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ORGANIZAÇÃO
Paulo Gomes
TEXTOS
Ana Carvalho
Blanca Brites
Eduardo Veras
Paula Ramos
Paulo Gomes
Paulo Silveira
© dos autores
1a edição: 2015
P65 Pinacoteca Barão de Santo Ângelo: Catálogo Geral – 1910–2014 / Organização Paulo Gomes; textos
Ana Carvalho, Blanca Brites, Eduardo Veras, Paula Ramos, Paulo Gomes [e] Paulo Silveira. –
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2015.
2 v. (688 p.): il.; 21 × 28 cm
Apresentação de Carlos Alexandre Neto – Reitor da UFRGS, Claudia Alfaro Boettcher – Diretora do
Departamento de Difusão Cultural –PROREXT/UFRGS e Lúcia Becker Carpena – Diretora do Instituto
de Artes da UFRGS.
Inclui figuras.
1. Artes. 2. Pinacoteca Barão de Santo Ângelo – Instituto de Artes – UFRGS – Catálogo Geral –
Acervo. 3. Pinacoteca Barão de Santo Ângelo – Coleção Didática. 4. Pinacoteca Barão de Santo Ângelo –
Inventário – Acervo. 5. Ensaio – Compreensão – Acervo – Pinacoteca Barão de Santo Ângelo.
6. Pinacoteca Barão de Santo Ângelo – Tradição – Modernidade – 1940/1950. 7. Pinacoteca Barão
de Santo Ângelo – Sintonia – Tempo. 8. Arte Contemporânea – Produção – Pinacoteca Barão de
Santo Ângelo – 1980/1990. 9. Pinacoteca – Instituto de Artes – Identidade – Século XXI. I. Gomes, Paulo.
II. Carvalho, Ana. III. Brites, Blanca. IV. Veras, Eduardo. V. Ramos, Paula.VI. Silveira, Paulo.
39 a coleção didática da
pinacoteca BARÃO DE SANTO ÂNGELO
PaULO GOMES
51 inventÁRIO
A publicação deste catálogo geral torna possível o acesso ao acervo da Pinacoteca Barão
de Santo Ângelo a todas as pessoas que não tiveram a oportunidade de apreciar as obras
na exposição inaugurada no Salão de Festas da Universidade, no ano de 2014. Considerada
uma das primeiras coleções públicas de arte do Rio Grande do Sul, nascida com a criação
do então Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul, em 1908, o conjunto de obras da
Pinacoteca Barão de Santo Ângelo integra o patrimônio artístico e cultural da UFRGS, ilustra
a história das artes no Rio Grande do Sul e a centenária existência dessa instituição que é
referência nas artes do Estado e do País.
Assim, há uma busca também interminável nas várias iniciativas culturais que o DDC
propõe incessantemente. O maior compartilhamento possível de saberes intelectuais e
técnicos, visando à máxima colaboração que cada instância envolvida tem a oferecer em
prol de um objetivo maior.
O presente catálogo, este ambicioso projeto que traz a mais que centenária coleção de
obras de arte da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo do Instituto de Artes da UFRGS, entra
diretamente nesse âmbito. Em sintonia com a exposição produzida para a comemoração
dos 80 anos da Universidade, em 2014, esta publicação só foi possível através de um
diálogo entre muitas vozes e uma especializada força-tarefa realizada entre muitas mãos e
cabeças pensantes. De maneira plural, este catálogo é fruto da vontade e do empenho de
muitos. Dos gestores da Universidade e do Departamento de Difusão Cultural, do corpo
docente e discente do Instituto de Artes e dos bolsistas deste Departamento.
A difusão presente em nossa sigla não diz respeito a apenas proporcionar e colocar
este catálogo em circulação para acesso público. Ela também difunde dentro do próprio
processo de concepção a possibilidade de participação e troca.
Viabilizar esta publicação, que faz parte das comemorações dos 80 anos da UFRGS,
celebrados em 2014, é apenas mais uma demonstração do cuidado e carinho que a Reitoria
e suas Pró-Reitorias têm dedicado à área cultural de nossa Universidade, percebendo a
importância desta para a sociedade como um todo.
