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EM

BA
RC

ÃO

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2
EMBARCAÇÃO
KAMILLA NUNES

Dissertação de mestrado elaborada junto ao Programa


de Pós-Graduação em Artes Visuais Mestrado, Ceart/
Udesc, para obtenção do título de mestre em artes
visuais.

Orientadora: Profa. Dra. Regina Melim

Florianópolis, SC, 2017

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N972e Nunes, Kamilla
Embarcação / Kamilla Nunes. - 2017.
225 p. il. ; 23 cm

Orientadora: Regina Melim


Bibliografia: p. 223-225
Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado de Santa Catarina,
Centro de Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes, Florianópolis, 2017.

1. Arte - Miscelânea. 2. Espaço (Arte). 3. Discussões e debates. I. Melim,


Regina. II. Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-
Graduação em Artes. III. Título.

CDD: 702 - 20.ed.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UDESC

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Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de
Pós-Graduação em Artes Visuais - Mestrado, Ceart/Udesc,
para obtenção do título de mestre em artes visuais, na
linha de pesquisa Processos Artísticos Contemporâneos.

ORIENTADORA: PROFA. DRA. REGINA MELIM


CEART/UDESC

PROF. DR. FELIPE DE MELLO PRANDO


DEARTES/UFPR

PROFA. DRA. RAQUEL STOLF


CEART/UDESC

Florianópolis, 27 de julho de 2017


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Agradecimentos

Agradeço a todxs aquelxs que tiveram coragem de enfren-


tar esse governo golpista, que renovaram nossa esperança
e nos ensinaram a construir espaços de luta e resistência,
de colaboração e de cooperação. Aos meus pais e meu ir-
mão pelo incentivo e afeto; à Juliana Schmidt pelo amor; à
Mônica Hoff pela parceria e conversas infindáveis; à orien-
tadora Regina Melim, pela generosidade e pelas discus-
sões que moveram esse trabalho; à Raquel Stolf e Felipe
Prando pelas escutas, trocas e encontros; à Sandra Meyer
e Pablo Paniagua pela amizade e as tantas contribuições
durante o processo de criação da Embarcação; à Sandra
Alves, Rosana Cacciatore, Chay Luge, Bianca Tomaselli,
Luana Raiter, Pedro Bennaton, Alice Raiter Bennaton,
Marta Martins, Marcio Fontoura, Leto Wiliam, Silfarlem
Oliveira, Carolina Moraes, Marina Moros, Fernando Schei-
be, Carmen Zaglul, Yazmín Trejos, Luciana Moraes, Marce-
lo Fialho, Marco D Julio, Adriana Maria dos Santos, Teresa
Siewerdt, Lese Pierre, Fábio Tremonte, Gala Berger, Na-
dam Guerra, Ana Beise, Daniela Castro, Grupo de Estudos
em Processos Curatoriais, Bar do Ivan, Erro Grupo, Jorge
Bucksdricker, Jorge Menna Barreto, Joelson Bugila, Vitor
Cesar, Rádio Desterro Cultural, Guilherme Zorato, Caetano
Dias e todxs xs amigxs, artistas e pesquisadorxs que fize-
ram a Embarcação se tornar realidade.

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Resumo

A Embarcação, desenvolvida na linha de pesquisa Proces-


sos Artísticos Contemporâneos, é um espaço físico e edi-
torial que começou a se configurar em 2016 em Florianó-
polis, aqui apresentada como uma plataforma discursiva e
política de compartilhamento e debate. A estrutura edito-
rial dessa dissertação se divide, sem nenhuma hierarquia,
em três partes, cada qual subdividida por sessões polifô-
nicas e processuais. A primeira parte, “Embarcação”, diz
respeito aos aspectos teóricos, políticos, conceituais, crí-
ticos e poéticos da Embarcação, tanto de seu espaço físico
quanto discursivo. A segunda parte, “Rotas”, é composta
por trabalhos desenvolvidos nas páginas desta dissertação
[in site], ou seja, não são trabalhos pré-existentes (registro
das ações). Por último, na parte “Mapas de Navegação”, as
sessões correspondem aos espaços de arte que atravessa-
ram a pesquisa e, sobretudo, serviram de referência para a
criação da Embarcação. Ocorre que os assuntos abordados
(ou embarcados) estão diluídos em todo percurso propos-
to, seja nos relatos, nas conversas, nas abordagens teóri-
cas, nos estudos de caso ou nas imagens e nos registros
das ações desenvolvidas pela/na Embarcação.

Palavras-chave: Plataforma discursiva; prática colaborati-


va; debate público; espaços de arte.

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Abstract

Embarcação, developed in the academic line of research


Contemporary Artistic Processes, is a physical and edito-
rial space that began to be set up in Florianópolis in 2016,
presented here as a discursive and political platform for
sharing and debate.The editorial structure of this disserta-
tion is divided, without any hierarchy, into three parts, each
subdivided by polyphonic and procedural sessions. The
first part, “Embarcação” [Vessel], concerns the theoreti-
cal, political, conceptual, critical and poetic aspects of the
Embarcação, both its physical and discursive space. The
second part, “Rotas” [“Rutes”], is composed of artworks
developed in the pages of this dissertation [in site], that
is, they are not pre-existing artworks (registration of ac-
tions). Finally, in the part “Mapas de Navegação” [“Naviga-
tion Maps”], the sessions correspond to the art spaces that
went through the research and, above all, were references
for the creation of the Embarcação. It happens that the is-
sues addressed (or embarked) are diluted in all proposed
process of Embarcação, be it in reports, conversations,
theoretical approaches, case studies or in the images and
recording of actions developed by/in the Embarcação.

Keywords: Discursive platform; colaborative practice; pu-


blic debate; artist-run spaces.

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aqui é
embarcação
prefácio

Através da grade da janela é possível ver uma chaminé de tijolo aparente,


coberta por uma telha brasilit. Por cima dela tem algumas pedras, que a
impede de voar quando bate o vento sul. É a saída da churrasqueira do bar
do Ivan. Entre 12h e 14h ele serve almoço com churrasco à quinze reais
por pessoa. À noite o bar serve de abrigo para moradores de rua. No verão
sempre aumenta o número de pessoas no bairro, o número de barracas, de
hippies vendendo artesanato, de pequenos comércios e, mais recente, de
food trucks. Vendem de tudo: acarajé, cerveja artesanal, churros, comida
mexicana, hambúrguer vegano, pizza, tapioca, cachorro quente, lanches,
wraps, espetinho, sorvete, caldo de cana. O bar do Ivan também tem samba
aos domingos, é conhecido como “samba da pracinha”, porque fica bem em
frente à “pracinha da lagoa”, um nome carinhoso que perdura por aqui des-
de o tempo dos meus avós. Depois que a pracinha foi “revitalizada” só so-
brou umas poucas árvores e muito concreto, onde os moleques jogam bola.
Aos domingos, além do samba, tem também uma feirinha que vende todo
tipo de coisa, de tapete e potes de barro à mel, queijo e blusas de crochê.
Aqui embaixo trabalha o Marquinhos, um tatuador bem relacio-
nado, conhece todos os surfistas da região. Atrás vive a dona Marleci, uma
senhora de pouca altura, cheinha, que cumprimenta a todos que passam
na rua. Não apenas porque é simpática, mas porque mora aqui desde que
nasceu e viu tudo que era criança virar adulto. A rua transversal, antes to-
talmente residencial, agora tem um hostel do lado do outro. Entre eles, um
restaurante que serve PF também a 15 reais, concorrente do Ivan. Come-se
à vontade, carne, peixe ou frango. O Bar do Betinho do Deca da Lina tem
virado sensação na Lagoa. E não é só o nome que é maravilhoso, a comida
também. Mané, como diz o outro.
A poucos metros em direção à Avenida da Rendeiras fica o ponto
de barco que vai pra uma comunidade de pescadores, a Costa da Lagoa.
Chega-se nela apenas de barco, uma viagem que dura em torno de 40 mi-

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nutos, ou por uma trilha que leva em média duas horas até o centrinho, que
fica no Ponto 16 (cada ponto é um trapiche), o mais visado entre os turistas.
É o ponto da igrejinha, da cachoeira, de algumas lojas que vendem souve-
nirs e cangas, mas é principalmente o ponto que possui a maior variedade
de restaurantes na beira da lagoa. Um deles é o Jajá, que se destaca por-
que o chef, vestido todo de branco e com chapéu de marinheiro, prepara a
anchova do lado de fora, na frente dos clientes. Jajá conversa tanto e tão
rápido, que mal se entende o que diz. E sorri muito.
Daqui dessa sala de quinze metros quadrados dá pra ver tam-
bém o Casarão da Lagoa, uma das primeiras construções do bairro. Já foi
um espaço importante pros moradores, principalmente porque organizava
algumas das festas populares da região, como o boi-de-mamão. Hoje está
em reforma. O casarão fica bem em frente ao Supermercado Chico, ou só
Chico, pra quem é daqui. Não é grande nem barato, mas possui uma clien-
tela fiel, por ser o mais antigo. É o único que possui gerador, também, pra
quando falta luz, o que é muito frequente no verão. A Lagoa tem sua vida
própria, já ouvi falar de pessoas que não saem daqui faz mais de um ano,
resolvem tudo nas redondezas. Tem escolas públicas e privadas, bancos,
posto de saúde, Prontomed, posto de gasolina, o Chico, muitos restauran-
tes e pizzarias, balada, farmácias, escolas de yoga, papelaria, sexy shop,
sacolão, botecos como o do Renato, que fica na pracinha, também, e é o
único que não aceita cartão.
A dona Marleci conhece toda a minha família, ficamos íntimas
desde a primeira conversa. Esses dias até lembrou que meu primo fazia
aniversário. Por todos os cantos eu encontro alguém que me viu crescer,
me chamam de Kamillinha. Quando surgiu a oportunidade de criar, nessa
região, um espaço voltado pra práticas artísticas e curatoriais, não res-
tou dúvidas de que seu nome seria Embarcação. Surgiu de uma conversa
com a Mônica Hoff, com quem compartilho esse espaço, desde as contas
até a concepção e organização das atividades. Os móveis eu construí junto
com outro amigo e artista, o Pablo Paniagua. Fizemos tudo com refugo de
embarcação. Alguns eu fui buscar de bateira junto com meu pai, pescador
nato. Cortamos, parafusamos, colamos e furamos tudo no rancho de pesca
da minha família. Fizemos dois cavaletes, um tampo de mesa, um banco
de dois lugares e outro de um. Sozinho, o Pablo produziu uma luminária de
chão e outra de teto.

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Bar do Betinho do Deca da Lina

Bar do Ivan Embarcação


Bar do Renato Marquinhos
Casarão da Lagoa
Casa da dona Marleci

Mercado do Chico

Cooperbarco

Ponto de pesca (ponte)

Entre uma doação e outra, construímos um espaço de trabalho,


mesmo sem uma noção clara do que ele poderia vir a ser. Foi rápido, foi
urgente. E entendemos que estará continuamente em processo. Às vezes é
difícil explicar o que é a Embarcação. O Ivan já me perguntou três ou quatro
vezes. Primeiro queria saber o que eu faço, depois como ganho dinheiro.
Também perguntou quem paga esse espaço e se não vamos vender arte.
E a cada pergunta, formulo uma resposta diferente. Questiono sempre se
existe uma maneira simples de definir um espaço como esse, e as dúvidas
que surgem das pessoas que vivem aqui no entorno sempre ajudam a re-
fletir sobre minha prática e os lugares de onde falo e escuto, de onde me
movo. Essa dissertação é um esforço de contágio, de aproximar espaços,
processos artísticos, pessoas e discursos. Por isso, também, a Embarca-
ção não é propriamente um espaço físico, ela é antes um espaço concei-
tual, que está tanto aqui nessas páginas sequenciais, quanto aqui, onde
estou sentada agora, rodeada de cartazes, livros, cigarros e água com gás,
quanto lá, em algum lugar que ainda não definimos.

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SUMÁRIO

AQUI É EMBARCAÇÃO [PREFÁCIO]

EMBARCAÇÃO

19 SESSÃO UM BARCO, UMA PESSOA, UM RIO E UM BALDE


35 SESSÃO ESCRITA COMO LUGAR
55 SESSÃO DIÁRIO DE BORDO

ROTAS

67 SESSÃO RECOMEÇAR
75 O AMOR POR PRINCÍPIO E A ORDEM POR BASE; O PROGRESSO POR FIM
85 SESSÃO BIBLIOTECA MESMO: LUGAR DE LEITURA PARA DESOCUPADXS

MAPAS DE NAVEGAÇÃO

109 SESSÃO ESCOLA DA FLORESTA


143 SESSÃO CAPACETE ENTRETENIMENTOS
159 SESSÃO TERRA UNA
185 SESSÃO LA ENE
203 SESSÃO PEDAÇO DE ESPAÇO FLUTUANTE

223 BIBLIOGRAFIA

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Embarcação

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SESSÃO
UM BARCO, UMA PESSOA,
UM RIO E UM BALDE

Esta sessão pretende situar todas as outras que a sucedem. Na


prática, ela serve como uma apresentação, ou uma introdução
composta de dois textos e uma imagem: o pós-roteiro do vídeo
Águas, escrito pelo artista Caetano Dias; o texto/apresentação Um
barco, uma pessoa, um rio e um balde e a fotografia de João Al-
berto Fonseca da Silva, feita no verão de 1955, no alto do morro
da Lagoa da Conceição, que acompanhou todo meu processo de
escrita e construção da Embarcação.

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PÓS-ROTEIRO
09 - EXTERNA. MAR. DIA
Barco em primeiro plano, foco pleno. Náufrago em se-
gundo plano, nada em direção à embarcação.
10 - EXTERNA. BARCO. DIA

ÁGUAS Barco em primeiro plano. Foco pleno. Com água dentro


do convés. O náufrago segura a lateral da embarcação
que parece virar, ele entra no barco.
POR CAETANO DIAS, 2017 11 - EXTERNA. MAR. DIA
Plano fechado. Foco pleno. Com o balde o náufrago co-
lhe a água do mar.
12 - EXTERNA. BARCO. DIA
Plano fechado. Foco no balde. Em atos repetitivos, o
náufrago joga a água dentro do barco.
13 - EXTERNA. BARCO. DIA
Plano fechado. Foco pleno. O convés do barco já com
01 - EXTERNA. MAR. DIA água na altura do tornozelo do náufrago. Ele continua a
Plano aberto. Foco instável. O mar, o barco e o horizon- retirar a água do mar para encher a embarcação.
te são incertos. 14 - EXTERNA. BARCO. DIA
02 - EXTERNA. BARCO. DIA Plano fechado no rosto do Náufrago. Foco pleno. O náu-
Plano fechado. A focagem fica plena quando a proa da frago continua no seu repetitivo labor de fazer água na
embarcação aparece rompendo o ecrã. embarcação. Ao fundo, as nuvens passam rápido, indi-
03 - EXTERNA. BARCO. DIA cando que um outro tempo corre.
Plano fechado. Foco pleno. Uma das forquetas do barco 15 - EXTERNA. MAR. DIA
em primeiríssimo plano mostra o movimento das on- Plano aberto. Foco pleno. Barco enquadrado no centro.
das. Dá a sensação de estar à toa. As ondas balançam calmamente o barco. O náufrago,
04 - EXTERNA. MAR. DIA repetitivamente, põe o mar a dentro. O céu parece ter
Plano aberto. Foco pleno. Náufrago com sinais de quei- pressa, parece correr contra o tempo.
maduras de sol, nada a braçadas e braçadas exausti- 16 - EXTERNA. BARCO. DIA
vas. Plano fechado. Foco pleno. A água continua a subir, no
05 - EXTERNA. MAR. DIA barco há um mar interior. Repetindo sempre a mesma
Plano aberto. Foco instável que dá a sensação de que o ação, o náufrago faz mar em si.
náufrago está perdido em meio à imensidão. 17 - EXTERNA. BARCO. DIA
06 - EXTERNA. BARCO. DIA Plano médio. Foco pleno. O mar do náufrago dentro do
Barco em primeiro plano. Foco pleno. A embarcação barco é grande e seu ato corre contra a nau.
mostra um certo abandono, nela há um balde que ge- 18 - EXTERNA. MAR. DIA
ralmente é usado para tirar a água do barco. Ele conti- Plano aberto. Foco pleno. Barco enquadrado no centro.
nua ao sabor das ondas. As ondas de fora são as mesmas de dentro. A dança re-
07 - EXTERNA. MAR. DIA petitiva do náufrago em fazer água no seu barco engole
Plano aberto. Foco pleno. Náufrago atravessa o campo o oceano. O náufrago, o barco e o mar se fundem, são
visual da câmera, ainda aparenta estar meio perdido. agora o mesmo corpo. O mar e o céu continuam a pas-
08 - EXTERNA. MAR. DIA sar em seus próprios tempos. Não há mais repetição,
Plano aberto. Foco pleno. Náufrago nada com mais só o pleno do eu sendo o mar. Fim. Recomeço. Começo.
afinco.
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um barco, uma pessoa,
um rio e um balde

A dois mil e setecentos quilômetros de Florianópolis, na


Ilha de Maré em Salvador, o artista Caetano Dias concebeu e dirigiu
o vídeo “Águas” (3’, 2010), um trabalho que pode ser considerado
como uma das principais referências desta dissertação, sobretudo
pela potência da imagem e dos acontecimentos ali imbricados. Ao
som de Wilson Sukorski, um homem desaparece no meio de um
rio, submerge. Não porque foi engolido por uma tempestade ou por
qualquer outro tipo de acidente ou catástrofe, mas porque provocou
o próprio naufrágio. É justamente nesse momento de choque, do
dar-se conta da intencionalidade do personagem, que somos arre-
batadas pelo acontecimento. Posicionamo-nos entre a perspectiva
do fim iminente e do próprio fim.
Ora, o que fazemos, quando fazemos arte, ou curadoria,
ou crítica, ou pesquisa, senão submergir? Senão naufragar? Senão
criar fenômenos improváveis? E que mares e rios são esses que nos
impulsionam ao naufrágio? É o naufrágio uma condição sine qua non
1 VANEIGEM, Raoul.
da navegação? O que proponho que se considere é que o naufrágio, A arte de viver para as
novas gerações. São Paulo:
quando intencional, sirva como metáfora da recusa. Não da recu- Veneta (Coleção Baderna),
2016, p. 25. - É preciso
sa de viver, mas da recusa de viver como uma opção política. Para considerar que esse texto
foi escrito originalmente
Raoul Vaneigem, “o ser humano da sobrevivência é também o ser em 1967, e que devido a
todas as lutas por igual-
humano unitário, o ser humano da recusa total”1. dade de gênero que persis-
Esse vídeo é um estímulo importante, ainda que contingen- tem até os dias atuais,
alterei a citação trocando
te, para a presente pesquisa, por ser a metáfora de um processo a palavra “homem” por “ser
humano”.

25
inconcluso e descontínuo, como acredito que deva ser todo processo
artístico e/ou curatorial. Por isso os naufrágios aqui são constantes,
por isso a Embarcação emerge e submerge o tempo todo. Por isso
também a Embarcação está aqui, nesse agrupamento de páginas,
palavras e imagens. E lá também, num lugar que ainda desconheço,
mas que nem por isso não existe ou não possa ser construído.
Por acreditar que “a melhor ordem de um livro deveria ser
a ausência de ordem, de modo que o leitor descubra a sua própria”2,
proponho um formato em que os textos possam ser lidos tanto em
sequência quanto individualmente – fora da ordem ditada pela pa-
ginação. O papel desempenhado pelo vídeo de Caetano Dias não é o
de ilustrar um acontecimento, mas o de prolongá-lo através da cria-
2 VANEIGEM, Raoul. ção de uma situação que extrapola a própria narrativa. Nesse sen-
A arte de viver para as
novas gerações. São Paulo: tido, para compreensão dos espaços de arte como prática artística
Veneta (Coleção Baderna),
e curatorial e, portanto, como lugares que organizam a experiên-
2016, p. 25.
cia coletiva e a cooperação, há uma tentativa constante de mesclar
vozes, de organizar encontros e de provocar aproximações entre a
Embarcação e as pessoas e os espaços que contribuíram para sua
criação, direta ou indiretamente.
O desafio desta dissertação foi justamente criar uma si-
tuação que pudesse envolver essas pessoas, articular esses dis-
tintos esforços e desejos na construção de uma plataforma dis-
cursiva. Assim, esse texto foi organizado em três momentos, cada
qual dividido por sessões: “Embarcação”, “Rotas” e “Mapas de
navegação”. Ocorre que os assuntos abordados (ou embarcados),
e dos quais falarei mais adiante, estão diluídos em todo percurso
proposto, seja nos relatos, nas conversas, nas abordagens teóricas,
nos estudos de caso ou nas imagens e nos registros das ações de-
senvolvidas pela/na Embarcação.

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Significa dizer que a Embarcação é um espaço físico, dis-
cursivo e editorial. É uma plataforma de trabalho, de formação e de
discussão, que começou a se configurar a partir de diálogos ocor-
ridos com a curadora Mônica Hoff, em 2016. Na ocasião, realizáva-
mos juntas um percurso semanal, da nossa casa, ambas localizadas
na mesma rua, até o Centro de Artes da Universidade do Estado
de Santa Catarina, afim de cumprir as disciplinas obrigatórias do
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Entre um percur-
so e outro, criamos escolas imaginárias, organizamos um grupo de
estudos em processos curatoriais, discutimos sobre arte, educação
e curadoria, e iniciamos a construção da Embarcação. Pode-se en-
tão dizer que ela é resultado de uma parceria que concatena tanto
nossas práticas comuns, quanto individuais. O que tudo isso sugere
a Embarcação vai se tornando coextensivo aos nossos interesses
enquanto articuladoras, curadoras, pesquisadoras, artistas e ges-
toras.
Durante a pesquisa, que foi permeada por muita conversa
e pelo desenvolvimento de alguns projetos artísticos e curatoriais,
compreendi que a noção de espaço de arte como prática artística e
curatorial seria uma das questões fundamentais para a minha in-
vestigação, bem como a reflexão sobre a criação de linguagens a
partir de outras produções de modos de organização.
O objetivo da pesquisa passou a ser, então, a construção,
física e conceitual, de um espaço atento à cena local e receptivo a
procedimentos e a estratégias artísticas e curatoriais, afim de in-
tensificar redes de colaboração e aprendizagem através de uma
plataforma política de compartilhamento e debate.
Se concordarmos que os espaços e as plataformas de arte
são desviantes, que podem surgir a partir de um gesto, de um mo-
vimento que tem por finalidade o encontro com o outro, se isso for
verdade, será, então, possível propor outras perspectivas, não mais

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importantes, de olhar para esses lugares desde o ponto de vista da
arte, e não apenas da gestão? O que sugiro é que possamos naufra-
gar. E, para isso, alguns baldes estarão à disposição do leitor.

Da organização

A estrutura editorial desta dissertação se divide, sem ne-


nhuma hierarquia, em três partes, cada qual subdividida por ses-
sões polifônicas e processuais. Embora a etimologia da palavra
sessão venha de sessio, que em latim significa “sentar-se”, o que
proponho é, na realidade, que possamos navegar, imergir num “es-
paço outro”, numa escritura em deslocamento.
Esta primeira parte, nomeada EMBARCAÇÃO diz respeito
aos aspectos teóricos, políticos, conceituais, críticos e poéticos da
Embarcação, tanto de seu espaço físico quanto conceitual. A primei-
ra sessão Um barco, uma pessoa, um rio e um balde é composta de
dois textos, este que você está lendo agora e o pós-roteiro do vídeo
“Águas”, escrito pelo artista Caetano Dias. Em conversa com o artis-
ta, falei sobre a potência e a importância desse vídeo para a minha
pesquisa, e a vontade de trazê-lo para dentro dela. O que pode ser
lido é uma tentativa de imaginação, de tradução de um audiovisual
para texto, a fim de nos aproximar dessa obra. Mesmo que ela esca-
pe pelos dedos, pelos olhos ou ouvidos, algo há de se prender.
O que segue é a sessão Escrita como lugar, composta por
três textos: “O que é a Embarcação?”, “Espaço de arte como prática
artística e curatorial” e “O que são, o que não são, o que podem
ser”. Neste último, sete situações são descritas, em sete espaços
diferentes. Por não serem nominados, eles podem ser apenas sete,
mas pelo contexto podem se tornar cem, ou mil. São modos de or-
ganizações presentes em muitos dos espaços de arte estudados e
que refletem, de alguma maneira, seus modus operandi. Esses mi-

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cro-acontecimentos sucedem o texto, “Espaço de arte como prática
artística e curatorial”. Nesse momento apresento algumas refle-
xões teóricas e críticas sobre espaços de arte que considero refe-
rência para esta pesquisa. A última sessão dessa parte é o “Diário
de Bordo”, um espaço documental que contém o registro de todas
as ações e proposições que aconteceram entre os meses de março
e maio de 2017 na Embarcação.
A segunda parte, ROTAS, é composta por trabalhos desen-
volvidos nas páginas desta dissertação [in site], ou seja, não são tra-
balhos pré-existentes (registro das ações). As três sessões dessa
parte foram realizadas em parceria com os artistas e pesquisadores
que participaram da construção e programação da Embarcação, e
buscam estabelecer um desdobramento do espaço físico neste es-
paço impresso. Mais do que um núcleo desta dissertação, é um es-
paço que tenta propagar o espírito da Embarcação condensando di-
ferentes momentos, pessoas, encontros, ideias e formatos. Entendo
um espaço editorial como um espaço de trabalho e de acontecimen-
to. Para o crítico de arte Justo Pastor Mellado, “depois da superação
da síndrome modernista da sala-de-exposição, o que devemos fazer
é promover os espaços editoriais como formato temporal expansivo
da inscrição de iniciativas locais da arte contemporânea”3.
Por último, na parte MAPAS DE NAVEGAÇÃO, as sessões
3 MELLADO, Justo Pas-
correspondem aos espaços de arte que atravessaram a pesquisa tor. Escenas locales: fic-
ción, historia y politica
e, sobretudo, serviram de referência para a criação da Embarca- en la gestión de arte con-
temporâneo – 1a ed. Santa
ção. Para cada espaço, foi escolhida uma forma de abordagem e de María de Punilla: Curato-
diálogo, que varia de textos críticos, traduções, entrevistas, trans- ría Forense, 2015. p. 92

crições de conversas e relatos de experiência. O objetivo aqui foi


escutar, foi criar um espaço dialógico que pudesse ir ao encontro
com as práticas já existentes em cada um desses lugares.
Assim, todos os espaços escolhidos permanecem em ati-

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vidade e possuem formatos distintos, tanto com relação às suas
estruturas físicas/arquitetônicas, quando às suas concepções/orga-
nizações. São eles: Escola da Floresta, Capacete Entretenimentos,
Terra UNA e La Ene. Mas os mapas de navegação também dizem
respeito a artistas e suas respectivas embarcações. Por isso, tam-
bém foi proposta a sessão Pedaço de espaço flutuante, um lugar
que reúne pesquisas de artistas sobre navegação, barco, naufrágio
e travessia. Essa sessão foi inspirada num fragmento do texto “O
4 “E se considerar-
mos que o barco, o grande corpo utópico, as heterotopias”4, do filósofo Michel Foucault, que
barco do século XIX, é um
pedaço de espaço flutuan- propõe novas bases para uma nova ciência, a heterotopologia. Fou-
te, lugar sem lugar, com
vida própria, fechado cault entende a embarcação como um “pedaço de espaço flutuante,
em si, livre em certo
sentido, mas fatalmen-
lugar sem lugar, com vida própria, fechado em si, livre em certo
te ligado ao infinito do sentido, mas fatalmente ligado ao infinito do mar”.
mar e que, de porto em
porto, de zona em zona,
de costa a costa, vai até
as colônias procurar o
que de mais precioso elas
escondem naqueles jardins
orientais que evocávamos
há pouco, compreenderemos
porque o barco foi, para
nossa civilização – pelo
menos desde o século XVI
– ao mesmo tempo, o maior
instrumento econômico e
nossa maior reserva de
imaginação. O navio é a
heterotopia por excelên-
cia. Civilizações sem
barcos são como crianças
cujos pais não tivessem
uma grande cama na qual
pudessem brincar; seus
sonhos então se desvane-
cem, a espionagem substi-
tui a aventura, e a tru-
culência dos policiais,
a beleza ensolarada dos
corsários”. FOUCAULT, Mi-
chel. O corpo utópico; as
heterotopias; pósfácio de
Daniel Defert. São Paulo:
n-1 Edições, 2013. p. 30

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33
34
SESSÃO
ESCRITA COMO LUGAR

Esta sessão é um lugar de reflexão sobre a construção da Embar-


cação e, por consequência, sobre as questões teóricas e concei-
tuais que envolveram esse processo. Inaugurada em 2016, a Em-
barcação é um espaço voltado à investigação e ao debate sobre
espaços de arte como prática artística e curatorial. É, também, um
projeto que busca discutir e articular novas formas de trabalho,
pesquisa, colaboração e produção em/a partir/com/sobre arte. O
que segue, então, são três textos: O que é a Embarcação?; Espaço
de arte como prática artística e curatorial; e O que são, o que não
são e o que podem ser. Todos os textos desta sessão procuram si-
tuar o contexto da criação da Embarcação, partindo do pressupos-
to de que o gesto fundador de um espaço de arte é, por definição,
uma atitude política. E fundar um organismo político significa criar
um lugar de alteridade, fortalecer e ampliar um sistema local e
global, poder afetar e ser afetado.

35
36
o que é a
embarcação?

