha e
seleção e, assim, legitimação da/
do artista, a verdadeira inserção e
não apenas tolerância da mu-
lher na arte também depende de
nossas decisões políticas enquan-
to profissionais. É necessário
fugir do receio de que o assunto
se trata de medidas sociais de
cotas – ponto de vista muito
característico da elite – e ampliar
a reflexão sobre a real presença
em números, não só de mulheres,
mas também de negros, pobres ou
representantes LGBTT. Redese-
nhar mundos é um dos ofícios
mais potentes de um curador.
O extraordinário do congresso da Paulo Miyada Ações Curatoriais
fortaleza sem ilha de Anhato-Mirim, — 11
descrito obsessivamente.
Foi com isso que nós, curado- têm hora para acontecer é que eles
Paulo Miyada res, pesquisadores, escritores e podem ser enxutos, dotados da
críticos de ocasião, artistas em fragilidade poderosa das coisas que
pontuação, quisemos trabalhar. não são ditas com todas as letras.
Isso: a capacidade poética de – ou Vamos apelar para uma metáfora
melhor, a coreografia espontânea parabólica adolescente. Quem é o
entre – discursos inacadêmi- conquistador mais eficiente: aquele
cos, caymicizados. i.e. feitos por que redige uma carta de muitas
evocação, sem pressa e enxugados laudas para sua pretendente, esta-
de adjetivos, verbos e preposi- belecendo uma competente expla-
ções: presenças substanciadas. Um nação sobre os motivos e intenções
Foi para isso que fomos para a mos (“Nós estamos apenas traba- congresso de coisas elas mesmas, de sua paixão e garantindo que há
ilha, aquela que ocupa posição lhando agora”). Foi para descobrir no lugar da fala sobre as coisas. mais em seu desejo do que o apelo
estratégica para defesa do terri- que não sabíamos para que ir que Uma extraordinária demonstração irresistível de conhecer-lhe a car-
tório ainda que tendo sido tão fomos para a ilha. performática do que pode ser dito ne, podendo até mesmo adiantar
facilmente driblada; para a ilha, a na margem do discurso associado quais o benefícios de um eventual
mesma que abriga uma fortaleza Por isso quisemos levar para a à prática curatorial. Ao invés da matrimônio para ambas as partes;
virgem de disparos de canhões e ilha nossos convidados, aqueles estrutura hierárquica em que os ou o que orquestra um dia de
lasciva na prática de assassinatos que vinham de quatro cidades artistas fazem coisas e nós fazer- convívio repleto de pequenas e
em nome da recém-instaurada muito diferentes, nem sempre mos elaborações retóricas para ad- grandes surpresas, coreografando
república e do truculento que aquosas, por vezes aquosas em jetivar as coisas, nós faríamos (um o vento para que sopre delicado
acabou dando nome à outra ilha, demasia nos dias de chuva forte convite) e iríamos nós, artistas no momento do encontro, e muito
maior, nas proximidades; enfim, e longa. Aqueles que poderiam e público negociar suas próprias forte lá pelo entardecer, forçando
para a ilha, que recebeu o dia de ter os mais variados repertórios coisas, deixando o discurso como um abraço e, talvez, um algo mais
lazer e descanso dos curadores e posturas no campo da arte, ar- efeito colateral final indetermina- que manifeste, por metonímia,
convidados pelo projeto Ações tistas mais e menos apaixonados, do. Foi para experimentar outro uma paixão nunca dita diretamen-
Curatoriais depois de dias de gerentes mais e menos escla- jeito de estar juntos e junto com te? Ora, talvez o primeiro tenha
debates e conversas; ilha que fica recidos, cabeças mais e menos a arte que chamamos os artistas e mais segurança de ser claro, mas ao
a quase uma hora de escuna desde permeáveis. Aquele muito magro as pessoas que fizeram o extraor- segundo é reservada a virtude de
Florianópolis e é muito bonita e com os olhos saltados, aquela dinário do congresso da fortaleza, se esquivar de recusas - quando seu
em dias de Sol; ilha que revela muito larga e de risada exage- ainda que sem Anhato-Mirim (já recado é compreendido é porque
o rigor despojado do terraplano rada, o outro mediano e muito que a ilha entendeu que nos rece- provavelmente foi aceito.
português na implantação de parecido com o rapaz do outro ber uma vez tinha sido suficiente).
seus edifícios militares; ilha que ônibus, alguém mais disposto a Ou, digamos de outra forma. Con-
também recebe certo número de se deixar levar pela fala mansa Vamos tentar de novo. O proble- sagrou-se, desde meados da década
marcos orientalistas trazidos por dos artistas, outrem mais preo- ma dos discursos a priori é que de 1990, que o trabalho curatorial
um construtor viajado em escala cupado em entender o que ali era eles podem acabar se reduzindo a deveria ser praticado como uma
global (precursor dos star-archi- curadoria e o que coreografia. apologias muito bem articuladas. O tarefa de demonstração de capaci-
tects do século XXI); finalmente, Foi, portanto, para ter chance de problema dos discursos a posteriori dade teórica, vocabulário filosófico
para a ilha em que deveríamos compartilhar algo de bom com é que podem acabar se reduzindo atualizado e organização visual e
descansar mas acabamos traba- essas pessoas que as convidamos a apologias muito bem arquiteta- temática coerente, clara e sintética.
lhando fingindo que descansáva- para ir conosco para a ilha. das. A graça dos discursos que não Isto – essa convenção sobre a “boa
Paulo Miyada Ações Curatoriais Paulo Miyada Ações Curatoriais
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curadoria” – foi um acidente de de presentes inesperados e sem se não fosse a impossibilidade de de escala. Areia de Itapuã, Areia - e
percurso. Por que é que a curadoria tantas justificativas ou promessas definir um ideal comum… se não agora já temos um lugar, a praia, e
tem que ser um alinhavo legível e de casamento ou instruções para fosse o fascínio pelos ônibus, pelos podemos sentir seu calor. Morena
elegante de obras, sob a proteção apertar a pasta de dente começando circos e pelos festivais temporá- de Itapuã, Morena - sobe o calor,
por vezes hermética de uma capa pela ponta. E as obras? Pode ser pre- rios… se não fosse a tendência a sugere-se a iminência do encontro,
discursiva semi-filosófica, um pouco ferível falar de arte e deixar que as pensar residências como chance de desejo e prazer. Saudade de Itapuã,
erudita nas suas referências e outro obras sejam um modo circunstan- fugir de si mesmo… se não fosse Saudade - e vai tudo embora para
tanto acadêmica na sua sintaxe? Esta cial de sua manifestação no mundo. a verdade de que independência é o passado: praia, calor e desejo
é a iniciativa adequada para se ter No frigir dos ovos, ninguém precisa uma circunstância e não uma divisa passam a estar presentes como
um determinado tipo de exposição, de arte - quer dizer, ninguém sabe ideológica…se não fosse o nosso Sol lembrança e falta, aí aí. E tudo sem
com certo tipo de obras e contan- de que arte precisa até encontrá-la. em Aquário… se não fosse a necessi- conectores. Se pudéssemos fazer
do com uma postura específica do Por isso, é melhor fazê-la porque se dade de seguir juntos… se não fosse curadorias e encontros assim.
público. Seria natural que outras acredita que não há nada de melhor o aceite dos convidados…
posturas e habilidades curatoriais que se possa dar para o mundo e,
estivessem em jogo quando outros por analogia, é melhor produzir si- Por isso saíram todos com a
tipos de exposição/obra/público esti- tuações de mostração de arte (como sensação de que a ilha, aquela,
vessem no campo. Pode-se imaginar, exposições, mas não apenas) porque não quis nos receber de novo e
por exemplo, a curadoria como se acredita que é a melhor forma mandou avisar com frio, neblina e
convite construído coletivamente de alguém receber algo e então ter chuva – mas que, ainda assim, os
para artistas proporem espontanea- chance de retribuir esse recebimen- que caíram cedo da cama em um
mente formas de ocupar o tempo e to com uma ideia, uma sensação, ou domingo frio encontraram uma
o espaço de um público reunido por uma irritação violenta e inexpugná- ilha feita de gente, um pouco paz
novos convites feitos em rede, para vel, se necessário. e amor, um pouco experimento
produzir discursos abertos e atra- de linguagem, e muita disponi-
vessados por poéticas não lineares. Mas, se não fosse pelo ideal da ilha bilidade de pensar junto. Vai ver
Neste caso, a curadoria seria uma e da viagem… se não fosse pela ex- existe mesmo uma disposição ao
tarefa de comunicação e agencia- periência da residência vivida pelos obsessivo nesse povo de um estado
mento, sobre o alicerce da confiança curadores… se não fosse a brisa do cuja capital é uma ilha. Essas pes-
na arte e nas pessoas e instigada a dia ensolarado em um dia de lazer… soas cujo eixo compartilhado é a
condensar ideias e discursos casuais se não fosse o desejo de descobrir arte, ela mesma um aglomerado de
em cadeias de reflexão que gerarão algo novo, no lugar da necessidade ilhas em arquipélagos provisórios.