Este catálogo é o registro completo das obras que a Pinacoteca Barão de Santo Ângelo do
Instituto de Artes guarda, cuida e estuda, mas que são bens da Universidade e, sendo assim,
bens da comunidade. A coleção, que tem pouco mais de um século de existência, conta hoje
com 1.485 peças catalogados, obras que foram adquiridas através de compras, prêmios em
salões e doações de membros da comunidade e dos próprios artistas.
Encerrando esta breve apresentação, afirmamos que este catálogo configura-se, desde
já, como um trabalho de fundamental importância como fonte material de estudo para as
futuras gerações. Deixamos registrados aqui os nossos agradecimentos a todos – e foram
muitos – que viabilizaram este projeto tão importante para o Instituto de Artes, para a UFRGS
e para os estudiosos e amantes das artes de todo o Brasil.
No presente volume, optou-se por uma sistematização cronológica, a partir de alguns marcos
significativos, sempre relacionando a Pinacoteca à própria história da instituição que a abriga.
Assim, embora haja permeabilidade temporal, o primeiro texto, assinado por Paulo Gomes,
contempla as obras fundadoras da coleção até 1942, último ano de funcionamento da escola no
antigo sobrado da Rua Senhor dos Passos. O autor enfatiza a coesão dos trabalhos adquiridos,
em voga com as tendências artísticas da época. O segundo ensaio, de Paula Ramos, vai de
1943, com a heróica inauguração do novo edifício, até 1958, quando acontece o maior dos
eventos promovidos pelo IBA: o I Salão Pan-Americano, junto com o I Congresso Brasileiro de
Arte. Questões como autonomia do campo artístico e estabelecimento de redes de relação são
enfatizadas, em meio aos debates sobre tradição e modernidade. Na sequência, Blanca Brites
analisa as mudanças verificadas entre 1959 e 1977, com a querela entre figuração e abstração,
chegando à adoção de novos meios e linguagens e à sua aceitação, patente nos prêmios do
último Salão de Artes Visuais, de 1977. Ana Carvalho e Eduardo Veras elaboraram o quarto
texto, que aborda o período entre 1978 e 2003. A retomada da pintura, os eflúvios da Pop Art
e as mudanças sistêmicas no campo das artes visuais, em época de globalização, constituem
a tônica. Por fim, Paulo Silveira enfoca a última década, de 2004 a 2014, valorizando o espaço
da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo como ambiente vivo e contemporâneo de debates e
intercâmbios entre pesquisadores e estudantes.
Tal aspecto, de troca, pautou o intenso trabalho desenvolvido, ao longo de dezoito meses, para
o término desta publicação. Estudantes de graduação e de pós-graduação foram convidados
a abraçar o projeto, orientados pelos professores e membros da Comissão Editorial. Para o
Bacharelado em História da Arte da UFRGS, curso que iniciou suas atividades em 2010, este
empreendimento é particularmente valioso. Tanto as obras que integram a Pinacoteca Barão
de Santo Ângelo, como os documentos preservados junto ao Arquivo Histórico do Instituto de
Artes constituem fonte primeira das investigações desenvolvidas ao longo de várias disciplinas,
notadamente as de Laboratório de Pesquisa em História da Arte. Muitos formandos, inclusive,
têm desenvolvido Trabalhos de Conclusão de Curso a partir desses acervos, ampliando a
produção de conhecimento na área e promovendo importantes revisões. Assim, nossos
estudantes e mesmo egressos, em meio às várias atividades acadêmicas, comprometeram-
se tanto com a catalogação e conferência do inventário, o registro fotográfico e a edição de
imagens, como, sobretudo, com a produção dos exercícios de leitura das obras de destaque,
um diferencial deste empreendimento. Ao todo, foram 55 acadêmicos envolvidos, o que faz
deste catálogo geral não apenas um dos trabalhos de maior vulto já realizados pelo Instituto
de Artes, como, pela sua gênese e desdobramentos, um exemplo, por si só, de iniciativa que
articula intimamente os próprios eixos da Universidade: ensino, pesquisa e extensão.