A Embarcação é um espaço nômade e temporário, voltado à


investigação e ao debate sobre espaços de arte criados por artistas.
É, também, um projeto que busca discutir e articular novas formas
de trabalho, pesquisa, colaboração e produção em/a partir/com/so-
bre arte. Organiza-se por meio de programas realizados em terra
firme e em alto mar, que visam colocar em diálogo o debate artístico
contemporâneo com as especificidades locais e contextuais dos es-
paços em que aporta (tem-se em vista tipologias como: instituições
pública ou privadas, espaços autônomos, praças, praias, parques,
acampamentos, comunidades, museus, institutos, centros cultu-
rais, bibliotecas, escolas etc.).
Desde outubro de 2016, a Embarcação está aportada na Ilha
de Santa Catarina, no bairro Lagoa da Conceição. Como um espaço
físico-flutuante, ela se dedica ao intercâmbio artístico e de ideias,
aos estudos curatoriais, às conversas informais regadas a café e
cerveja, à curiosidades compartilháveis e à colaborações locais, na-
cionais e internacionais. Pode-se dizer que ela é resultado de uma
parceria que concatena tanto práticas comuns, quanto individuais.
Acreditamos que um espaço de arte pode se conformar
enquanto esfera pública, no sentido de que podemos tanto criar lu-
gares onde indivíduos se engajam para realizar um debate crítico,
quanto provocar um debate crítico para criação de lugares. Por isso
criamos a Embarcação como um “pedaço de espaço flutuante” e
desviante, que pode surgir a partir de um gesto com finalidade de
criar relações de sociabilidade e diferença entre a sociedade e o in-
divíduo, o conjunto e a unidade. E é por conta dessa característica
que propomos outras perspectivas, nem mais nem menos impor-
tantes, de olhar para esses lugares a partir do ponto de vista da
prática artística e curatorial, e não apenas da gestão.
37
Nos interessa, também, a reflexão sobre a criação de lin-
guagens através de outras formas de organização da arte e da prá-
tica artística e curatorial, bem como da relação dos artistas, cura-
dores, historiadores, pesquisadores, educadores, críticos etc., com
seus espaços de circulação. Esse interesse manifesta-se a partir da
nossa prática curatorial, que compreende a invenção de lugares de
1 MAIA, Ana Maria; CAR- encontro e debate – encontrar para debater / debater para encon-
VALHO, Ananda (org). Sobre
Artistas como Intelec- trar -, e é por isso que discutir “sobre a concepção de ferramentas
tuais Públicos: respostas e políticas de representação; o papel ou função do artista/autor na
a Simon Sheikh. São paulo
: Selo Prólogo e Casa To- construção de outros espaços e subjetividades, ou seja, redes alter-
mada, 2012. p. 6
nativas e contra-públicos”1 é parte fundamental das estratégias da
Embarcação.
Atribuir a estabilidade de um espaço de arte à sua per-
manência no tempo e no espaço significa desconsiderar o próprio
conceito termodinâmico de “Entropia”, tão necessários pra com-
preendermos o mundo em que vivemos. Na publicação organizada
pelo artista Francis Alys, “Numa dada situação”, há uma definição
de entropia, nessa circunstância associada à sua incessante pes-
quisa sobre tornados, que diz o seguinte: “o grau de desordem num
sistema fechado e sua tendência para a desordem crescente são ir-
2 ALYS, Francis. Numa reversíveis. A ação de uma praga de tomates pode transformar uma
Dada Situação / In a Gi-
ven Situation. São Paulo: horta extremamente ordenada em um espaço de desordem. Mas,
Editora Cosac Naify, 2010.
p. 42
quando a horta tem uma grande variedade de plantas, a estabilida-
de é maior. Menos ordem implica maior estabilidade; mais ordem
implica maior instabilidade”2.
Desse ponto de vista, do ponto de vista da entropia, quanto
mais diverso for o sistema da arte, quanto mais espaços e formatos
possíveis pudermos inventar, maior será sua estabilidade. Talvez
seja esse o maior desafio e, por consequência, a mais importante
contribuição dos espaços “alternativos” para construção e a trans-
formação desse campo artístico, político, econômico, social. E então
podemos considerar que o “alternativo” não é aquilo que está fora
do sistema, mas é precisamente por estar dentro que ele é capaz de
operar por oposição, por dissenso.

38
Das estratégias que consideramos mais importantes para
a constituição da Embarcação, encontram-se a cooperatividade, o
engajamento com os contextos dos espaços em que aporta e a cria-
ção de metodologias que visam compreender, analisar e expandir
as relações entre arte, curadoria e autogestão no contexto artístico
contemporâneo.
A Embarcação, assim como a Z.A.T.3, possui uma locali- 3 Z.A.T. é a abreviação
em protuguês (T.A.Z. em
zação temporária mas real no tempo, e uma localização temporá- inglês) de “Zona Autôno-
ma Temporária”, definida
ria mas real no espaço. Toda sua programação é desenvolvida em por Peter Lamborn Wilson,
parceria com profissionais atuantes no campo das artes, seja nas conhecido pelo pseudônimo
de Hakim Bey,  um histo-
visuais, música, teatro, cinema, dança etc., e tem como princípio riador, escritor, poeta e
teórico libertário, cujos
promover debates críticos e políticos a partir de dispositivos artísti- escritos causaram gran-
cos. Em “Biblioteca Mesmo: Lugar de leitura para desocupadxs”4, o de impacto no movimento
anarquista das últimas
artista Silfarlen Oliveira propôs que encapássemos toda a minha bi- décadas do século XX e
XXI. Seu livro T.A.Z.:
blioteca, que contém cerca de mil volumes de livros, com o “livroca- Zona Autônoma Temporária
pa”, afim de disponibilizá-la para leitura e conversa na Embarcação. foi escrito em 1985 e pu-
blicado em 2011 no Brasil
O “livrocapa” passou a ser um dispositivo de encontro que desenca- pela editora Baderna, no
qual ele fala da criação e
deou outros projetos, como o “Cinema Embarcado: A mulher com da propagação de espaços
a câmera” e “Conversas Entremarés”, ambos com quatro edições. autônomos temporários como
tática de resistência e
Perguntar-nos sobre o que significa criar um espaço de esvaziamento do poder.
arte, sobre que sentidos se produz num espaço de arte, para que
eles servem ou como podemos problematizá-los, amplificá-los e
4 Na “sessão diário de
refazê-los desde o campo da arte e da educação foi essencial para bordo” desta dissertação
construirmos a Embarcação. É importante dizer que a Embarcação pode-se encontrar informa-
ções e imagens de cada um
se funda em questões observadas tanto nos contextos locais quanto desses projetos citados.

globais da arte e da educação. No que diz respeito ao contexto mais


global, verifica-se, desde os anos iniciais da década de 1990, uma
emergência de práticas artísticas voltadas à criação de espaços de
arte, plataformas e escolas experimentais. Ao criar a Embarcação,
objetivamos amplificar as relações possíveis entre as metodologias
artísticas/curatoriais e as especificidades do contexto local, e en-
tender como elas juntas podem se constituir em processos expe-
rimentais, tanto para o contexto da arte como da educação, favore-
cendo um deslocamento de narrativas, costumes e preconcepções.

39
espaço de arte como
prática artística
e curatorial 1 CAMNITZER, Luis. O
artista, o cientista e o
mágico, 2011. Disponível
em: http://www.goethe.de/
wis/bib/prj/hmb/the/156/
pt8622845.htm. Acesso em:
09 de jun. 2017.
Para o artista e crítico Luis Camnitzer, “a arte é um cam-
po do conhecimento onde se colocam e resolvem problemas, é o
lugar onde se pode especular sobre temas e relações que não são
possíveis noutras áreas do conhecimento”1. E é aí, sem dúvida, que
encontramos o que de mais essencial existe nos espaços de arte
dedicados ao intercâmbio artístico e de ideias. Eles são a recusa
de um formato institucional normativo e ideológico, estabelecido e
organizado no modernismo, para a apresentação da arte.
Entretanto, considerar que um espaço dito “alternativo” é a
recusa de um formato institucional estabelecido supõe, ou pressu-
põe, que há um nível de diferenciação entre eles. E talvez esse nível
de diferenciação não esteja no formato, no que diz respeito à escala,
à precariedade, ao “faça você mesmo”, ou à incidência desses es-
paços na comunidade, mas no fetiche que se agrega a eles. Para a
artista Gala Berger, por exemplo, responsável pela criação do Nue-
vo Museo Energía de Arte Contemporáneo (La Ene) de Buenos Aires,
inaugurado em 2010, por ela e a historiadora Marina Reyes Franco,
não há diferença entre um espaço dito “alternativo”, “independente”
e “institucional”, pois as considerações sobre o “alternativo” de um
espaço foram desmontados com a crítica institucional. Para Gala
Berger, há uma impossibilidade de afirmar a diferença como uma
oposição radical ao anti-institucional, justamente porque a diferen-
2 A entrevista
ça faz parte do sistema. O fetiche, nesse caso, para ela, não é outra completa com Gala Berger
coisa senão a construção de poder, de modo que “o alternativo é só pode ser lida na “sessão
La Ene”, localizada na
uma versão mais além do oficial”2. parte “Mapas de Navega-
ção” desta dissertação.

41
No entanto, gostaria de propor que olhássemos para alguns
espaços de arte não como instituições que ainda têm dificuldade em
lidar com a experimentalidade das práticas artísticas, mas como
espaços capazes de inventar estruturas de linguagem, por possuí-
rem um sistema de abertura e fechamento que não apenas organiza
a experiência coletiva, num constante mesclar de vozes, mas é a
própria experiência coletiva, advinda de uma prática artística e/ou
curatorial. Como exemplo de espaços em atividade, podemos con-
siderar a Escola da Floresta (São Paulo), o La Ene (Buenos Aires), a
Escuela de Garaje (Colômbia), a Casa Selvática (Curitiba), o Saracura
(Rio de Janeiro), o JACA (Minas Gerais), o Solar do Abacaxis (Rio de
Janeiro), o Jardim Miriam Arte Clube - JAMAC (São Paulo), Vila Ito-
roró (São Paulo), o Chão SLZ (São Luís) entre tantos outros.
Por uma característica de sua própria natureza - uma na-
tureza precária, poderíamos dizer-, esses espaços “alternativos”
fazem uso de qualquer meio disponível para concretizarem-se. Po-
dem acontecer numa garagem, numa Kombi, numa praça, numa
bicicleta, num barco, numa cozinha, numa árvore, num espaço
abandonado, numa ocupação, numa calçada e até mesmo dentro
de instituições oficiais – mas, acima de tudo, são espaços que criam
coletivamente suas próprias ferramentas e metodologias de traba-
lho. Nesse sentido, eles não são apenas espaços abertos à experi-
mentação, o experimental está no seu próprio formato, na constitui-
ção de rotas de fuga.
Em entrevista concedida ao crítico de arte Luiz Camillo
Osório, Tunga comentou que não possuía o sonho que queria, assim
como não fazia o poema que queria. Mas que precisava, ainda as-
sim, estar à disposição do seu sonho e poema, porque ao contrário
estaríamos nos instalando nos mecanismos de recalque3. E comple-
mentou dizendo que “é preciso que a poética esteja à disposição de
uma política, num sentido muito mais amplo do que a prática polí-
tica institucional. É uma política que passa pela política do sujeito,
na busca pela liberdade, na procura dessa liberdade, e que ela seja,
de algum modo, um modelo para se procurar a liberdade em outro
território”.
Certamente, os espaços de arte criados por artistas pas-
sam pela política do sujeito e por essa busca pela liberdade. Por

42
3 “(...) acho que a resposta viria mais da obra do que de
um depoimento meu. Acho que a obra carrega em si a indicação de que
a partir da radicalidade de uma experiência, é que se constrói uma
poética. Isso vai encontrar uma certa tradição na arte brasileira, ao
colocar o artista como propositor de experiências. Mas não se trata
de resgatar para o artista a inocência de uma certa idéia de criati-
vidade, que terá sido provavelmente uma idéia dos anos 1970 para dis-
solver a radicalidade da poética enquanto política. Quer dizer, essa
idéia de criatividade seria mais ou menos a de que todos podem fazer
alguma coisa. Sim, todos devem e podem fazer alguma coisa, mas existe
um certo rigor neste fazer, ou seja, esse fazer é uma construção, não
é uma coisa espontânea. Evidentemente, essa construção é permeada por
uma experiência radical. Seria a possibilidade de você descobrir um
sentido novo numa experiência, seja ela qual for. Isso seria toma-
do então, de algum modo, como sendo a herança da coisa moderna, da
dissolução das questões das técnicas específicas, ou seja do artesa-
nato ligado à arte. A arte não seria mais artesania, mas construção.
Essa construção pode ser mediada por qualquer forma técnica. Lógico
que não se trata de abrir mão da técnica, mas se trata de abrir mão
do artista como especialista de um único fazer e passando a ser um
especialista numa série de proposições que vão construir um universo
poético. Quanto a essa conjunção de arte e vida, trata-se da expan-
são das linguagens, da possibilidade das linguagens, e de uma demons-
tração de que a cada momento você é capaz de viver uma experiência,
transformá-la, ou melhor, sair da banalidade dessa experiência. Desde
tomar um copo d`água a fazer qualquer outro gesto, alimentar-se, fa-
zer comida, até realizar aquilo que chamam convencionalmente de uma
obra de arte escultórica ou pictórica. É preciso que haja esta inten-
cionalidade, essa radicalidade, ou seja, essa concisão da linguagem
e essa vontade de nela descobrir, na linguagem, um outro sentido. A
frase clara e clássica sobre isso é: “a verdadeira vida está ausen-
te”. Então eu costumo dizer, lembrando Michaux, eu não tenho o so-
nho que quero, assim como não faço o poema que quero. Mas é preciso,
ainda assim, estar à disposição do seu sonho e poema, ao contrário
estaremos nos instalando nos mecanismos de recalque. Recalques estes
que podem ser os que a sociedade hoje estabelece para inviabilizar
uma vida mais densa e mais profunda, ou os recalques das chamadas es-
truturas do inconsciente freudiano, que Freud tão bem nos mostra como
atuam. Quer dizer, expandindo esta ideia, é preciso que a poética
esteja à disposição de uma política, num sentido muito mais amplo do
que a prática política institucional. É uma política que passa pela
política do sujeito, na busca pela liberdade, na procura desta liber-
dade, e que ela seja, de algum modo, um modelo para se procurar a li-
berdade em outro território. E aí sim com inscrição no campo social,
etc. etc.”

MOURÃO, Gerardo Mello (2001) “Teresa”. In: Assalto. Catálogo da expo-


sição. Brasília: Centro Cultural do Banco do Brasil.  

43
uma tentativa de abandonar os termos advindos e intensificados
pelo neoliberalismo e propor outras formas de vida, por construir
uma poética que esteja à disposição de uma política. Esses espa-
ços tendem a refutar as noções de individualismo, competitivida-
de, lucro, gentrificação, privatização, limpeza e homogeneização,
para mencionar apenas alguns termos tão caros ao século XXI, pois,
para criar uma instituição flexível, capaz de uma radicalização da
experiência, na arte e na vida, é preciso elaborar estratégias de co-
laboração, de cooperação, de afirmação, de escuta. Estratégias de
sobrevivência e, portanto, de resistência.
No texto “Aos nossos amigos”, o Comitê Invisível coloca que
sair do paradigma do governo é partir politicamente da hipótese in-
4 INVISÍVEL, Co- versa de que o poder cria o vazio e o vazio invoca o poder, uma vez
mitê. Aos nossos amigos:
crise e insurreição. São que “não existe vazio, tudo é habitado, nós somos, cada um de nós,
Paulo: n-1 edições, 2016,
p. 94.
o local de passagem e de articulação de uma quantidade de afetos,
de linhagens, de histórias, de significações, de fluxos materiais que
nos excedem. O mundo não nos rodeia, ele nos atravessa. O que nós
habitamos nos habita. O que nos cerca nos constitui. Nós não nos
5 “A arte como pro- pertencemos. Nós estamos agora e sempre disseminados por tudo
dução de modos de orga-
nização” foi título de aquilo a que nos ligamos”4.
uma palestra de Marcelo
Expósito no Musac – Museu
E se é a arte o que nos cerca, é também ela que nos cons-
de Arte Contemporânea de titui. Esse tipo de relação implica, fatalmente, na compreensão da
Castilla y León, em 2014,
sobre ferramentas que au- “arte como produção de modos de organização”5 no interior de um
xiliam na construção de um campo social. Não, portanto, uma questão de dentro e fora, diz a
discurso contra-hegemôni-
co. artista Andrea Fraser, “ou de número e escala dos vários sites orga-
nizados para a produção, apresentação e distribuição da arte. Não
6 FRASER, Andrea.
(2008, dezembro). Da crí-
é uma questão de ser contra a instituição: Nós somos a instituição.
tica às instituições a uma É uma questão de que tipo de instituição somos, que tipo de valo-
instituição da crítica.
Revista Concinnitas, ano res institucionalizamos, que formas de práticas remuneramos, e a
9, vol 2. nº13. Rio de Ja- que tipos de recompensas aspiramos”6. Essas questões implicam
neiro. p. 187.
o COMO fazer ou o “COMO não”7, mas jamais o COMO se. Não mais
a discussão entre ser ou não ser instituição, entre ser ou não ser
uma resistência, mas como ser instituição, como ser resistência,
como criar espaços que produzem as condições para a elaboração e
a veiculação de um trabalho capaz de estabelecer outras formas de
pensar - comprometidas com o desenvolvimento de um sistema de

44
7 Na entrevista “Uma biopolítica menor”, Giorgio Agamben fala subjeti-
vidade e dessubjetividade, entendo a identidade como um risco, como um erro
do sujeito:

“O senhor apresenta a identidade como um risco, um erro do sujeito. Entre-


tanto, não haveria uma profundidade material das identidades que se dá na
medida em que o adversário nos confia a elas, seja pela lei (como as leis so-
bre imigração) ou pelo insulto (como as injúrias homofóbicas), que as torna
como que objetivas? Em outros termos, qual margem de dessubjetivação nossas
condições sociais nos deixam?
Neste momento, trabalho em cima das cartas de Paulo, e lá ele coloca o pro-
blema: “O que é a vida messiânica? O que faremos agora que estamos no tempo
messiânico? O que faremos em relação ao Estado?” Há aí esse duplo movimen-
to, que sempre foi um problema e que me parece muito interessante. Paulo
diz: “Permaneça na condição social, jurídica ou identitária, na qual tu te
encontras. Tu és escravo? Permaneça escravo. Tu és médico? Permaneça médico.
Tu és mulher, tu és casado? Permaneça na vocação para a qual tu foste chama-
do”. Porém, ao mesmo tempo, diz: “Tu és escravo? Não te preocupes com isso,
antes, faça uso dessa condição, aproveite-a”. Isto é, não se trata de uma
mudança de estatuto jurídico ou de mudança de vida, mas que se faça uso des-
ta. Em seguida, ele especifica o que quer dizer com esta bela imagem: “como
se não” ou “como não”. Isto é: “Choras? Como se não chorasse. Tu te alegras?
Como se tu não te alegrasses. És casado? Como não casado. Compraste algo?
Como não comprado” etc. Há esse tema do “como não”. Não é “como se”, mas
“como não”. Literalmente, consiste em: “Chorando como não chorando; casa-
do como não casado; escravo como não escravo”. É muito interessante, porque
seria possível dizer que ele chama de usos condutas de vida que, ao mesmo
tempo, não colidem frontalmente com o poder – permaneça em tua condição ju-
rídica, em tua vocação social -, mas as transforma completamente nessa forma
do “como não”. Parece-me que a noção de uso, nesse sentido, é muito interes-
sante: é uma prática na qual não podemos designar o sujeito. Tu permaneces
escravo mas, uma vez que faço uso dessa condição, no modo de como não, tu
não és mais escravo.”

AGAMBEN, Giorgio. Uma biopolítica menor. PANDEMIA. São Paulo: n-1 edições,
2016, p. 10.

45
conhecimentos e experiências capazes de questionar as limitações
sociais e psicológicas impostas pelas ideias políticas e econômicas
capitalistas - e, sobretudo, de questionar a nós próprios, “por que a
instituição está dentro de nós, e não podemos estar fora de nós mes-
mos”.
Construir rotas de fuga significa, portanto, criar espaços
afirmativos. Sim, espaços “alternativos”, “independentes”, “autoges-
tionado”, “autônomos” são instituições de arte. Não são espaços que
aparentam sê-la: um espaço alternativo não é como se fosse uma
instituição, ele é uma instituição que reivindica a prática do “como
não”. Na visão do filósofo Giorgio Agamben, essa é uma prática na
qual não podemos designar o sujeito. A instituição “como não” insti-
tuição não é uma prática que visa o anti-institucional, mas que faz uso
dessa condição a fim de expandir sua própria moldura e “trazer mais
do mundo para dentro desse enquadramento”8.
Enquanto Fraser afirma que a instituição está dentro de
8 nós, e não podemos estar fora de nós mesmos, com Agamben po-
FRASER, Andrea. demos alcançar um ponto de vista complementar, no sentido de que
p. 185.
nós somos a instituição mas, uma vez que fazemos uso da condição
“como não”, nós deixamos de sê-la. Quando um espaço de arte pro-
põe a invenção de outros formatos possíveis, artísticos e, portanto,
institucionais, podemos entender que ele permanece na mesma con-
dição de vida, mas que a transforma completamente nessa forma do
“como não”. Ora, essa é uma tática de desaparecimento.
Para Hakim Bey, “o desaparecimento parece ser uma opção
bastante lógica para o nosso tempo, de forma alguma um desastre
ou uma declaração de morte do projeto radical”9. O que declaramos,
portanto, não é a guerra às instituições de arte - o que significaria
dizer guerra a nós mesmxs -, mas considerar que cada gesto nega-
tivo “também sugere uma tática ‘positiva’ para substituir, em vez de
simplesmente refutar, a instituição desprezada”. Se, para Hakim Bey,
9 BEY, Hakim. Taz:
o gesto negativo contra o ensino é o “analfabetismo voluntário”, po-
Zona Autônoma Temporária. demos, por analogia, argumentar que o gesto negativo contra a insti-
São Paulo: Conrad Editora
do Brasil, 2011. p. 64. tuição é sua afirmação “como não” instituição.

46
Ainda que um espaço seja relutante à produção da arte
como mercadoria, ao aprisionamento do gesto radical e ao ades-
tramento dos corpos sociais, ele possui um corpo institucional. Por
isso, a tática do desaparecimento só faz sentido com a simples ação
de sempre retornar. De emergir e submergir. Naufragar. A institui-
ção precisa existir para além de sua definição, precisa fundar tá-
ticas “positivas” e um constante processo de autocrítica, assumir
os riscos de se tornar “um aparato de reificação cultural que tudo
engloba” para lutar contra essa alienação. De fato, o “alternativo”
há muito foi cooptado pelo mercado e muitos espaços antes margi-
nalizados, precários e independentes passaram a contribuir para a
gentrificação de bairros inteiros, por exemplo.
O fato é que qualquer esforço de disciplinar ou definir es-
ses espaços de maneira hegemônica reprime sua vitalidade e, por-
tanto, reprime também a criação de dispositivos orientados para
produção de subjetividade. Por isso a importância desses processos
de afirmação. Talvez a instituição que gostaríamos de construir es-
teja além de sua definição, mas, assim como Tunga, embora não
tenhamos o sonho que queremos, precisamos, do mesmo modo,
estar à sua disposição - navegar. Do contrário, estaríamos inviabili-
zando nossa própria vida, nosso próprio corpo social. Inviabilizando,
inclusive, a construção de esferas públicas, afetivas e políticas, tão
necessárias e fundamentais na nossa sociedade. Estar à disposição
é, para mim, um exercício de escuta e alteridade.
Artistas como Fabio Tremonte, com a criação da Escola
da Floresta10, Parágrafo Único e Propriedade de Uso Comum, para
citar alguns trabalhos, oferecem uma forma de pensar, ao propor
a criação de espaços de arte como prática artística. E talvez essa
colocação seja importante para considerarmos que uma prática ar- 10 Mais informações
tística não necessariamente está vinculada a um fazer manual, mas sobre o trabalho de Fabio
Tremonte podem ser encon-
à construção de um universo poético, à expansão das linguagens. tradas na “sessão escola
Assim como a prática curatorial não está vinculada apenas à orga- da floresta” localizada na
parte “Mapas de Navegação”
nização de exposições, mas à expansão de seus métodos de orga- desta dissertação.
nização, à pesquisa, à conexões entre trabalhos de arte, artistas,
instituições, contextos sociais e culturais, discursivos e políticos, à

47
criação de espaços, ao papel multidimensional que inclui uma va-
riedade de atividades que ora se somam ora atuam sozinhas, tais
como: crítica, edição, educação, financiamento, programas públi-
cos etc. Nesse contexto, é importante considerar o que o artista e
ativista Marcelo Expósito propõe na conversa “A arte como invenção
e como produção de modos de organização”, realizada no Museu
de Arte Contemporânea de Castilla y León – Musac, em 2014. Para
11 EXPÓSITO, Marce- Expósito, a prática artística já não se limita à produção de objetos,
lo. A arte como produção
de modos de organização.
mas em produzir tangíveis e intangíveis: “um tangível é um dispo-
In: FRANKOWICZ, Marco sitivo para poder cooperar, para poder produzir conhecimento coo-
(org). Sí, tiene en por-
tugués!. Trad. Milla Jung.
perativamente. E estamos produzindo um intangível, que é o próprio
Curitiba, 2015. p. 82. fato de cooperar produzindo conhecimento, o conhecimento que se
produz cooperativamente”11.
12
EXPÓSITO, Marcelo. p. 82. O que temos aqui é um grau de desordem que implica a
própria concepção do que é arte, do que é um processo artístico/
curatorial/editorial e, sobretudo, do que é um artista/curador hoje
e quais seus espaços de atuação. O que Expósito se pergunta é:
“como pode alguém apresentar-se como artista quando em reali-
dade, dentro de sua prática, coloca em primeiro plano tarefas como
a docência, o ativismo social, a tradução, a edição de materiais?
[...] Se pensarmos justamente a prática da arte como a invenção
de modos de organização, de modos de organizar a produção e a
cooperação social... Aí temos uma chave”.12 Ao longo da conversa,
no entanto, fica claro o que o artista entende por cooperação social,
ou seja, que é o poder de se fazer algo que possa ser reapropriável
e transformável por outros.
De acordo com Expósito, “se um quadro que eu pintei vale
mais que um quadro que você pintou é porque só eu posso fazer.
Mas qual o valor de uma produção visual quando estamos falando
de ativismo artístico ou quando estamos falando de arte como pro-
dutora de modos de organização? Seu valor justamente é o de poder
ser reapropriável e transformável por outros. Se eu produzo algo
que só eu posso colocar em prática, então não tem nenhum valor
para os demais”. O que interessa aos espaços de arte é justamente
a possibilidade de ser reapropriável e transformável por outrxs, é a
criação de lugares de dissenso, bem como de mecanismos de tro-
cas entre esses corpos sociais.

48
Os espaços criados por artistas podem adquirir infindáveis
formatos e temporalidades. São, em alguma medida, respostas crí-
ticas à escassez de políticas públicas, à academicização da forma-
ção artística e à ausência de lugares de debate. Por isso o gesto
fundador de um espaço de arte é, por definição, uma atitude políti- 13 BLANCO, Pa-
loma. Mirando alre-
ca. E fundar um organismo político significa fortalecer e ampliar um dedor: dónde estamos
y dónde podríamos
sistema local e global, poder afetar e ser afetado, “ajudar a desper- estar? In: BLANCO,
tar na paisagem social seu sentido latente de lugar”13. Se conside- Paloma; CARRILLO,
Jesús; CLARAMONTE,
rarmos, então, que a invenção e produção de modos de organização Jordi; EXPÓSITO, Mar-
é uma chave para pensar a prática artística nos dias de hoje, então é celo. (Orgs.). Modos
de Hacer: Arte crí-
preciso estar atento ao contexto dessas práticas, suas relações com tico, esfera públi-
o local e, principalmente, com as relações afetivas que aí se estabe- ca y acción directa.
Salamanca: Ediciones
lecem. E talvez seja apenas a partir dessas redes de afeto que sere- Universidad de Sala-
mos capazes de estabelecer outros modos de produção e convívio. manca, 2001. p. 7.

Em uma conversa com o artista Jorge Menna Barreto em


2015, ele lembrou de uma fala da artista Louise Bourgeois sobre
gostar de esculpir em pedras pelo que a pedra não dá, pelo que ela
resiste, pelo que a pedra insiste. E a pedra, na sua insistência, aca-
bava por alterar o gesto da artista. Uma luta na qual Bourgeois já
sabia quem sairia vencedora. Isso tudo me faz acreditar que nossa
insistência em criar espaços de arte se dá por que, ao fazê-lo, cria-
mos oportunidades de viver mais intensamente o inexistente, recor-
rendo sempre àquilo que ele não dá.

49
50
o que são,
o que não são,
o que podem ser

A festa acontece no quintal de Quando soa a campainha,


uma casa cujo limite é a beira alguém abre a porta. O corredor
de um rio que corta a cidade. de aproximadamente um
A casa mesmo é pequena, metro de largura e três de
mas possui uma edícula e uma comprimento se abre para
vasta área externa. Na cozinha, outro de aproximadamente
alguém prepara a comida, que três metros de largura e seis
varia entre lanches e petiscos. de comprimento. No fundo,
Por toda parte, fotografias, uma série de vídeos é projetada
objetos antigos, cartões- sobre uma porta que, quando
postais, ossos de animais e aberta, revela um espaço de
brinquedos clássicos dividem o exposição. As pessoas ficam
espaço com livros e cadernos sentadas no chão ou em
de desenho. Na área externa cadeiras de plástico, ocupando
ficam pendurados alguns todo o espaço disponível.
panos brancos que, esticados, Algumas ficam de pé ao lado
transformam-se em telas de do bar, que vende cerveja e
projeção. Pornografia, vídeoarte cachaça. Outras procuram
e clipes são os mais frequentes. algum souvenir na lojinha, que é
Na edícula, uma artista corta o também uma biblioteca. Quando
cabelo das pessoas a um preço acaba a sessão, todos se
simbólico. Corta, dança, fuma e levantam, a porta dos fundos se
bebe ao mesmo tempo. abre, as cadeiras são recolhidas
e um DJ inicia seu set.