novos convites e parcerias. de legitimar o já feito… se não fosse
a atitude obsessiva praticada por Se assim for, haverá quem tenha
E a filosofia? Pode ser preferível tantas pessoas que conhecemos em tido paciência de acompanhar este
procurar a literatura e deixar a Florianópolis… se não fosse o jeito texto em sua escrita sincopada,
filosofia conviver com a química, o de falar através da repetição… se compulsivamente aderida aos
urbanismo e a mecânica dos fluídos não fosse a insistência das metáfo- apostos e às substantivações das
no cabedal de referências que ar- ras de isolamento e solidão… se não coisas. José Miguel Wisnik chamou
tistas, curadores e públicos podem fossem as histórias dos viajantes atenção ao modo como Caymmi
evocar ad hoc para melhor estar bem e mal sucedidos… se não fosse construía histórias sem precisar
junto com a arte e com o mundo. E a preocupação de empoderar redes de verbos e adjetivos. Coqueiro
as cartas de amor de muitas laudas? de encontro… se não fosse a falta de Itapuã, Coqueiro - e assim se
Podem ser preferíveis as trocas de espaços institucionais ideais… evoca um marco, uma referência
“Eu preferiria não fazer” Kamilla Nunes Ações Curatoriais
e Júlio Martins — 19
(I would prefer not to)
Correspondência entre contigo, ou com Santi, Fernando, Andreza, Bia, Gabi, Paulo, Marta ou Maria,
Kamilla Nunes e Júlio Martins tive essa impressão chocante que certas epifanias nos geram. Sensação de que
as palavras compartilhadas nos movimentam. Além disso, a arquitetura de
pedras exibe a palavra “sonho”. A imagem mental que guardo da fortaleza de
Anhatomirim, que me vem como num sonho, preserva essa escala dupla, que
oscila entre o monumental, inalcansável (que pode ser também pensado como
uma imagem do próprio tempo) e a escala do afeto, da conversa próxima...
Um bjo,
Júlio Martins
Querida Kamilla,
espero que tudo siga bem. Te escrevo para compartilhar e fazer prolongar
alguns dos sentimentos e aprendizagens que nasceram da nossa convivência
diária aí na Ilha de Santa Catarina. Impossível voltar o mesmo depois de dias
pensando, falando e discutindo na primeira pessoa do plural. Intensidade de
convívio. Saudades, já, de todos do nosso grupo...
Mas há uma urgência em mim que me persegue desde que nos encontramos
previamente em São Paulo, participando do seminário Longitudes, por um acaso
que nos levou a um dia inteiro de conversas, aguardando amigos e aviões entre
trânsitos e imaginando como seria a residência dali algumas semanas em Flo- Florianópolis, junho de 2014
ripa. Foi depois de nos encontrarmos em São Paulo e conversarmos muito que
“Bartleby, o escrivão” de Herman Melville, se tornou um emblema no horizonte Ei Júlio, bom dia!
da minha viagem. A resistência passiva que ele oferece a sistemas normativos e
consolidados me inspirou a questionamentos de natureza institucional e sobre Querido, também sinto falta da primeira pessoa do plural, tão marcante
nosso ofício de jovens curadores frente a um sistema de arte já “dominado”, durante nossa convivência na residência. “NÓS” colabora, irreparavelmente,
digamos, ou simplesmente ao estado das coisas. Bartleby é “um destroço de nau- para não virmos a nos tornar, tão e somente, seres humanos inqualificáveis
frágio em pleno Atlântico”, “levemente arrumado, lamentavelmente respeitável, e supérfluos. Talvez Eu esteja sendo um pouco radical e hipócrita, dadas
extremamente desamparado”, “ele era uma pessoa mais de preferências do que as condições que nos são oferecidas: somos protagonistas fadados a serem
suposições.” Fico encantado com essas descrições, são incríveis! esquecidos pelo narrador no final da história. Acredito no “NÓS” como uma
possibilidade de construção de uma humanidade emancipada.
Você ficou de me contar mais detalhadamente sobre um trabalho da Graziela
Kunsch a respeito disso, fiquei curioso, o Bartleby nos oferece muitas possibili- Nossa conversa amparada pelo acaso aconteceu em meio a dois momentos
dades críticas... Envio novamente o Magritte que é para mim uma “imagem de ainda latentes para mim: o passado coberto por uma discussão sobre disparida-
recordação do C.E.F.A.”, ainda que tenha sido impossível estar presente, o que, des regionais oriunda de um seminário do qual participamos na mesma mesa
aliás, é muito frustrante. Esse é o cenário em que na minha mente imagino o (não posso aqui deixar de lembrar as duas colocações do Armando Queiroz que
reencontro com todos. Visitar a Fortaleza de Anhatomirim me levou pra este nos fizeram pensar por um bom tempo: 1) entender a Amazônia como centro
lugar aí da pintura. Chama-se “A arte da conversação”. Por vezes, conversando do mundo e 2) a afirmação de que seu interesse por arte fez com que cruzasse
Kamilla Nunes Ações Curatoriais Kamilla Nunes Ações Curatoriais
e Júlio Martins — 20 e Júlio Martins — 21
as fronteiras sem precisar sair de seu lugar de origem, o Norte do Brasil) e o São Paulo, junho de 2014
futuro completamente tomado pela ansiedade das possibilidades de convivên-
cia, presença e abolição do tempo corrente para imersão no registro do “NÓS”, Ei, Kamilla,
que rompe com a pretensão do Eu de bastar-se a si mesmo.
sua reposta me instiga muito pois ensaiei te escrever, no último email/carta,
Entre uma coisa e outra, Bartleby aparece como protagonista da nossa conver- sobre uma confusão de pessoas em mim, sobre minha dificuldade em en-
sa. Isso explica precisamente que o lugar que ficou vazio, esse vazio do vivido, contrar aqui, em casa, no meu cômodo isolamento, o mesmo Júlio (eu?) que
é a chave de leitura do Bartleby em relação a nós, “jovens curadores frente a eu experimentei por aí, diante de tantas vozes, reagindo a elas, me identifi-
um sistema de arte já ‘dominado’”, como você mesmo colocou. Respondendo cando, discordando, sendo afetado por elas... Me explico melhor. É que em
à sua pergunta, passei a conhecer o trabalho da Graziela a partir de uma fala grupo, o solilóquio povoado do nosso universo psicológico, sobretudo o meu,
do público no seminário Longitudes. Acho que 2 ou 3 dias depois, ainda em que sou uma pessoa mais reclusa, é provocado e certamente somos transfor-
São Paulo, fui jantar com a Bia em um restaurante vegetariano ali no começo mados pela convivência e oportunidades de encontro com o outro. Deixamos
da Augusta e a encontrei: nós sentadas, ela de pé com a comida esfriando nas momentaneamente de responder por aquele ‘eu’ e passamos a pensar a partir
mãos. A obra chama-se “Sem título (Prefiro não fazer)”. Não que eu me lembre da consciência de um “nós”. É um esforço, é novamente parte dessa abertura
de memória tantos detalhes, mas é que recuperei uma conversa de facebook de que propomos. Por outro lado, essa noção vaga que temos do eu às vezes se
alguns dias depois do meu aniversário: “ei Kamilla, tudo bem? feliz aniversário torna mais tangível quando instável... Viu que é mesmo uma confusão de vo-
atrasado!!! de presente te envio uma imagem que você me pediu da obra ‘Sem zes? Eu estava aqui tentando encontrar o Júlio que conheci, junto com tantas
título (Prefiro não fazer)’, 2011. beijo! (se der um zoom acho que dá para ver pessoas que conheci por aí, mas me parecia desativado. É mesmo essa troca
bem as letrinhas)”. E me mandou junto a foto do trabalho: de escritos que relampeja uma faísca por aqui e me move a te escrever, ainda
que com a consciência de que muito do que me inquieta permanece e resiste
a se transformar em palavras compreensíveis, apaziguadas.
Concordo com o que você diz sobre a primeira pessoa do plural. Penso
mesmo que a ideia de indivíduo e da ênfase no ‘eu’ teve sua importância
histórica e encontra importância também nas nossas trajetórias pessoais,
como processo de individuação, correlato ao processo de constituição da
ideia de cidadão na história, por exemplo. Mas seu excesso é uma traição
que chega ao individualismo exacerbado, esse do capitalismo, que não
prevê abertura para relações sociais emancipadoras, e termina por condi-
cionar e interditar o “nós”.
Mas por que será que tudo isso me faz lembrar e relembrar de Bartleby?
Fiquei tentando levantar no texto possibilidades de ler a personalidade
Talvez você também tenha que dar zoom para ver bem as letrinhas, mas pare- dele, mas é mesmo impenetrável. Ele é um mistério, e seus gestos não
cem escritas à mão, como fazia Bartleby, o escrivão. Talvez, ainda, a gente pos- são somente descompromissados, eles revelam um pensamento singular
sa falar mais sobre essa obra em outro momento. Acordei muito cedo e ainda que desarma a lógica dominante, a deixam sem resposta. Também me
não coloquei nada no estômago. Me lembra de te contar sobre uma conversa chama atenção que o comportamento de resistência dele, censurado
que tive essa semana com o Jorge Menna Barreto a respeito do Bartleby? por todos, passa, no entanto, a inspirar e a legitimar os colegas para
também agir guiados por suas preferências... Sorrateiramente a ética de
Um beijo e boa semana! resistência de Bartleby provoca um efeito no grupo. É assim que passei
a interpretar a passagem do Melville que diz que Bartleby “projeta uma
Ká melancolia no ambiente”.