Paula Ramos
Membro da Comissão Editorial
dos princípios
a 1942
ENSAIO DE COMPREENSÃO
DE UM ACERVO
Paulo Gomes
Certamente que o esquecimento não está dentro das inúmeras funções que
associamos à ideia de museu. Ao contrário: cremos que os museus são instâncias
de preservação da memória artística e cultural de um povo, em um dado local e
em um determinado tempo. Mas a simples observação das reservas técnicas das
instituições revela que há muito mais coisas esquecidas do que lembradas nesses
lugares. Colocamos nelas as coisas, acreditando que ali estarão preservadas do
esquecimento. Ilusão, vã ilusão. Num mundo superprodutivo, e cada vez mais sa-
turado de informações, muitas coisas fatalmente serão esquecidas. A estratégia
de guardar coisas em algum lugar é baseada na expectativa de que, em algum
tempo remoto, alguém as achará e as trará à tona, reintroduzindo-as no circuito
de referências e, consequentemente, de revaloração. As exposições, os catálogos,
as biografias e os ensaios, ou seja, todo o trabalho desenvolvido nas instituições
museais e de ensino, são resultado da ignorância de estarmos frente a uma obra
ou artista sobre os quais pouco, ou nada, sabemos. É esse afã de tirar do esque-
cimento coisas e pessoas que consideramos dignas de serem vistas e conhecidas
que nos move, estudiosos e pesquisadores.
Algumas questões práticas da coleção da Pinacoteca Barão de Santo
Ângelo foram resolvidas com a edição do seu catálogo, tais como a consolida-
ção do inventário e a definição do número exato de obras até o momento de
seu fechamento. Outras ainda aguardam respostas, como a origem de parte
considerável das peças, a certificação de autoria, a análise do estado de con-
servação1 , a recuperação de muitas peças 2 e, principalmente, a necessidade de
estudos sistemáticos, acompanhados de exposições e publicações para divul-
gação do acervo.
Este ensaio é uma tentativa de compreensão da coleção da Pinacoteca
Barão de Santo Ângelo em relação à arte brasileira, num recorte temporal
compreendido entre o final do século XIX (origem das peças mais antigas da
coleção) e o início da década de 1940, tendo como eixo duas instâncias de le-
As publicações
Teixeira Leite, Tadeu Chiarelli e Annateresa Fabris (Bienal Brasil século XX,
1994), Luciano Migliaccio (Mostra do redescobrimento, 2000) e Ruth Sprung
Tarasantchi (Pintores paisagistas de São Paulo, 2002). 4 Especificamente sobre
a arte produzida no Rio Grande do Sul, a literatura no período em questão –
final do século XIX e primeiras décadas do século XX – é reduzidíssima. As
referências praticamente estão restritas a um único autor, Angelo Guido, que
produziu alguns textos para obras coletivas e artigos em revistas. 5
A lista foi elaborada considerando a perspectiva usada por seus autores:
narrativas históricas, narrativas crítico-biográficas, ensaios analíticos sobre pe-
ríodos estilísticos e ensaios temáticos. Buscamos a maior amplidão possível, do
ponto de vista de um espectro temporal, iniciando em 1885, com Félix Ferreira,
até 2002, com o ensaio de Ruth Sprung Tarasantchi. Desconsideramos aqueles
trabalhos monográficos (incluindo ensaios biográficos), catálogos de retrospecti-
vas monográficas e os catálogos de coleções públicas, por entendermos que essas
narrativas contribuíam pouco, do ponto de vista de uma avaliação da posição
ocupada pelo artista, com relação à(s) sua(s) obra(s) no acervo da PBSA.
A consolidação da lista e a análise das obras arroladas tiveram por ob-
jetivo conhecer a repercussão e a legitimação dos artistas presentes no acervo
da PBSA no nosso período de estudo, com vistas à compreensão de seu reco-
nhecimento e visibilidade no momento de publicação dessas obras de referên-
cia. A lista é bastante esclarecedora e, após apresentá-la, elaboraremos uma
breve análise.
Dos artistas brasileiros finisseculares presentes na coleção, isto é, das
últimas décadas do século XIX às primeiras do século XX, somente dois são
citados por Ferreira e Duque: Oscar Pereira da Silva (1865–1939) e Antonio Par-
Entre os artistas que têm obras na PBSA, são entrevistados e/ou citados
Manoel Ferreira Castro Filho, Manoel Constantino, Paulo Gagárin (1885–1980),
Dakir Parreiras, Haydéa Santiago (1896–1980), Manoel Santiago (1897–1987), Ar-
mando Vianna, Leopoldo Gotuzzo, Oswaldo Teixeira, Pedro Bruno, Hélios Seelin-
ger, Lucílio de Albuquerque, Rodolfo Pinto do Couto e Antonio Parreiras.