51
Bem ao fundo, dava pra
Quando sentadas, uma pessoa Cercada por morros e ouvir alguém pronunciando
fica virada para frente e a cachoeiras, a oito horas em voz alta alguns nomes
outra para trás. Mas não de da capital mais próxima, e valores em meio a risos e
costas, lado a lado. Entre a duas da comunidade muita conversa. As pessoas se
elas e embaixo delas, ficam mais próxima, a uma da amontoavam para dar lances
disponíveis alguns livros e benzedeira mais próxima, cada vez maiores em obras
revistas. Algo como uma foi construída uma ecovila. de diversos artistas da região.
minibiblioteca. É móvel, é de Entre um verão e outro, Durante a semana, eventos
sentar, de tocar, de pegar, artistas de diversos lugares de culinária, oficinas de arte,
de encontrar. O que importa do mundo desenvolvem mostras de performance,
nessa poltrona é o que ela não projetos que incluem debates sobre a melhoria da
diz. O que ela não pode dizer. performances, instalações, bicicleta como veículo urbano
Talvez até, o que ela não é. vídeos, fotografias, objetos, e aulas de biodiversidade
Pois aí a experiência acontece publicações, desenhos, rituais, vegetal dividem espaço com
em um tipo de jornada ao cantorias, mágicas, danças, aluguéis e consertos de
silêncio. curas e escrituras. bicicleta.

52
Alguns vestiam uma camiseta
vermelha escrito “EU”, outros
uma camiseta amarela escrito
“VOCÊ”. No decorrer do
percurso, algumas instruções
foram executadas. O grupo,
com cerca de dez pessoas,
caminhava com movimentos
Por um período de um mês, pouco convencionais pelas ruas
dez pessoas desconhecidas, de um bairro universitário.
selecionadas por um júri, sairão Retornaram juntos em
de suas casas para desenvolver direção à garagem de uma
uma pesquisa, uma obra, um casa. Dentro dela, podia-se
filme, uma música. Ficarão ver uma fotografia, um vídeo,
juntas, compartilhando a uma tesoura ao lado de um
cozinha, a varanda, a lareira, pote de vidro e uns adesivos,
o jardim. Não é apenas uma mas nenhum carro. No jardim
questão de deslocamento, ou de em frente, muitas pessoas
viagem de negócios, já que não conversavam, bebiam e
é simplesmente fazer algo para petiscavam. O dia a dia da casa
algum lugar, executar, aplicar não diferia de nenhuma outra,
uma teoria. É, antes, encontrar, mas regularmente a garagem
alinhar uma pesquisa individual se abria para receber eventos
à percepção do coletivo, efêmeros de performance que
construir métodos, criar para continham desde ações ao vivo,
cada nova ideia uma linguagem até possíveis prolongamentos
para expressá-la. dessa prática artística.

53
54
SESSÃO
DIÁRIO DE BORDO

A sessão “Diário de Bordo” é um espaço documental. Aqui


você irá encontrar o registro de todas as ações e proposições
que aconteceram entre os meses de março e maio de 2017 na
Embarcação:

≥ Biblioteca Mesmo: Lugar de leitura para desocupadxs


≥ 23º. Debate Público (nome artístico) / Jogo Ágora (nome completo)
≥ A felicidade é um compromisso político
≥ Cinema Embarcado: A mulher com a câmera
≥ Conversas Entremarés: Rádio Desterro Cultural
≥ A sensibilidade nas práticas instalativas
≥ Grupo de estudos em processos curatoriais
≥ Tornar Público: Arquivo Abreviado

55
BIBLIOTECA MESMO
Lugar de leitura para desocupadxs

BIBLIOTECA MESMO: lugar de


leitura para desocupadxs foi uma
repartição-instalação-bibliote-
ca-ação proposta em parceria
com o artista Silfarlem Oliveira.
Formada a partir de livros que são
cobertos (sinalizados) pelo livroca-
pa, a BIBLIOTECA MESMO pos-
sui uma natureza avessa, é uma
biblioteca invertida, e o livrocapa
um “abrigo”. A Embarcação esteve
aberta das 16h às 20h para conver-
sas, leituras, cafés e cervejas. Na
Biblioteca Mesmo, todos os livros
possuem a mesma capa, e cada
capa possui as mesmas letras:
“livrocapa”. A Biblioteca Mesmo
não confina seu livros em estan-
tes, tampouco possui um método
de organização (por tema, cor,
assunto, autor etc.). Há apenas
o registro: a cada livro encapa-
do com o “livrocapa”, Silfarlem
Oliveira anota em um caderno,
também encapado com o “livro-
capa”, a primeira letra de cada
título encapado. Durante sete dias,
foram encapados cerca de mil
volumes de livros pertencentes ao
meu acervo particular que ficaram
disponíveis para leitura de 25 de
março a 01 de abril de 2017.

56
23º DEBATE PÚBLICO (NOME ARTÍSTICO) /
JOGO ÁGORA (NOME COMPLETO)

O 23º Debate Público (nome artístico) /


Jogo Ágora (nome completo), do ERRO
Grupo aconteceu na Praça da Lagoa
da Conceição, localizada em frente à
Embarcação. Trata-se de uma peça ou
debate, peça-debate ou debate-peça,
dependendo do posicionamento das
pessoas em jogo ou de sua preferência
de posição, até, nesse jogo de palavras
(e representação). A obra é fruto da
pesquisa do ERRO Grupo, que envolve
performance, teatro de rua e interven-
ção urbana.

Para o grupo, “esta obra situa uma


manifestação estética de um evento po-
lítico real-ficcional — um debate — com
representantes, antirrepresentantes,
contrarrepresentantes e representan-
tes, dos mais diversos ideais, opiniões e
movimentos. 23º Debate Público (nome
artístico) / Jogo Ágora (nome comple-
to) sublinha um gesto constante nos
trabalhos do grupo: o objetivo de trazer
uma assembleia política diretamente
em contato com o espaço público, ope-
rando através de uma poética entre a
interação e a intervenção, uma poética
do ERRO.”

57
A FELICIDADE DA ARTE
É UM COMPROMISSO POLÍTICO

‘A felicidade da arte é um compromis-


so político’ foi uma ação proposta pela
artista argentina Claudia del Río para
a Embarcação. Consistiu em uma
oficina-performance realizada coleti-
vamente e “a las espaldas” ao redor
do tema-título da ação, seguida de
uma ‘conversa de bar’ na qual fomos
convidados por Claudia a estabelecer
uma comunicação (contra-colonialis-
ta!) em ‘argeleño’ e “brasitino’.

58
CINEMA EMBARCADO
A mulher com a câmera

Cinema Embarcado surgiu de uma parce-


ria com a cineasta e pesquisadora Rosana
Cacciatore e propôs um espaço de aglutina-
ção e de reflexão a partir do encontro entre
pessoas para exibição de filmes de cineastas
mulheres, a fim de apreciar e discutir o cine-
ma de forma coletiva, tendo sempre algum
pesquisador colaborando com os debates. A
informalidade e despojamento da Embarca-
ção proporcionaram uma espectorialidade
diversa das salas comerciais ou das telas
individuais das nossas casas. Hoje, as novas
tecnologias e a proliferação das imagens
tornam esse tipo de atividade fundamental à
formação do senso crítico e à democratiza-
ção das imagens. Iniciamos com um ciclo de
cinema feitos por mulheres, essa categoria
inexistente, mas que já produziu obras funda-
mentais no cinema.

1ª edição: “La chambre” [Bélgica, 1972, 11`] e


“News from home” [Bélgica/França, 1975,
90`]. Direção Chantal Akerman. Conversa
com Rosana Cacciatore;
2ª edição: “Mar de rosas” [Brasil, 1977, 91`].
Direção Ana Carolina. Conversa com Ana
Maria Veiga;
3ª edição: “Le Moindre geste” [França, 1971,
1`45”]. Direção Josée Manenti, Fernand
Deligny e Jean-Pierre Daniel. Conversa com
Bianca Tomaselli
4ª edição: “A cidade onde envelheço” [Brasil,
2016, 99`]. Direção Marilia Rocha. Conversa
com Jose Geraldo Couto.
59
CONVERSAS ENTREMARÉS
Rádio Desterro Cultural

“Conversas Entremarés” foi um pro-


grama realizado em parceria com a
Rádio Desterro Cultural, do Coletivo
Desterro de Comunicação. A rádio foi
deslocada para a Embarcação, onde
foram realizadas conversas e escutas
com artistas, dançaarinas, dançari-
nos, musicistas e músicos. A proposta
de que as conversas pudessem acon-
tecer em zonas entremarés foi com o
intuito de ver/ouvir o que comumente
fica submerso ou nãoexposto ao pú-
blico, ou seja, a pesquisa e o próprio
processo artístico. Todas as conversas
foram transmitidas ao vivo pelo site da
Rádio.

1ª edição: Conversa com Raquel Stolf


e lançamento da publicação sonora
Mar Paradoxo.

2ª edição: Conversa com a TAO Or-


questra, representada por Fabio
Mello, Ivan Vendemiatti, Juliana Sch-
midt e Eduardo Vidili.

3ª edição: Conversa Marcelo Fialho,


Marco D Julio e Mônica Hoff sobre o
projeto Encontros Entropicais.

4ª edição: Conversa com Anderson do


Carmo sobre Como bichar o pensa-
mento e apresentação da performan-
ce Ensaio sobre a retórica.

60
A SENSIBILIDADE SONORA
NAS PRÁTICAS INSTALATIVAS

O workshop: "A sensibilidade sonora nas


práticas instalativas", foi proposto pelos
artistas O Grivo (coletivo formado pelos
artistas Nelson Soares e Marcos Moreira
de MG), Marcelo Comparini (SP) e Ro-
berto Freitas (SC) na Embarcação.

O workshop fez parte da residência


Máquina Orquestra realizada pelo Pro-
grama Rede Funarte Artes Visuais 10ª
Edição e do Prêmio Elisabete Anderle
2014, que possibilitou que artistas de três
Estados do Brasil se encontrassem e
produzissem um trabalho coletivo. Esse
workshop ofereceu um espaço aberto e
horizontal de discussão entre os artistas
e os interessados, baseado numa série
de materiais audiovisuais e referências
sensíveis que dialogam com as instala-
ções sonoras dos artistas proponentes.

61
GRUPO DE ESTUDOS
EM PROCESSOS CURATORIAIS

O Grupo de Estudos em Processos


Curatoriais foi criado em parceria com a
curadora Mônica Hoff em 2016 no Institu-
to Arco-Íris, em Florianópolis. Atualmen-
te poderíamos dizer que a linha entre
o que é e o que não é curadoria tem se
tornado cada vez mais tênue, quando
não vaga, e uma questão completamente
em aberto. Diante disso, propomos com
o Grupo de Estudos abordar a ideia de
curadoria como um campo expandido, e
em constante desdobramento a partir de
quatro eixos que consideramos funda-
mentais para a construção de um pen-
samento curatorial na contemporanei-
dade: curadoria e pesquisa, curadoria e
prática artística e curadoria e educação.
Isso posto, realizá-lo na Embarcação foi
condição fundamental para sua plena
ocorrência, pois proporcionou uma série
de debates, ações e oficinas em torno
dos três eixos elencados acima através
da constituição de diferentes esferas
públicas, recorrentes tanto dos desejos
e intenções individuais dos participantes
quanto do contexto que envolve a Embar-
cação.

62
TORNAR PÚBLICO
Arquivo Abreviado

Tornar Público foi um programa


proposto pelo Arquivo Abreviado, do
artista Jorge Bucksdricker em par-
ceria com a Embarcação. Uma parte
do arquivo ocupou as dependências
do espaço, dando lugar também a
uma conversa-oficina sobre práticas
de arquivo contemporâneas. Cons-
tituído por publicações de artistas
das décadas de 1970 e 80, o arquivo
abreviado é um espécie de plataforma
para proposições artísticas e perfor-
mações de diversas naturezas.

63
64
Rotas

65
66
SESSÃO
RECOMEÇAR

Esta sessão é composta por um verbete e um múl-


tiplo: Golpe e Jogue em caso de emergência.

O verbete golpe foi elaborado em 2016 após o im-


peachment da presidenta eleita Dilma Rousseff.
Pode ser lido também na publicação coletiva Ane-
coica, desenvolvida no Seminário Especial Inves-
tigações sob(re) proposições sonoras, do PPGAV
Udesc, com coordenação da artista Raquel Stolf:
https://issuu.com/anecoica.

Jogue em caso de emergência, por sua vez, foi de-


senvolvido no verão de 2017, durante o governo
golpista do presidente ilegítimo (Fora) Temer, em
colaboração com o artista Pablo Paniagua, após
discussão e leitura do texto “Como fazer?” do gru-
po anarquista francês Tiqqun, traduzido e dispo-
nibilizado na sessão “Escola da Floresta” desta
dissertação. O que segue são instruções de como
fazer um coquetel para tempos sombrios.

67
68
gol·pe
(latim colaphus, -i, bofetada, murro, do grego kólafos, -ou, pancada na face)

1. Golpe mesmo só de bicada, de pinga, daquelas amortecidas em barril


de jequitibá rosa. E o consumo só aumenta, depois da pancada que esses
8.516.000 km² levaram em 2016. Forte a tal ponto que todo o sistema auditivo
do país sofreu um traumatismo. Um silêncio-rumor se instalou por aqui,
um efeito-golpe. Tudo que é sinônimo de golpe é dolorido, menos a pinga.
Porque esse tipo de golpe, o de estado, incide diretamente nos direitos do
povo. É imoral e marca um dos momentos políticos mais desgraçados desde
sessenta e quatro. 2. Golpes são arquitetados aos sussurros [em voz baixa],
de forma inaudível e [in]compreensível. Em silêncio o soco se faz ferida,
depois apenas infortúnio e choque. Corrente de rombo, roubo e desfalque. 3.
A lufada do golpe e a precariedade política levaram à revolta todos aqueles
que não cederam ao murro e que acreditam que a democracia radical pode
derrotar o neoliberalismo. 4. Bombas de efeito moral? Aqui a justiça finge
que não vê. Ela trama, é ardil, é truculenta, é seletiva. 5. Os golpistas lançaram
rajadas sobre panelas, acreditando que o panelaço os salvaria da corrupção.
Nem panelaço, nem buzinaço: hipocrisia. O som do golpe foi derramado por
vazamentos tortuosos e escutas sigilosas, coroado por ênclases, mesóclises
e citações em latim: — “Vocês sabem que religião vem do latim religio,
religare, portanto, você, quando é religioso, você está fazendo uma religação.
E o que nós [o governo golpista] queremos fazer agora, com o Brasil, é um
ato religioso, é um ato de religação”. 6. A história atesta uma realidade feita
em linguagem teológica semierudita, que é a linguagem oficial do golpe. Uma
tragédia sucedida pelo drama - corrosiva. 7. Um estado de exceção e degradação
que preza somente pela destruição e alienação, uma fonte de angústia. 8.
[a galope, o tempo é emergencial]. 9. Tensões e distensões se mantém
permanentemente ao som de enfrentamento, resistência e luta. O gozo é
possível ainda, em momentos de CONTRA-golpe.

69
70
jogue em caso
de emergência
KAMILLA NUNES E PABLO PANIAGUA

JOGUE EM CASO D
EMERG E
ÊNCIA
EM TEMPOS SOMBRIOS

preencha a garrafa com o


combustível desejado; introduza o
pano na garrafa, deixando a parte
que será acesa para fora; com os
elásticos, firme o pano no gargalo
para impedir a passagem de ar;
jogue em caso de emergência.

Tiragem ilimitada
2017

Conteúdo ingerível

NENHUM DIREITO
RESERVADO

71
72
73
74
SESSÃO
O AMOR POR PRINCÍPIO
E A ORDEM POR BASE; O
PROGRESSO POR FIM

Esta sessão é composta por seis anexos corres-


pondentes às normas para utilização dos símbolos
nacionais, a partir das doze frases eleitas no 23º
Debate Público (nome artístico) / Jogo Ágora (nome
completo). Trata-se de substituir a frase “Ordem e
Progresso” por outra que represente o Brasil em
sua bandeira, a fim criar desdobramentos capazes
de estabelecer outras perspectivas políticas e artís-
ticas para o lema formulado pelo filósofo Augusto
Comte: “O Amor por princípio e a Ordem por base; o
Progresso por fim”.

As apresentações da peça 23º Debate Público


(nome artístico) / Jogo Ágora (nome completo), do
ERRO Grupo teve início em setembro de 2016 em
Florianópolis. As frases escolhidas e estampadas
nas bandeiras do Brasil são deixadas no espaço pú-
blico ao final de cada apresentação. Como uma obra
pública e política, na visão do ERRO Grupo, o que
entra em jogo é o encontro de pontos de vistas e o
surgimento de descrenças assim como das utopias,
traspassadas por fim pela limitação de um sistema
de representatividades, pela crise e necessidade da
democracia. Em março de 2016, o ERRO apresentou
o 23º Debate na Praça da Lagoa, em parceria com a
Embarcação, momento em que foi escolhida a frase
“SEM BANDEIRA RELAXA E GOZA”.

75
76
ANEXO Nº 1
DESENHO DA BANDEIRA NACIONAL

SE REDUZ A CONVENC
TUDO ER O
OUT
RO

77
ANEXO Nº 2
DESENHO MODULAR DA BANDEIRA NACIONAL

TUDO SE REDUZ A CON


VEN
CER
OO
UT
R
O

78
ANEXO Nº 9
DESENHO DO SELO NACIONAL

TUDO SE REDUZ A
CONV
ENC
ER
OO
UT
RO

SELO NACIONAL

79
ANEXO Nº 14
MÚLTIPLO DA BANDEIRA NACIONAL

O SE REDUZ A CONVENCER
TUD O OU
TRO

80
ANEXO Nº 16
LAMBE DA BANDEIRA NACIONAL

MINHA
BUCETA
É O PODER

81
ANEXO Nº 17
FRASES DA BANDEIRA NACIONAL

QUEIMEM ESTA BANDEIRA


ESTOU ATÉ NERVOSA
O TOLO É O ÚLTIMO A SABER
É CHIQUE SER DO BEM
MINHA BUCETA É O PODER
A TONGA DA MILONGA DO KABULETÊ
SEM BANDEIRA RELAXA E GOZA
NÃO É A CRISE É O CAPITALISMO
WORKING PROGRESS
SE A GLOBO É A FAVOR SOMOS CONTRA
TUDO SE REDUZ A CONVENCER O OUTRO
TAMU CAGADO

Todas as frases eleitas no 23º Debate Público (nome artístico) / Jogo Ágora
(nome completo) podem oficialmente ser utilizadas, desde que os termos da LEI
5.700 de 01/09/1971 sejam respeitados.

82
83
84
SESSÃO
BIBLIOTECA MESMO:
LUGAR DE LEITURA PARA DESOCUPADXS
2ª edição

Nesta sessão será apresentada a segunda edição do projeto


“Biblioteca Mesmo: Lugar de leitura para desocupadxs” reali-
zada em parceria com o artista Silfarlem Oliveira. A primeira
edição ocorreu em março de 2017, na Embarcação, Lagoa da
Conceição e teve duração de uma semana. A segunda edição,
por sua vez, foi desenvolvida considerando o contexto desta
dissertação e foi composta pela introdução não julque um li-
vro por sua capa, por quatro cartazes: livrocapa, recomeçar,
repartição e a meta é dobrar a meta, e por dez palavras-a-
ções de importante significado para a construção deste proje-
to. Cada uma das palavras contém uma nota ou uma instrução
que, juntas, conformam esta sessão.

85
não julgue um livro
por sua capa1
KAMILLA NUNES E SILFARLEM OLIVEIRA

1 Esta edição é um
corpo que ocupa dois lu-
gares no espaço. Simul-
taneamente, faz parte de
duas publicações: a “Em-
barcação” e “O mesmo de-
safia o mesmo” de Silfar- Biblioteca Mesmo: lugar de leitura para desocupadxs é uma repar-
lem Oliveira. Aqui ela tição-instalação-biblioteca-ação proposta em parceria com o artista
se apresenta como uma
Silfarlem Oliveira. Formada a partir de livros que são cobertos (sina-
sessão, lá, com o mes-
mo corpo, mas com outra lizados) pelo “livrocapa”, a Biblioteca Mesmo possui uma natureza
aparência, se apresenta avessa, é uma biblioteca invertida, e o “livrocapa” um “abrigo”.
como uma “variação mes-
mo”. Décadas antes da criação dessa repartição-ação, Borges
havia se perguntado o que contém os livros, e respondeu: “todos os
livros, por mais diversos que sejam, constam de elementos iguais: o
espaço, o ponto, a vírgula, as 23 letras do alfabeto”. Para ele, afinal,
“falar é incorrer em tautologias”.
Paralelamente, Ray Bradbury, em Fahrenheit 451, aconse-
lha não julgarmos um livro por sua capa. Os livros, segundo ele, são
como os indigentes, “vagabundos em seu exterior e bibliotecas no
seu interior”. Mas o que acontece com um livro que é apenas capa?
Um “livrocapa”, como um casaco, veste outros livros ou coisas que
podem se tornar livros (é sempre um bom abrigo, protege e trans-
forma).
Na Biblioteca Mesmo, todos os livros possuem a mesma
capa, e cada capa possui as mesmas letras: “livrocapa”. A Biblio-
teca Mesmo não confina seu livros em estantes, tampouco possui
um método de organização (por tema, cor, assunto, autor etc.). Há
apenas o registro: a cada livro encapado com o “livrocapa”, Silfar-
lem Oliveira anota em um caderno, também encapado com o “livro-
capa”, a primeira letra de cada título encapado.

86
Entre 25 de março e 01 de abril de 2017, na Embarcação (La-
goa da Conceição), ocorreu a primeira edição desse projeto, com du-
ração de 14 dias. Sete deles foram utilizados para encapar cerca de
mil volumes de livros sobre arte, literatura, curadoria, publicações
de artista, teoria e crítica. Nos outros sete, a Embarcação esteve
aberta ao público e os “livroscapa” ficaram disponíveis para leitura.
Durante o processo, quatro cartazes foram produzidos, dois
filmes foram exibidos continuamente, e o público levou seus livros
para serem encapados com o “livrocapa”, passando, então, a per-
tencer à Biblioteca Mesmo. Propusemos também um jogo no qual a
metodologia se assemelhava à do “amigo invisível”. Cada visitante,
às cegas, escolhia uma palavra que deflagrava uma ação: escutar
uma música, ler um texto, assistir um filme, encapar um livro etc. E
foi a partir desse jogo que criamos 2ª edição da Biblioteca Mesmo:
lugar de leitura para desocupadxs.
Dessa vez, as palavras estão em sequência e foram orga-
nizada nas páginas que seguem este texto. Há uma série de ins-
truções/situações construídas a partir das referências que atraves-
saram esse projeto. Referências compartilhadas de textos, filmes,
livros, músicas e objetos capazes de transformar esse lugar de
leitura num espaço nômade e temporário, que está aqui, mas que
pode se abrir para outros encontros e vivências.
Essas palavras-ação estão antecedidas por quatro carta-
zes desenvolvidos durante a 1ª edição dessa repartição-ação. Todos
eles foram feitos de forma colaborativa e passaram a integrar a Bi-
blioteca Mesmo: lugar de leitura para desocupadxs. Na 1º edição,
eles foram criados com o mesmo material utilizado para encapar
os livros, papel craft, e ficaram expostos nas paredes. O primeiro
cartaz foi construído a partir dos títulos dos livros encapados (uma
palavra por título escolhida ao acaso). Poderíamos considerar que
ele é o catálogo desse projeto. Os três que seguem são palavras/
frases que imprimem um significado poético e político à bibliote-
ca. Repartição pela noção de partilha, Recomeçar por restabelecer
o contato entre nossos devires e A meta é dobrar a meta pelo duplo
significado que essa frase pode conter: dobra-se tantas vezes que a
meta desaparece: metáfora.