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e Júlio Martins — 22 e Júlio Martins — 23
Mas o que me deixou fascinada foi você ter apontado que ele, o Bartleby, Vejo você no lançamento dessa publicação em São Paulo!
inspira e legitima os colegas para também agir guiados por suas preferên-
cias. Foi exatamente esse o assunto da conversa que tivemos, eu e Jorge, na Ká
semana passada. Ele lembrou uma fala da Louise Bourgeois que gostava de
esculpir em pedras pelo que a pedra não dá, pelo que ela resiste, pelo que a
pedra insiste. E a pedra, na sua insistência, acabava por alterar o gesto da
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e Júlio Martins — 24 e Júlio Martins — 25
Sim, vc tem razão, “nós” implica em gente que se interessa em ter o Ou bom dia, não sei exatamente como se comportam os tempos na madrugada...
outro como querido. É uma abertura que se propõe, um oferecimen- Gosto mais de pensar o agora como amanhã, porque já passou da meia noite,
to de mutualidade, enfim as relações são feitas desses vínculos, né?... mas ainda não dormi. Em todo caso, ainda está escuro.
‘Querer’ também me diz sobre partilhar visões em comum, estar em
debate com comprometimento. Mas ultimamente tenho a sensação de Amanhã (ou hoje) será o lançamento do livro que contém esse texto, já não
escrever frases cujo significado vai se perdendo antes de alcançar o temos mais tanto tempo de conversas e, além disso, estou me esforçando para
papel, fica retido lá só um subproduto informe. E sim, fiquei pensando escrever sem erros porque o texto já foi revisado. Uma pena que não podere-
na vida privada e especulando sobre a possível consciência de Bar- mos nos ver e continuar essa conversa pessoalmente.
tleby, o que podemos inferir de seu linguajar, de seus gestos, de suas
incontinências... Tudo isso também revela um pensamento, nem tanto Tem algumas peculiaridades do Bartleby que vez ou outra podem passar desa-
uma pedagogia a partir de Bartleby. Me interessa mesmo Bartleby percebidas. Você lembra que ele passava horas olhando através de uma janela
como modo de aprender, de se aproximar do mundo, de responder, branca atrás do biombo, para uma parede cega de tijolos? Sempre me pego
mas sobretudo de reagir com um não –um não que desestrutura os pi- pensando nessa imagem e no quanto ela me afeta pela semelhança. Não que
lares do pensamento e do comportamento de todos ali no escritório. E eu tenha uma janela branca, mas tenho a página. A Graziela, em letras miú-
ainda mais curioso é que ele estende sem cerimônia estes limites para das que até com o zoom é difícil de ler, nos deu um retrato fiel do Bartleby.
em seguida os ocupar também. Entre o comovente e o incoveniente, Uma página tão branca quanto a janela branca atrás do biombo emoldurando
Bartleby traça um posicionamento, constrói um lugar. E o domina ao sua mais significante expressão, também branca: “preferiria não fazer”.
ponto de acreditar ter posse dele. Sabe? Ele toma uma posição. Acho
que é uma invasão também, é furtar uma possibilidade. Isso fica mais Estou um pouco cansada da viagem, mas gostaria de continuar essa conversa,
claro, por exemplo, nos diálogos em que ele constrange o patrão. para que surjam outras oportunidades de não fazê-la.
De fato, Bartleby é impenetrável. Numa leitura possível, nem tanto Um beijo, meu querido. Espero que estejas bem!
prioritária, ele poderia ser aquele território selvagem de diferença e
singularidade, da consciência de ser eu um indivíduo, de me reconhe- Ká
cer, mas isso diante da falha e do total desconcerto e susto de também
perceber-se deslocado dessa noção, por vezes frágil, mesmo incompre-
ensível... Volto a perseguir e te escrever sobre o ‘eu’ (motivado por um
convívio que estabelecemos), sobre vozes da subjetividade... E Bartleby Vitória, outubro 2014
fala muito pouco e em tons um tanto indecifráveis.
Querida Ká,
Fico pensando, enquanto escrevo, em nossas dinâmicas de grupo, mas
prefiro nem tentar escrever sobre isso. Fico ruminando por aqui entre as li- Te agradeço, pois foi você quem me indicou Bartleby, naquele seminário que
nhas desse poema lindo do João Cabral de Melo Neto. Obrigado pelo envio! participamos em São Paulo, e agradeço novamente por trazer à memória esse
dado fabuloso! Sim, Bartebly tem o olhar anestesiado pela paisagem, passa ho-
Um bjo, ras a fio à janela, posso vê-lo frente à mesa ociosa, poucos papéis. Fico tentan-
do pensar algo que crie correspondência – como uma qualidade ou intensidade
J do olhar reconhecível por nós, que escrevemos sobre e a partir da arte –, com
um olhar que experimente e desvende essa visualidade estática, contemplativa,
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manipulação temporal que põe o tempo pra dormir em nós. Desaceleração do Sorocaba, outubro de 2014
tempo. É uma pausa que está plena de atividade psicológica, como quando nos
perdemos num pensamento que nos leva pra longe de onde estamos. Oi Júlio, como você está?
Saudades também!
Conheci um rio numa cidadezinha norueguesa e passei uma tarde inteira
lá tentando ficar encharcado do rio, de fora dele. Consegui no máximo Há tanto tempo que não conversamos sobre o Bartleby, que também dele
suar o colarinho da camisa... Você sabia que depois de nadar determinada fiquei com saudade. Relendo nossas trocas de palavras revestidas de senti-
quantidade de km, o corpo entra num estado de transe e nada novamente mento e memórias, dei-me conta que, por fim, pouco falei do trabalho da
aquela distância sob uma percepção alterada do tempo? Lembrei que em Graziela, que provocou em você tanta curiosidade. Linda a imagem que você
minhas notas durante a viagem à ilha de Anhatomirim está registrado trouxe do Bartleby, no sentido de que ele opera na intensidade de não inter-
que viajar é desacelerar o tempo. Lembrei que Deleuze era uma pessoa ferir na vinda dos devires. Ele sequer sai do escritório para comer ou dormir,
que não gostava de viajar, pois preferia “não retardar a chegada dos devi- e descobrimos isso apenas no final do livro. Mesmo curtos, os deslocamen-
res”, ou “não interferir muito na vinda dos devires”, ou algo parecido... O tos parecem impraticáveis. Fico me lembrando do pensamento de Walter
fato é que ficava em casa, esperando. Certamente a visualidade estática de Benjamin acerca da imagem. De algum modo, o Bartleby, sendo “só lâmina”,
Bartleby opera nessa intensidade. é primeiro um cristal de tempo, a forma construída de um choque onde o
outrora encontra o agora em um relâmpago para formar uma constelação.
Determinados textos que escrevemos parecem ir se escondendo no tempo
e relê-los, anos depois, é redescobri-los, é tambem lê-los pela primeira vez... Estou conversando com o Jorge Mena Barreto no “WatsApp” enquanto te
Tudo se passa no tempo. Já faz um tempo que olhava pra esta página espe- escrevo e, por coincidência, ele me mandou uma mensagem há 2 minutos que
rando mais palavras. Ainda sob efeito da experiencia aí em Floripa, temo que diz assim: “Acordei pensando no Bartleby, que ele renuncia a tudo, mas não
a fala sobre tudo o que vivenciamos, discutimos, aprendemos e compartilha- à fala. Se ele preferisse não, ele calaria. Dizer “eu preferiria não” é um fio que
mos seja sempre empobrecida. Lendo agora nossas últimas correspondências, escapa à completa negatividade”. Não havia pensado sobre isso, o Bartleby para
de meses e meses atrás, um sentimento me vêm, sem nome e sem genealogia. mim sempre foi a imagem da resistência, essa mesma que perdemos, talvez nos
Fico imaginando que o tempo é mesmo algo que se percebe em silêncio, as anos 70, depois que o mundo se transformou em imagem. Já não temos a força
palavras quase nunca dão conta. (Ainda que o fraseado longo de Proust seja poética e profética dos “Provos”, embora continuemos lutamos por direitos
lindo e influencie nosso ritmo respiratório de imediato, ao ler). emancipatórios, igualmente políticos, mas provavelmente mais mascarados.