Escrevendo sobre Antonio Parreiras, Costa enfatiza o aspecto dispersivo
da obra do artista, ao mesmo tempo em que defende sua fidelidade ao gênero pai-
sagem, que ele considera como o mais bem-sucedido em seu trabalho:
A Seelinger ele não poupa elogios, destacando que “[...] entre os artistas
brasileiros da segunda geração, o Sr. Hélios Seelinger é dos mais interessantes,
pela curiosa organização do seu espírito e forte, ardente, imaginação criadora”
(COSTA, 1927, p. 157), enfatizando, ainda, que “[...] é, em nossa pintura, um caso
à parte, dentro das tendências místicas da influência germânica de sua arte. Há
muito de encantador na sua pintura e uma diretriz de que não se afasta imprime
caráter pessoal aos seus trabalhos” (COSTA, 1927, p. 19). No depoimento de Pedro
Bruno, o destaque é dado à sua formação na Itália e à atenção que o artista dedica
aos pintores da “[...] moderna arte italiana, onde há poderosos mestres que muito
podem ensinar. Atualmente [1927...], são fortes pintores modernos, na Itália, Spa-
dino, Carena, Alciati, Gaudenzi, Ettore Tinto, Sartorio, considerados dos maiores
decoradores da península” (COSTA, 1927, p. 108).
A História da pintura no Brasil, de José Maria dos Reis Júnior,15 é, como diz
seu título, uma narrativa metódica e criteriosamente organizada sobre a pintura
no Brasil. Seu autor relata as experiências pictóricas no Brasil, desde o século
XVII, passando pelo século XVIII, chegando ao século XIX, quando analisa a
produção por segmentos, chegando finalmente ao que ele chama de “Apogeu”, que
corresponde ao final do reinado de D. Pedro II. Neste, é feita referência à obra de
Pedro Weingärtner, o único representante do período na PBSA.16 O autor escreve
que “[...] foi pintor de gênero: tem observação justa, desenho correto e colorido
seguro” (REIS JÚNIOR, 1944, p. 220). No segmento intitulado “A República”,
Reis Júnior introduz considerações sobre a mudança de mentalidade advinda com
a reforma política, esclarecendo que “[...] a inteligência brasileira liberta-se da
ascendência palaciana que a orienta através do prestígio do Imperador e do res-
peito com que o seu gesto e suas ideias eram acatados e as artes expandem-se
num sentido individualista [...]” (REIS JÚNIOR, 1944, p. 245). Considera a perda
do prestígio da Escola Nacional de Belas Artes, escrevendo que esta “[...] não
compreende a transformação ideológica operada, não acompanha a evolução do
espírito brasileiro, nem reflete a inquietação da nossa alma. E, à medida que esta
se precisa, mais se lhe vai distanciando” (REIS JÚNIOR, 1944, p. 245). A par da
constatação da diminuição do prestígio da instituição e de seus modelos, o autor
enfatiza, no mesmo segmento de seu texto, a ampliação do espectro de interesse
pelas artes, saindo do universo restrito da antiga Corte para todo o País, conside-
rando como prova a criação de liceus de artes e ofícios e de escolas de artes em
diversos estados, além do desenvolvimento material, da difusão e do intercâmbio
de novas ideias.
Como representantes desse novo tempo, ele lista as experiências indivi-
duais de Pedro Alexandrino, Antonio Parreiras e Eliseu Visconti. Considera-as
como precursoras da inquietação intelectual que afetará todo o País, como con-
sequência da guerra de 1914 a 1918, culminando na Semana de Arte Moderna de
1922. Considera o autor que “[...] a característica dominante da pintura durante
a República é o seu feitio individualista, o que torna sobremodo difícil senão im-
possível o agrupamento dos pintores por escolas ou tendências” (REIS JÚNIOR,
1944, p. 245). É neste momento de sua obra que ele separa os artistas em dois
grupos: os mortos à época da edição do texto, que ele analisa, e os vivos, dos quais
dará somente notas biográficas, prescindindo de análises e julgamentos.