87
88
ESCRITOS HISTÓRIA DO MAL O LIVRO INSUSTENTÁVEL ESCRIVÃO ÁLVARO POETA DO INTERLÚDIO
SILÊNCIOS DE CÓLERA INVENÇÃO FLORES MADEMOISELLE MARINHAS HISTÓRIAS PARTICULAR
MORTE FILHO DESAFORADAS POLÍTICA ESPAÇO INTERVALO TATUÍ VENDA TATUÍ POLÍTICA
ARTE REX ALEPH GOZO BANDOLEIROS INVISÍVEIS VERBO CABARET COMO NADJA CORPO DE
VIVER PROVOS EMERGÊNCIA REAL ASSIMILADO VOCABULÁRIO DOR EROTISMO CANIBAIS
ARTE ALTERADOS FUTURO VEM LOCALES AGORA PANDEMIA CIVIL ABERTO SUL CORPO
TRANSTEMPORAIS ENTREVISTAS WOTAN HISTÓRIA MULHERES POLÍTICA ARTISTA PEQUENO
CONTRASSEXUAL RADICANTE MUNDO CONTEMPORÂNEO ATELIÊ COTIDIANO ESPAÇO LÉXICO
TIENE NUVEM AMIGOS MANIFESTO PERSISTÊNCIA TEMPORÁRIA RESIDÊNCIA INTERAÇÕES
REGISTRO EXPOSIÇÕES AMOSTRAS FÁBRICA CONOCIMIENTO FREMEESTRATÉGIAS READY
EMBARCAÇÃO EMBARCAÇÃO IMPOSSÍVEL CONVERSA VOCABULÁRIO RUMOR VELOCIDADE
PRENSA RECREATIVA SEM FLORESTAL DIALETOS CULTURA PRODUCCIÓN ACCIÓN POÉTICAS
ART DESENHOS ARTCONCEITO OCUPAÇÃO SER SITUAÇÕES INVEJA MEYER CRÍTICAS ABRAMOVIC
ARQUIPÉLAGO PASTORE COSMORELIEF COSMORELIEF EXPANSÃO ÓVULOS SP SALÃO CENTRO
SHOW CARIOCA SENTIDOS DARK HUMANO BRANCO FOTOGRAFIA MUSEU NACIONAL ESPECTADOR
SENSÍVEL ESTÉTICA DESTINO REX AUTÔNOMOS ESTADO OS CONTEÚDO X MESTIÇAS ENSAIOS
PINTURA DANÇAR TÉCNICA SEDUTOR CADERNO MALDITOS OLHOS IMAGINAÇÃO ITALIANA
CARTAS HOMEM COLIBRI TEMPOS LEITOR O PALÁCIO VOLTA CANCIONEIRO SUJO NADA QUANDO
ENSAIOS BORGES SEXTETO ESTORVO SANGUE CRÍTICA BUFÓLICAS SERTÃO PRIMEIRAS
EDUCAÇÃO INICIAÇÃO VENTO BIENAL INTERNACIONAL
URBÂNIA REFLEXÕES GUIA AMOR BELEZA FRESTAS
CIRCUITOS PRÊMIO SUBTERRÂNEA ESTADO INCIDENTE
TUNGUSKA HEIL BINÔMIOS EDITADO OBJETOS FUNARTE
TEORIAS SAMBA FERNANDO RECIBO PERFORMANCE
POEMAS INDIVÍDUO INSPIRAÇÃO MITOLOGIA HERÓIS
VISUAIS PENSAMENTO ASSASSINAS BIFURCA CRIATURAS IMAGINÁRIAS TÊMPERAS DITADURAS
JOGO STIGGER EITA SECRETA PAPEL CROSTÁCEA SEU MANUAIS CANÇÕES CARTOGRAFIAS
ECKENBERGER BOLSA BAHIA ORGÂNICO CIDADE MEIRELLES OFÍCIOS BRASILEIRA MORTA
CICLOTRAMAORANGEMORIVOARVASOSTEIAFORMAINVISÍVELCONCEITUALDESENVOLVIMENTO
ANAPOLINO VOGUE LOUNGE MERCOSUL DOCUMENTA INDIVIDUELLE CURADOR PRACTICE ÁREA
CUBO INSTALAÇÃO DESERTO EXPOSIÇÕES EITA MAGRITTE ABSTRATA ENSOR ROCKWELL DÜRER
BRUEGEL FANTÁSTICA NUMA INVENÇÃO EITA LATINA INCERTEZA THINKING IMAGINÁRIO
DUCHAMP CUBISMO MINK ARCIMBOLDO VIÉS PANORAMA EXTREMOS EMERGÊNCIAS MATERIAL
MODERNO BRASIL CIÊNCIA TEIA VERDE TAMBÉM PAMPULHA OCUPAÇÃO CÍRCULO MODERNA
MISTÉRIO ILHA PARIS ACADEMIA DESASSOSSEGO COMPLETOS PERCURSO APROXIMAÇÕES
PROSTITUTA METAMORFOSES NEUTRAL CULTURAIS ZOOLÓGICO LIBERDADE RODAPÉ EXPOSTO
AHN CONVERSAS ULISSES ANEKDOTA EITA ENCONTRO EITA MUROS PRODUÇÃO MUSEU
COMPARTILHADOS CIGARRA PREPARAÇÕES ESTACIONAMENTO TERRITÓRIOS EXHIBIONIST
CABEÇA INDÚSTRIA QUESTÃO MUROS FIRME ESTADO IMAGEMPENSAMENTO TATUÍ
MODERNIDADE DIÁRIO ÁREA INIMIGOS COLETIVA GUERRA REGIONAIS BAHIA ORGANIZAÇÕES
SEVERINA ALFABETO BIENALI VIVA AFRICANA AÇÕES GRIEGA LONGITUDES SANTIAGO
COLLECTION TEXTOS ESSENCIAIS PINTURA MITO TEOLOGIA EXPRESSÃO FUNDAMENTAIS
BOOK CONCISA ESCULTURA UMA TENDA MANOEL ANIMATTACK VELHO BARTLEBY CAMINHOS
ÓPIO GRAÇA ARTES INDEPENDENTES GALAN SEBO GALAN ROUBADA MANO GALAN MEIO
SODOMA MAFALDA MAFALDA MAFALDA SERES BELO NOIVA MUROS PESSOA CAROÇO PASSADO
INDIFERENTE PROCESSO ÍMPAR MIRRORS ORQUESTRA SANTIAGO LUME LOUCURA FEMINISTAS
QUINTO PAÇO TRAJETÓRIAS INSTAMBUL VALOR REVISTA SAÍDO DIÁLOGOS DOM DICK MOBY
SOBREVIVENTE ERRO POÉTICA INDICADOR PERSISTÊNCIA TRABALHO PELE REVISTA AQUI
FRACASSO NOVOS PERFORMANCE AMOR ESCREVE GEOGRÁFICO BRASILEIRA CONTEMPORÂNEO
ARTES BRASIL ARTECONHECIMENTO HEARTBEAT SALÃO ANAPOLINO DE ARTE MAM
VOMITANDO FLÁVIO PARAÍSO VIVA RUBENS SOLAR SEIO CHINA PRÁXIS CONSTRUTORES
APROFUNDAMENTO COLEÇÃO CATARINA POESIA SURREALISMO PLATÔS RISOMA IMÁGENES
ESCRITOS MIL PLATÔS SEMINÁRIO SUJEITO PSICANÁLISE ALGUM BUDAPESTE ÉCRIRE
GABINETES EXPIRAÇÃO REPETIÇÃO PLURAL RAMOS DIA PUTAS BOA GERAÇÃO DIÁRIOS ESPAÇO
TATUÍ HORA NEUTRAL HISTÓRIA SEXUALIDADE HISTERIA ILUSÃO INSTANTE IMPOSSIBILIDADE
VONTADE CARTA MESMO MORAL TRAGÉDIA ANGÚSTIA OLHA TATUÍ TATUÍ CONVERSA INFINITA
SADE MAGIA RETA ESTRELA MÃO ATO SERTÕES COMIGO INFORME EX-TRANHO ALICE MEMÓRIA
INVISÍVEL ESCRITURA PAIXÃO TRUQUES EXPERIÊNCIA CILDO TÍTULO FRATURAS POEMAS
PAGES ESPAÇOS MEO PODE PAÍS LINGUAGEM CORPO CONCEITUAL MEIO COLETIVOS FICCIÓN
INVISÍVEL PÚBLICA CADERNOS HISTÓRIAS SOFRIMENTOS ETERNIDAD RESSACA DIAMANTE
DEPOIMENTO ÓCIO PORNOGRAFIA CONTRAFOGOS DESTRUIÇÕES PÚBLICO OBJETOS AMANTE
ANOS BARBA ESTRANGEIRA ESPERANDO ALICE METAMORFOSE QUINQUILHARIAS BOLOR 25
POEMAS ABC IMPRESSO LADO INTERMINÁVEL SÓTÃO TATUÍ BRANCO VAZIO CONVIVÊNCIAS
ERRO OCCUPY DIÁLOGOS TRANSITIVA MÃE COMUNAL MULHER LIVROS AMANTES TRANSIT
UTOPIA LATINA CHEGUEI SOBRE LATINOAMERICANOS VÊNUS KANT CIEGOS VISUAIS MÚSICA
LUME REVOLUÇÃO TRÓPICO SUBLIME VAZ MAPEAMENTO TATUÍ BACON PORTO TUBO TATUÍ
SINÔNIMO EXPANSÃO ROMANCE EXPERIMENTAL DEBATE SPA ALÉM MESTRE SCHWANKE 2013
ARQUEOLOGIA VERDADE IGNORADA RODAPÉ AS RECIFE PARÁGRAFO TATUÍ DEVANEIOS PF
CONVERSAS VOCÊ ICONOGRÁFICAS TATUÍ GHOST END STÉPHANE ENTRE LIBERDADE MÁRIO
PARASITA REPOSICIONAMENTO RASTROS COMUNISTA SÓ FELICIDADE ABERTA ENSAIO MÉTODO
ITINERANTES VALE LINGUAGEM TEATRO ESCRITA TUNGA NECESSARY ARQUIVO JOSÉ ANIMAL
ARTE DESTINO CASTELO TRANSPARÊNCIA VEIAS CEGO AI CONVIVÊNCIAS AMBULANTE PARQUE
SALTO OLHEIRO ILUMINURAS RENDAS FRAGMENTO EFÊMERO CRÍTICA CONCEPÇÃO CONVERSAS
IMPOSSÍVEL SISTEMA PRAZER ESOPO FLORESCENTIST EXERCÍCIO FUTURO GENTE REMBRANDT
ÉDIPO READ TEIMOSA LIVRO NEGRA SOMBRA SUPERLOQUIOS FILOSOFIA SALA STORYBOARD
TÍTULO RUÍDO CRÍTICA ELOGIO DESTERRO PUERTO DIAS MUNDO REFIL RETICÊNCIAS LIMITES
OPINIONES SÓS PROPRIEDADE ESPESSURA VERME RECIBO REFIL E.I DORMIR RECIBO NÚMERO
QUATRO NOVE TRÊS OITO 88 RECIBO 10 PORTÁTIL BABEL EMOÇÕES TIEMPO SIMBÓLICA

89
90
91
92
93
94
95
re·co·me·çar
(voc comp de re+começar, como fr recommencer)
verbo transitivo direto e verbo transitivo indireto
TIQQUN 2, “Como Fazer?”, 2001.

Recomeçar nunca é recomeçar alguma coisa. Nem retomar um


assunto ali
onde a gente o tinha deixado. O que a gente recomeça é sempre
outra coisa.
É sempre inaudito. Porque não é o passado que nos impele a isso,
mas
precisamente o que nele
não
adveio.
E porque somos também nós mesmos, então, que recomeçamos.
Recomeçar quer dizer: sair da suspensão. Restabelecer o contato
entre
nossos devires.
Partir,
de novo,
dali onde estamos,
agora.

96
re·par·ti·ção
(der de repartir+ção, como esp repartición)
substantivo feminino

Em número muito desproporcional ao tamanho das seções,


com suas incontáveis combinações de letras, as inexistentes
janelas da repartição estão fechadas. Dentro, há um risco
eminente de tudo ruir com o peso dos volumes. Milhares e
milhares de livros com milhares de páginas, todos eles fechados
cuidadosamente, esperam pelo leitor, como prisioneiros que
esperam pelas visitas. As semelhanças entre uma biblioteca,
uma prisão e o “serviço de inteligência” são notáveis: ambos
separam, classificam, domiciliam e guardam. Arquivam corpos.
Há quem diga que no confinamento os livros, talvez por solidão,
conversam entre si. Afetados que estão com os murmúrios
do arquivo, quando postos em liberdade perdem o traquejo
social com os leitores. Um adjunto da repartição, preocupado
com as aparentes afinidades da biblioteca com as estruturas
de isolamento e controle – concomitantemente, com o mal do
arquivo –, solicita uma janela, uma abertura, afinal, “mesmo
a inteligência precisa de ar”. Dirigido ao leitor e à biblioteca,
que agora se faz invertida, o caminho para o pedido, em ato de
fala, segue seu curso. Primeiro, pragmaticamente, recue seus
pensamentos. Segundo, abra espaço, leve seu corpo para longe
das ocupações inventariadas. Terceiro, ultrapasse a barreira
das imposições do real e não volte mais. Quarto, leve com você o
maior número de corpos que sua estrutura incorpórea permitir.
Quinto, retire do confinamento involuntário todas as peças
a “serviço da inteligência”. Recomeçar, vagando pelo ainda
desconhecido “haverá então tanto mais ar e luz do sol em seus
pensamentos”.

97
me·ta
(lat meta)
substantivo femino
Gilberto Gil, “Metáfora”, 1982

Uma lata existe para conter algo


Mas quando o poeta diz: “Lata”
Pode estar querendo dizer o incontível

Uma meta existe para ser um alvo


Mas quando o poeta diz: “Meta”
Pode estar querendo dizer o inatingível

Por isso, não se meta a exigir do poeta


Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível

Deixe a meta do poeta, não discuta


Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora

98
me·mó·ri·a
(lat memoria)
substantivo feminino
Alain Resnais, “Toute la mémoire du monde”, 1956.

99
es·ti·le·te
(der de estilo+ete, como fr stylet.)
substantivo marculino

O popular objeto sustenta o posto de ferramenta mais utilizada


na repartição Recomeçar. São inferidos diariamente inúmeros
cortes. A cada corte um livrocapa. A cada livrocapa um número
equivalente de dobras. Com esses pequenos gestos repetidos,
infinitamente, reatalhamos o acaso. Periodicamente, por
correspondência, oferecemos treinamento aos interessados
na nova arte à mão armada. Agora mesmo iniciaremos uma
pequena demonstração. Dado o grau de perigo, não do talho,
mas da dobra, pedimos cautela. Faça um corte do tamanho
do livro. Calcule uma sobra para as orelhas. Dobre. Recubra o
corpo com o livrocapa que acaba de publicar. Os benefícios da
intervenção são incontáveis. Não se esqueça “o instrumento
adequado para a escrita é o mesmo da incisão: o estilete”. Afinal,
o pensamento age como um cutelo que rasga seu caminho.
Abre novos espaços e, ao mesmo tempo, com seu rastro, cria
bifurcações inconciliáveis.

100
en·ca·par
(der do voc comp do lat in-+capa+ar1, como esp.)
verbo transitivo direto

Como você que está lendo agora mesmo este texto, uma
pessoa, talvez a mesma, leu anteontem o seguinte anúncio:
Encapo Livros. Ligou, prontamente, para o número de
contato que aparece no reclame e uma voz, como aquelas de
gravação telefônica, atendeu a chamada se identificando pelo
vulgo Adjunto. Contou para voz, de forma pueril, que estava
interessada nos serviços, pois desde criança protegia muito bem
seus livros. No entanto, o Adjunto a alertou do possível engano.
Não que esteja de toda equivocada, pessoa ouvinte e leitora, de
fato encapamos livros, mas nossa capa não apenas protege.
Ela protege e transforma. Somos discretamente responsáveis
pela distribuição, por encomenda, de informações em ato
que permitem que um mesmo seja outro. Caso queira aderir
ao programa acompanhe, passo a passo, os procedimentos.
Relembrando: um livrocapa é um abrigo (um casaco) e um
disfarce (dupla identidade). Como casaco, vista com o livrocapa
outros livros ou coisas que possam assumir o lugar dos livros.
Casacos pequenos, casacos médios, casacos grandes. Formatos
quadrados, formatos irregulares. Abrigos opacos, abrigos
semiopacos, abrigos translúcidos, abrigos semitranslúcidos.
Escolha uma vestimenta e com ela incorpore o outro revestido
pelo mesmo. Assim os corpos indiscerníveis em categorias
dominantes trilharam desocupados como pessoas-livro, fulana,
sicrana e beltrana. Essa ação/intervenção poderá acontecer de
assalto ou programada, em caráter unitário ou coletivo.

101
bor·ges
Jorge Luis Borges,”La Biblioteca de Babel”, Ficciones, 1944

Na repartição, a cada vez que cobre um livro ou a cada vez que


distribui um livrocapa (um pedaço de papel carimbado com a
palavra “livrocapa”), registra as medidas do livro encapado ou do
livrocapa distribuído e, depois, acrescenta, cuidadosamente, nos
seus registros uma letra. Cada livro uma letra. A biblioteca que
trabalha Borges possui apenas um livro com vários exemplares.
Em cada parte, em cada canto, volumes e mais volumes do
mesmo livrocapa. Todos eles empacotados, embrulhados, numa
cor parda que impregna o ambiente como a noite das gatas
e dos gatos. Conhecida popularmente como lugar de leitura
para desocupadas e desocupados, não há em toda biblioteca
mesmo, em toda sua vastidão, um único livro idêntico. Borges,
não faz muito tempo, escreveu para repartição um pequeno
relato que chamou de “A biblioteca de Babel”, lendo esse
documento saberá que essas coisas ali aparecem em exemplos
de variações com repetição ilimitada. Na próxima vez que visitar
qualquer biblioteca (outros chamam de universo), experimente,
todos os membros adjuntos da repartição – inclusive Borges –
recomenda, procurar pelo disparate visto que o razoável é uma
quase milagrosa exceção.

102
ar·tis·ta
(der de arte arte+ista, como ital artista)
Augusto dos Anjos,”O martírio do artista”, 1944.

103
tí·tu·lo
(lat titulum)
substantivo masculino

ENCAPE SUA BIBLIOTECA,


ANOTE UMA PALAVRA DE
CADA TÍTULO ENCAPADO,
EMPILHE SEU TEXTO.

104
em·bar·ca·ção
(der de embarcar+ção, como fr embarcation)
substantivo feminino
François Truffaut , “Fahrenheit 451”, 1966. Adaptação do romance de Ray Bradbury.

MEMORIZE ESTA PUBLICAÇÃO E QUEIME EM SEGUIDA.


COM ESSE ATO VOCÊ PASSARÁ A SE CHAMAR “EMBARCAÇÃO”.
PASSE ADIANTE.

105
106
Mapas de Navegação

107
108
SESSÃO
ESCOLA DA FLORESTA

Esta sessão possui três momentos distintos. O primeiro, sair da


suspensão, é uma reflexão sobre a Escola da Floresta, projeto
criado em 2016 pelo artista Fabio Tremonte. Trata-se de um projeto
que lida, sobretudo, com a noção de desmaterialização do objeto
artístico, afim de criar espaços de encontro para a materialização
da linguagem. Ademais, é um lugar que manifesta a necessidade
de se falar sobre os povos latino-americanos desde uma inten-
sidade corpórea, que inclui a alimentação e a política do “estar
junto”.

O segundo, si ustedes no saben lo que es el sur, es porque son


del norte é um texto transcrito a partir de uma conversa com Fabio
Tremonte em setembro de 2016. Dentre outros assuntos, falamos
do mapeamento que ele vêm realizando sobre os povos indígenas,
ribeirinhos, quilombola, andinos, etc., que deu origem à Escola da
Floresta.

O terceiro momento é uma tentativa de ir mais além de um texto


sobre a Escola da Floresta. Para tanto, propusemos uma parceria
que culminou na tradução do texto Como Fazer? do grupo anar-
quista francês TIQQUN, autodenominado como “Órgão Consciente
do Partido Imaginário”. Este é o último texto reproduzido na revista
TIQQUN 2, e sugere que pensemos não mais no QUE fazer, mas
em COMO fazer o que devemos fazer. A tradução contou também
com a revisão de Fernando Scheibe e está disponível na web. No
contexto dessa dissertação, ela foi inserida com marcas de corte e
sem paginação, para que possa ser destacada e repassada.

109
110
sair da suspensão

Para falar sobre e com a Escola da Floresta, é preciso antes fazer al-
gumas considerações sobre os espaços físicos e conceituais que ela
ocupa. Lucy R. Lippard, no texto “Mirando alrededor: dónde estamos
y dónde podríamos estar?” aponta para uma questão que parece ser
a base dessa escola: só pertenceremos realmente a um lugar se o ‘co-
nhecermos’ no seu sentido histórico e experiencial1. Além disso, resulta
de sua natureza própria, o fato de que é, em primeira instância, um
trabalho de arte em processo, fluxo ou desenvolvimento.
Criada pelo artista Fabio Tremonte em São Paulo, a Esco-
la da Floresta não possui uma sede fixa, não tem paredes, cadeiras,
mesas ou projetores, não tem refeitório nem banheiros, professores 1 LIPPARD,
Lucy R.. Mirando alrede-
nem alunos, provas nem conteúdo programado. Em se tratando de dor: dónde estamos y dó-
nde podríamos estar? In:
forma, inclusive, ela é mutante. Ela borra as linhas distintivas entre BLANCO, Paloma; CARRILLO,
autoridade e liberdade, entre escola e processo artístico, entre ar- Jesús; CLARAMONTE, Jor-
di; EXPÓSITO, Marcelo.
tista e educador, entre aluno e professor. A ausência de uma forma (Orgs.). Modos de Ha-
cer: Arte crítico, esfera
física, ou de um programa permanente implica, em alguma medida, pública y acción direc-
em uma desobediência. ta. Salamanca: Ediciones
Universidad de Salamanca,
Para Fabio Tremonte, o encontro e a construção de esferas 2001. p. 51

públicas são de grande importância para a constituição da Escola da


Floresta, para além de seu conteúdo, que é calcado e baseado nos
povos latino-americanos. Desse modo, Tremonte provoca uma rela-
ção entre a forma e aquilo que é ensinado, apresentado ou, simples-
mente, posto à vista. Politicamente, seu conteúdo lida com questões
que dificilmente são abordadas em escolas primárias, secundárias
e universidades, além de serem pouco debatidas, também, no meio
artístico.
111
Esses encontros, de acordo com o artista, podem se con-
figurar de diferentes maneiras, como viagens, passeios, caminha-
das, culinária, projeção de filmes, contação de histórias, leituras de
textos, produções gráficas, conversas e, principalmente, através de
colaborações com outros artistas e coletivos. É perceptível o desejo
da Escola da Floresta em se desdobrar, expandir-se em uma multi-
plicidade de sei-lá-o-quê, formular problemas e construir lugares de
fala horizontalizados.
A Escola da Floresta está comprometida com um lugar de
Conversa de Junho, Marta formação mais amplo, mais calcado nas questões próprias da nossa
Ramos-Yzquierdo, Artis-
tas trabalhando + Deri-
cultura. Paralelamente, é um espaço de fusão entre projetos que a
va culinária [mandioca]. antecederam, de fusão de desejos e pesquisas que, organizadas, re-
Quinta da casa do artis-
ta, junho 2016. cebem contornos históricos e de significação política indissociáveis
da prática artística e ativista de Tremonte. Além disso, ao fragmen-
tar-se, há uma quebra de autoria, uma inversão de papéis que a torna
mais acessível ao público, mesmo que ela não seja de imediato com-
preendida enquanto “trabalho de arte”. Talvez não seja, tampouco,
compreendida enquanto “escola”. Ela opera no meio, no entre, no “e
se”.
Radicalizando, a Escola da Floresta é um pensamento, uma
consciência do gesto radical, imprescindível ao nosso tempo. Tempo
Conversa de Junho, Sofia
Olascoaga, Entre utopia y
de golpe, de esquecimento, de repressão, de ingerência, de contrar-
desencanto + Deriva culi- revoluções. E se for assim, ela é claramente uma atitude política cal-
nária [ceviche]. Quinta
da casa do artista, junho cada na ideia de recomeçar. E recomeçar nunca é recomeçar alguma
2016. coisa. Nem retomar um assunto ali onde a gente o tinha deixado. O que
a gente recomeça é sempre outra coisa. É sempre inaudito. Porque não
é o passado que nos impele a isso, mas precisamente o que nele não
adveio.
E porque somos também nós mesmos, então, que recomeçamos.
Recomeçar quer dizer: sair da suspensão. Restabelecer o contato entre
nossos devires.
Partir,
de novo,
dali onde estamos,
agora2.
É precisamente porque o que recomeçamos é sempre outra
2 “Comment faire?”
coisa, que falar sobre a Floresta faz dela uma experiência política do
foi publicado original- presente. Talvez uma das mais urgentes e necessárias. A floresta é,
mente na revista francesa
Tiqqun 2, em outubro de aqui, a metáfora da insurreição. É o ecossistema que insiste em se
2001, p. 279.

112
rebelar contra as transformações impostas pelo poder constituído do
capital.
A Escola da Floresta é como uma PLANC (Plantas Alimen-
tícias Não Convencionais), que cresce espontaneamente na natureza
e que (ainda) não é comercializada. Por serem pouco conhecidas nos
dias de hoje, elas são também pouco consumidas, mesmo que este-
jam por aí, crescendo pelos terrenos baldios da cidade, à disposição
de qualquer passante. É assim o microfone aberto deixado pelo artista
na Oficina Cultural Oswald de Andrade para leitura das mais de sete
mil páginas referentes ao Relatório Figueiredo, relatório este que foi
supostamente eliminado em um incêndio no Ministério da Agricultu-
ra, e que foi encontrado depois de 45 anos no Museu do Índio, no Rio
de Janeiro. Come-se a fala. Engole-se à seco.
Fabio Tremonte se serve muito do que há ao seu redor. Da
sua casa, da sua cidade, do seu ateliê, dos seus amigos, dos seus
conhecidos e desconhecidos, dos espaços de arte, dos espaços pú-
blicos, dos públicos. Se serve também do que está acontecendo no
domínio das políticas públicas, do que foi esquecido pelo sistema que
rege essas políticas, joga com a profundidade de campo – se interes-
sa “pelas formas de vida comunais que vêm, insistente e corajosa-
mente, resistindo e recriando modos de viver ao longo dos séculos”
(TIQQUN). E “se servir” diz respeito a uma relação de interdependên-
cia e de cooperação.
Todas essas considerações também nos fazem refletir sobre
o rumo que pode tomar essa escola, sobre quais tipos de ações e des-
dobramentos ela pode ter, os espaços que pode ocupar, os textos que
pode compartilhar, as lutas que pode se envolver. Por ser inseparável
do eu (do artista) e do mundo, ela pode estabelecer zonas de indistin-
ção, de intensidade e de fracasso. Lacunas de tempo também, entre
uma aparição e outra. A Escola da Floresta é um pensamento porque
ela pode ou não se materializar, ela pode ou não se infiltrar no coti-
diano anestesiado das pessoas, ela pode ou não continuar existindo.
E aí reside a sua força.

113
114
si ustedes no saben
lo que es el sur,
es porque
son del norte
FABIO TREMONTE

Texto transcrito a partir de


conversa sobre a Escola da
Floresta com o artista Fabio
Tremonte em setembro de 2016.
O título faz referência ao
filme argentino-francês “Sur” de
Fernando Solanas, 1988.

Minha atuação sempre foi como professor educador e artista, e sempre


levei essas duas atividades em paralelo. Mas sabia que a minha atua-
ção como professor educador acontecia porque eu também era artista,
embora eu não conseguisse, ou não tentasse, ou não pensasse em re-
lacionar essas duas atividades. Com o tempo percebi que isso era pos-
sível, e que na verdade isso já acontecia quando fui dar aulas no ensino
fundamental. O contato com crianças me fez perceber que o trabalho de
professor educador acontecia de forma muito parecida com o proces-
so artístico. Por mais que você tenha um programa para dar aulas para
crianças, ele pode ser transformado a qualquer momento. As crianças
tem uma outra relação com o programa, na verdade elas sequer sabem
que existe um programa e por isso são muito permeáveis à mudanças no
processo, elas solicitam essas mudanças.

115
Em 2014, eu desenvolvi um projeto - e foi a primeira vez que es-
sas atuações se cruzaram -, que se chamava “Quando o percurso torna-
-se destino”. Consistia em quatro viagens pelo interior do Brasil, no qual
eu convidava um artista para viajar comigo e tínhamos como mote inicial,
a cada viagem, explorar um elemento da natureza. O título já indicava
que se tratava de um processo aberto, de exploração da terra, da água
etc., mas no percurso nós não tínhamos uma programação científica ou
geológica pra explorar esses elementos. Foi mesmo como uma explora-
ção em dupla, física e corporal. Esse projeto desencadeou alguns pro-
cessos que deram origem à Escola da Floresta, devido às viagens para o
interior, à descoberta de um Brasil que eu desconhecia, suas culturas,
pessoas e histórias.
Em seguida, participei da residência “Barda del Desierto”, na
Patagônia, onde desenvolvi o trabalho “Deriva Culinária”. Durante esse
período pesquisei receitas locais que tivessem alguma relação histórica,
afetiva e comemorativa vinculada àquele lugar. Na sequência, desenvolvi
as receitas e as cozinhei em espaços públicos. Inicialmente, o projeto
deveria ser uma continuação de “Quando o percurso torna-se destino”.
Mas quando cheguei na Patagônia percebi que outras coisas poderiam
acontecer para além de caminhadas e derivas, já que o percurso deixou
de ser o principal elemento do projeto. Foi então que comecei a perceber
que minhas atividades como educador e artista estavam totalmente in-
terligadas, que comecei a pensar no processo educativo como processo
artístico, no sentido de que ele é experimental, criativo, e que acontece
sem uma programação fixa.
Antes da Escola da Floresta, realizei outros projetos, como Pa-
rágrafo Único e Propriedade de uso comum. Esse último foi um convite
pra ocupar o corredor do Ateliê 397, em São Paulo. Tal corredor tem pra
mim uma importância, pois eu tive um ateliê nesse espaço por cerca de
três meses em 2008, antes mesmo de o Ateliê 397 se tornar um espaço
de exposições. Como esse corredor tinha para mim um dado do encontro,
de ficar sentado conversando, tomando uma cerveja e cozinhando, resol-
vi propor um programa que pudesse lidar com essa memória, composto
por rodas de conversas nas quais eu convidava uma ou duas pessoas

116
Intervenção de Fabio Tremonte ≥
117
para falar sobre determinado assunto. O formato não era de um seminá-
rio, nem de uma palestra, mas de uma conversa informal iniciada a par-
tir de um tema propositor. Depois das conversas havia uma apresentação
sonora, sempre com um convidado para, junto comigo, pensar um set list
ou produzir algumas músicas específicas para aquela situação.
Realizei também uma exposição chamada “Paragrafo único”,
na Pivô, localizada no centro de São Paulo. Foi uma exposição individual,
que continha alguns trabalhos de instalação e um ateliê de impressão de
estêncil e serigrafia que funcionou durante todo o período da exposição.
As pessoas podiam participar com acompanhamento de um educador,
que auxiliava na produção gráfica. Nos finais de semana, a meu convite,
alguns artistas propuseram oficinas para produção de estêncil e seri-
grafia. Esse projeto remetia às gráficas populares da Argentina, princi-
palmente as surgidas nos anos 2000, que eram utilizadas para produção
gráfica de materiais de protestos e outros atos políticos no País.
Em 2015, eu comecei a pensar em um projeto que trouxesse to-
dos os trabalhos que realizei anteriormente para um só lugar, para um
espaço em que as coisas pudessem acontecer dentro de uma grade, de
um programa, mas que não fosse formalizado. Foi aí que surgiu a Escola
da Floresta. Essa escola é um espaço nômade, temporário e experimen-
tal, sem um lugar fixo. Ela acontece a partir das possibilidades de par-
cerias, de encontros e de desejos. Não há um programa pré-definido, e
tampouco uma grade curricular. Trata-se de pensar a escola como um
espaço de compartilhamento, de encontro e de aprendizagem coletiva.
É importante usar o nome “escola” para esse projeto porque
em tempos em que a educação no Brasil vêm sendo sucateada, palavras
como “educação” e “escola” se tornam lugares de resistência. Já a “flo-
resta” entra por dois motivos, primeiro porque nos últimos dois ou três
anos eu comecei a me interessar muito pela vida dos povos originários
da América Latina no momento de pré-chegada dos europeus. Me inte-
ressei pelo modo como esses vão sistematicamente se reorganizando a
partir das intervenções dos europeus ao longo desses 500 anos. Escolhi
a floresta, também, porque ela tem um ecossistema rico, tal como é a
formação de seus povos originários.

118
A Escola da Floresta é, inicialmente, um lugar de autoformação,
sou seu primeiro e provavelmente único aluno fixo. E é a partir dessa
autformação que eu concebo os projetos e programas que, de alguma
maneira, disseminam esses conhecimentos. A Escola já contou com dois
programas, um que aconteceu em junho, que eu intitulei Conversas de
junho, e que aconteceu no quintal da minha casa. Para essa primeira
edição eu convidei duas pessoas diferentes para apresentar suas pes-
quisas com relação a temas que envolvem a América Latina. Primeiro
foi a curadora Marta Ramos-Izquierdo, para falar sobre as condições de
trabalho do artista, principalmente no Brasil, e depois Sofía Olascoaga,
para falar sobre as comunidades que tinham foco em educação, surgidas
no México, nos anos 1970 e 1980.
O programa da Escola da Floresta aconteceu também na Ofi-
cina Cultural Oswald de Andrade. O programa inicial que propus foi a
leitura do Relatório Figueiredo, criado em função de uma CPI (Comissão
Parlamentar de Inquérito), que aconteceu em 1967 sobre o SPI (Sistema
de Proteção ao Índio), e que depois de extinto deu origem à Funai (Fun-
dação Nacional do Índio). Esse relatório, além de tratar sobre a corrup-
ção dentro do SPI, de venda de território indígena e de casos envolvendo
funcionários, também tratou, em grade parte, sobre o genocídio indígena
nesse período inicial da ditadura no Brasil.
O Relatório Figueiredo ficou desaparecido por 45 anos e, de-
pois de encontrado, foi digitalizado e está disponível na rede. Mas, por
ser muito pouco acessado, até mesmo pela comunidade indígena, achei
que seria importante torná-lo mais público, sem necessariamente repli-
cá-lo. Propus, então, uma leitura pública na Oficina Cultural Oswald de
Andrade, durante todo o período de funcionamento do espaço. A leitura
pública remete a uma prática escolar, é uma leitura em voz alta e serve
para que todos possam seguir juntos em um mesmo texto. É também
uma forma de transformar essas palavras escritas em um outro meio,
um meio sonoro.
Durante esse período, propus também alguns encontros. Na
primeira semana aconteceram os encontros gráficos, que foram uma
nova leitura da gráfica proposta na exposição “Paragrafo Único”. Realizei

119
também uma conversa sobre o Relatório Figueiredo com Marcelo Zelic,
pesquisador que encontrou o relatório em 2013. Houve, ainda, mais dois
encontros, nos quais propus temas que acredito serem necessários e
urgentes na América Latina, como a leitura coletiva e conversa sobre o
texto “Como fazer?”, de Tiqqun, um grupo anarquista francês. Não se
trata de um texto escrito por um coletivo latino-americano, mas acredito
que na atual conjuntura política ele é necessário. Precisamos pensar em
perguntas diferentes para lidar com o momento político atual que o País
vêm enfrentando. Ao invés de perguntar “o que fazer?”, podemos nos
perguntar “como fazer?”.
A segunda conversa da Escola da Floresta foi com o Salvador
Schavelzon, um antropólogo argentino que falou sobre Cosmopolítica
e Viver Bem / Bem Viver. Ambos são termos indígenas da Bolívia e do
Equador, associados à constituição desses países. Considero que a Es-
cola da Floresta é um processo artístico, ela vai acontecendo de maneira
experimental. Como a escola é, também, um lugar de autoformação, ela
depende muito dos assuntos e questões que vou tomando contato e lan-
çando como um programa em processo. A escola também está aberta,
e a ideia é que funcione, no futuro, a partir de propostas e interações de
outras pessoas e outros coletivos.