Mas queria insitir contigo sobre o trabalho da Graziela Kunsch, a Quando falamos em resistência, pensamos sempre no macro, no sistema capi-
página em branco, parece mesmo jogar com a oficiaidade de um lema, talista, nas zonas de guerra, nas doenças devastadoras, na luta dos sem terra.
marca uma posição... Este trabalho tem a força de uma barreira de Mas a resistência também está no micro, do dia-a-dia, no nosso processo vital
interdição, de área envolvida por faixas de isolamento. Me fala mais e nossa função de resgatar os mundos que se perderam nesse regime vertigino-
desse trabalho, sigo curioso a respeito. so da globalização. Lembro uma fala da Marisa Flórido em Recife: “Não temos
mais como construir um mundo em comum, então nós vivemos a catástrofe
Queria te contar uma coisa, sem contexto mesmo: depois de conhecer o em comum”. Mas o Bartleby, Júlio, o Bartleby nem a catástrofe, ele vive em
trabalho do Bill Lühmann, me pego em manhãs livres andando pela rua comum. E aí, talvez o Jorge tenha razão, ele só não resiste à fala. Talvez porque,
e recolhendo pequenos objetos para uma coleção de achados. Determi- ao se escutar, ele lembre que é humano. Tem uma parte do livro que me como-
nados trabalhos que vemos parecem definir estratégias de olhar, que se ve muito, uma pequena conversa em que seu chefe tenta, apela, implora para
utilizarmos ou replicarmos na vida nos oferecem o horizonte alargado que o Bartleby se abra com ele, converse. Chega ao ponto de dizer “Eu sou seu
da experiência estética. amigo, eu gosto de você”. E ele estava sendo sincero, tenho certeza.
Um beijo pra você, saudades Hoje acordei confusa, acho que essa carta demonstra um pouco desses confli-
tos. Talvez eu tenha nadado muitos km e minha percepção da vida e do tempo
Kamilla Nunes Ações Curatoriais Kamilla Nunes Ações Curatoriais
e Júlio Martins — 28 e Júlio Martins — 29
esteja alterada. É como se o Bartleby me impedisse de agir como de costume. população por causa das férias de verão. Se pudesse ser um pouco de
Sempre fico em estado de suspensão quando escrevo para você. Quando falo Bartleby, eu preferiria não estar aqui.
sobre ele. Seria inveja? Você percebe a força que tem essa personagem, para
repetir, repetidamente, a palavra “não”? Dizemos sim a tudo, Júlio. Até àquilo Ká
que sabemos que irá nos machucar e, mais do que isso, machucar o outro.
Acho que tenho inveja do Bartleby. PS: envio anexo uma imagem do momento da queda.
Um beijo, querido. Espero que estejas bem em Vitória. Acho uma cidade com
paisagens lindas.
Ká
Nova Lima, março de 2031
Um beijo desde a ilha, que está com cinco vezes o número de sua
Dez minutos, uma semana, um ano. Maria Monteiro Ações Curatoriais
— 33
Maria Monteiro
Antes disso voltamos cada um para No fim, nada resta além da esfuma-
suas solitárias casas, ligados por çada memória dos momentos com-
um laço que o tempo não explica, partilhados, do tempo poético que
esperando a hora de regressar. adquiriu forma elástica e infinita.
O resto é história.
ções. Encontrá-la era, bem dizer, infalível.... Inúmeros são os navios, Além disto, há aqui em grande na caiu após a investida da esquadra
uma graça de Nossa Senhora dos e inúmeras as vidas que têm sido abundância duas outras produções (a maior que já se viu cruzar o Atlân-
Navegantes. É o que diz, impli- salvas, mediante a felicíssima posi- de um uso infinito nos navios, a tico Sul desde então) comandada
citamente, o Almirante Proença, ção hidrográfica de Santa Catarina, saber, as cebolas e as batatas”. por D. Pedro de Cevallos, na ocasião,
em idos do século 19: “Todas as sem dúvida admissível uma das governador de Buenos Aires...
embarcações, pois, mesmo as que se melhores do mundo”.
acham em grande distância, correm O intenso fluxo de estrangeiros que Nessa invasão não houve morte,
a abrigar-se no ancoradouro da Além disso, a Ilha de Santa Ca- atingiam suas praias fez com que a drama algum. Os portugueses que
barra do norte de Santa Catarina, tarina é um dos últimos portos Ilha de Santa Catarina fosse guar- guarneciam a Ilha de Santa Catarina
sempre pronto a recebê-las, debaixo seguros entre o Rio de Janeiro e necida desde as bordas. Havia uma debandaram continente afora. Ou
de qualquer tempo, a qualquer hora, o Rio da Prata, caminho quase quantidade considerável de baterias, se entregaram sem disparar tiro
e em quaisquer circunstâncias que obrigatório para descanso, aguada e trincheiras, fortes e fortalezas: sequer. As ações militares navais
sejam. Que sensação agradável, que reabastecimento de víveres. Sobre aproximadamente trinta. A maioria daqueles tempos tinham algo de
prazer compensador não é aquele este último quesito, a fertilidade da delas desapareceram ante ao fascínio cena teatral – o que nos causa certa
que sente o coração do marinheiro, terra e a quantidade de alimentos rodoviário e aéreo que tomou conta inveja, sem dúvida.
quando, tendo consumido dias e (sobretudo a laranja que, em tem- da gente moderna e dos estados
noites na luta titânica dos elemen- pos de escorbuto, servia de comida nacionais4. Em Florianópolis, ao A coisa seria decidida, menos de
tos desencadeados, avista aquele e remédio) era sempre anotada mar restou o extrativismo (a pesca, a um ano depois, no tapetão. Melhor
alteroso Arvoredo, as altas cumia- com certo espanto pelos viajantes maricultura), o lazer e o turismo. O dizendo, nas salas atapetadas,
das do Ribeirão e do Cambirela, que nela aportavam, como o inglês porto há muito mudou de endereço. mobiliadas com homens brancos e
e, fazendo direta rota, com suma George Anson, em 1740-41. Obser- Nem posta restante chega aqui. bem alimentados do corpo diplo-
confiança, para o imenso claro que ve-se a descrição muito próxima ao mático ibérico. O Tratado de Santo
se lhe apresenta, vai vendo aquelas que hoje se chama de agrofloresta: Mas, voltando ao canal norte, rota Ildelfonso, em 1778, devolveria a Ilha
montanhas se lhe crescerem, “A terra de Santa Catarina é muito que a Congregação cobriria no aos portugueses que, por sua vez,
aquelas ilhotas se lhe aproximarem, fértil e produz quase por si mesma sentido sudeste-noroeste. Ele é devolveriam a Colônia do Sacramen-
aquele mar encravado substituindo variadas espécies de frutos. Está tão aberto que por ali mesmo, há to aos espanhóis. Realmente, ambos
o mar tempestuoso, e depois, os coberta de uma floresta de árvores 237 anos, os espanhóis tomaram os lados tinham razão: o que estava
habitantes pelas praias, as plan- sempre verdes, que, pela fertili- de assalto a Ilha de Santa Catari- em jogo não merecia tiro, facada ou
tações espalhadas pelos morros, dade do solo, são de tal maneira na. Razões eles tinham: o Tratado impropério qualquer. Era troca de
e afinal, o abrigo, o ambicionado entremeadas de sarças, espinheiros de Tordesilhas (1494), aquele que figurinhas ou coisa assim. Meninos
abrigo, sonho do seu navio já meio e arbustos, que o todo forma um dividiu o Novo Mundo entre lusos medindo o tamanho de seus respec-
desmantelado, da sua equipagem já conjunto impossível de atraves- e hispânicos, havia sido atropelado tivos pintos. Que o valham!
meio morta de fadiga! Nos ancora- sar, a menos que se torne algum primeiro pelos portugueses. Eles
douros dos Ratones, de Sambaqui, caminho que os habitantes fizeram tiveram a petulância de fundarem Por fim, cabe descrever o destino da
das Caieiras, do Saco de São Miguel, para sua comodidade. Os frutos a Colônia do Sacramento em meio Congregação, a Fortaleza de Santa
da Praia de Fora, dos Barreiros, da e as plantas próprias de outros ao território espanhol, bem nas Cruz da Ilha de Anhato-mirim.