O primeiro grupo de artistas citados por Reis Júnior, com representação
na coleção da PBSA, começa com João Batista da Costa, paisagista fluminense,
“[...] que seria o primeiro dos pintores brasileiros a compreender e a fixar a
arquitetura de nossa natureza” (REIS JÚNIOR, 1944, p. 245). Sobre Antonio
Parreiras, ele enfatiza o caráter dinâmico e operoso do artista. As considera-
ções sobre sua obra variam do elogio sincero ao paisagista à restrição comedida
ao pintor de nus. Acerca do pintor de história, sua reserva se manifesta clara-
mente ao escrever que “[...] suas composições históricas são geralmente am-
bientadas e se, em algumas, há certo exagero anedótico ou o desenho claudica e
o arabesco é descuidado, outros há com poder evocativo” (REIS JÚNIOR, 1944,
p. 264). A propósito de Eugênio Latour (1874–1942), considera-o “[...] um pintor
de recursos, embora sua obra não se distinga por uma personalidade acentuada,
trai uma inteligência cultivada, sensibilidade educada e certa elegância, que
datas das obras com suas inscrições nas listas de obras da coleção. De artistas
desse período inicial, do final do século XIX e dos primeiros anos do século XX,
são notáveis o Crepúsculo (1903), de Mariano Barbasán Lagueruela (1864–1924); o
Autobusto (1915), de Jesus Maria Corona (1871–1938); e a bela Face (1916), desenho
à sanguínea de Miro da Gasparello (1891–1916). Na sequência, temos também os
casos de Luz e sombra (1925), de Galdino Guttmann Bicho, 23 e Dernière lueur (1914),
de Dakir Parreiras (SANMARTIN, 1969, p. 100). Em 1926, são adquiridas a Preta
da Bahia (1925), de Gastão Worms (SANMARTIN, 1969, p. 111, registra-se que a
exposição é “pura arte moderna”), e Morro (1918), de Alfredo Norfini (1867–1944).
Provavelmente, a Maternidade (sem data), de Pedro Bruno, tenha sido adquirida
na exposição do artista na Casa Jamardo, em 1927 (SANMARTIN, 1969, p. 126).
Essas listas, que só chamamos de inventários por sua natureza primeira, não
por sua intencionalidade, foram elaboradas sucessivamente em 1912, 1913, 1918,
1919 e 1920, como parte dos relatórios administrativos da instituição. 24 O de 1922
é o que mais se aproxima de um inventário de fato, pois lista as obras, informa
seus títulos e seus autores e, por vezes, registra o valor pago. O mesmo relatório
acrescenta ainda informações sobre a origem da obra e suas características. A outra
lista, editada em 1954, intitulada de Coleção de obras de arte – Catálogo provisório,25
apresenta a relação das 101 obras da coleção, com entrada pelo sobrenome do autor,
seguido do título, da técnica e da data.
Se a inexistência de um registro de entrada das obras no inventário da coleção,
pelo menos a partir dos anos 1930, impede-nos de seguir, passo a passo, a constituição
do acervo, os catálogos dos salões, em contrapartida, fornecem-nos um retrato bas-
tante detalhado das aquisições da PBSA até os anos 1970.
A extensa tradição dos salões de artes no Rio Grande do Sul se inicia ainda
no final do século XIX, ligada às grandes exposições comerciais, “[...] onde a arte é Catálogo do Salão da
agregada como um acessório, com referência secundária, incidental” (KRAWCZYK, Escola de Artes, 1928 | AHIA
1997, p. 18). A sequência desses eventos inicia-se em 1875, com a Exposição Comercial
e Industrial, e vai se repetir em 1881, com a segunda das mostras de artes plásticas
local. A próxima mostra dar-se-á somente em 1901, já em plena República. A parti-
cipação dos artistas locais, profissionais ou amadores, aumenta gradativamente ao
longo dos anos: 19 expositores em 1875, 46 em 1881 e, em 1901, eles chegam a uma cen-
tena (KRAWCZYK, 1997, p. 21). Índice seguro do interesse local, somente em 1903,
efetivamente, ocorrerá um salão exclusivo, com a Mostra Grupal de Artes Plásticas,
promovida pela Gazeta do Commercio (KRAWCZYK, 1997, p. 22).