120
121
TIQ
122
QUN Órgão consciente do Partido Imaginário

Para esse espaço - o espaço desta dissertação -, a Escola da Floresta


adquiriu um formato específico. Em conversa com o artista Fabio Tremonte,
decidimos traduzir o texto “Comment faire?”, publicado na revista TIQQUN 2,
na primavera de 2001. Escrito por um grupo anônimo de anarquistas franceses,
esse texto foi escolhido por Tremonte para ser lido, na íntegra, durante a
permanência da Escola da Floresta na Oficina Cultural Oswald de Andrade. O
conteúdo desse texto revela um modo de pensar e agir da Escola da Floresta, e
também da Embarcação. É, portanto, de fundamental importância para nossas
práticas enquanto artistas, curadores, organizadores, professores e ativistas.
Não se trata de falar, aqui, sobre a Escola da Floresta, mas de construir, junto
com ela, um espaço de reflexão e discussão, que ultrapassa nossas próprias
práticas, desdobrando-se em um arquivo online e autônomo, distribuído
gratuitamente através da web. Agora em português, o que pode ser lido a
seguir é uma obra literária sobre “Como fazer?”, sobre o que é preciso fazer
estrategicamente e taticamente, para se opor às forças do Império, sobre
como podemos ser, nós mesmos, “singularidades quaisquer”. Aqui ela foi
diagramada com o intuito de ser recortada, a fim de se aproximar de outros
livros, de encontrar outros leitores e espaços possíveis, para além dessas
páginas contínuas e numeradas.

123
124
COMO Don’t know what I want, but I know how to get it.
-Sex Pistols, Anarchy in the UK

FAZER?

I
Vinte anos. Vinte anos de contrarrevolução. De contrarrevolução preventiva.
Na Itália1.
E fora dela.
Vinte anos de um sono eriçado de cercas de arame farpado, povoado de
vigias. De um sono dos corpos, imposto pelo toque de recolher.
Vinte anos. O passado não passa. Porque a guerra continua. Se ramifica.
Se prolonga.
Numa reticulação mundial de dispositivos locais. Numa calibragem inédita
das subjetividades. Numa nova paz superficial.
Uma paz armada
feita sob medida para cobrir o desenvolvimento de uma imperceptível
guerra civil.

Há vinte anos, era


o punk, o movimento de 77, a área da Autonomia,
os índios metropolitanos e a guerrilha difusa.
De repente surgia,
como saído de alguma região subterrânea da civilização,
todo um contra-mundo de subjetividades
que não queriam mais consumir, que não queriam mais produzir.
que já não queriam nem mesmo ser subjetividades. A revolução era molecular, a
contrarrevolução não o foi menos.

1 N. do A.: Este texto foi escrito para ser publicado na Itália, na primavera de 2001.
125
ELES2 dispuseram ofensivamente,
depois duradouramente,
toda uma complexa máquina de neutralizar o que é portador de
intensidade. Uma máquina de desativar tudo o que poderia explodir.

Todos os divíduos de risco, os corpos indóceis,


as agregações humanas autônomas.
E então foram vinte anos de estupidez, de vulgaridade, de isolamento e de
desolação.
Como fazer?

Se reerguer. Reerguer a cabeça. Por escolha ou por necessidade. Pouco


importa, na verdade, de agora em diante.
Se olhar nos olhos e se dizer que a gente tá recomeçando. Que todos
saibam, o quanto antes.
A gente tá recomeçando.
Acabou-se a resistência passiva, o exílio interior, o conflito por subtração,
a sobrevivência. A gente tá recomeçando. Em vinte anos, a gente teve
tempo pra ver. A gente entendeu direitinho. A demokracia para todos, a
luta “antiterrorista”, os massacres de Estado, a reestruturação capitalista e
sua Grande Obra de depuração social,
por seleção,
por precarização,
por normalização,
por ”modernização”.
A gente viu, entendeu. Os métodos e os objetivos. O destino que ELES
reservam para nós. E o que ELES nos negam. O estado de exceção. As
leis que colocam a polícia, a administração, a magistratura acima das leis.
A judicialização, a psiquiatrização, a medicalização de tudo o que sai do
quadro. De tudo o que escapa.
A gente viu, entendeu direitinho. Os métodos e os objetivos.

Quando o poder estabelece em tempo real sua própria legitimidade,


quando sua violência se torna preventiva
e seu direito é um “direito de ingerência”,
então já de nada serve ter razão. Ter razão contra ele.

2 N. do T.: Em francês ON, com letra maiúscula, que no jogo do texto se opõe a on, com
letra minúscula, que traduzimos por “a gente” (mas é importante lembrar sempre que on
é um pronome pessoal indefinido).
126
É preciso ser mais forte, ou mais astuto. É por isso
também
que a gente recomeça.

Recomeçar nunca é recomeçar alguma coisa. Nem retomar um assunto ali


onde a gente o tinha deixado. O que a gente recomeça é sempre outra coisa.
É sempre inaudito. Porque não é o passado que nos impele a isso, mas
precisamente o que nele
não
adveio.
E porque somos também nós mesmos, então, que recomeçamos.
Recomeçar quer dizer: sair da suspensão. Restabelecer o contato entre
nossos devires.
Partir,
de novo,
dali onde estamos,
agora.

Por exemplo, há golpes


que ELES já não nos darão mais.
O golpe da “sociedade”. A transformar. A destruir. A tornar melhor.
O golpe do pacto social. Que alguns quebrariam enquanto outros podem
fingir “restaurá-lo”.
Esses golpes, ELES já não nos darão mais.
É preciso ser um elemento militante da pequena-burguesia planetária,
um verdadeiro cidadão
para não ver que ela já não existe mais,
a sociedade.
Que ela implodiu. Que já não é mais que um argumento para o terror
infligido por aqueles que dizem a
re/presentar.
A ela que se ausentou.

Tudo o que é social se tornou alheio a nós.


Nos consideramos absolutamente livres de qualquer obrigação, de
qualquer prerrogativa, de qualquer pertencimento
sociais.
“A sociedade”,
é o nome que recebeu muitas vezes o Irreparável,
entre aqueles que queriam também fazer dele
o Inassumível.
127
Quem rejeita esse engodo deverá tomar
um passo de distância.
Operar
um ligeiro deslocamento
em relação à lógica comum
ao Império e à sua contestação,
a lógica da mobilização,
em relação a sua comum temporalidade,
a da urgência.

Recomeçar quer dizer: habitar essa distância. Assumir a esquizofrenia


capitalista no sentido de uma crescente faculdade de dessubjetivação.
Desertar mas guardando as armas.
Fugir, imperceptivelmente.
Recomeçar quer dizer: juntar-se à secessão social, à opacidade, entrar
em desmobilização,
subtraindo hoje da tal ou tal rede imperial de produção-consumo os
meios de viver e de lutar para, no momento escolhido,
afundá-la.

Falamos de uma nova guerra,


de uma nova guerra de resistentes. Sem front nem uniforme, sem exército
nem batalha decisiva.
Uma guerra cujos focos se desdobrem à distância dos fluxos mercantis
ainda que conectados a eles.
Falamos de uma guerra latente. Que tem o tempo.
De uma guerra de posição.
Que se trava ali onde estamos.
Em nome de ninguém.
Em nome de nossa própria existência,
que não tem nome.
Operar esse ligeiro deslocamento.
Já não temer seu tempo.
“Não temer seu tempo é uma questão de espaço”.
Na okupa. Na orgia. Na revolta. No trem ou na cidadezinha ocupada. Na
busca, em meio a desconhecidos, de uma free party inencontrável. Faço a
experiência
desse ligeiro deslocamento. A experiência
de minha dessubjetivação. Devenho
uma singularidade qualquer. Um jogo se insinua entre minha presença e
todo o aparato de qualidades que estão ordinariamente vinculadas a mim.
128
Nos olhos de um ser que, presente, quer me estimar pelo que eu sou,
saboreio a decepção, sua decepção por ver que me tornei tão comum, tão
perfeitamente acessível. Nos gestos de outro, uma inesperada cumplicidade.
Tudo o que me isola como sujeito, como corpo dotado de uma
configuração pública de atributos, sinto que se derrete. Os corpos se
desfiam em seus limites. Em seus limites, se indistinguem. Bairro após
bairro, o qualquer arruína a equivalência. E alcanço uma nudez nova,
uma nudez imprópria, como que vestida de amor.
E lá se pode escapar sozinho da prisão do Eu?

Na okupa, na orgia, na revolta, no trem ou na cidadezinha ocupada. Nos


encontramos.
Nos encontramos
como singularidades quaisquer. Isto é,
não sobre a base de um pertencimento comum,
mas de uma comum presença.
É essa
nossa necessidade de comunismo. A necessidade de espaços de noite, onde
possamos
nos encontrar
para além
de nossos predicados.
Para além da tirania do reconhecimento. Que impõe o re/conhecimento
como distância
final entre os corpos. Como inelutável separação.
Tudo o que ELES – o noivo, a família, o entorno, a empresa, o Estado, a
opinião – reconhecem em mim, é por aí que acreditam me pegar.
Pelo recordar constante do que sou, de minhas qualidades, ELES gostariam
de me abstrair de cada situação. Querem extorquir de mim em toda e
qualquer circunstância uma fidelidade a mim mesmo que é uma fidelidade
aos meus predicados.
ELES esperam de mim que me comporte como homem, empregado,
desempregado, mãe, militante ou filósofo.
ELES querem conter entre os marcos de uma identidade o curso
imprevisível de meus devires.
ELES querem me converter à religião de uma coerência
que ELES escolheram para mim.

Quanto mais sou reconhecida, mais meus gestos se encontram travados,


interiormente travados. Eis-me capturada na malha ultrafina do novo poder.
Nas redes impalpáveis da nova polícia: A POLÍCIA IMPERIAL DAS QUALIDADES.
129
Há toda uma rede de dispositivos em que me moldo para me “integrar”, e
que incorporam em mim essas qualidades.
Todo um pequeno sistema de fichamento, de identificação e de
“policiamento” mútuos.
Toda uma prescrição difusa da ausência.
Todo um aparato de controle comporta/mental, que visa ao panoptismo,
à privatização transparencial, à atomização.
E no qual me debato.

Preciso me tornar anônima. Para estar presente.


Quanto mais anônima sou, mais estou presente.
Preciso de zonas de indistinção
para acessar o Comum.
Para já não me reconhecer em meu nome. Para já não escutar em meu nome
senão a voz que o chama.
Para fazer consistir o como dos seres, não o que são, mas como são o
que são. Sua forma-de-vida.
Preciso de zonas de opacidade onde os atributos,
mesmo criminais, mesmo geniais,
já não separam dos corpos.

Devir qualquer. Devir uma singularidade qualquer, não está dado.


Sempre possível, mas nunca dado.
Há uma política da singularidade qualquer.
Que consiste em arrancar do Império
as condições e os meios,
mesmo intersticiais,
de se experimentar como tal. É uma política, porque supõe uma
capacidade de enfrentamento,
e porque uma nova agregação humana
lhe corresponde.
Política da singularidade qualquer: liberar esses espaços nos quais já
nenhum ato é atribuível a qualquer corpo dado.
Onde os corpos reencontram a aptidão ao gesto que a engenhosa
distribuição dos dispositivos metropolitanos – computadores, automóveis,
escolas, câmeras, celulares, academias, hospitais, televisões, cinemas, etc. –
tinha roubado deles.
Reconhecendo-os.
Imobilizando-os.
Fazendo com que girem no vazio.
Fazendo a cabeça existir separada do corpo.
130
Política da singularidade qualquer.
Um devir-qualquer é mais revolucionário que qualquer ser-qualquer.
Liberar espaços nos libera cem vezes mais que qualquer “espaço liberado”.
Mais que de colocar em ato um poder, gozo de colocar em circulação
minha potência.
A política da singularidade qualquer reside na ofensiva. Nas
circunstâncias, nos momentos e nos lugares em que serão arrancados
as circunstâncias, os momentos e os lugares
desse anonimato,
de uma parada momentânea em estado de simplicidade,
a ocasião de extrair de todas as nossas formas a pura adequação à presença,
a ocasião de estar e ser, enfim,
aí.

II
COMO FAZER? Não O que fazer? Como fazer? A questão dos meios.
Não a dos fins, a dos objetivos,
do que é preciso fazer, estrategicamente, no absoluto.
A questão do que a gente pode fazer, taticamente, em situação,
e da aquisição dessa potência.
Como fazer? Como desertar? Como isso funciona? Como conjugar
minhas feridas e o comunismo? Como permanecer em guerra sem perder
a ternura?
A questão é técnica. Não um problema. Os problemas são rentáveis.
Alimentam os experts.
Uma questão.
Técnica. Que se desdobra em questão das técnicas de transmissão dessas
técnicas.
Como fazer? O resultado sempre contradiz a meta. Porque postular uma
meta
ainda é um meio,
outro meio.

O que fazer? Babeuf, Tchernychevski, Lenin. A virilidade clássica reivindica


um analgésico, uma miragem, alguma coisa. Um meio para se ignorar ainda
mais um pouco. Enquanto presença. Enquanto forma-de-vida. Enquanto
ser em situação, dotado de inclinações.

131
De inclinações determinadas.
O que fazer? O voluntarismo como derradeiro niilismo. Como niilismo
próprio
à virilidade clássica.
O que fazer? A resposta é simples: submeter-se uma vez mais à lógica da
mobilização, à temporalidade da urgência. Sob pretexto de rebelião.
Postular fins, palavras. Tender à sua realização. À realização das palavras.
Enquanto isso, deixar a existência para mais tarde. Colocar-se entre
parêntesis. Alojar-se na exceção de si. À distância do tempo. Que passa.
Que não passa. Que para.
Até… Até a próxima. Meta.
O que fazer? Dito de outra maneira: inútil viver. Tudo o que você não
viveu, a História devolverá pra você.
O que fazer? É o esquecimento de si que se projeta sobre o mundo.
Como esquecimento do mundo.

Como fazer? A questão do como. Não do que um ser, um gesto ou uma coisa
é, mas de como ele é isso que ele é. De como seus predicados se relacionam
com ele.
E ele com eles.
Deixar ser. Deixar ser a hiância entre o sujeito e seus predicados. O abismo
da presença.
Um homem não é “um homem”. “Cavalo branco” não é “cavalo”.
A questão do como. A atenção ao como. A atenção à maneira como uma
mulher é, e não é,
uma mulher – são necessários dispositivos para fazer de um ser de sexo
feminino “uma mulher”,
ou de um homem de pele negra “um negro”.
A atenção à diferença ética. Ao elemento ético. Às irredutibilidades que o
atravessam. O que se passa entre os corpos numa ocupação é mais
interessante que a própria ocupação.
Como fazer? quer dizer que o enfrentamento militar com o Império deve
ser subordinado à intensificação das relações no interior do nosso partido.
Que o político não é mais que um certo grau de intensidade no seio do
elemento ético. Que a guerra revolucionária não deve mais ser confundida
com sua representação: o momento bruto do combate.

A questão do como. Devir atento ao ter-lugar das coisas, dos seres. Ao seu
acontecimento. À obstinada e silenciosa saliência de sua temporalidade
própria sob o esmagamento planetário de todas as temporalidades
pela da urgência.
132
O O que fazer? como ignorância programática disso. Como fórmula
inaugural do desamor atarefado.

O O que fazer? volta. Há alguns anos. Desde a metade dos anos 90 mais do
que desde Seattle. Um revival da crítica finge enfrentar o Império
com os slogans, com as receitas dos anos 60. Salvo que, desta vez, se simula.
Se simula a inocência, a indignação, a boa consciência e a necessidade de
sociedade. Volta-se a colocar em circulação toda a velha gama dos afetos
socialdemocratas. Dos afetos cristãos.
E, de novo, temos manifestações. As manifestações mata-desejo. Em que
não se passa nada.
E que já não manifestam senão
a ausência coletiva.
Para sempre.

Para os que têm nostalgia de Woodstock, da maconha, de maio de 68 e do


militantismo, aí estão as contra-cúpulas. ELES reconstruíram o cenário,
mas sem o possível.
Eis o que o O que fazer? prescreve hoje: ir ao outro lado do mundo
contestar a mercadoria global
para voltar, depois de um grande banho de unanimidade e de separação
mediatizada,
a se submeter à mercadoria local.
Na volta, está a foto no jornal… Todos sozinhos juntos! Era uma vez...
Que juventude!...
Pena para os poucos corpos vivos perdidos ali, buscando em vão um
espaço para seu desejo.
Voltam um pouco mais entediados. Um pouco mais esvaziados. Reduzidos.
De contra-cúpula em contra-cúpula, acabarão por fim compreendendo. Ou não.

A gente não contesta o Império a respeito de sua gestão. A gente não


critica o Império.
A gente se opõe às forças dele.
Ali onde a gente tá.
Dizer sua opinião sobre tal ou tal alternativa, ir lá onde ELES nos
chamam, tudo isso já não faz sentido. Não existe projeto global
alternativo ao projeto global do Império. Porque não existe projeto global
do Império. Existe uma gestão imperial. Toda gestão é ruim. Os que
reivindicam outra sociedade fariam melhor começando por ver
que já não existe sociedade. E talvez cessassem então de ser aprendizes de
gestores.
Cidadãos. Cidadãos indignados.
133
A ordem global não pode ser tomada por inimiga. Diretamente.
Pois a ordem global não tem lugar. Pelo contrário. É, antes, a ordem dos
não-lugares.
Sua perfeição não é ser global, mas ser globalmente local. A ordem global é o
esconjuro de todo e qualquer acontecimento porque é a ocupação
acabada, autoritária, do local.
A gente só pode se opor à ordem global localmente. Por meio da extensão
das zonas de sombra sobre os mapas do Império. Colocando-as em
contato progressivamente.
Subterraneamente.

A política que vem. Política da insurreição local contra a gestão global. Da


presença recuperada sobre a ausência de si. Sobre a alienação cidadã, imperial.
Recuperada pelo roubo, a fraude, o crime, a amizade, a inimizade, a conspiração.
Pela elaboração de modos de vida que sejam também
modos de luta.
Política do ter-lugar.
O Império não tem lugar. Administra a ausência fazendo pairar por toda a
parte a ameaça palpável da intervenção policial. Quem procura no
Império um adversário contra o qual se medir encontrará o aniquilamento
preventivo.
Ser percebido, daqui em diante, é ser vencido.

Aprender a devir indiscerníveis. A nos confundir. Voltar a ter gosto


pelo anonimato,
pela promiscuidade.
Renunciar à distinção,
Para desarticular a repressão:
propiciar ao enfrentamento as condições mais favoráveis.
Devir astutos. Devir impiedosos. E para isso
devir quaisquer.

Como fazer? é a pergunta das crianças perdidas. Aquelas a quem não se


disse. Que têm os gestos inseguros. A quem nada foi dado. Cuja
criaturalidade, cuja errância, não cessa de se manifestar.
A revolta que vem é a revolta das crianças perdidas.
O fio da transmissão histórica foi cortado. Até mesmo a tradição
revolucionária nos deixa órfãos. O movimento operário, sobretudo. O
movimento operário que se transformou em instrumento de uma
integração superior no Processo. No novo Processo, cibernético, de
valorização social.
134
Em 1978, foi em seu nome que o PCI, o “partido de mãos limpas”, lançou
a caça aos Autônomos.
Em nome de sua concepção classista do proletariado, de sua mística da
sociedade, do respeito ao trabalho, ao útil e à decência.
Em nome da defesa dos “avanços democráticos” e do Estado de direito.
O movimento operário que terá sobrevivido a si mesmo no operaísmo.
Única crítica existente do capitalismo do ponto de vista da Mobilização Total.
Doutrina temível e paradoxal,
que terá salvado o objetivismo marxista não falando mais senão de “subjetividade”.
Que terá levado a um refinamento inédito a denegação do como.
A reabsorção do gesto em seu produto.
A urticária do futuro anterior.
Do que cada coisa terá sido.

A crítica se tornou vã. A crítica se tornou vã porque equivale a uma


ausência. Quanto à ordem dominante, todo o mundo sabe a que se ater. Já não temos
necessidade de teoria crítica. Já não temos necessidade de professores. A crítica gira a
favor da dominação, de agora em diante. Até
mesmo a crítica da dominação.
Ela reproduz a ausência. Fala-nos dali onde não estamos. Nos impulsiona
para outro lugar. Nos consome. É covarde. E fica ali bem protegidinha
quando nos manda para a carnificina.
Secretamente enamorada de seu objeto, não para de mentir para nós.
Daí a brevidade dos idílios entre proletários e intelectuais engajados.
Esses casamentos de conveniência em que não se tem a mesma ideia nem do
prazer nem da liberdade.
Mais que de novas críticas, é de novas cartografias
que necessitamos.
Cartografias não do Império, mas das linhas de fuga para fora dele.
Como fazer? Precisamos de mapas. Não de mapas do que está fora do mapa.
Mas mapas de navegação. Mapas marítimos. Ferramentas de orientação. Que
não procuram dizer, representar o que existe no interior dos diferentes
arquipélagos da deserção, mas nos indicam como chegar até eles.
Portulanos.

135
III
Terça-feira, 17 de setembro de 1996, pouco antes do amanhecer. O ROS
(Reagrupamento Operacional eSpecial) coordena em toda a península a
detenção
de 70 anarquistas italianos.
Trata-se de pôr um fim a 15 anos de investigações infrutíferas a respeito
dos anarquistas insurrecionalistas.
A técnica é conhecida: fabricar um “arrependido” e fazê-lo denunciar a
existência de uma
vasta organização subversiva hierarquizada.
Depois, com base nessa criação quimérica, acusar todos aqueles a que se
quer neutralizar de fazerem parte dela.
Ainda uma vez, secar o mar para pegar os peixes.
Mesmo quando se trata apenas de um tanque minúsculo.
E de uns poucos lambaris.

Uma “nota informativa de serviço” escapou ao ROS


em relação a este assunto.
Ele aí expõe sua estratégia.
Fundado nos princípios do general Dalla Chiesa, o ROS é o protótipo do
serviço imperial de contrainsurreição.
Ele trabalha sobre a população.
Alí onde uma intensidade se produziu, ali onde algo se passou, ele é o
french doctor da situação. Aquele que instala,
sob o pretexto de profilaxia,
os cordões sanitários cujo objetivo é isolar
o contágio.
O que ele teme, ele diz. Nesse documento, ele escreve. O que ele teme é
“o pântano do anonimato político”.
O Império tem medo.
O Império tem medo de que nos tornemos quaisquer. Um meio
delimitado, uma organização combatente. Ele não os teme. Mas uma
constelação expansiva de okupas, de fazendas autogeridas, de moradias
coletivas, de ajuntamentos fine a se stesso, de rádios, de técnicas e de ideias.
O conjunto conectado por uma intensa circulação dos corpos e dos afetos
entre os corpos. Aí são outros quinhentos.

136
A conspiração dos corpos. Não dos espíritos críticos, mas das corporeidades críticas. Eis o
que o Império teme. Eis o que lentamente advém.
com o aumento dos fluxos,
da deserção social.
Há uma opacidade inerente ao contato dos corpos. E que não é compatível com o reinado
imperial de uma luz que já não ilumina as coisas
senão para desintegrá-las.
As Zonas de Opacidade Ofensiva não estão
por ser criadas.
Já estão aí, em todas as relações em que ocorre uma verdadeira
colocação em jogo dos corpos.

O que é preciso é assumir que fazemos parte dessa opacidade. E se


apropriar dos meios
de estendê-la,
de defendê-la.
Por toda parte onde se consegue desarticular os dispositivos imperiais,
arruinar todo o trabalho cotidiano do Biopoder e do Espetáculo para
excepcionar da população uma fração de cidadãos. Para isolar novos
untorelli. Nessa indistinção reconquistada
forma-se espontaneamente
um tecido ético autônomo,
um plano de consistência
separatista.

Os corpos se unem. Recuperam o fôlego. Conspiram.


Que tais zonas estejam condenadas ao esmagamento militar pouco
importa. O que importa,é, a cada vez,
preparar uma via de retirada segura o bastante. Para voltar a se juntar em
outra parte.
Mais tarde.
O que servia de base ao problema do O que fazer? era o mito da greve geral.
O que responde à pergunta Como fazer? é a prática da GREVE HUMANA.
A greve geral dava a entender que havia uma exploração limitada
no tempo e no espaço,
uma alienação parcial, devida a um inimigo reconhecível, portanto derrotável.
A greve humana responde a uma época em que os limites entre trabalho e
vida esmaecem completamente
Em que consumir e sobreviver,
produzir “textos subversivos” e precaver-se dos efeitos mais nocivos da civilização
industrial,
137
praticar esportes, fazer amor, ser pai ou tomar Prozac.
Tudo é trabalho.
Pois o Império gere, digere, absorve e reintegra
tudo o que vive.
Mesmo “o que eu sou”, a subjetivação que não desminto hic et nunc,
tudo é produtivo.
O Império pôs tudo para trabalhar.
Idealmente, meu perfil profissional coincidirá com meu próprio rosto.
Mesmo que não sorria.
Afinal, as caretas do rebelde vendem muito bem.

Império, quer dizer que os meios de produção se converteram em meios


de controle ao mesmo tempo que o inverso ocorria.
Império significa que de agora em diante o momento político domina
o momento econômico.
E contra isso, a greve geral já não pode nada.
O que é preciso opor ao Império é a greve humana.
Que nunca ataca as relações de produção sem atacar ao mesmo tempo
as relações afetivas que as sustentam.
Que mina a economia libidinal inconfessável,
restitui o elemento ético - o como - reprimido em cada contato entre os
corpos neutralizados.
A greve humana é a greve que, ali onde ELES esperavam
tal ou qual reação previsível,
tal ou qual tom contrito ou indignado,
PREFERE NÃO.
Se esquiva ao dispositivo. Satura-o, ou o explode.
Se recobra, preferindo
outra coisa.
Outra coisa que não está circunscrita nos possíveis autorizados pelo dispositivo.
No guichê de tal ou tal serviço social, nos caixas de tal ou tal supermercado,
numa conversa polida, durante uma intervenção da polícia,
de acordo com a relação de forças,
a greve humana faz o espaço entre os corpos consistir,
pulveriza o double bind em que estão presos,
acua-os à presença.
Existe todo um luddismo por inventar, um luddismo das engrenagens humanas
que fazem girar o Capital.

138
Na Itália, o feminismo radical foi uma forma embrionária da greve humana.
“Basta de mães, de mulheres e de filhas, destruamos as famílias!” era um convite ao gesto
de romper os encadeamentos previstos,
de liberar os possíveis comprimidos.
Era um atentado aos comércios afetivos escrotos, à prostituição ordinária.
Era um apelo à superação do casal, como unidade elementar de gestão
da alienação.
Apelo a uma cumplicidade, pois.
Prática insustentável sem circulação, sem contágio.
A greve das mulheres convocava implicitamente a dos homens e das
crianças, convidava a esvaziar as fábricas, as escolas, os escritórios e as prisões,
a reinventar para cada situação outra maneira de ser, outro como.
A Itália dos anos 70 era uma gigantesca zona de greve humana.
As autorreduções, os assaltos, os bairros okupados, as manifestações
armadas, as rádios livres, os inumeráveis casos de “Síndrome de Estocolmo”,
inclusive as famosas cartas de Aldo Moro preso, já perto do final, eram
práticas de greve humana.
Os stalinistas falavam então de “irracionalidade difusa”, só pra ter uma ideia.

Há escritores também
nos quais se está o tempo todo
em greve humana.
Em Kafka, em Walser,
ou em Michaux,
por exemplo.

Adquirir coletivamente essa faculdade de sacudir


as familiaridades.
Essa arte de frequentar em si mesmo
o hóspede mais inquietante.