Ponta do Leal, enfim, do Desterro, países crescem aqui quase que sem entranhas do rico Rio da Prata, em Para tanto, tomemos de emprésti-
tudo sorri ao marinheiro! Uma vez cultura, e em grande quantidade, frente a Buenos Aires... mo novamente os olhos costeiros
reconhecida a terra, pelo alteroso de maneira que não faltam nunca de Virgílio Várzea: “A ilhota é alta e
da Ilha, pela posição do Arvoredo os abacaxis, os pêssegos, as uvas, as Vai saber se desejoso de vingança ou rochosa, coberta aqui e ali de curta
e seu farol, o ingresso em Santa laranjas, os limões, as limas, os me- apenas soldado leal à Corte Espanho- vegetação. O forte tem as suas mu-
Catarina é infalível, completamente lões, os abricós, nem as bananas. la, o fato é que a Ilha de Santa Catari- ralhas voltadas para a barra e ocupa
Fernando Boppré Ações Curatoriais Fernando Boppré
— 40
a bem dizer o perímetro inteiro da próxima àquela que o comandante destino do Congresso... Alguns movimentos reivindicam
ilhota, com os seus quartéis, casa do da corveta Coquille, Louis-Isidore a mudança de nome da cidade de Florianópolis. Dentre
comando, caso dos oficiais e outras, Duperrey, registrou em seu diário as sugestões se encontra o nome “Ondina”, a deusa dos
todas encerradas na parte inacessí- em 1822: “Penetra-se nesse forte mares, como Cruz e Sousa e Virgilio Várzea, escritores cá
vel das rochas e tendo somente um por um pórtico notável pelo seu nascidos, faziam grafar a cidade em seus escritos.
grande portão de entrada, que desce estilo gótico e pela sua antiguida-
por uma ampla escadaria de pedra de, depois de haver subido uma 2. Cabe dizer, nauticamente, que a barra, de modo ge-
até a pequenina praia ao sul, onde centena de degraus onde enormes ral, é realmente uma barra. Muitas delas, como a Barra
há um cais de desembarque”. barbatanas de baleias estão postas à Diabólica, entrada e saída da Lagoa dos Patos, entre Rio
guisa de corrimão”. Grande e São José do Norte, no Rio Grande do Sul, eram
Em tempos da disputa entre por- conhecidas até o século 20 pelas impetuosas dificuldades
tugueses e espanhóis, era a maior Seguindo o caminho até o local que inflingiam aos capitães e mesmo aos práticos mais
e mais bem guarnecida do Sul do onde ocorreria a maior parte das experimentados.
primeiro governador da Província de Esses grandes roedores (ratones?) Não por acaso, lá, apenas uma Fortaleza, a de Nossa Se-
Santa Catarina, o engenheiro militar abundam por ali. Ao observá-las, nhora da Conceição de Araçatuba, vigia o oceano que se
Brigadeiro José da Silva Paes. com o mar ao fundo, talvez alguém estende em direção ao Cabo Horn, esse sim violento e
farinha, o paiol, as escadarias, os mar” (Cesare Pavese). abandono das fortalezas seja militar: quando os Estados
canhões, dentre outros, faz ver que Nacionais decidiram por bem guerrear mais por terra e
ali a engenharia militar lusitana por ar, as fortalezas da Ilha de Santa Catarina (e tantas
atingia um de seus pontos áureos. Notas outras litorâneas) caíram em desuso. A prova disso é que
Cada construção assentada sobre a hoje servem, majoritariamente, aos turistas. Nem a Mari-
topografia natural do terreno numa ** De acordo com Virgílio Varzea, pampeiro sujo é “como nha as quer mais...
que respeita às contingências geoló- va grossa, açoitadora, incessante e de alargar tudo”. 5. O mesmo fundara a Vila de São Pedro (atual cidade de
gicas e faz dela sua verdadeira força. Rio Grande, no Rio Grande do Sul). E concebeu a vinda de
1. A Ilha de Santa Catarina é mais conhecida como Flo- imigrantes açoreanos e madeirenses para a Ilha de Santa
A Congregação acessaria Anhato- rianópolis. Até 1894 a cidade tinha o nome de Desterro. Catarina.
mirim pela face sul ao desembarcar Chegado o republicanismo e o seu regime de violência ins-
ídos para dificultarem a chegada Brasil. O fato é que Floriano não desperta boas lembranças
ao local, afinal, tratava-se de uma aos ditos florianopolitanos. Em 1894, durante a Revolta
exceto as barbatanas de baleia, já A chacina promovida pelo Estado Brasileiro (mais uma...)
consumidas pelo tempo – seria bem ocorreu na Fortaleza de Santa Cruz do Anhatomirim,
Afinal, quando vamos ser sul-americanos? Santiago G. Navarro Ações Curatoriais
— 51
Santiago G. Navarro
Mendes Campos escribe “Afinal de su dependencia de los ciclos simplemente consolida circuitos mericanas. Sólo me pregunto si
somos sul-americanos” como muy económicos sostenidos por la de recepción distanciados de los han sido recibidas de otra manera
temprano en 1969. Ninguna de las producción exhaustiva de materias parámetros de sofisticación de las que como buenas mercancías de la
ediciones que conozco aportan la primas requeridas por los países elites. ¿Y cuál podría ser el círculo al oferta global, con el mismo mérito
fecha de publicación de esa crónica, que controlaban el mercado mun- que alude Mendes Campos sino el de deslocalizado y neoexótico que las
pero ella misma da una pista: el au- dial, de sus poblaciones mestizas la modernidad ipanemense?). Mucho películas de Abbas Kiarostami o las
tor inicialmente se había propuesto (¿Brasil más mestizo que Colombia, más exquisito hubiera sido leer –y novelas de Sandor Márai. (Rober-
hablar de “o excelente romance que que Cuba, que Venezuela?) y de su esto teniendo en cuenta apenas a to Bolaño, que inventó una épica
é Cem anos de solidão” (publicada diferente posición relativa frente a los escritores chilenos– a Augusto contemporánea para el imagina-
por primera vez en Buenos Aires en la modernidad y la posmodernidad D’Halmar (autor de Pasión y muerte rio cultural latinoamericano y la
1969), pero había terminado refiri- europeas. ¿Quién sabe, en Brasil, del Cura Deusto, la primera novela transformó en eje de su obra, tal
éndose a la negación de la América que el ensayo de Borges “El escri- de asunto homosexual del continen- vez constituya una excepción).
hispanohablante en Brasil. ¿Por qué? tor argentino y la tradición” con- te), José Donoso o Braulio Arenas. Pienso, entre tanto, que la lección
Se desprende del propio texto que, tiene, en esencia, el mismo planteo geopolítica que podría comportar
para poder elogiar a un autor hispa- del Manifesto Antropófago, y que Quizás el texto de Mendes Campos una recepción madura de la incre-
noamericano en Brasil, antes hacía le es contemporáneo? era importante para mí por la íble película paraguaya 7 cajas, es
falta superar una no despreciable fuerza del testimonio. Llegué a que para muchos actuales aspiran-
barrera de prejuicios. Dice Mendes Campos: “Na litera- preguntarme, de cualquier manera, tes a realizadores, mejor opción
tura, a esnobação brasileira chegou qué método de relevamiento crea- que Rio o San Pablo para estudiar
Si después del modernismo, à sublimidade do grotesco. Para ría o aplicaría un estudio socioló- cine podría ser Asunción.
Brasil por fin había aceptado ser desprezar melhor e com mais força gico que se propusiese analizar la
brasileño y no una extensión os escritores hispano-americanos, extensión territorial de esa actitud Yo me acuerdo bien de cuándo fue
del parnasianismo (francés) en deixávamos de lê-los, não lhe de- despectiva dentro del campo que caí de rodillas ante la cultura
literatura y del academicismo corávamos os nomes. [...] Quem lia cultural brasileño; por qué vías se brasileña. La primera vez, durante
(también francés) en pintura, escritores sul-americanos passava reproduciría, por qué no generaría los tres días que pasé estudiando, su-
después del disco de João Gilberto por picareta, chato ou maníaco. Sei resistencias (¿o las generó?). pongo que hipnotizado, las claves del
con Stan Getz, del de Tom Jobim por experiência. Como, através de Al final, si “um professor de litera- sistema que aplicaba un historiador
con Frank Sinatra y, sobre todo, meu pai, acabei me interessando tura hispano-americana nos parecia del arte brasileño para interpretar
del tricampeonato mundial de um pouco pelas obras deles, fiquei sempre o primo pobre do corpo obras de épocas y regiones del mundo
fútbol, Brasil estaba a la altura suspeito entre amigos e companhei- docente”, no había nada que hacer: muy diversas (Paulo Herkenhoff apud
de las grandes potencias y, como ros. Era indício de mau gosto ou quien pensase lo contrario se queda- Oswald de Andrade en la primera
dice Mendes Campos, “prontinho birutice gostar dos sul-americanos, ba hablando solo. Es esa la sensación Bienal de San Pablo –fue en 1998– a
para embasbacar o mundo com o a não ser Pablo Neruda”. que tengo en Brasil. Con la diferen- la que asistí en mi vida); y la segunda,
Brazilian Way of Life”. cia a favor de que el desprecio activo la noche de lluvia torrencial de 2004
La mención a Neruda no deja de ser de los años sesenta perdió asidero que pasé en vela en una casa en el
Pero para poder despegar mejor, curiosa, si se tiene en cuenta que conceptual y consenso afectivo, morro de Santa Teresa, en Rio de
Brasil creyó necesario olvidarse varios de sus poemas ocupan desde reduciéndose a simple apatía. Janeiro, leyendo Dom Casmurro.