A ausência de continuidade desses eventos durará por volta de 20 anos,
quando é organizado o Salão de Outono, em 1925. Evento de referência na histó-
ria local das artes plásticas, esse salão terá a coordenação do chamado “Grupo
dos Treze”, conjunto de artistas e amadores das artes plásticas locais. Parti-
ciparam desse salão tanto artistas jovens como consagrados e é digno de nota
que, tanto do grupo de organizadores, quanto do grupo de artistas expositores,
diversos deles tinham vínculos com o Instituto de Belas Artes: os professores
Libindo Ferrás, Fábio de Barros, Augusto Luiz de Freitas e Francis Pelichek.
Oscar Boeira tinha sido professor e o seriam, no futuro, João Fahrion, José
Lutzenberger e a ex-aluna Judith Fortes. 26 Apesar de prever sua continuidade,
o Salão de Outono não foi adiante, e somente em 1929 aconteceria o Salão da
Escola de Artes, promovido pelo IBA e organizado por Libindo Ferrás, com o
apoio financeiro da Presidência do Estado e da Intendência de Porto Alegre
(KRAWCZYK, 1997, p. 36). Esse salão dará início à longa e irregular sequência
de mostras organizadas pela instituição, que se prolongará até os anos 1970. 27
Se, do Salão de 1929, temos somente o registro da aquisição da pintura Carre-
teiro (sem data), do próprio Libindo Ferrás, 28 do I Salão de Belas Artes do Rio Gran-
de do Sul, realizado em 1939, foram incorporadas as três pinturas que receberam
os prêmios de aquisição: A écharpe rosa (1939), de Leopoldo Gotuzzo; Paraguassu
à guisa de conclusão
10 O Salão da Escola de Artes realizou-se em novembro de 1929, 23 Olyntho Sanmartin informa que “O artista deixou inúmeras
conforme dados do catálogo. telas em Porto Alegre e executou retratos de Zeferino Brasil,
Renato Costa, Ernesto Pellanda, Augusto de Carvalho, Athos
11 Salão da Escola de Artes. Diário de Notícias, 19 set. 1929, p. 16, Damasceno Ferreira, José Pessoa de Mello, De Souza Jr.,
apud SILVA, 2002, p. 213–214. Afonso Silva e Raimundo Pereira” (SANMARTIN, 1969, p. 98–
100). Outra tela do artista encontra-se na Pinacoteca Aldo
12 GUIDO, Angelo. Exposições coletivas de arte em Porto Alegre.
Locatelli, da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.
In: Diário de Notícias, 5 nov. 1940, Suplemento, p. 10, apud
SILVA, 2002, p. 216. 24 Conforme inventariado por Adriana Bolzan em sua monografia
intitulada Pinacoteca Barão de Santo Ângelo: um pouco
13 GUIDO, 1929, apud SILVA, 2002, p. 192.
de sua história (UFRGS, 2011), essas listas apresentam
14 Angyone Costa (Natal, RN, 1888 – Rio de Janeiro, RJ, 1954) é mutações nos títulos de muitas obras, o que causou
autor de trabalhos nas áreas de Arqueologia e Antropologia: problemas de identificação, certificação e, mesmo, de obras
Introdução à arqueologia brasileira – etnografia e história consideradas desaparecidas, o que tentamos corrigir e
Bailarinas se faz presente na época em que Pedro Wein- Tema corriqueiro de Weingärtner, nesta obra, em especial,
gärtner (Porto Alegre, RS, 1853 – Porto Alegre, RS, 1929) se chamam a atenção a riqueza de detalhes que o artista consi-
sente triunfante em sua arte e com seu nome em destaque dera e representa, além de um vasto conhecimento técnico.