Na guerra presente,
Em que o reformismo de urgência do Capital deve vestir os hábitos do
revolucionário para se fazer ouvir,
em que os combates mais demokratas, os das contra-cúpulas,
recorrem à ação direta,
um papel está reservado a nós.
O papel de mártires da ordem democrática,
que golpeia preventivamente todo corpo que poderia golpear.
Eu deveria me deixar imobilizar diante de um computador enquanto as
centrais nucleares explodem, enquanto ELES brincam com meus
139
hormônios ou de me envenenar.
Deveria entoar a retórica da vítima. Já que, é bem sabido,
todo o mundo é vítima, até os próprios opressores.
E saborear que uma discreta circulação do masoquismo
volte a dar encanto à situação.

A greve humana, hoje, é


recusar assumir o papel da vítima.
Atacar esse papel.
Se reapropriar da violência.
Arrogar-se a impunidade.

Fazer os cidadãos petrificados compreenderem


que mesmo que não entrem em guerra, já estão nela de qualquer jeito.
Que ali onde ELES dizem que é isso ou morrer, é sempre,
na realidade,
isso e morrer.

Assim,
de greve humana
em greve humana, propagar
a insurreição,
onde já não há senão,
onde somos todos,
singularidades
quaisquer.

NENHUM DIREITO RESERVADO


Tradução colaborativa: Fabio Tremonte, Fernando Scheibe e Kamilla Nunes
Florianópolis e São Paulo, dezembro de 2016.

140
141
142
SESSÃO
CAPACETE ENTRETENIMENTOS

Em 2012, iniciei uma pesquisa sobre o Capacete Entretenimentos,


um espaço de interlocução e intermediação, criado por Helmut
Batista, na cidade do Rio de Janeiro, em 1998. Desde então venho
acompanhando os projetos e programas do Capacete a distância e,
em 2016, durante a disciplina “Outros espaço da arte”, ministrada
por Regina Melim no Programa de Pós Graduação em Artes Visu-
ais do Ceart/Udesc, mergulhei no “microestado Capacete” com os
pesquisadores Ana Camorlinga, Gabi Bresola, Marcos Walickosky
e Patrícia D’Aquino, pesquisa esta que culminou no conteúdo so-
bre esse espaço para a revista ¿Hay en portugués? 5, disponível em
http://www.plataformaparentesis.com/site/hay_en_portugues/
Para esta sessão, proponho o texto meu e/ou nosso, uma reflexão
sobre o Capacete Entretenimentos a partir de uma perspectiva crí-
tica e histórica. O que o Capacete se propõe a realizar, suas arti-
culações, o seu por-em-contato - as proposições dos artistas para
com a cidade, os deslocamentos, os programas de residência e de
formação -, implica toda uma teoria. Uma teoria que diz respeito
ao viver junto, aos acercamentos.

143
144
Nunca ter tentado. Nunca ter falhado. Não importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor. Samuel Beckett
meu
e/ou
nosso

capacete é algo que começou em 1998. capa-


cete foi um programa de residência para ar-
tistas e agora é um programa educativo [...]
indefinido. capacete não é uma galeria, não é
um centro cultural, não é um museu. capacete
não é parede, capacete não é limite, capace-
te não é fronteira. capacete não é um terri-
tório de submissão ao sistema da arte, é um
território que não nega a existência desse
sistema, mas que pensa os efeitos tóxicos
desse sistema. brasil, de algum modo, não é
o capacete. não é a suécia. não é organiza-
do. nunca é completamente formalizado. não
é programado. isto não é uma pergunta muito
simples. não tenho ideia. eu não consigo di-
zer o que não é porque poderia ser qualquer
coisa. é a arte no rio. é uma companhia de
entretenimentos. capacete é um objeto que a
gente usa pra proteger a cabeça. capacete
é uma ópera situada no rio. é que nem uma
porta, ou uma janela. é um trator, um ímã.
um lugar para pensar. é um lugar que a gente
faz artes e desenha. tem o potencial de ser
o paraíso, mas também tem o potencial de ser
um desastre. a vida pós-apocalíptica, pós-
-antropocena, depois do fim da eletricidade,
da internet, da água.

Transcrição de fragmentos do vídeo de campa-


nha de financiamento coletivo para o programa
artístico e educacional de 2016, do Capace-
te Entretenimentos. Disponível em: https://
www.kickstarter.com/projects/2058335054/
brazilian-artists-at-capacete?lang=de.
Acesso em 14 de junho de 2016.

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Pensamentos irracionais deveriam ser seguidos absoluta e lo-
gicamente – essa é a quinta Sentença sobre Arte Conceitual de Sol
LeWitt1, publicada pela primeira vez em 1969 e que poderia, desloca-
da de seu contexto, ser a primeira Sentença sobre Capacete Entre-
tenimentos, um espaço movente criado em 1998, no Rio de Janeiro
por Helmut Batista2. Se há algo que pode ser dito sobre o Capacete,
é que ele pôde inventar sua própria maneira de organização, criando
1 COTRIM, Cecilia; condições mais fluidas de veiculação da arte e de artistas e propon-
FERREIRE, Glória. Escritos
de artistas: anos 60/70. 2 do uma mudança de paradigma e de estrutura político-econômica
ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2009, p. 205. no circuito artístico local e nacional.
O Capacete surgiu como “ESPAÇO P”, no apartamento 904,
2 Helmut Batista
(Rio de Janeiro, 1964) es-
no Flamengo, onde aconteceram duas exposições individuais. No
tudou ópera na ESAT e tra- ano seguinte, seu nome foi alterado para “Espaço Purplex”, momen-
balhou na Ópera de Vienna.
Em 1998 fundou o CAPACETE to em que foi realizada a instalação “White Cue”, do artista Rubens
ENTRETENIMENTOS. Como ar-
tista, até 1997, expôs na Mano, no subsolo desocupado de um restaurante em Santa Teresa.
Gallery Schipper, Air de
Paris, Massimo de Carlo, Nesse momento, o Capacete já vinha desenhando o que se tornou,
Von Senger entre outras.
Em 2013 curou e organizou mais tarde, uma constante em seus projetos e também um meio de
uma mostra no Portikus em
Frankfurt.
sobrevivência: a parceria com instituições e o deslocamento de suas
atividades para lugares pouco convencionais, no que diz respeito ao
3 AGORA – Agência de desenvolvimento de projetos artísticos e curatoriais.
Organismos Artísticos (Rio
de Janeiro, RJ, 1999 a
No mesmo ano, em setembro de 1999, o “Espaço Purplex”
2003). Em agosto de 1999, passou a se chamar CAPACETE ENTRETENIMENTOS. Com esse
Eduardo Coimbra, Raul Mou-
rão e Ricardo Basbaum se nome, o Capacete realizou projetos individuais de artistas como
uniram para criar o AGORA,
cujas atividades envolve- Marssares, no Aterro do Flamengo, e Tiago Carneiro da Cunha, na
ram colóquios, seminários
e exposições. As ativi- Fundição Progresso. Em 2000, o CAPACETE ENTRETENIMENTOS,
dades da agência foram
precedidas por uma série junto com o AGORA: Agência de Organismos Artísticos3, inaugurou
de realizações coletivas,
iniciadas em 1988, com a
o espaço AGORA/CAPACETE, localizado na Lapa, com a participação
criação do Visorama, grupo do grupo Chelpa Ferro, que apresentou a performance “A garagem
de discussão em torno das
questões modernas e con- do gabinete de Chico”. Durante um período de dois anos, foram rea-
temporâneas em arte.
lizadas diversas ações, como mesas-redondas, exposições, shows,
projeções de filmes, lançamentos de publicações etc., além do de-


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senvolvimento de dois números da Revista ítem e da construção de
um website. Desfeita a parceria, o Capacete continuou como CAPACE-
TE ENTRETENIMENTOS, nome que mantém até os dias atuais.
A insistência do Capacete em existir sem abrir mão de uma
política do corpo, da hospitalidade4 e do agenciamento como seu pró-
prio conteúdo, é uma qualidade que implica transmutações. A questão
que surge é como o Capacete desloca sua atenção para o processo
artístico e para o contexto social, político, econômico e afetivo do País.
4 No texto “En-
É só a partir do “como” que poderemos observar o sistema circulatório tre fronteiras impingidas
e cidades afet(u)adas”,
desse espaço, sua proximidade com a cidade e seu foco em organizar, publicado em “Livro para
ler: 10 anos de Capacete”,
dinamizar e documentar a produção individual dos artistas. Marcia Ferran discorre so-
O Capacete, nesse esquema, é uma das mais notáveis expe- bre a noção de “hospitali-
dade” e o Capacete Entre-
riências do tipo no Brasil. Do ponto de vista do estudo sobre espaços tenimentos.

autônomos, além de ser o mais antigo ainda em atividade, foi também


uma referência para a criação de diversos outros espaços e projetos,
de artistas, críticos, curadores etc., interessados em outros tipos de
organização da arte e seus agentes. Certamente o Capacete abriu um
leque de questões que não se referem apenas ao ambiente do Rio de
Janeiro, mas da América Latina e mundo.
Se a questão não é a “obra de arte”, mas o processo artísti-
co, se não é o local ou o global, mas o pensamento global em prol de
uma atuação local, se não é a “exposição” mas o café da manhã como
fórum central de convergências de ideias e trocas, se não é o ateliê,
mas a praia, então podemos considerar que a proposição do Capace-
te é a de constituir uma diversidade de proposições não centraliza-
das ou hierarquizadas. Brutal ou gradativo, esse movimento (que não
é apenas de deslocamento físico, mas intelectual e artístico) coloca
em debate tanto os modelos de gestão dos espaços de arte, quanto
a precariedade de um sistema que subvaloriza o artista e seus pro-
cessos de investigação e supervaloriza a “obra de arte” e as grandes
exposições.

147
Por isso, está em jogo a micropolítica. Ela irrompe entre nós.
Nesses termos, a curadora argentina Teresa Riccardi compreende o
Capacete como um microestado, um espaço que existe fisicamente,
mas que, como uma Fita de Moebius, possui um desdobramento
temporal e pode estar em qualquer lugar do mundo. Reconhece que
a política desse microestado como movimento, multiplicado, oscilante
dos serviços e do ócio em sua radicalidade mais extrema tem um ob-
jetivo: aproximar os corpos uns dos outros5. A produção artística con-
vencional não é o que interessa ao Capacete, o ponto em questão é
o seu funcionamento num contexto social. É o tempo de estabelecer
conexões e desvios, de caminhar por uma trilha, de conhecer a cida-
de para além do cartão postal, da superfície, da aparência. Por isso
seus programas de residência são desenhados para refletir o caráter
5 BATISTA, Helmut
(org.). Livro para ler: interdisciplinar das práticas estéticas contemporâneas, trabalhando
10 anos de capacete. RJ:
Capacete Entretenimentos, com artistas e pensadores cujos esforços articulam o mundo teórico
2008, p. 36 com apresentações artísticas em diversos formatos e dinâmicas, e para
diferentes públicos6.
6 Disponível em:
http://capacete.org/. A noção de “residência” para o Capacete não se dá, por-
Acessado em: em 09 de ja-
neiro de 2017.
tanto, em torno de um tempo de produção de algo para algum lugar
(museus, galerias, instituições de arte), mas de um tempo de refle-
xão sobre o lugar de atuação do artista e as infinitas possibilidades
de reação que se pode estabelecer a partir do contexto em que se
está inserido. O que se encontra em toda parte nas publicações do
Capacete, é que o processo não é o caminho pelo qual se chega a
algum lugar, é o próprio lugar. A partir disso, é fácil perceber como
se dá a construção de seus programas, seja os de residência, as
escolas, as universidades de verão, o jornal, as unidades móveis, as
festas, os almoços, as clínicas, entre outros tantos.
Para Helmut Batista, as questões conceituais surgem à
medida que as condições do entorno são aprimoradas, tomando

148
como base uma vivência real, e não o contrário. Por isso os pro-
gramas e projetos do Capacete acabam por surgir através do corpo
a corpo, do tête à tête. Por isso também o Capacete não pode ser
desvinculado da figura do seu gestor, um personagem que se apre-
senta sempre como alguém que gostava de ópera. Mas talvez a me-
lhor definição já feita sobre o Helmut/Capacete seja do artista Jorge
Menna Barreto, em forma de pergunta ao próprio Helmut, no “livro
para responder”7, ao fazer uma analogia entre Helmut e Helmet:
quando um motoboy veste seu capacete, por exemplo, oculta-se a face
e ele se dilui em uma identidade que é coletiva, em que predomina a voz
do bando. Como você entende a pulsão por estar “por trás da cena”, go-
zando de certa invisibilidade, na posição de um diretor de cena, talvez, 7 AYERBE, Julia;
ou na de um autor que esvazia de sentido uma face individual autoral e BARRETO, Jorge Menna;
BATISTA, Helmut; LANARI,
coletiviza o seu gesto? Mariana; SCHWAFATY, Beto;
(Org.). Livro para Respon-
O título deste texto, Meu e/ou nosso, coloca em contexto a der. São Paulo: Capacete
Entretenimentos, 2012.
concepção do Capacete, na qual a atenção ao coletivo e à compreen-
são concomitante aos processos artísticos individuais configuram
um modo de estar no mundo, de se relacionar com o meio. Não pa-
8 BATISTA, Helmut
rece haver necessidade de formalidades, de institucionalização do (org.). Livro para ler:
10 anos de capacete. RJ:
gesto ou da arte, embora ambas estejam, sempre, implicadas no fa- Capacete Entretenimentos,
2008, p. 11.
zer artístico ou na gestão de um espaço de arte. Ocultar, nesse caso,
não significa neutralizar, e por isso a importância da aproximação
entre Helmut e o Capacete: um é reflexo do outro. E por isso, tam-
bém, con(fundem-se).
Em seu 10º aniversário, o Capacete lançou o livro “livro
para ler – 10 anos de Capacete”8. Logo no início do prólogo, Helmut
diz o seguinte: Sempre me perguntei se catálogos, impressos para di-
ferentes eventos da esfera da arte/cultura, despertam sincera curiosi-
dade e são realmente lidos, se realmente há algum interesse do leitor
e se há outra necessidade além da simples produção, documentação,
legitimação e projeção de atividades e carreiras. Essa pergunta, em-

149
150
bora pareça simples e ingênua, reflete o modo de agir e pensar do
Helmut/Capacete. Um problema que diz respeito a todos nós e que,
pelas circunstâncias, mostra perfeitamente as implicações do Ca-
pacete na sociedade, no que diz respeito à sua constante expansão
enquanto plataforma de troca, produção, formação e veiculação da/
em arte.
Se há uma real preocupação em organizar, dinamizar e do-
cumentar a produção individual dos artistas, perguntar-se como essa
produção poderá chegar até a sociedade, poderá ser vista e/ou lida,
é uma questão fundamental. O Capacete é movente porque suas
proposições não se dão apenas num espaço físico determinado,
mas porque a ingerência de outros tipos de deslocamentos sem-
pre foram seu lugar de ação e reflexão. Um problema próximo diz
respeito também ao conteúdo: é o lugar atribuído à percepção do
entorno, às relações que se estabelecem no encontro, na escrita,
no constante compartilhamento de experiências e nas colaborações
estabelecidas com outros espaços, projetos e instituições.
Em outras palavras, agenciar significa friccionar, tencionar
e criar lugares de embate para que se possa admitir a pluralidade
de grupos e interesses. O Capacete parte do princípio que os momen- 9 Texto de Helmut
Batista “quem-somos-2010.
tos mais importantes acontecem nos “entre-espaços” e “entre-tempos” pdf ” enviado por e-mail
em 2013.
e de forma flutuante e instável e, portanto, de forma imprevisível e in-
controlável9. Tocamos no ponto que me parece cada vez mais im-
portante: delinear, a partir de um espaço autônomo - e portanto
não governamental e sem fins lucrativos -, uma organização política
real e afetiva. A razão de ser dessa reação aos formatos dominantes
de espaços de/para arte, é permanecer em constante processo de
construção e invenção, processos estes que implicam um olhar mais
atento e contestatório para o estado das coisas, a fim de conciliar o
poder criativo do indivíduo com o impulso imaginativo da sociedade.
Essa questão requer considerar a análise da organização

151
interna do Capacete. Contraditoriamente, se por um lado Helmut é
Capacete, e Capacete é Helmut, por outro, o Capacete foi construído
a partir de uma rede de profissionais que participaram ativamente
da elaboração e realização de seus programas. Essa informação se
intensifica na medida em que o próprio site do espaço apresenta,
no link “Quem somos”, uma lista de pouco mais de cem nomes, lo-
calizados logo abaixo da frase: O CAPACETE existe através de todos
profissionais que por ele passaram nos 16 anos de existência entre 1998
a 2014.
A organização do Capacete se pretende móvel, e sua mobi-
lidade está ligada aos esforços da classe artística em manter ativo
um espaço para criação e dispersão. Para Marcelo Expósito, artista
e ativista político espanhol, é preciso haver uma flexibilização do
entendimento da prática artística e, por conseguinte, da prática de
arte. Pode-se dizer, por exemplo, que o Capacete Entretenimentos,
considerando todo o dito, assimila a prática artística em seus modos
de organização. Para usar uma fala de Expósito, se pensarmos justa-
mente a prática da arte como a invenção de modos de organização, de
modos de organizar a produção e a cooperação social... Aí temos uma
10 FRANKOWICZ, Mar- chave10. Ainda de acordo com ele, não estamos produzindo um objeto,
cos. (Org.). Si, tiene en
portugués. 1ed. São Paulo: não estamos produzindo uma coisa tangível, estamos produzindo tan-
FUNARTE, 2015, v. 1, p.
42. gíveis e intangíveis.
Há uma certa dificuldade em juntar as peças do quebra
cabeça que conforma o Capacete Entretenimentos, quando não se
está participando ativamente do espaço. E há razões para isso. Uma
delas é que o Capacete, por priorizar a documentação do trabalho
dos artistas que por ali passam, acaba por deixar de lado a siste-
matização de sua própria história. Significa dizer que sua história,
como a da maioria dos artistas e instituições do País, exercita-se no
dinamismo da oralidade, longe da sistematização linear da escrita.
Outra, é que talvez sequer haja interesse para isso, pelo simples fato

152
153
11 A Merzbau (Co-
luna Merz) teve iní-
cio em 1920 e durou
treze anos, até ser de que o Capacete é um espaço in progress e que, e isso é apenas
destruída durante a
guerra, em 1943. A uma hipótese, ele seja para Helmut o que a Merzbau foi para Kurt
Merzbau foi criada
pelo escritor, poeta, Schwitters11.
performer e tipógra-
fo Kurt Schwitters, Para o Capacete, a espontaneidade constitui uma experiên-
um artista refugiado
que se autonominava cia imediata, para em seguida ser adquirida enquanto consciência
“Merz”. Schwitters se
apropriava de coi-
da experiência vivida. Ele se encontra nesse “espaço-tempo” cons-
sas encontradas para truído a partir das relações afetivas e políticas que se travam entre
construir a Merzbau,
sempre de dentro para um país e outro, uma cultura e outra, um artista e outro, uma praia
fora. Composta por
grutas, vales, de- e outra, uma caipirinha e outra. De certa maneira, o Capacete não
pressões e superfícies
justapostas, havia na tem lugar próprio, ele é o próprio lugar que se move pelo mundo. É
Merzbau uma noção de
casa dentro da casa, como uma embarcação mesmo, que de porto em porto vai receben-
de psicoarquitetura
– reconstruir através
do novos tripulantes e deixando com que outros possam pisar em
dos cacos (dadaísmo), terra firme. Se é que podemos chamar de “firme” essa terra, já tão
onde estão presentes
lembranças de toda a movediça e inconstante.
vida do artista. O es-
paço se tornou o tra- Quanto mais se esgotam os dispositivos que tem por função
balho e, o artista, o
espaço. Schwiters era “organizar” a produção artística e intelectual, e estou falando de um
a parte mais impor-
tante da Merzbau: seu esgotamento de formatos e padrões (bienais, cubo branco, feiras,
conceito de obra não
incluía apenas todos
universidades etc.), maior é a necessidade de quebrar a forma, ou
os tipos de arte que a fôrma, e escapar ao movimento. E para isso é imprescindível que
deviam ser reunidos
na “obra de arte Merz se esteja em constante diálogo com as necessidades dos artistas
completa”, mas também
sua própria pessoa. e da sociedade. Talvez por isso, para quebrar a rigidez do sistema
que o circunda, o Capacete confunde espaços e funções: o artista se
confunde com o editor, o cozinheiro com o visitante, o gestor com o
curador, o interlocutor com o copropositor, o performer com o turis-
ta; a escola com o ateliê, a cozinha com o home office, a praia com o
escritório, a festa com reunião de trabalho, o processo artístico com
lazer, o banho de cachoeira com a pesquisa de campo.
Compreender o Capacete como prática artística é conside-
rar que grande parte de suas ações são construídas e realizadas por
artistas. Isso faz com que um programa não seja só um programa,
ou uma viagem uma viagem, ou um livro um livro, ou uma festa uma
festa (é muito importante fazer festas12). Há uma inversão de perspec-
154
12 NAVARRO, Santiago
García. (Org). El pez, la
bibiceta y la maquina de
escribir: un libro sobre
el encuentro de espacios
y grupos de arte indepen-
dientes de América Latina
tiva, um modo de elaborar e compartilhar que se assemelha mais y Caribe. 1ª ed. – Buenos
a um trabalho de arte, do que a uma organização institucional pro- Aires: Fund. Proa, 2005,
p. 33.
priamente dita. Se considerarmos cada uma das edições do Jornal
13 “O Jornal Capacete
Capacete13, ou a participação do Capacete Entretenimentos nas 28º nasceu em 2001, denomina-
e 29º Bienais de São Paulo, ou o projeto ROAD: residência móvel, ou do Planeta Capacete. Com
tiragem de 5.000 exempla-
ainda as Bancas nº1 e nº214, fica fácil constatar a hibridização entre res, distribuído gratuita-
mente para várias regiões
“espaço autônomo”, “trabalho de arte”, “prática artística”, “espaço do país, o Planeta Capace-
te, em todo o seu perío-
editorial” etc. Isso se dá porque Helmut trabalha não apenas em do de existência (2001-
2004), teve sempre como
parceria, mas em coautoria com outros artistas. O meu e/ou nosso, norma convidar artistas
para projetar cada número
aqui, mais uma vez. publicado. Cada artista
Uma das características de espaços como o Capacete, é convidado tinha, portan-
to, a liberdade de criar o
que são provisórios. Mas não o são apenas porque possuem uma periódico da forma que me-
lhor lhe conviesse: o for-
curta existência temporal, e sim porque estão constantemente se mato e até mesmo, se assim
o desejasse, interferir no
reinventando. Por serem mais fluidos, sem tantas amarras institu- corpo editorial. A única
limitação era o material,
cionais e burocráticas, eles conseguem seguir com mais agilida- que deveria ser de baixo
custo, possibilitando uma
de o fluxo de transformação do meio artístico, atendendo de pronto grande tiragem, asseguran-
projetos e artistas cuja obra é o próprio processo de investigação, do dessa forma uma maior
distribuição no processo
dentro das arestas que delimitam seus interesses, linguagens e de- de sua circulação”. MELIM,
Regina. In: Revista: Estu-
sejos. Como exemplo, o “espaço editorial” do Capacete, nesse caso dio, Artistas Sobre outras
Obras, Ano 1, Número 1,
o Jornal Capacete, os catálogos, livros e múltiplos são meios de vei- Faculdade de Belas Artes
da Universidade de Lisboa
culação de arte, seja como registro da produção dos artistas, críticos e Centro de Investigação
e Estudos em Belas Artes,
e pesquisadores envolvidos nos programas do Capacete ou como tra- Lisboa, 2010.
balhos de artistas que compreendem este suporte como um espaço de
exposição.15 14 Em 2002, convidado
a participar da edição da
No texto “¿Puede todo ser provisorio?”, transcrito a partir 25ª Bienal de São Paulo,
Helmut Batista convidou
de uma palestra a convite do Proyecto Trama em 2001, o curador dois artistas para dividi-
rem essa experiência com
Charles Esche pergunta ao público: quando dizemos provisório nos a galeria ou escritório
móvel A Banca: a francesa
referimos a um tipo de resistência ou de diferença ao desenvolvimento Marie-Ange Guilleminot e o
institucional atual, ou a uma maneira mais rápida de distribuir e de brasileiro Marssares.

discutir a arte? Pode o provisório fornecer o princípio alternativo estru-


15 MELIM, Regina.
tural através do qual as coisas se modifiquem?16. Pode ser que certas (Org). ¿Hay en portugués?
instituições tenham se tornado ferros-velhos exatamente porque 5. Florianópolis: Editora
par(ent)esis, 2016.
ignoraram que o provisório é permanente. Ou deveria ser. Já não há 155
16 BANCHERO, Irene;
FONTES Claudia; ZICCA-
RELLO, Pablo. (Org.). La
sociedade imaginada: desde
el arte contemporâneo en
Argentina. Buenos Aires:
Proyecto Trama, 2002, p.
84. como ignorar a velocidade das mudanças de paradigmas que esta-
mos vivendo, de paradigmas políticos, sobretudo.
Para Esche, pensar o termo “provisório” como uma ferra-
menta, possibilita uma “autocrítica institucional”. E é útil porque se
refere ao tempo mais que ao espaço e à contínua divisão do tempo em
unidades não específicas durante às quais as instituições podem adotar
diferentes personalidades, diferentes identidades para artistas e para
seu público. Esse é o desafio que o Capacete vêm enfrentando há 19
anos: manter-se provisório e contestatório, sem se conformar em
um estereótipo, ou se tornar um modelo de espaço viciado e petri-
ficado.
Em seus esforços por encontrar esse lugar de “autocrítica
institucional”, o Capacete passou a incorporar a comunidade que o
circunda, a artística e a do bairro, criando projetos que combinam
formas experimentais de ensino, e incluindo a educação como eixo
fundamental de seus programas. Se o espaço editorial do Capacete é
organizado em colaboração com artistas e outros agentes do pensa-
mento crítico, e expressa seu engajamento a médio e longo prazo com
os profissionais residentes, seus projetos de pesquisa e a produção de
conhecimento, seu espaço educacional aponta para a criação de um
espaço de reinvenção da vida cotidiana.
Ainda que possua escolas e universidades de verão, o Capa-
cete não responde a um modelo acadêmico, mas antes a um espaço
laboral de investigação e desenvolvimento de projetos individuais e
coletivos, artísticos e/ou comunitários. Esses três espaços portanto,
o educacional, o de residência e o editorial são as principais artérias
do Capacete, são elas que se ramificam e consolidam redes de co-
nexão entre artistas de diversas regiões do mundo e, destes, com o
público. O ponto em questão é que nenhum desses “espaços” exis-
tem separadamente. Quando observados atentamente, percebe-se
que estão totalmente embebidos uns nos outros. Para entendermos

156
o Capacete Entretenimentos, precisamos tomar como ponto de par-
tida o meu e/ou nosso sempre presente na fala de Helmut, e que
implica em uma atividade mais política que meramente teórica, e
baseia-se na necessidade de ver as coisas não apenas de próprio
ponto de vista mas na perspectiva de todos aqueles que porventura
estejam presentes.

NOTA como NOTA


Por Daniela Castro

A nota de rodapé não pertence a uma estrutura hierárquica de um corpo de texto principal e um secundário. Ela
embasa ao mesmo tempo que é independente do texto que a tornou necessária. O leitor, em seu livre-arbítrio,
pode conferi-la ou não, fica a seu critério. Esse é, portanto, o espaço ideal para se traçar algumas breves li-
nhas sobre o programa do Capacete que compõe o projeto da 29ª Bienal de São Paulo.
O programa do Capacete, no Teatro de Arena, com sua escala arquitetônica reduzida em oposição à sua escala
histórica, promoveu encontros entre artistas, teóricos, músicos, arquitetos e acadêmicos de toda parte.
Com microfone, quibe ou um copo de cerveja na mão, agenciou um estado de vizinhança entre indivíduos, insti-
tuições, bairros. Entre. Entre sujeitos, coisas e “Entre, fique à vontade”.
Nas palavras de Marta Bogea -arquiteta responsável pela brilhante tradução das questões curatoriais que lhe
foram pautadas em expografia da presente edição do maior evento de arte contemporânea no país- um vizinho em
ativo convívio, que não somente reitera, mas que estranha seu próprio anfitrião.
Lembro-me no dia da abertura antecipada da Bienal, logo após a apresentação lotada do artista albanês Anri
Sala, no dia 10 de março: estávamos todos no bar em frente ao teatro (um epicentro de vértices formando uma
espécie de triângulo isósceles; situação geográfica em perfeita consonância com a intenção do Capacete de pro-
mover encontros dos mais diversos, comuns, no tecido da cidade).
O bar, que hoje está sendo reformado para se tornar uma agência do Banco do Brasil, acomodava imigrantes nige-
rianos, a elite intelectual paulistana e de outras capacidades, artistas e curadores nacionais e internacio-
nais, putas e garçons.
Em dado momento –como dita a tradição nesta cidade– o diretor do programa foi abordado na eminência da estra-
tificação do grupo para que fossem jantar num lugar “mais apropriado para os convidados VIPS e internacionais”.
A resposta veio pronta e imediata: “Mas nem todos presentes podem pagar 100 paus por um jantar... Vamos aqui
mesmo no restaurante da Praça Roosevelt que deu a todos um voucher com desconto de 20%. E olhe para os artis-
tas, para as pessoas: estão todos felizes!”.
Estávamos felizes, e isso bastava. Qualquer baliza que ultrapassasse o paradigma da troca horizontal e fácil,
do inusitado e do bem-estar comum entre todos os presentes –não-importasse-quem- era naturalmente alienígena
àquela situação. O grande lance é o encontro, o contato, a conversa. Sem hierarquias; ou com elas, para aque-
les que escolhessem adotá-las numa escala pessoal, contanto que fosse naquele lugar.
Tudo bem. Somos só seres humanos, recortados e limitados; ambiciosos para o bem ou para o mal (quando é que
conseguiremos sair do binário católico-digital, ex-dicotomia, ex-dialética? A matemática, há milênios, nos
mostra o padrão do infinito, a curva do π (pi), apenas o provável da probabilidade quântica, o caos, mas, no
entanto, nas humanidades, ainda adotamos a “arte e política”, “a riqueza e a oportunidade”, a direita e a
esquerda, o passado e o futuro... e o presente? O presente, acredito, está na escala pontual e diminuta das
conversas no café da manhã na Casa da Denise; na fazenda dos meninos; no sabático; no assistir canais de TV
aberta; na busca por um coco gelado no Parque do Ibirapuera e, de repente, perceber que a 29ª Bienal está em
cartaz, adentrá-la e, ignorantes de sua proposta curatorial, percorrê-la sem um objetivo definido, apenas sen-
ti-la, gozá-la, sem ter a demanda de olhá-la com uma defesa crítica para depois cumprir o dever de escrever um
texto a seu respeito...). [...] A Alegria é, por definição, sempre política.