de su matriz latinoamericana. No hace décadas un puesto merito- Que la historia del arte pudiera ser
digo de su identidad, sino de su rio dentro del repertorio kitsch No obstante, esa indiferencia reescrita en Brasil y que en Brasil pu-
matriz. De su matriz colonial, de latinoamericano. (Desde luego, la parecería haber sido sacudida diese escribirse un clásico de tamaña
sus núcleos de poder reconcen- apropiación pop de su obra no im- recientemente, con la distribución modernidad, redefinieron mi manera
trado y de su pobreza dilatada, plica el rebajamiento de su calidad: local de buenas obras hispanoa- no sólo de entender Brasil, sino de
Santiago G. Navarro Ações Curatoriais Santiago G. Navarro Ações Curatoriais
— 54 — 55
posicionarme como latinoamericano. tanto habérselos repetido? partimos a bordo de balões imagi-
¿Pero cómo hablarle a un brasileño ¿O informándole de la existencia nários. Estamos aprendendo a nos-
de todo lo que se pierde por no de una historia del conceptualismo sa geografia continental: assombra-
ver más allá de las fronteras del latinoamericano que comienza con dos com a semelhança fraterna que
sub continente Brasil, y de todo los poemas gráficos del tutor de antes não queríamos ver”. Cerca
lo que podría hacer y de todo en Simón Bolívar y posible precursor de de cuarenta años después, ese
lo que podría transformarse si Mallarmé, Simón Rodríguez, y que final, ya que no se hizo realidad,
las atravesara? ¿Contándole, por afirma que la performatividad de podría servir como materia de
ejemplo, que no existe en todo el los operativos del grupo guerrillero meditación. Al final, quizás no se
imaginario brasileño nada com- Tupamaros inspiró a los conceptua- trate de torcer el rumbo, sino de
parable al horror y la fascinación listas uruguayos, entre ellos el pro- suscitar un sutil pero indispensable
que transmite la selva amazónica pio Luis Camnitzer, autor del libro movimiento triple: 1) reconsiderar
de La vorágine, del colombiano referido, Didáctica de la liberación? los lugares comunes de la dife-
José Eustaquio Rivera, una de las ¿O que el modelo museológico más rencia lingüística y la dimensión
mayores novelas de la literatura osado, complejo y de mayor viru- continental de un país en realidad
latinoamericana (incluyendo, desde lencia crítica del planeta probable- subcontinental; 2) revisar los pará-
luego, la brasileña); y que tendría mente se encuentre en Lima, aunque metros culturales que uno utiliza
más sentido, para poder pensar lo lo de “encontrarse” sea un decir, normalmente y cuestionarlos con
amazónico, poner en primer lugar porque una de las características del material proveniente del resto
precisamente lo amazónico, de Micromuseo de Gustavo Buntinx y de Latinoamérica y, desde luego,
manera de reconocer las realidades colectivo es que, por propia decisión, también del resto del mundo; y 3)
comunes y las diferencias entre Be- carece de sede fija, porque la propia atravesar físicamente la frontera,
lém e Iquitos antes que la genérica creación carece de ella? con frecuencia y con sed.
y antepuesta realidad abstracta de
un Brasil percibido como sinónimo ¿O que la idea de ready made fue Porque ni el Rey Salomón dejó en
excluyente de amazoneidad? definitivamente afectada por la herencia riquezas como las que
observación circunspecta que hizo en la América llamada hispana
¿Proponiéndole la lectura de la tetra- su autor de las aguas del Río de la les aguardan a los brasileños de
logía del chileno Manuel Rojas que Plata y de las técnicas de prepara- buena voluntad.
comienza con Hijo de ladrón, cuyos ción de un asado, así como por la
honrados vagabundos anarquistas conversación erótica que mantu-
recorren la faja costera chilena, vo con la artista brasileña Maria
borrachos y hambrientos, solida- Martins, según el libro (Maria con
rizándose con el cosmos y con los Marcel. Duchamp en los trópi-
hombres; y que serían justamente cos) de un argentino-catarinense
esos olvidados del mundo quienes llamado Raúl Antelo?
podrían permitir al lector brasileño
contemporáneo ampliar y cuestionar Mendes Campos terminaba su
su visión del nomadismo, ahora que crónica así: “Pois é. De repente,
la filosofía de Deleuze y Guattari se estamos descobrindo que somos
redujo a un repertorio de palabras sul-americanos. Estamos caindo
gastadas y gestos automáticos de onde sempre estivemos, de onde só
Gabriela Motta Ações Curatoriais
— 57
Prólogo — Sobre caminhos
enviesados no qual cruzam-
se experiências andantes e
sentantes Parte I — no qual apresento próximos editais. A montagem do advogado para tratar legalmente do
a desventura do Salão de Salão de Abril correu muito bem, assunto. Foi aí que novamente vimos
com uma excelente equipe do CCB- o quanto ainda existem instituições
Abril e aponto a permanente NB, local da exposição. Na ocasião, que alegam a suposta visibilidade que
Gabriela Motta reincidência de equívocos ainda não havíamos recebido nossos os artistas teriam ao participarem de
institucionais em relação cachês, artistas e curadoria. Mesmo suas programações como algo com o
a pagamento de artistas e assim, alguns artistas viajaram a For- qual deveriam se satisfazer, conten-
clareza de editais. taleza para montagem de suas obras tar. Recebemos como resposta a frase
ou para realizar a performance com sinto muito pelo fato desse atraso
Em janeiro de 2014 fui convidada a qual haviam sido selecionados. O financeiro ter apagado o significado
O que o Salão de Abril, o projeto
para assumir a seleção e curadoria processo todo, desde o lançamento e a importância do fato de jovens
Ações Curatoriais e o livro Dom
da 65a edição do Salão de Abril. do edital até a abertura de exposição, artistas terem sido selecionados p/
Quixote de La Mancha tem em
Aceitei o convite ainda antes de foi bastante rápido – as inscri- participar de uma dos salões de arte
comum? Mesmo quem nunca leu as
ler o edital, por considerar uma ções abriram dia 20/02/2014 e dia mais tradicionais do país.
aventuras do destemido cavaleiro
boa possibilidade de trabalho e 15/04/2014 a exposição estava aberta
de Cervantes, sabe de sua “loucu-
um bom cachê tanto para mim ao público. Ou seja, atribuíamos a Por favor, alguém me diga qual o
ra”. Capaz de confundir moinhos
quanto para os artistas. Os valores isso, a rapidez de todo o processo do significado, qual a importância de
de vento com gigantes, Dom
combinados foram: R$10.000,00 Salão, a lentidão do pagamento de participarmos como curadores ou
Quixote é incansável na sua missão
para seleção e curadoria do salão cachês. Okey. Chato, mas okey. como artistas de qualquer exposi-
e conta sempre com o apoio do
e R$3.000,00 para cada artista ção? Muitos, certamente, mas todos
fiel Sancho Pança, que entra na
selecionado, mais três prêmios Abril seguiu seu curso, emails foram significados possíveis estarão condi-
aventura por acreditar que será
de R$15.000,00 para três artistas mandados, recebemos respostas, cionados a qualidade do nosso tra-
recompensado com o título de
premiados. O salão, como explíci- ninguém sabia dizer quando o paga- balho, do quanto dermos o melhor
Governador da primeira ilha que
to no edital, não custeava o trans- mento seria feito, devíamos esperar. de nós mesmos ao nos envolvermos
conquistarem. Entre o idealismo
porte de obras nem viagem dos No dia 07/05 enviei nova mensagem com a instituição A, B ou C. As
de um e o pragmatismo do outro,
artistas para a exposição e pedia cobrando o pagamento de todos e instituições em si, obviamente, tem
constrói-se a história na qual
muitos documentos daqueles sele- indicando que a situação urgia ser a sua importância, mas esta é inca-
ambos partilham o que cada um
cionados. Tudo bem, aqueles que resolvida, que o próximo passo seria paz de validar por muito tempo um
tem de melhor, sonhos e tenência.
se inscreveram estavam cientes fazermos deste um debate público. artista ou um curador se este não
É por essa leitura sobre competên-
disso e, ao inscreverem-se, indica- Logo recebi a feliz (?) resposta de que for em si comprometido com o seu
cias, compromissos e liberdade que
vam aceitar estas condições. sim, a Secultfor havia conseguido a fazer. Ou seja, a questão é comple-
insisto em entrelaçar o romance
liberação apenas do meu pagamen- xa, cada caso é um caso, mas o certo
com os projetos citados.