entre os pintores brasileiros. Angelo Guido (1893–1969) di- Na pintura, três garotas em trajes de dança aparecem em
zia: “Sua personalidade artística já está clara e firmemente uma grande sala, em cujo centro está um aquecedor de car-
definida; encontra-se de posse de amplos recursos técni- vão. Mais acima, no quadro, vemos uma paisagem do próprio
cos e as suas diretrizes artísticas não poderão daí por dian- artista. As jovens se distribuem ao redor desse aquecedor,
te sofrer alterações” (GUIDO, 1956, p. 71). cada uma em gestos específicos. Das meninas sentadas,
uma delas, sobre o canapé revestido por tecido estampado,
Quando da elaboração desta obra, Weingärtner estava lê um bilhete que deve ter-lhe sido enviado por um admirador,
em Roma, instalado no seu amplo ateliê envidraçado da junto com o buquê de flores que ela segura na mão. Do outro
Via Margutta, nas proximidades da Piazza Del Popolo, no lado, a segunda bailarina observa a colega que, apoiada em
bairro dos artistas. Naquele recanto de paz, trabalhou in- uma mesinha, escreve algo. Sobre o cenário, as paredes são
cansavelmente por vários anos e ali produziu as melhores revestidas de um tecido brocado em vermelho, e a decoração
obras de uma fase de plenitude do seu talento e das suas do ambiente inclui um tapete de pele de um animal selvagem,
possibilidades técnicas (GUIDO, 1956). Em Bailarinas, os grandes vasos com flores e mobília requintada. Suponha-se
aspectos estilísticos continuam sendo baseados em sua que o espetáculo já tenha ocorrido e tenha sido um sucesso.
formação acadêmica. Não aderindo ao impressionismo
francês, Weingärtner, talvez temeroso em trair os princí- Hoje, seja por gosto pessoal, seja pelo seu valor histórico e
pios tradicionais em que se orientara, preferiu ficar com artístico, essa obra desperta ainda muito interesse no públi-
aquela corrente que, em Roma, no final do século, ainda co, destacando-se como uma das mais belas pinturas de um
pensava em defender um ideal de beleza antiga ou a mes- dos principais artistas do Rio Grande do Sul.
ma técnica formalista que empregava nos assuntos clás-
sicos (GUIDO, 1956). Kethlen Santini Rodrigues
Eugênio Latour (Rio de Janeiro, RJ, 1874 – Rio de Janeiro, RJ, sentada alegoricamente como uma mulher idosa ou deca-
1942) foi o primeiro professor de fora do Rio Grande do Sul dente, que cobiça algo de modo desesperado e definha,
a ministrar aulas no antigo Instituto Livre de Belas Artes. Na geralmente interagindo com outros personagens. A cobra,
época, já era um artista consagrado no centro do País. assim como lobos, são atributos dessa alegoria. O tema da
invídia já foi pintado por artistas como Giotto (1267–1337),
Latour se formou na antiga Escola Nacional de Belas Artes do na Cappella degli Scrovegni, em Padova, por volta de 1309.
Rio de Janeiro, sendo aluno de Eliseu Visconti (1866–1944), Diversas gravuras moralizantes também podem ser en-
Henrique Bernardelli (1857–1936) e Rodolfo Amoedo (1857– contradas com essa temática.
1941). Ganhou as mais altas condecorações da Escola Nacio-
nal, entre elas o Grande Prêmio de Viagem ao Exterior, que o Na composição de Latour, temos a invídia em primeiro pla-
artista efetivou em Roma, entre 1902 e 1908. José Roberto no. Iluminada, ela está sentada, voltada para o espectador,
Teixeira Leite o classifica como “um pintor da alma huma- com seu olhar aparentemente perdido. Enquanto morde
na” e o encaixa na temática simbolista, pois este movimento seus dedos, em compulsiva obsessão por algo, seu sangue
“[...] tinha em mira não representar as coisas, porém sugerir escorre pela tela, o “mesmo sangue” que o artista usa para
ideias, pensamentos e sentimentos, por meio de símbolos escrever o título da obra na elaborada moldura que a inte-
revestidos em opulenta linguagem formal” (LEITE, 1979). gra. Ao lado da personagem, há uma planta seca, elemento
que sugere a deusa romana da inveja que destrói planta-
A Pinacoteca Barão de Santo Ângelo conta com três quadros ções por onde passa. No segundo plano, temos cenas per-
do artista, dentre eles Invídia, que se destaca dos demais didas na fumaça, que parecem refletir os pensamentos da
por seu caráter alegórico. Essa imponente obra foi concluída megera: cenas com música, paixão e comida, um conjunto
em Roma no ano de 1906 e adquirida para integrar o acervo de prazeres. A pintura pode ser lida como uma síntese dos
da instituição em 1919, através do pedido de Libindo Ferrás pecados do homem; entretanto, quando o espectador esti-
(1877–1951), na época diretor do Curso de Desenho. ver diante dos olhos dessa Invídia, uma outra questão pode-
rá surgir: de quem ela tem inveja?