Daniela CASTRO, “Um loop perfeito”. In Revista Trópico (jornal online), Lisette Lagnado (ed.). http://www.
revistatropico.com.br/tropico/html/textos/3218,2.shl. Publicado em 3/11/2010

157
158
SESSÃO
TERRA UNA

Esta sessão é composta por duas partes, a primeira, da possibili-


dade que temos de fazer coisas e deixá-las para os outros, é um
relato de experiência sobre minha participação como curadora,
em 2013, da residência Prêmio TAC Terra UNA, que contou com oito
artistas: Denise Alves-Rodrigues (SP), Kaloan (SP), Lucas Sargen-
telli (RJ), Louise Botkay (RJ), Pedro Victor Brandão (RJ), Bartolo
(RJ), Yosman Botero Gómez (Colômbia) e Elena Landínez (Colôm-
bia). Ao todo, somaram-se vinte dias de intenso convívio.
Terra UNA é uma floresta, é um modo de descolonizar a mente, é
uma residência artística, é uma ecovila, é precária, é abundante, é
autosuficiente, é dependente, é um estado selvagem, é organiza-
da. O ponto é que Terra UNA é um projeto de vida de um grupo de
pessoas, mas é também um espaço de recepção para outras, que
porventura queiram abrir em seus cotidianos um espaço-tempo
de vivência deslocada da cidade.
A segunta parte, quando o artista está ao lado, é a publicação in-
tegral, até então inédita, realizada no período da residência. Os
textos beiram a realidade tanto quanto beiram a crítica de arte,
mas instauram um tipo de atitude artística e literária que equipara
crítica e obra.

159
Composteira. Fotografia Pedro Vitor Brandão.

160
da possibilidade
que temos de fazer
coisas e deixá-las
para os outros
UM RELATO

A consciência da possibilidade que temos de fazer coisas e


deixá-las para os outros, no contexto de uma residência de artistas,
pode significar uma simples mudança na paisagem, no curso de um
rio, no gesto de plantar uma árvore, de identificar espaços extra-
-terrenos, de compartilhar um processo de pesquisa.
Coisas que só podem ser criadas quando em contato com
as políticas do meio, das relações entre os corpos, do conjunto de
regras pré-determinadas de um lugar, ou de um projeto. Pontual-
mente, refiro-me ao programa de Residência Artística Terra UNA,
localizado na Ecovila Terra UNA, numa terra de 48 hectares dentro
da APA da Serra da Mantiqueira, município de Liberdade, em Minas
Gerais.
Fui curadora, em 2013, da residência TAC Terra Una, reali-
zada entre os meses de fevereiro e março, na qual desenvolvi o pro-
jeto “quando o artista está ao lado”, que consistiu na elaboração de
ficções sobre o processo artístico de cada um dos oito artistas resi-
dentes. As questões de coletividade e redesenho social constituem
a preocupação fundamental de Terra UNA, que se consolidou como

161
um centro educacional transdisciplinar de integração rural-urbana.
O programa de residência artística, especificamente, foi
criado em 2007 e se modificou a cada edição, tanto com relação ao
formato quanto à duração. Como em todo processo artístico e em
toda gestão de um espaço de arte, nessa residência também exis-
tem elementos importantes a serem observados, e que não apare-
cem de imediato na apresentação do projeto, ou seja, no momento
em que ele se torna público. Um deles, por exemplo, diz respeito à
transparência no processos de seleção dos artistas (são os próprios
artistas, numa plataforma web, que selecionam uns aos outros). Ou-
tros elementos fundamentais são a diminuição das hierarquias e a
sustentabilidade ecológica.
A sentença “faça você mesmo” parece simples quando ab-
sorvida enquanto teoria, mas na prática diária de convívio com pes-
soas até então desconhecidas, ela se torna espessa, não possui um
lugar preciso ou real, até que se crie uma grupalidade. Fazer você
mesmo remete, então, a fazer “coisas” e deixá-las para os outros.
Organizar a cozinha, limpar o banheiro seco, alimentar a compos-
1 A composteira é,
para mim, o lugar que
teira1, fazer o almoço e o café da manhã, preparar a massa do pão,
simboliza Terra UNA, é arear a terra, oferecer uma oficina, propor uma caminhada, um
precisamente ali que a
convivência, nas condi- jogo, uma festa, participar da “partilha”, responder, aquietar, evitar
ções adequadas, é trans-
formada em material orgâ- o conflito e a “triangulação”, colaborar com a pesquisa do outro.
nico capaz de alimentar
outras formas de vida. Todas essas situações levam, inevitavelmente, a um com-
portamento distinto daqueles aos quais estamos habituados nas zo-
nas urbanas. Levam, inclusive, a outra lógica de produção em arte,
comprometida sobretudo com suas implicações no contexto local.
Essa realidade faz com que grande parte dos processos desenvol-
vidos pelos artistas assumam formas pouco convencionais e obje-
tuais. Nessa residência, a experiência é seu próprio conteúdo.
E como propor um projeto curatorial, considerando todas
as características já expostas, além do fato de que não se sabe o que

162
será produzido pelos artistas selecionados? Quando não se sabe,
sequer, quem serão os artistas selecionados? Essas foram as per-
guntas que moveram meu projeto curatorial. Passei a considerar,
então, os elementos que estariam à minha disposição nesses vinte
dias. E o afeto, o encontro e as possibilidades de trocas com os ar-
tistas passou a ser o objeto da proposta “quando o artista está ao
lado”.
Desenvolver um texto fictício sobre o processo artístico dos
artistas residentes sugeria um sistema de abertura e fechamento
que isolava meu trabalho em relação ao espaço circundante. Signi-
fica dizer que não havia ali um com-
promisso com a verdade ou com
qualquer hierarquia entre crítica,
curadoria e literatura.
Desse modo, o envolvi-
mento com os artistas em seus
processos de trabalho acarretou
em uma experiência na qual foi
possível vislumbrar estados de im-
permanência. A escrita passou a
ser um espaço que oscilava da ge-
neralidade ao singular, da presença
concreta do artista à radicalidade
de sua ausência. E esse movimento,
que foi da ficção à hiper-realidade,
do acerto ao fracasso, só aconteceu
e pôde acontecer pela dimensão da
opacidade dos sujeitos que ali con-
viviam.
Os textos beiram a realida-
de tanto quanto beiram a crítica de

163
Fotografia Pedro Vitor Brandão
arte, mas instauram um tipo de atitude artística e literária que equi-
para crítica e obra. Escrevi ao lado dos artistas, tendo acesso aos
seus modos de articular o pensamento. Essa proximidade permitiu
que se criassem movimentos de tensões e torções - ponto onde a
escrita pôde encontrar novas formas de existência.
Assim, esse projeto contém dois aspectos entrelaçados
entre si: o primeiro é designado por uma escrita ficcional em re-
lação ao mundo referencial de obras em processo; o segundo se
configura no modo como a escrita é apropriada enquanto linguagem
plástica para expandir suas práticas através da literatura, da crítica
e da teoria. Trata-se de como pensar as possibilidades que a es-
crita empreende na/enquanto arte quando a ficção está encadeada
no interior de uma situação real. Ou em como articular essa dobra
empreendida por um sujeito que, ao significar a si mesmo enquanto
outro, escapa da sujeição e faz da ficção uma estratégia de encontro.
Ainda que os artistas estivessem preocupados com um re-
sultado final de seus trabalhos, ou uma estética final, a intensidade
dos seus processos, das colaborações e dos frequentes escambos,
constituiu o ápice dessa residência. A preocupação de saber se uma
ação é arte ou não-arte, se é falsa-arte ou verdadeira-arte foi irre-
levante. Havia em todo o grupo um estado de alerta e vigília, exata-
mente porque todos sabiam que a arte responde a estímulos sutis e
efêmeros, não necessariamente vinculados a um juízo estético, ao
apreço pelo objeto ou à necessidade de registro de uma ação.
A constante coleta de materiais perecíveis; a catalogação
de pedras pela cor e pela forma; a experimentação diária das textu-
ras, formatos e sabores de folhas comestíveis; o olhar apurado para
a arte enquanto trabalho e para o trabalho enquanto arte; a obser-
vação dos sons da natureza e da movimentação dos vaga-lumes; a
espera como condutora do desenho; as tentativas de provar os fun-
damentos da pseudociência e a construção imagética das formas
de exportação da cultura e opulência do Brasil, são algumas das
164
inquietações que movimentaram esse grupo de artistas.
De modo geral, a experiência dessa residência levantou
uma série de questões teóricas e práticas. No texto “Dependência
táticas”, o curador Benjamin Seroussi propõe um quadro de refle-
xões contendo perguntas como: “Em que medida um trabalho de
arte se daria de forma diferente em espaços ditos independentes?
O trabalho do curador independente - fora da instituição - pode ser
visto como um espaço independente mínimo? O curador pode criar
‘espaços independentes’ em espaços ‘não independentes’ ou, para
facilitar a terminologia, ‘institucionais’?”2 2 SEROUSSI, Benjamin.
Dependências táticas, in:
Essas são algumas das questões que interessam a esta LUKAS, Henrique; ENDO,
Maíra; MOREIRA, Samantha;
pesquisa. Perguntas que ocorrem no plano de confronto de ideias e MORETTI, Ruli. Metadados
/ Ateliê Aberto. Campi-
ideais, que conferem visibilidade a outras possibilidades de atuação nas, SP: Ateliê Aberto
Produções Contemporâneas,
e gestão no campo da arte, maneiras de dar continuidade a uma 2016, p. 192.
reflexão e de retroalimentar um debate que já existe, mas que con-
tinua sendo necessário para que ele se mantenha aberto ao leitor.
Proponho, antes de irmos para o texto “quando o artista está ao
lado”, que repensemos as questões de Seroussi desde um ponto de
vista afirmativo: um trabalho de arte pode se dar de forma diferente
em “espaços independentes” devido a um foco maior no processo
(prática artística) e menor no produto (obra de arte); o trabalho do
curador independente pode ser visto como um espaço independente
mínimo, pois ele instaura outros modos de estar junto, como uma
instituição que tem por base a economia da amizade e a constituição
de esferas políticas e afetivas.

165
Fotografia Pedro Vitor Brandão.

166
quando
o artista
está
ao lado

Quinta-feira dia 21, 09:30 a.m. A possibilidade de


encontrar energias desconhecidas nas redondezas
com engenhocas eletrônicas que tendem a funcionar
é desconcertante. 10:47 a.m. Durante o preparo do
almoço, fui solicitada a colher as folhas da horta
para a salada; todos comeram folhas de abóbora
acreditando ser couve. 12:56 p.m. Lá embaixo deram
as mãos e entoaram cantos de amor à vida, escutei
de longe, esperei o silêncio pleno e desci. 14:37 p.m.
Durante a caminhada, um artista se perdeu por
cerca de 40 min., quando voltou ninguém se deu
conta (ele ofegava e cheirava a suor).

167
Seis meses depois avistei-a sentada na frente
de uma queda d`água, o corpo coberto de barro
vermelho, o olhar voltado para o chão. Em suas
mãos um caderno, uma caneta e, na beirada do
joelho, uma fita adesiva e uma tesoura. Ela possuía
uma coleção de folhas, parecia uma catalogação,
do tipo que os biólogos fazem. Não parecia estar
preocupada com as características das espécies,
mas com os desenhos que se formavam a partir
de seus sulcos. Desenhava-os com precisão no
caderno de anotações, escrevia qualquer coisa ao
lado, que não pude ler pela distância física que havia
entre nós. As folhas das árvores ela colava com
pedaços minúsculos de fita, exatamente ao lado do
desenho. Era comum, em algumas épocas do ano,
pessoas andarem por essas terras com objetos
curiosos e até mesmo obsoletos em mãos, no corpo,
na cabeça. Isso quando não despejavam batatas
boas para consumo em buracos que não davam em
lugar algum. Ainda falavam coisas sem nexo sob as
araucárias da região, aos gritos. Talvez por medo,
talvez por timidez, nunca me atrevi a chegar perto
deles; olho sempre de longe, exatamente como
fazem as águias antes do salto. Não tenho muita
expectativa com relação a eles, aquelas pessoas
que colocam madeiras cortadas em formato de
casinhas nos cupinzeiros para desaparecer; o que
há de extraordinário no desaparecimento? Apesar
de não ter esperanças com relação a elas, às vezes
gosto de vê-las andando pra um lado e para outro
dentro de um buraco (não fazem nada além de ficar
olhando o mundo pelo nível da terra). Mas isso
tudo foi há meses atrás, agora não sei muito bem o
que irão fazer por aqui, mas já limpei as lentes do
telescópio.

168
Minha avó costumava ir à cidade fotografar as
famílias na praça. Lembrei dela por causa da
câmera 4x5 que avistei hoje pela manhã na
sacada do alojamento. É daquelas que as pessoas
precisam ficar vários minutos paradas para serem
capturadas e virarem imagem. Nesta ocasião ela
estava apontada para a floresta, que muda mais
de luz do que de posição. Não tenho nenhuma
imagem, minha avó morreu quando eu era criança.
Não entendo o cultivo de imagens. É como adestrar
animais silvestres para servirem ao circo. Não tem
outro sentido além do espetáculo.

169
O alojamento feito de tijolos prensados já apresenta
diversas rachaduras. Os banheiros secos, limpos
diariamente por um voluntário, servem também de
abrigo às aranhas que comumente esticam suas
teias nos cantos superiores, entre a parede e o teto,
aguardando a farta alimentação que sai de dentro do
balde: pequenos insetos voadores que se alimentam
de fezes. Diariamente alguém assopra uma concha,
avisando a todos os moradores da região que algo
está prestes a acontecer, geralmente ligado às
refeições diárias. A concha é tocada apenas em caso
de sinalização, nunca como instrumento musical.
Ora ou outra serve de enfeite na sala que antecede
a cozinha. Esta serve não apenas como espaço
de festa, reunião e local propício para cozinhar,
como também para depositar calcinhas sujas. Tal
ação seria considerável, não fosse o fato de que
volta e meia ela se repete – basta agora saber se é
terrorismo cultural ou descuido.

170
1.
Cada pessoa chegou ao ritual com duas pedras.
Em silêncio, empilharam-nas. Do suporte de uma à
outra, uma torre. Em silêncio, todos se dispersaram.
A torre subiu equilibrada até sentir que se perdera
e que já não tinha mais como mover-se.

2.
Naquela cozinha compartilhada, três pessoas
preparavam o almoço. Uma parte era a sobra do
dia anterior, outra era fresca. Uma pessoa insistiu
em fazer pouca comida. Sua intenção era que não
houvesse sobra. As outras duas concordaram e,
com a mesa posta, sobraram sete pessoas sem
comer.

3.
Fiquei horas lá no alto, um salão. As janelas abertas
facilitavam apenas a entrada dos sons, mas não das
correntes de ar, já no estupor dos 30 graus. Três
artistas conversam lá embaixo, um dorme na minha
frente e outros três estão encarregados de fazer
comida para as sete pessoas que sobraram do texto
anterior.

4.
Alguém derrubou a torre do primeiro texto.
Perguntei ao caseiro que motivos o levaram a
destruir a construção de um coletivo. Ele disse
que isso não é coletivo coisa alguma e que aquilo
tampouco era uma torre. Olhei lá para dentro
de um buraco e avistei as pedras sobre a terra
avermelhada.

171
Em cada bifurcação da estreita estrada de chão,
há um conjunto de indumentárias precárias,
construídas com materiais despregados das
árvores e do solo: cascas metálicas de bambu, um
amontoado de folhas de cana e de capim limão,
galhos secos de araucária. Dispostas no chão,
as peças que compõe aquele corpo esvaído não
tardarão também a desaparecer. Decidi seguir o
caminho oposto ao de costume até o ponto mais alto
da montanha, onde se pode ver a bifurcação. Duas
horas de espera sob a chuva foram o suficiente
para avistar, ao longe, um homem completamente
nu. Seus braços caminhavam pelo ar com gestos
serpentinos contínuos, a face impávida revelava
uma dimensão subjetiva. Seu corpo avançou
paulatinamente em direção às indumentárias. Uma
a uma, vestiu-as até o torpor. Num dado momento
ele abaixou, cavou superficialmente a terra, retirou
dela um pêndulo e deixou a gravidade agir sobre
ele. Eu continuava sentada, só fazendo observar.
O pêndulo apontou o caminho em cujo fim estava
meu corpo. Já na escuridão da floresta, esperei o
encontro com a ansiedade de quem precisa desfazer
uma atadura para olhar a profundidade do corte.
Durante a espera pensava em como poderia incidir
objetivamente na realidade, mudá-la, apagá-la,
estancá-la. Ele estava muito próximo da árvore de
copa perfumada quando me avistou. Foi seu último
olhar, antes que fosse tragado por um raio, já em
catastrófica palidez.

172
173
Notas duvidosas ou três vacas
escalando uma montanha

Antes de mais nada é preciso que saibam que eu


só posso ser eu mesma, inteiramente, apenas pelo
tempo em que estou sozinha com meus objetos.
Narro-me não como uma aventura, mas como a
própria experiência ignorada pela ciência. Reporto-
me à Moisés e seu cajado, aos mineradores alemães
no século XVII com suas varas advinhatórias, aos
soldados no Vietnã usando Dual Rod’s para não
pisar em bombas, aos Yankes céticos com seus
pêndulos e seu sonhado petróleo, aos padres
pervertendo os princípios de tesla com suas bobinas
de cristais revestidas de cobre. A maneira que
encontrei para zerar a energia desses pêndulos,
forquilhas, dual rod’s e aurímetros foi enterrando-
os em bifurcações e, posteriormente, deixando-os
descansar no ponto mais alto da montanha, entre
uma araucária morta e outra viva. Parte deles
desapareceram das bifurcações, talvez tenham sido
levados pelas entidades que circundam a região. A
geometria acamada do qual são feitos converte o
sensível na razão que espera por confirmação. Se
tal sensibilidade me fosse concedida, poderia fazer
de meu corpo um condutor de energia e, de minhas
crenças, a padronização de métodos científicos. Eu
acho que a pseudociência é como a arte de escalar
montanhas sem equipamentos e que as duas
desgraças do homem são a má-vontade e o capital.

174
Parte I

Qual seja a dimensão do abandono, raramente sou


eu esse algo esquecido, perdido ou decomposto em
alguma parte do universo, absolutamente disperso
de juízos estéticos ou morais. Guardo-me para
garantir que o desaparecimento seja tão real quanto
a existência. Para que a imagem em negativo de um
esqueleto entoe não apenas a desfiguração física de
um espaço que guarda em si a memória do corpo,
mas também a lembrança de seu estado histórico.
Se o conteúdo da aparição evoca seu contrário é
porque a desaparição não é um fim em si, não tem
em si mesma o seu limite. De resto, sinto-me como
a água que não cessa de escorregar pelas pedras
escuras da cachoeira. Sigo o fluxo contínuo do
processo, imerso no ruído branco exalado pelo meu
próprio corpo. E no caminho inverso ao da queda,
esforço-me para mudar a direção das correntes. No
lugar dos pés, apoio minha cabeça até a inversão
completa do plano ou até a completude da obra.
E desse jogo de complexidades, de dualidades
litigiosas, de inversões de planos, construo a
solidão que concede ao homem a derrota da própria
indigência.

175
Havia nela uma inquietação estranha, intensa.
Movia-se lentamente com o cair do orvalho, sem
deixar-se encharcar. Ainda que desagradavelmente
áspera e insolente, para mim era uma sorte tê-la
encontrado. Não recordo seu nome, mas deve ter
em torno de vinte centímetros, sustentada por
um tronco fino e esbranquiçado. Deveria ter dito
antes que suas folhas são largas e que causam má
digestão. É claro que elas são parte indispensável do
meu trabalho, do contrário não estaria preocupado
em descrevê-las com tanta minúcia. Colhi, lavei e
recortei todas em silêncio, pensando em como meu
corpo poderia dissolvê-las sem conflito. Mas sob tais
circunstâncias - o prazo sendo esgotado, pressão
da organização do evento, o grupo ansioso por
visualizar a obra – a decisão de utilizá-las passou a
ser irreversível. Organizei sequências formais com
as folhas dessa mesma árvore, que todos engoliram
a contragosto. Pela arte, as pessoas dissolvem com
saliva até superfícies ásperas. Não tardou até que
um dos integrantes desenvolvesse uma alergia que
tomou todo o seu corpo. Passaram algumas horas e
todos estavam com os mesmo sintomas: manchas
vermelhas na parte interna da coxa e dos braços,
inchaço nos olhos e muita coceira. A única forma de
resolver a situação que poderia vir a se tornar uma
catástrofe seria visitar uma benzedeira que morava
a trinta minutos do vale. Dona Florência entoou
alguns cantos, tocou com uma vara aromática em
cada um dos corpos e entregou um punhado de
folhas com propriedades curativas para serem
utilizadas no banho. Descobrimos, dias depois, que
essa árvore foi plantada sobre uma placenta que
estava guardada há dois anos e meio no freezer de
um dos moradores da região.

176
um dado importante,
quatro árvores nasceram de placentas congeladas:
jacarandá mimoso, pitangueira, quaresmeira e copaíba

177
Último dia da colheita de mel. Estou bem consciente
de que a Arte em si é irrelevante. Na caminhonete
Bandeirante há um ventiladorzinho que corta as
abelhas pela metade. Não é difícil notar a sujeira
das tripas quando espatifadas no vidro. Hoje em dia
poucos de nós tem qualquer ilusão a respeito da
existência da arte verdadeiramente política. A roupa
é dividida em duas partes, uma interna e outra
externa. Sobre a cabeça, coloquei uma máscara com
grades em 360º. Fechei todas as aberturas com fitas
de borracha, vesti as luvas e liguei a câmera. Mas
considerando o destino dos artistas nas sociedades
totalitárias, suponho que eles deveriam empregar
o seu tempo mais sabiamente. Esperei o Zé e o seu
Tunico se vestirem. A sujeira do vidro da camionete
não era muito diferente do encardido das roupas.
Talvez os artistas sejam mais culpados do que os
não artistas do crime da ingenuidade política da
qual todos nós sofremos. Seu Tunico fez um elogio
à minha coragem, passou a mão no meu ombro, deu
um sorriso para a câmera e me mandou seguir em
frente. A estrutura-acontecimento de tal trabalho
está em tremenda vantagem sobre o sistema dos
contatos dinheiro-poder social que alimenta a
imagem do artista e da arte mundial. Das oito
caixas abertas, em apenas duas havia mel. O negro
da câmera em contraste com o suposto branco das
roupas causava atração e comoção nas abelhas. A
única coisa certa é que os artistas continuarão a
fazer arte, as abelhas a fazer mel. E parte dessa
arte não será sempre reconhecida como “arte”,
parte dela pode mesmo ser chamada de “trabalho”.

178
a) É um dissenso. Curiosíssimas pessoas essas que
conservam apanhados pontos de vista coloniais
sobre as relações mútuas de servos e senhores. O
contrabando de órgãos vitais, além de gerar uma
situação econômica estável na cidade, apresenta
um nível de complexidade similar ao processo
importador nos demais países do mundo. Todos
os procedimentos estão informatizados em um
Sistema Integrado de Comércio Exterior Ilegal, no
qual os órgãos governamentais estão interligados
a todos os agentes que, de alguma forma, têm
participação ativa nos processos de exportação e
importação.

b) É um consenso. A CNV - comunicação não violenta


– é uma prática para a resolução de relações
penosas diretamente ligada a uma filosofia que
busca resolver conflitos internos e externos. Todos
os procedimentos estão interligados com um olhar
político de descolonizar os hábitos e as relações
mútuas de servos e senhores. Na construção de um
território compartilhado há uma forte predominância
da escuta e do silêncio que, de alguma forma, têm
participação ativa nos processos sociais.

a+b) Procuro verter tempos e espaços para


confundir a pura objetividade fotográfica e apontar
a desconstrução do instante. Comporto a autoria
pelo discurso, exporto cultura e opulência pela
permanência no circuito. A vontade da arte é o
artista. Parte deles são exportados ou importados
por processos de despacho aduaneiro comum. Em
algumas situações, no entanto, eles podem optar
pelo despacho aduaneiro simplificado. O presente
de barbárie não está dissociado do mercado de arte,
nem do contrabando de órgãos vitais, nem da posse
de territórios não conflituosos. E aí tem um certo
egoísmo de creditar ao mundo todas essas mazelas
do homem.

179
Parte II

Sexta-feira dia 01, 09:30 a.m. Depois de uma


caminhada de vinte minutos, cheguei à casa
abandonada. 11:00. Chegaram duas caminhonetes
com dez pessoas dentro para limpar a casa. 11:01. O
primeiro impulso foi o de aproveitar os batimentos
cardíacos acelerados para começar a correr e fugir
do local. 11:02. A casa ficou completamente cercada
por homens furiosos impondo armas brancas nas
mãos. 11:03. Um dos artistas que estava na casa não
compreendia o idioma local e começou a amontoar
seu corpo junto ao esqueleto que estava desenhando
no chão. 11:04. Descobrimos que a casa não era
abandonada e que os homens armados eram seus
proprietários. 11:05. Quem são vocês?. 11:05. Dúvida.
11:05. Quem são vocês?. 11:05. Insegurança. 11:06.
Começaram a limpeza do local. 11:07. Tentamos
responder à pergunta das 11:05. 11:08. Retornei à
vila e deixei o artista amontoado com sua obra na
casa que, até outrora, estava abandonada. 12:08.
O artista chegou à vila desolado, sua obra foi
completamente destruída por remeter à bruxaria.
Desde então passa os dias cabisbaixo, olhando
fixamente a cachoeira à sua frente.

180
Não preciso de uma ideologia revolucionária
para fazer revolução. O movimento do lápis sobre
a superfície branca do papel supre qualquer
necessidade de afiliação a um partido comunista.
Eu desenho e existo na fugacidade interminável do
tempo. Passo os dias coletando as coisas caídas,
deslocadas, informes e desprezíveis da natureza e
do homem. Talvez porque não acredite em grandes
conquistas, em gênios ou em relações estáveis.
Prefiro devolver ao mundo o que por ele é ignorado.
Afinal, imaginar é a única forma de comunicação
viável na escuridão quase negra para onde dirijo
minha atenção.

lista de coisas ignoradas


clip enferrujado
pedregulho
horas telepáticas
folhas mortas
besouros
vícios
rotinas
cera de ouvido
roteiros de viagens não realizadas
mapas de lugares que não existem
cílios
cerâmica quebrada
mofos
fio dental usado
palitos de fósforo queimados
medo
feijão deformado
mosca morta

181
182
o tempo é uma demência

183
184
SESSÃO
LAENE

A sessão LaEne está dividida em três partes. A primera, a quem


convém a despolitização e o silêncio?, é um breve texto sobre o
Nuevo Museo Energía de Arte Contemporáneo, mais conhecido
como La Ene, criado em 2010 na cidade de Buenos Aires pela ar-
tista Gala Berger e a historiadora Marina Reyes Franco com o in-
tuito de provocar uma crítica ao sistema institucional, aos modos
de circulação, legitimação e produção da arte. Trata-se, portanto,
do primeiro museu de arte contemporânea da cidade e, mais que
isso, de um espaço que possui todos os dispositivos necessários a
qualquer museu, da Argentina ou do mundo.
A segunda parte, ser más amables entre nosotras para ser pe-
ligrosas juntas é uma entrevista com a artista Gala Berger sobre
o LaEne. Essa conversa foi realizada em parceria com a curadora
Mônica Hoff em 2017 e versa sobre a construção de formatos capa-
zes de renovar as maneiras de pensar o museu e de questionar as
supostas oposições entre o “alternativo” e o “institucional”.
Essa entrevista está sucedida pela tradução do texto Manual para
realizar exposições no trópico do curador Pablo León de la Barra,
originalmente publicada no catálogo “C–32 Sucursal. La Ene en
MALBA” em 2014.

185
186
a quem convém a
despolitização e o
silêncio?

No decorrer do projeto “Não sou daqui, nem sou de lá: ges-


tão, curadoria e residência artística em rede”, a artista argentina
Gala Berger realizou uma residência na Galeria Península, locali-
zada no centro de Porto Alegre. A prática artística de Gala Berger
inclui procedimentos próprios do campo curatorial, histórico, an-
tropológico e sociológico. Os projetos organizados por ela rondam
questões como a transcrítica institucional, a criação de espaços de
arte, a politização da escuta, a reflexão sobre o papel dos museus na
sociedade contemporânea, entre outras mais específicas, tais quais:
“como entender que a rebelião não se produz?”, “por que as mulhe-
res participam com cumplicidade das estruturas do patriarcado?”,
“como se tem criado um mito da eterna felicidade e de um futuro
que nunca chega?”, “a quem convém a despolitização e o silêncio?”.