A reunião de seleção aconteceu to, através da empresa VC Eventos. é que a relação não é unilateral e
em março de 2014 em dois dias de Mandei documentos, dados, e final- sim uma via dupla em que artistas e
trabalho insano, pois o Salão recebeu mente recebi no dia 26/05. instituições precisam um do outro e
mais de 600 inscrições. O edital se beneficiam mutuamente através
tinha vários problemas, como todos, A exposição terminou dia 31/05, da qualidade e seriedade que inves-
normal. Junto com a comissão de quando outra vez enviei uma men- tem em si mesmos.
seleção, formada por Ana Cecília sagem para a secretaria de cultura
Soares e Herbert Rolim, redigi um de Fortaleza cobrando o pagamento Bem, depois de todo esse blá, blá,
documento e encaminhei a Secultfor dos artistas. Nesta ocasião, expus blá extremamente desgastante, os
com sugestões e propostas para os que pretendíamos consultar algum artistas receberam um email avi-
Gabriela Motta Ações Curatoriais Gabriela Motta Ações Curatoriais
— 58 — 59
sando-os que a partir do dia 11/06 é de R$135.000,00. Quanto vale o envolvidos no projeto. E pos- velmente estas questões.
a Secultfor iniciaria os pagamen- salão de abril? Entender-se como so dizer, parafraseando um dos
tos. Me pergunto por quê tudo isso valor em si é o primeiro equívoco bordões da Kamilla, foi incrível. Durante o mês de maio produzimos
foi necessário? Por quê precisamos que qualquer instituição ou pessoa Nesse período, discutimos práticas este encontro – convites aos artis-
nos expor com mensagens nada pode cometer ao relacionar-se com curatoriais, conhecemos artistas tas e às pessoas das cidades, locação
gentis, com exigências tão elemen- o outro. Valemos o quanto nos e instituições locais, relatamos de ônibus para o transporte dessas
tares como ser pago pelo trabalho? envolvemos em sanar as arestas de experiências individuais, trocamos pessoas, locação da escuna, taxa de
Se de fato o pagamento sair nesta qualquer processo, em darmos o muito, falamos quase sem parar, uso da ilha, reserva de hotéis, com-
data, não terá sido mesmo um nosso melhor de acordo com o que ouvimos o tempo todo e ainda pra de passagens aéreas, capas de
tempo muito longo de espera, três tratamos fazer. E isso nem quer planejamos uma atividade, o Con- chuva, alimentação, produção das
meses. Mas será que teria saído dizer conseguir fazer, mas tentar gresso Extraordinário da Fortaleza propostas dos artistas e, inclusive,
sem a pressão que fizemos? Será com todas as forças, sendo claros e de Anhato-Mirim. Chegamos plano B, caso o tempo meteoroló-
que ao alegarmos consulta jurídica explícitos quanto às adversidades nessa proposta do Congresso de- gico nos impedisse de navegar. Dia
conseguimos acelerar um processo inerentes aos diferentes papéis. pois de muito debatermos sobre o 08/06 estávamos todos, curadores,
sem data para ser concluído? Não que gostaríamos de compartilhar? artistas e cerca de 100 pessoas
sei. O fato é que tudo isso poderia Como poderíamos nos relacionar trazidas das cidades de Joinville,
ser evitado de pelo menos duas com pessoas de outras cidades Criciúma, Itajaí e Jaraguá do Sul,
formas: constando no edital que a de Santa Catarina? O que seria reunidos na beira da praia da Joa-
prefeitura poderia levar meses para Parte II — em que narro interessante propor como “ação” quina para o início do congresso.
pagar, com emails explicando deta- os momentos que resultante desse encontro?
Choveu, choveu muito durante
lhadamente o processo de liberação antecedem a aventura do
de verba e assumindo a responsa- Assim, a partir dessas e de outras todo aquele final de semana. O
Ações Curatoriais e seus perguntas e da certeza de que que- plano B foi acionado, as capas de
bilidade e desconforto da situação
ou remunerando os envolvidos desdobramentos alucinantes ríamos trabalhar juntos, sem nos chuva foram totalmente usadas
durante o período de exposição. dividirmos em pequenos grupos, e o Congresso Extraordinário
Em abril, enquanto me prepara- decidimos todos que não faríamos da Fortaleza de Anhato-Mirim
va para a montagem deste Salão nem exposição, nem debate, nem aconteceu na capital-ilha de
Penso que uma das razões disso
– exposição que chamei de Alerta palestra, nem relato, nem pergun- Santa Catarina. Não sangramos
ainda ocorrer envolve justamente
Laranja! enfatizando o caráter tas. A nossa proposta era organizar o mar, mas fomos encharcados
a noção de valor, normalmente
explicitamente político de boa parte um encontro reunindo pessoas de pela chuva e pela certeza de
reduzida a ideia de custo. Porque
dos trabalhos selecionados – ima- quatro cidades de Santa Catarina na que estávamos fazendo o que de
valor e custo são tidos como sinô-
ginava também como seria a minha Fortaleza de Anhato-Mirim, uma melhor poderíamos fazer. Carlos
nimos no âmbito burocrático que
participação no projeto Ações Cura- das ilhas que visitamos no período Asp, Jorge Menna Barreto, Nelson
engolfa essas instituições. Custo é
toriais. Este programa, idealizado da residência. Este encontro seria Felix, Rafael RG e Raquel Stolff
o que todos temos para sobreviver,
pelas curadoras Bia Lemos, Kamilla basicamente vivenciarmos juntos, foram os artistas que participa-
valor é o quanto somos engajados e
Nunes e Marta Mestre, propunha curadores e convidados, desloca- ram desta ação. Foram convi-
respeitamos aquilo que escolhemos
que dez curadores participassem mentos literais – vir por terra ou dados porque estavam conosco
fazer para viver e para oferecer ao
de uma residência de oito dias em pelo ar até Florianópolis e depois durante o período da residência,
outro. Seja como artistas, curado-
Florianópolis, no final de abril. todos pelo mar até a ilha – e des- através das conversas e discussões
res, mecânicos, diaristas, palhaços,
Viajei bastante apreensiva para locamentos metafóricos – através que tivemos sobre arte e sobre
políticos. Quanto custa o salão de
a imersão, pois conhecia apenas de propostas de cinco artistas cujas o que acreditamos. E juntos, ar-
Abril? Na internet somos informa-
dois dos outros nove curadores pesquisas e práticas discutem sensi- tistas, curadores e nosso público
dos que o orçamento desta edição
Gabriela Motta Ações Curatoriais
— 60
praias... A.V.: quem ?! a Zgougou?! não, mas podemos dizer que existe entender apenas algumas pala-
A.V.: bem, é porque vivi grandes A.G.: não, outro, que sempre o semelhante, como duas esferas que vras: ilha, abarcando, doze reais.
memórias da minha vida em praias aparece junto, preto com branco.. se interceptam entre si- há o que se olho para frente e lá se encontra
A.G.: eu sei, mas da maneira A.V.: sim ! sei, sei... qual era compartilha, que é de ambos, e há o o belo forte em ruínas. Agnès é a
que você disse parece ter mesmo o nome dele? que é individual, que os diferencia. primeira a saltar do barco e segue
uma diferença entre praias e A.G.: tanto faz o nome, o gato A.G.: o que é semelhante é o que na frente ansiosa para desbravar o
paisagem... que me interessa perguntar na nos faz gerar encontros, e o que lugar. de longe grita para mim: “se
A.V.: tem para você? verdade, é aquele que Chris nos diferencia é o que nos faz gerar apresse que não temos todo tempo
A.G.: o horizonte marker representa, Guillaume en o começo, ou melhor, os começos do mundo” ! logo eu que ficava
A.V. sorri: pode ser que dentro de égypte ... eu o acho fantástico e A.V.: é por isso que é tão difícil contando as passadas do ponteiro,
você haja também praias se pudesse gostaria de sê-lo nesta marcar um começo como o coelho da Alice, torcendo
A.G. sorri de volta: acho que entrevista, que na verdade está se A.G.: sem falar que geramos para que o relógio esquecesse das
sim... mas enfim, as suas praias tornando uma conversa... começos e encontros diversos e, horas e que pudéssemos ficar ali
ou as praias de Agnès, nos A.V.: não sei se entendi porque não, simultâneos... até todas as perguntas se esgo-
encantou; casava muito bem com A.G.: bem, assim como Chris A.V.: est complexe... tarem. o que começa, termina
a atmosfera em que estávamos... marker era o grande gato amarelo A.G.: por isso para mim é difícil dizer alguma hora sem que nem um mi-
éramos quase uma trupe circense, que a entrevistava, gostaria que eu que sou artista ou que sou curadora... lésimo das perguntas tenham sido
só que de curadores, e tudo que fosse agora ele A.V.: artista E curadora? mencionadas. a memória ainda
queríamos era sair em caravana, A.V.: você gostaria de ser A.G.: é um modo de ver, o modo guarda os cheiros, as cores e som
num barco ou em um caminhão... Chris Marker? do comum, compartilhado, do mar com as gaivotas daquela
A.V.: um caminhão? A.G.: não, queria ser o gato. interseccionado entre as duas esferas, tarde de sol. foi deste lugar da me-
A.G.: é, mas isso requer mais tempo A.V.: mas você não é uma raposa? mas e o restante que as diferenciam? mória que comecei estas palavras.