187
Gala questiona os tempos sombrios em que vivemos, de
selvageria, de golpe, de repressão, de controle de informações, de
despolitização e, sobretudo, do triunfo dessa nova forma de vida, o
neoliberalismo. Para Antonio Negri e Michael Hardt em “Isto não
é um manifesto”, são nesses tempos que novas figuras da subjeti-
vidade política podem descobrir formas de participação que exce-
dem as divisões corporativas e individualistas, e isso dá substância
e conteúdo às formas genéricas e abstratas da atividade política.
Inaugurado em 2010 por Gala Berger e a historiadora Ma-
rina Reyes Franco o Nuevo Museo Energía de Arte Contemporáneo
surgiu como um ato político que questionava a ausência de um mu-
seu de arte contemporânea na cidade de Buenos Aires, propondo,
portanto, uma resposta crítica a um vazio museal.
E essa resposta surge com a criação de espaços de arte
que buscam questionar essa falta através de sua própria materiali-
zação, física e conceitual. Uma resposta que não está encarregada
de apresentar uma verdade, mas de entender o que os espaços de
arte não estão escutando. Propor um lugar de escuta num tempo
que a cegueira é generalizada é uma maneira de concatenar as di-
ferenças, de vincular desejos distintos, de operar por dissenso, de
contar outras versões de uma mesma história, versões complexas
e, por isso, atentas às vozes daqueles que foram, e continuam sen-
do, historicamente oprimidos.
A estrutura do La Ene segue ao máximo as normativas de
um museu, exatamente para que possa enfrentá-las, para que pos-
sa criar um espaço de espelhamento e tensão, um espaço de trans-
-formação. Para seus gestores, o La Ene é a versão de um museu
“claramente imperfeita e arbitrária, egocêntrica e egoísta” por ser
organizado por um grupo pequeno de profissionais que fazem o que
acreditam que deva ser feito. Fazem o que os museus que os cercam
não fazem, não olham, não escutam. A crítica surge do gesto. Por

188
isso a programação do espaço é abertamente política e comprome-
tida com as pesquisas de seus próprios gestores e dos artistas e
profissionais que os cercam. E talvez o La Ene só possa existir, só
possa gerar um processo constituinte à parte da visão do patriarca-
do, só possa desmistificar a noção de museu, por não estar subor-
dinado ao controle privado ou do estado. E talvez more aí a potência
do precário, da coletividade e da prática artística que conforma um
espaço de arte.
A entrevista que segue foi construída em dois momentos
distintos. Um primeiro presencial, no jardim da Galeria Penínsu-
la, no dia 17 de abril de 2017, no qual participaram, além de mim e
de Gala, os gestores da Galeria Península: Andressa Cantergiani,
Leonardo Remor e Denis Rodriguez. O segundo momento foi mo-
vido pelo desejo de continuar essa primeira conversa, dessa vez a
distância e com a participação da curadora Mônica Hoff, também
coordenadora desse projeto de residência. O que segue aqui é, por-
tanto, um pedaço de espaço flutuante, ora em forma de pergunta,
ora em forma de resposta, ora sem forma, ora falado, ora escrito,
ora transcrito.

189
190
ser más amables
entre nosotras para
ser peligrosas juntas
UMA CONVERSA ENTRE GALA BERGER, KAMILLA NUNES E MÔNICA HOFF

KAMILLA NUNES E MÔNICA HOFF


Gala, gostaríamos de saber como foi sua rotina de investigação e trabalho durante a
residência “Não sou daqui, nem sou de lá: gestão, curadoria e residência artística em
rede”. Você tinha um plano de trabalho?
GALA BERGER
Mi plan para la residencia, era continuar con un trabajo que estaba realizando sobre la
inmigración y sus sistemas de representación en los espacios de exhibición (de nuestros
contextos siempre coloniales), que era lo que estaba en juego en La Montaña que come
hombres una video performance que exhibí en febrero en un viejo museo alemán de mi
pueblo natal en Argentina. La pieza aludía a una montaña-mina boliviana conocida por
devorar a sus trabajadores, reemplazando la montaña por la historia y su capacidad de
apropiación.
La idea era básicamente hacer una extensión de estas investigaciones en Porto Alegre.
Pero al rato de llegar vi el tambor enfrente de la galería y el proyecto cambió. Me ob-
sesionó la realidad histórica detrás de este monumento y así comenzó este proceso de
investigación consultando los archivos históricos, buscando precisamente información

191
sobre la esclavitud en la región de Río Grande del Sur, que es a lo que hace referen-
cia el tambor ubicado en el parque Brigaderio Sampaio. La escultura fue realizada
por el Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre que a través de piezas en
espacios públicos busca visibilizar a la comunidad Afrobrasilera en la ciudad. En-
tonces, claro, la sola idea de un museo a cielo abierto recorriendo espacios de uso
común y activando pequeños encuentros de resistencia y memoria, me parecía de
una perfección conceptual tal que me transformó profundamente. Y ahí fue que caí
en cuenta de casualidad, buscando textos sobre el tema, de la falta de articulacio-
nes entre estas acciones y las investigaciones del arte local, el vacío es tan grande
y el silencio tan profundo que ni siquiera en la biblioteca de la universidad de arte
se puede encontrar información temática relacionada a representaciones de ningún
tipo. No hay ni siquiera información sobre feminismo o temáticas LGTBI, es como si
no hubiera links o alianzas entre estas diferentes luchas, lo cual es verdaderamente
imposible. Ahí nació la idea de una especie de archivo mutante, incluso su nombre
Arquivo Vivo do Passado Presente es un juego de palabras entre diferentes textos
históricos.
No obstante, el mismo día que nació el Arquivo, también lo hizo la exhibición Á Som-
bra da Cruz. Que también se relaciona con la esclavitud en la región, con la políticas
higienistas forzadas sobre la población indígena, sobre la construcción de la iglesia
Nossa Senhora das Dores y también porque no, con los siete canales evangélicos
que existen en la actualidad. Es una crítica al dogma y a sus imágenes, dejando
por completo de lado la fe o encontrando fe en otros espacios. Es una idea que me
acompañaba desde hace tiempo, pero para poder probarla necesitaba de un contex-
to que incluyera un profundo compromiso con estás imágenes religiosas, y la inme-
diata insistencia relacionada con la presencia de la iglesia cristiana y su correlato es
inmensa en la producción artística local que existe en Porto Alegre.
El último proyecto Casa W, (qué es la Casa M al revés)* era el cascarón perfecto para
contener los otros dos proyectos. Era al mismo tiempo un link directo a la memoria
institucional de la ciudad, y a la pregunta: ¿cómo es que un proyecto nunca muere y
puede ser agenciado en el futuro por cualquiera que lo reclame?
Incluso intentamos alquilar el antiguo espacio de Casa M para realizar la exhibición,
lo que no se consiguió, abriendo la posibilidad de construir otro concepto en otro
espacio. Con el simple acto de renombrar se pueden activar múltiples memorias,
relocalizaciones, mi trabajo se basa bastante en este proceso de fundación de nue-

192
vos espacios. O nuevos nombres, o viejos nombres subvertidos. No sé si el término
transcrítica ya existe, seguramente sí, pero lo utilizo para describir estas acciones
de travestismo institucional.
KAMILLA NUNES E MÔNICA HOFF
Você poderia falar um pouco mais sobre a ideia de “transcrítica institucional”, por
favor, e como ela aparece na Casa W?
GALA BERGER
Es una invención, que utiliza el prefijo Trans (que asiduamente se utiliza para des-
cribir a personas sin género binario). Y en este caso es para polarizar o contrastar
entre una crítica de carácter negativo destructiva y una crítica positiva constructiva.
Por un lado una crítica que propone un espacio frente a otra que alude a un final o
a un pasado. Casa W es al mismo tiempo las dos cosas. También puede decirse que
es un espacio sobre otro espacio, Casa W sobre galería Península, un plotter sobre
un cartel de néon y así. Pero a donde verdaderamente quiere llegar es a la creación
de una transintitución o al transmuseo, pero para eso falta un tiempo.
KAMILLA NUNES
Gostaria de saber como você percebe as relações entre crítica institucional em con-
textos institucionais precários.
GALA BERGER
En un contexto con instituciones precarias es mucho más importante establecer
una dimensión crítica. Lo que generalmente se deja de lado al hablar de crítica ins-
titucional, es que se pretende que es únicamente crítica a las instituciones artísticas
y es mucho más amplio que eso, las instituciones para criticar no son solo relacio-
nadas al arte, se puede hacer una crítica hacia el estado nación, hacia la policía,
hacia una determinada política, etc. La idea es sobre todo visibilizar los nexos y los
compromisos entre múltiples sistemas, como el sistema financiero y corporativo
puede ser rastreado en el caso de instituciones “no-precarizadas” y como la cor-
rupción y la incompetencia pueden ser encontradas en instituciones precarizadas.
Ambos estados son permeables a una crítica, pero en el caso de los precarizados
es mucho más urgente. Solamente para dar un ejemplo podríamos mencionar a la
artista referente en estos procesos Andrea Fraser, uno de sus últimos trabajos es
sobre el sistema penitenciario en Estados Unidos, ocurre en un espacio artístico
institucional “no-precarizado” pero fundamentalmente habla de otra problemática.

193
KAMILLA NUNES E MÔNICA HOFF
Com relação ao La Ene, você pode contar um pouco sobre como ele surgiu e que
papel ele desempenha nos contextos artístico e político de Buenos Aires?
GALA BERGER
La Ene, Nuevo Museo Energía de Arte Contemporáneo, surgió a modo de crítica al
sistema institucional y a los modos de circulación, legitimación y producción del
arte. Nacido en agosto de 2010, es el primer museo de arte contemporáneo de la
ciudad de Buenos Aires. Nuestro Museo es una intervención crítica sobre su entor-
no, una manera de construir formatos que renueven las maneras de pensar el mu-
seo y de cuestionar la supuesta oposición entre lo alternativo y lo institucional. Es un
espacio para la promoción de la experimentación y el desarrollo del pensamiento
crítico sobre el arte; un museo abierto, flexible, dinámico, cambiante, expansivo y
chévere. La Ene es la posibilidad de crear un museo que responda a las necesi-
dades de una comunidad específica. Es una institución que surge porque hay una
comunidad que la reclama, no porque haya una colección preexistente que necesite
guarida o quien la administre. Una herramienta contra la instrumentalización del
arte en función del mainstream, la banalización y la globalización corporativa del
museo como marca. La Ene se afirma sobre la filosofía del “hágalo usted mismo” y
la nueva museología; es un organismo dinámico y amorfo, inclusivo y agitador. Es un
espacio para la cooperación y la comunicación, un espacio de encuentro, receptor
de prácticas alternativas de investigación y producción cultural.
KAMILLA NUNES
Considerando sua experiência com a criação e organização de espaços de arte, gos-
taria que você falasse um pouco da relação entre sua prática artística e sua expe-
riência como gestora. Deve existir uma fronteira nítida entre uma coisa e outra?
GALA BERGER
Entiendo que mi trabajo esta intrínsecamente ligado al desarrollo de proyectos in-
dependientes de autoorganización cultural. Cómo un reflejo ante la evidente deca-
dencia de las estructuras existentes, desde una perspectiva crítica de la crítica, es
decir la acción en contra de la mera denuncia. Estos proyectos en los que trabajo
tratan de proponer no solo la construcción de un espacio, sino también repensar las
raíces que dichas instituciones tienen y su problemática actual. La historia hablán-
dole al presente y el presente hablándole a la historia. Haciendo planes, hipótesis,
discusiones y conspiraciones para rehacer los espacios culturales y reformularlos

194
en contra de la renormalización institucional. Este plano de trabajo implica cola-
boraciones y el establecimiento de redes sociales extra estatales y micro-políticas,
para producir la coordinación de luchas e intervenir sobre un terreno concreto.
Algunas ideas, como por ejemplo la feria de publicaciones Paraguay, autonomizan
un intercambio para generar una forma de distribución que es en realidad una
herramienta política, dejando en mano de los productores todas las decisiones con
respecto a la circulación de su material. O en el caso de La Ene, proponen una re-
visión general de los estatutos que sostienen la nueva museología como tal, en pos
de un esfuerzo dinámico que formule no solo una postura hacia la descolonización
sino también una acción constante sobre el contexto local. Y los espacios exhibiti-
vos Inmigrante y Urgente, que funcionaron como centros de reunión de prácticas
huérfanas. Estas experiencias son traducidas y trasladadas a mis trabajos en ma-
neras diferentes, algunas imágenes vienen directamente de allí y otras son pro-
ducidas para luego integrar los proyectos, en la forma de una cadena de nutrición
reciproca. Para ensayar un vinculo que permita reconstruir sobre el tejido social
resquebrajado una confianza capaz de sostener, difundir y constituir directamente
un contraespacio público. Cuando el mundo parece que empuja a la aniquilación,
a la deuda, al endurecimiento de fronteras, es preciso generar situaciones que
ayuden a vivir después de la perdida, que puedan reactivar la memoria y funcionar
como refugio. Como una reacción al racismo y a la violencia estructural de la so-
ciedad blanca-patriarcal y heteronormativa, originando estrategias identitarias con
fuerza y energía. La conexión entre todas estas cosas diferentes, como todas estas
fronteras se exacerban y se amplifican la una a la otra.
KAMILLA NUNES
Significa dizer que o La Ene é, para você, também uma prática artística?
GALA BERGER
Sí y no. Es una práctica artística porque responde a una organización creativa. No
es una práctica artística porque el nivel de responsabilidad implícito no correspon-
de a una experiencia relacional sino a una cooperativa o de co-autoría.
KAMILLA NUNES
Essa noções de cooperatividade e coautoria me parecem muito desafiadoras em
propostas como as que você lançou durante a residência, já que elas funcionam
segundo uma lógica de partilha (de ideias, angústias, reivindicações, posiciona-
mentos críticos, políticos etc.).

195
GALA BERGER
La colaboración es muy importante, sobre todo en asuntos en los que no me siento
autorizada a hablar. Siendo una extranjera, blanca de clase media, no tengo voz en
asuntos en lo que mi experiencia no participa. Mi cuerpo no es racializado día a día,
cómo es que yo puedo hablar de eso? No puedo. Puedo hablar desde mi perspec-
tiva de mujer en una región claramente machista, pero de ninguna manera puedo
hablar y someter nuevamente con mi discurso otras narrativas. Por eso la colabora-
ción se torna una herramienta vital, una llave que enriquece varias perspectivas. El
Arquivo Vivo del Passado Presente no es una idea que surge realmente de mi, sino
una idea que surge de un vacío, el archivo no existe en las universidades, no existe
en las bibliotecas. Por eso está vivo, y reúne información de un pasado que siempre
está presente. El archivo radica en las actividades de todos aquellos activistas que
día a día forman una resistencia, el vacío a ser llenado es la unión de todas sus ener-
gías. Ser más amables entre nosotros para ser peligrosos juntos.
KAMILLA NUNES
Sua última frase me fez lembrar de uma aula do Marcelo Expósito no MUSAC, em
2014, intitulada ‘’El arte como producción de modos de organización” no qual, aos
41’, ele diz: “se um quadro que eu pintei vale mais do que um quadro que você pintou
é porque só eu posso fazer. Qual é o valor de uma produção visual quando estamos
falando de ativismo artístico ou quando estamos falando de arte como produtora
de modos de organização? Seu valor é justamente o de poder ser reapropriável e
transformável por outros. Se eu produzo algo que só eu posso colocar em prática,
então não tem nenhum valor para os demais”. Fico curiosa para saber como você
está produzindo os modos de organização necessários para que esse arquivo se
torne independente de você.
GALA BERGER
Hay muchas formas de organización, algunas más horizontales y otras puramente
jerárquicas. El asunto con el Arquivo radica en la imposibilidad, no sólo de hablar de
algunos temas, sino de realización de planes organizativos-prácticos.
Podemos claramente objetar que no vivo en Porto Alegre y que no puedo encargar-
me del día a día del proyecto. Para algunas perspectivas esto puede ser visto como
una manera de lavarse las manos, es decir de generar una distancia tal en la que
ya no tenga ninguna responsabilidad. En mi manera de verlo, tiene más que ver con
tirar semillas no hacia el suelo, sino hacia al aire y que algunos pájaros que pasen
volando las lleven a su nido para la cena.
196
KAMILLA NUNES
Em uma de nossas conversas, você colocou que, para vocês, gestores do La Ene,
não há diferença entre um espaço dito “alternativo”, “independente” e “institucio-
nal”. Nesse sentido, para vocês o nível de diferenciação está no fetiche que se agre-
ga ao espaço. Você poderia nos contar um pouco mais sobre essa afirmação?
GALA BERGER
Las consideraciones sobre lo alternativo de un espacio, han sido desmontadas des-
de el ocaso de la crítica institucional, porque algo que no mencionamos anterior-
mente es que claramente ha entrado en decadencia - una vez que se hizo evidente
que todas las críticas realizadas hacia las instituciones eran absorbidas - los espa-
cios alternativos incluidos, ya que como dice Daniel Montero en el Cubo de Rubrik
donde analiza el arte mexicano en los años 90: “La alternatividad tiene una relación
directa con la institucionalidad por oposición: alternativo no es algo que está por
fuera del sistema del arte, sino que más bien es algo difícil de describir en rela-
ción con formas que se pueden explicar bajo parámetros establecidos de forma y
contenido”. Y va un poco más allá al emplear el término “institucionalización de la
diferencia”, el cual refiere a esta imposibilidad de plantear la diferencia como una
opción radical o antiinstitucional, porque la diferencia hace parte del sistema. En la
misma publicación Mónica Mayer habla de cómo el concepto alternativo es parte
del discurso demagógico y paternalista de las instituciones culturales estableci-
das, para situarse por encima de las producciones contemporáneas. Y ahí, entra
el fetiche, que no es otra cosa que una construcción de poder, cuál es la verdadera
diferencia entre la Tate y nuestro museo de La Ene? es el espacio? es lo privado
vs. lo público? es la cantidad de $$? es la incidencia en una comunidad? Este pro-
ceso de autolegitimación solo demuestra - y de nuevo volvemos a la publicación
de Montero – “que lo alternativo es solo una versión más de lo oficial”. Desde La
Ene, justamente, nuestra idea ha sido siempre ser lo más institucionales posible,
comprometidos con un programa público con gran responsabilidad social. Nuestro
espacio es pequeño y no cobramos salarios, pero puedes apostar que es el museo
más interesante del país. ;)
KAMILLA NUNES
O La Ene já surgiu como uma provocação política/social/artística em BsAs, pela au-
sência de um museu de arte contemporânea. Pergunto se, depois de sete anos, ele
segue com sua proposta inicial.

197
GALA BERGER
Lamentablemente, nada se transformó ni un día. El estado de los museos sigue
siendo lamentable. Salvo algunos esfuerzos privados, los museos públicos con-
tinúan naufragando. Así que todo sigue más o menos igual, nuestra propuesta ini-
cial sigue intacta, un museo hecho por su misma comunidad para su comunidad.
Lo que sí ha cambiado son las temáticas y sus contribuidorxs, ahora estamos con-
centrados en cuestiones de género y representación, algo que no nos habíamos
preguntado años anteriores por estar pensando en otros asuntos.
MÔNICA HOFF
Crees que estas “nuevas” temáticas pueden cambiar los museos? Como?
GALA BERGER
Aquí, hay un punto curioso, los museos son estos monstruos que tienen miles de
fallas y temores, pero en alguna medida no me parece lo más urgente a cambiar,
tal vez sea cierto cuando se afirma que son los únicos bastiones de resistencia y
reflexión filosófica que quedan…De todas maneras, los problemas más importantes
de nuestro tiempo no se definen en los museos, salvo que desde sus ventanas poda-
mos armas las granadas para arrojar en contra del estado nación. Los museos van
a cambiar naturalmente, porque precisamente la transformación y la apropiación
de nuevas temáticas es el core mismo de su existencia burguesa y colonial. Pero
para atacar el racismo intrínseco de nuestros contextos, o la exclusión de individuos
o la injusticia hacia las mujeres, hay que ir mucho más allá.
KAMILLA NUNES E MÔNICA HOFF
Acreditamos que os museus precisam se repensar desde uma questão aparente-
mente muito simples: não mais o que eles gostariam de ensinar, mas o eles gos-
tariam de aprender. No caso do La Ene, o que você acredita que ele gostaria de
aprender (ainda e/ou neste momento)?
GALA BERGER
Esa es una pregunta bastante difícil de responder para La Ene, porque somos mu-
chos, en un momento creo que lo que necesitábamos aprender era cómo articular
los recursos para subsistir, pero lo hemos aprendido, no fue fácil ni de la noche a
la mañana pero lo conseguimos. Ahora, como este año cumplimos siete años, creo
que lo que deberíamos aprender es como dejar todo lo construido en otras manos,
como volver al proyecto menos dependiente de nosotros mismos y convertirlo poco
a poco en una estructura autónoma. Hora de tirar las semillas.

198
MÔNICA HOFF
Qué es innegociable para La Ene? O sea, qué uds no hacen por nada.
GALA BERGER
Me gustaría creer que hay algo, pero las negociaciones por las subsistencia son
difíciles, las opciones éticas son para quienes tiene una moneda en el bolsillo. Al
menos por ahora, no hemos vendido ninguna pieza de arte ni archivo, no hemos
apoyado la gentrificación de la ciudad ni hecho solo exposiciones de artistas hom-
bres en nuestro cronograma anual. Grandes victorias para un pequeño espacio
independiente.
MÔNICA HOFF
Una más sobre La Ene y te juro que no vuelvo más al tema. Si La Ene fuese un ani-
mal, que animal sería? Por qué? ;)
GALA BERGER
Una mólecula en el ojo de un chanchito, o tal vez una pulga en la cola de un perro?
porque podemos ir saltando de un lugar a otro.
KAMILLA NUNES
Agora, uma curiosidade de outra ordem: como você percebe os contextos artístico
e político brasileiro atual e que reflexões eles geraram em você?
GALA BERGER
Desde Argentina - suponiendo que el estado nación es eso que se traduce en espa-
cios limitados en un mapa - con muchos de mis amigxs nos preguntamos cómo la
rebelión no se produce en Brasil? Cómo se ha creado el mito de la eterna felicidad
y de un futuro que nunca llega? A quiénes les conviene la despolitización y el si-
lencio? Cómo se desarticula esta dialéctica de la inmovilidad que impide construir
una resistencia real y colectiva? Creo que las manifestaciones en Brasil no han
sido suficientes, cuáles han sido los resultados tangibles de esas movilizaciones?
aparte de la visualización, y las sobre-publicitadas heridas de los manifestantes
en manos de las policía y los militares, lo cual va a producir miedo para enfrentar
las próximas protestas. Y cuál es la alternativa? manifestarse tiene que tener de-
trás algún plan político, sino es Temer quién es? y no llega tarde la organización?
no está ya demostrado que pueden hacer lo que quieran porque la capital está en
Brasilia? Era una buena excusa en el siglo XX, las distancias ya no pueden ser un
excusa de la protesta social.

199
MANUAL PARA REALIZAR EXPOSIÇÕES NO TRÓPICO1
Pablo León de la Barra

1 A primeira versão deste texto foi incluída em


COOOOOOP FANZINE 01, um fanzine de fanzines editado
por Dominique González - Foerster e publicado por
Kunsthalle Zürich em 2011. A pedido do La Ene,
o autor ampliou o manifesto que, se por um lado
parte da ideia de realizar exposições no trópico,
por outros é também metafórico e de acordo com
a forma de atuar do Nuevo Museo. Essa segunda
versão foi publicada no catálogo “C–32 Sucursal.
La Ene en MALBA” em 2014 e pode ser lida aqui na
Embarcação, dessa vez traduzida para o português.

O trópico é um estado mental. Uma percepção diferente do espaço,


do tempo e da geografia que resiste à eficiência, à superprodução,
ao excesso de consumo e à sobreacumulação do neoliberalismo.
/ Realizar exposições em qualquer lugar, em cubos brancos, em
cubos pretos, em cubos de madeira e em cubos verdes, na selva
e flutuando no rio, em espaços abandonados e em espaços por
construir, na internet e em páginas de livros ou revistas ou dentro de
um filme, na rua ou em terrenos baldios, ou exposições invisíveis...
/ Aprender com museus não artísticos; ir a museus da comunidade,
museus inativos, museus etnográficos, museus folclóricos,
museus minerais, jardins botânicos... / Pensar a exposição como
um processo, não como um resultado acabado, perfeito, estático.
/ Criar exposições flexíveis nas quais as coisas sempre possam
se transformar. / Pensar a exposição não como uma acumulação
de objetos, mas como um modo de investigar histórias, ideias e
contextos. Pensar a exposição como um ensaio escrito com obras
no lugar de palavras. / Exibir “obras de arte”, bem como coisas
que não são obras de arte; incluir investigação e documentos e
fotocópias. / Integrar novas obras durante a exposição. Desaparecer
outras. / Eu aprendi com dois curadores pioneiros que trabalhavam
nos anos 50 e 70 (antes que a profissão existisse como tal) que

200
fazer uma exposição é como armar um presépio: é preciso colocar
as distintas figuras para dialogar entre si. / Permitir que ocorram
erros, surpresas e colaborações dentro da exposição. / Permitir que
os espectadores se tornem parte da exposição, que a ativem e se
convertam em participantes, ou inclusive em expositores. / Pensar
a exposição como um lugar (ou um não lugar), um cenário, uma
paisagem, um parque, uma biblioteca, um fórum de debate, uma
festa, um clube social. / As plantas e as redes e os ventiladores e as
cadeiras de plástico e os mosqueteiros sempre fazem da exposição
um lugar melhor. / Construir estruturas e gaveteiros e mesas e
paredes móveis para exibir coisas. / Desenhar a exposição sem
especificar todos os detalhes; em troca, des-desenhar; sugerir o que
possa acontecer. / Buscar inspiração nas soluções de desenho das
pessoas. Aprender como as pessoas exibem informação e produtos
na vida real, aprender com anúncios e vendedores ambulantes. / Usar
cópias, reproduções, jpg impressos e fotocópias coladas na parede
caso não se tenha acesso à obra “original”. / Fazer cartazes, folhetos,
pdfs, fotocopiar catálogos ou blogs ou sites da internet. Favorecer a
circulação de ideias, inclusive quando não se está de acordo com elas.
/ Quando não houver orçamento, confiar na economia da amizade.
/ Usar o que se tenha à mão. / Deixar que ocorra o inesperado.

201
202
SESSÃO
PEDAÇO DE ESPAÇO FLUTUANTE

Esta sessão reúne trabalhos e pesquisas de artistas sobre


embarcação e navegação. Foi inspirada num fragmento do texto
“O corpo utópico, as heterotopias”, do filósofo Michel Foucault,
que propõe novas bases para uma nova ciência, a heterotopologia.
Foucault entende a embarcação como um “pedaço de espaço
flutuante, lugar sem lugar, com vida própria, fechado em si, livre
em certo sentido, mas fatalmente ligado ao infinito do mar”.
Para o autor, a embarcação é a heterotopia por excelência, pois
ela foi, para a nossa civilização, o maior instrumento econômico
e nossa maior reserva de imaginação. Importante considerar que
esta sessão não intenciona ser um mapeamento de artistas e
seus respectivos trabalhos, mas um mapa como paradoxo, já que
os lugares não precisam de mapas para existir e os mapas dos
lugares, por sua vez, não são os lugares. Aqui, o mapa nos ajuda a
estabelecer ligação com um imaginário possível da embarcação e
seus espaços circundantes. Espaços políticos, econômicos, sociais.
Espaços de memória, espaços biográficos, espaços de insurgência
ou ainda, para usar a definição de Foucault, “heterotopias que
tem como regra justapor em um lugar real vários espaços que,
normalmente, seriam ou deveriam ser incompatíveis”.

203
Raquel Stolf Mar paradoxo (100 silêncios costeiros + 100 silêncios empilhados) 2013-2016

204
Luisa Nóbrega Jonah number one 2008

205
Caetano Dias Águas 2010

206
Simon Starling Autoxylopyrocycloboros 2006

207
Laura Belém Lugar em fuga 2009

208
Renata De Bonis Broken Wave Concha preenchida com cimento - ou tentativa de silenciar o mar 2017

209
Laura Belém Enamorados 2004-2005

210
Carla Zaccagnini Duas margens (índico) 2012

211
Laura Gorski Repouso 2016

212
Héctor Zamora Ordem e progresso 2012/2017

213
NADJA ABT The authors as cargo vessels Produced as stamps in various sizes 2016

214
Francis Alys Puente 2006

215
Martha Niklaus Horizonte Negro 2015

216
Thais Graciotti Deriva 2015

217
Kenneth Josephson New York State 1970

218
Bas Jan Ader 1975

219
Pablo Paniagua Ensaios de argonáutica para transposição de naufrágios 2016

220
Anônimo Buque Yapeyú (1ª embarcação de bandeira argentina a dar a volta ao mundo e espaço onde se realizou
a Exposição flutuante de 50 pintores argentinos, 1ª mostra do Museu de Arte Moderna de Buenos Aires), 1956.
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http://www.goethe.de/wis/bib/prj/hmb/the/156/pt8622845.htm
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FILMES E VÍDEOS

Águas, Caetano Dias, 2010,


Limite, Mário Peixoto, 1930
La chambre, Chantal Akerman, 1972
News from home, Chantal Akerman, 1975
Fahrenheit 451, François Truffaut, 1966
Toute la mémoire du monde, Alain Resnais, 1956

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