porque envolve outra situação, A.G.: sou mas queria ser agora A.V.: é importante que exista eu ainda não conheço Agnès varda
outros artistas e imaginários e o gato amarelo que sempre a A.G.: ah sim, mas é difícil dizer as pessoalmente, embora já a tenha
isso me tomaria um tempo que entrevista duas coisas ao mesmo tempo sem encontrado inúmeras vezes nos
não tenho... posso falar disso A.V.: e porquê? entrar numa fórmula matemática meus pensamentos, na minha ima-
enquanto estivermos visitando A.G.: porque isso me faz lembrar A.V.: do ponto de vista da razão, ginação. consigo imaginar os seus
anhatomirim... vários diálogos importantes entre da lógica, quase impossível trejeitos ao falar, o sotaque belga
A.V.: você parece o coelho da Alice um gato e um humano, como não chegar a esta equação de francês, até a sua pele um pouco
falando Alice através do espelho, assim conjuntos... mas a imaginação enrugada. Agnès varda certamente
A.G.: prefiro ser uma raposa como Derrida e o gato que o vê nu pode ser um bom caminho esteve neste nosso encontro entre
A.V.: mas porque uma raposa? em o animal que logo sou A.G.: como uma outra grande os curadores e com cada um inau-
A.G.: assunto número dois para A.V.: mas são encontros diferentes, esfera que engloba essas duas? gurou um começo de fantasias que
ilha, tenho muitas coisas para um é a figura de uma menina A.V.: que por sua vez se encontra e nos moveu com nossas diferenças
perguntar e falar com você antes com a figura de um gato e outro se separa com outras esferas e semelhanças a criar um outro
de falar do caminhão e da raposa... é Derrida, um ser, com seu gato, A.G.: não parece que estamos encontro, com mais pessoas, que
A.V.: mm...pode se tornar uma outro ser. falando sempre de ilhas? por sua vez continua a encontrar
fábula isso A.G.: sim, eu sei da diferença, mas A.V. ri: ilhas sempre me inspiram com outros e porque não, talvez,
A.G.: ou um roteiro, mas já que há algo em comum, não? ou Chris com Agnès varda novamente.
você está falando de animais marker e o gato Guillaume en terminando de dizer isso, o capitão
tenho a dizer que tenho um gato égypte não são um mesmo? nos interrompe e de novo resmun-
igual ao seu... A.V.: um mesmo todo possivelmente ga algo no seu dialeto que me faz
Visto Bueno 2010 — 2014 Marta Mestre Ações Curatoriais
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Marta Mestre
Chegada: 18/07/10
Permanência:
Rio de Janeiro, cidade Maravilhosa
Brasil, país do Futuro
Apêndice Ações Curatoriais Apêndice Ações Curatoriais
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Um projeto, uma discussão e um to aplicado, no planejamento dos corpo e batidas como única de chão e gresso”, momento em que as falas
futuro. As sistemáticas por parte trabalhos em arte contemporânea, coração na introdução da importante se dirigiam da pronta sensação aos
do Congresso Extraordinário da e assim comprometidos com a temática que é organizar um processo pensamentos já trazidos. A trajetó-
Fortaleza de Anhato-mirim – CEFA constituição de suas poéticas. Assim, cultural. Por mim, suficiente como a ria de um artista recebe, antes de
–, onde a presença da curadoria na continuidade do projeto proposto justificar o dia proposto a reflexões. se constituir, um cuidado pessoal
sem a ausência dos artistas em uma pelo instituto Meyer Filho, o CEFA, O Museu da Escola Catarinense ofe- que transpassa o emocional para
conversa direta. Um experimento uma outra etapa acontece, quando a rece ao espaço uma simbologia forte, ganhar a razão de um mercado de
de diálogo em dois sentidos às duas noite ainda se impõe, na madrugada e a ação de Rafael RG promove outra arte, de uma estrutura inquieta e
principais partes do sistema da arte. de 8 de junho, enquanto artistas se discussão importante: o erro, o que na busca de um espaço, por peque-
No encontro de 8 de junho, o do- preparam para ganhar estrada por poderá ser e em qual nível se trata, na no que seja, apresentar uma que
mingo molhado e frio de formata- entre algumas cidades. Somos então arte, o acerto ou o engano. Um artista seja a razão da arte. Outros eventos
ção com importância seca e quente uma curiosidade a iniciar o trajeto narra e interpreta, seja qual a postura devem acontecer, seja na estrutura
aos interessados de uma possibili- de sentires do CEFA. Com a situação oferece a poesia e nos apresenta a tão planejada ou não, pelos atores de
dade real a um sentimento comum, climática do dia, o percurso se altera discutida linguagem, esta caminha um processo de construção esté-
único onde emissor e receptor, com quando o mar ganha o filtro cerrado sobre nossas cabeças, altiva e irônica. tico/curada. Afinal, se curadoria é
o processo expositivo a criadores e da chuva forte, que recepciona as Outro discurso afirma ao ritual da um cuidar do processo, quem cuida
cuidadores das poéticas de um todo cabeças prontas a dividir o contato arte um postulado sempre presente do que? A palavra está posta, que o
pronto a uma tradução. pessoal e as perspectivas de um gru- ao lado do artista locutor. Nelson congresso continue sem se pautar
po anunciado como seleto. Uma se- Félix menciona e traz para a sua fala isoladamente em ações, créditos
A introdução neutraliza verbos leção, que me permitem, necessitar Caymmi, porém com um discurso ou qualidades. Na espera de outro
[sintaxe de ações nominadas] e adje- de alguns urgentes ajustes. Afinal, duro se posiciona em sua própria momento em juntar os cacos e
tivos [posicionamentos elogiosos] o universo da produção simbólica é trajetória, numa consciência da as reflexões do CEFA, a minha
para representar um possível e real complexo e a sua ampliação precisa geografia da arte em que se basta por conclusão é reconhecer o silêncio
caminho na relação entre artistas e de uma atenção especial por várias sua palavra, sem o ouvir de outrem. de nosso entorno para chamar a
curadores. Conhecemos, das mani- das instituições comprometidas no Mas, podemos adocicar o paladar ao linguagem ao erro no diálogo, ou
festações artísticas, as suas caracte- processo como um todo. Aqui consi- saborear uma das partes propostas descrever o postulado da geografia
rísticas dinâmicas e variáveis pre- dero instituição: o artista, o curador, do trajeto, Jorge Menna deposita em de uma arte suficiente a transpor
sentes em seu processo de criação. o investidor, os profissionais da nossas gargantas o verde composto os sentidos, ao transformar o gosto
Uma participação direta de artistas imprensa, os gestores de espaços pela receita líquida e permite uma da garganta à paisagem recortada
que junto aos curadores promovem expositivos, sejam eles alternativos, troca cromática, do visual ao paladar pela sensibilidade de um universo
a fruição da arte dirigida a possíveis oficiais públicos ou particulares. de uma vegetação, como nas ações maior que o nosso umbigo.
visitantes e, todos, em busca de de nossas propostas simbólicas. O
uma experiência estética. O mundo No evento previsto para analisar os guru, Carlos Asp, nos confere uma TiroTTi
contemporâneo em sua dinâmica caminhos da arte de Santa Catarina, outra atividade, que por sua ação de artista visual
requer a atualidade sempre presente os convidados são recebidos por que não estamos soltos em nossas 30jun2014
a atender as reações, do sentir às Raquel Stolf, sempre pautada na investigações poéticas, ele reforça um
reflexões propostas presentes nas segurança de sua trajetória poética, e pensamento mapeado do universo
exposições de arte. nos convida a ouvir o silêncio, ouvir como força de sua vigilância ao reca-
sim, mas com um banho de júbilo do dos cosmos em nossas vidas, estão
Ouvir, refletir, manifestar e com- no misto de ver amigos artistas a ali como um viver pela e na arte.
partilhar são comandos importantes participarem de uma ação perfor-
para ampliar o convívio entre os mática num caminhar com sentidos Na etapa final, todos os seletos
atores principais de tudo o que diz mais aguçados à compensar o sentido convidados podiam manifestar as
respeito à formatação e ao concei- auditivo, os passos marcados em suas considerações sobre o “con-
Peço de
Ações Curatoriais Som
Rodrigo Ramos
Assessoria de Imprensa
Organização
volta toda
Kamilla Nunes
Programação visual do catálogo
Marta Mestre
Estúdio Drüm
Curadores
Abertura/Fechamento
Andreza Gomes
Beatriz Lemos Bernardo Zabalaga
porção que
Fernando Boppré
Realização
Gabriela Motta
Instituto Meyer Filho
Júlio Martins
Kamilla Nunes Patrocínio
Maria Montero Edital Elisabete Anderle
me pertence.
Marta Mestre de Estímulo à Cultura
Paulo Miyada
Santiago Garcia Navarro Apoio
Mas que
Bernando Zabalaga Universidade Federal de Santa Catarina
Carlos ASP
Jorge Menna Barreto Agradecimentos
Nelson Félix Sandra Meyer, Sandra Makowiecky, Joi,
Rafael RG Pousada Mar de Dentro, Fred Gorsky,
Raquel Stolf Juliana Schmidt, Nilton Santo Tirotti,
a memória
Carlos Franzoi, Ane Fernandes, Mery
Colaboração
Nunes, Josué Mattos, Daniele Zacarão,
Karina Zen Fabíola Scaranto, Karina Zen, Roberta
Cláudia Cárdenas Tassinari, Fê Luz, Diego de los Campos,
Bil Luhmann Bill Luhmann, Joelson Bugila
permaneça,
Gregori Homa e Bianca Tomaselli.
Design Gráfico
Leandro Pitz
Produção
para aqueles
Elisa Schmidt
Sarah Pusch
Fotografia
Giba Duarte
Sarah Push
depois de mim.
Elisa Schmidt
Filmagem e edição
Rosana Cacciatori
Sumário
18 Kamilla Nunes e Júlio Martins – Eu preferiria não fazer (I would prefer not to).
68 TiroTTi – Apêndice.
Legendas
12 Performance de Rafael RG