A invídia, ou inveja, é um dos sete pecados capitais con-
denados pela Igreja Católica. Na Itália, costuma ser repre- Marina Muttoni Roncatto
A pintura intitulada Christo pertence ao primeiro conjunto de avantajados, o que concorre para que, por meio desta obra
obras adquiridas para a Pinacoteca Barão de Santo Ângelo. em especial, Parreiras se inscreva no rol dos artistas que,
Antonio Diogo da Silva Parreiras (Niterói, RJ, 1860–1937), já mesmo de forma não consciente, se autorretrataram.
consagrado pintor fluminense, vendeu a obra ao Instituto Li-
vre de Belas Artes por ocasião da sua exposição em Porto A composição formal da obra está ligada principalmente ao
Alegre, ocorrida em dezembro de 1911 e amplamente divul- desenho sereno da figura do Cristo, que preserva a ênfase
gada na época pelo jornal Correio do Povo. Nessa mesma da linha na nuca, no rosto e na roupa, bem como no uso do
ocasião, ele registrou em seu livro autobiográfico que “[...] contorno. A escassez de linhas e volumes, principalmente
a população da bela cidade rio-grandense não estava ainda na figura de Cristo, talvez seja o motivo principal de certo
habituada a estas festas de arte” (PARREIRAS, 1943, p. 107). embaraço na visualização de detalhes. Também contribui
para essa impressão a cor rebaixada da paleta; esse bran-
Nessa pintura de viés naturalista, vislumbramos um Cristo co azulado, de difícil definição, que embaça e inunda de luz
humanizado, inserido numa grandiosa paisagem de fundo todo o quadro, ecoa uma possível influência impressionista.
que pode evocar o Monte Gólgota. Talvez nos paredões este- Ela se concentra no branco sólido da túnica de Jesus, dando
ja o motivo do título: o artista, extasiado pela beleza do lugar, um tom silencioso e espiritual ao ambiente, confirmando que
buscou traduzí-la em um momento metafísico. Em um de a “[...] composição, luz e cor já não se encontram apenas a
seus retornos ao Brasil, Parreiras escreveu: ”Foi [...] nos teus serviço da forma, mas possuem vida própria” (WÖLFFLIN,
despenhadeiros, [...] nas tuas praias banhadas de luz, que me 2001, p. 20).
fiz artista. [...] Foi o sol das tuas praias desertas, praias imen-
sas de areia faiscante, que me ensinou a ver, a sentir a tua luz Se fosse possível estabelecer o momento da concepção des-
sem igual” (PARREIRAS, 1943, p. 127). Gombrich nos diz que ta tela pelo artista, diríamos que foi de transição, pessoal ou
a interpretação da obra de arte como uma expressão dos es- talvez de gêneros de sua pintura, porque desnuda dificulda-
tados internos do artista é frequentemente uma abordagem des e, ao mesmo tempo, enfatiza o que é atemporal, a mag-
da estética do século XX (2012). De fato, nessa pintura, além nitude da sua espiritualidade.
daquele suposto estado de êxtase, temos, no rosto da figu-
ra, um quê do próprio artista, principalmente nos supercílios Vera Py
Augusto Luiz de Freitas (Rio Grande, RS, 1868 – Roma, Itá- está presente no cenário. Sabe-se que se trata da saída de
lia, 1962), gaúcho de nascimento, foi para Portugal com sete uma missa pelo título e também pela expressão das mulhe-
anos de idade. Na cidade do Porto, iniciou seus estudos ar- res, que descem pensativas e com o olhar contrito e baixo.
tísticos na Academia de Belas Artes, completando o curso A jovem que está em primeiro plano, virando à esquerda,
de Desenho Histórico e estudando também Arquitetura e abraça seu livro de orações contra o corpo e, da mesma for-
Escultura. Após a morte dos pais, retornou ao Rio Grande ma, a anciã de bengala, acompanhada de uma criança, que
do Sul, realizando, em 1894, a pintura do pano de boca do se destaca no alto da escada, segura seu livro de orações.
Theatro São Pedro, em Porto Alegre (DAMASCENO, 1971). Atrás dela, segue-se uma fila de figuras femininas, mulheres
Permaneceu no Estado até o início de 1895, quando se mu- que descem em direção às suas casas.
dou para o Rio de Janeiro, matriculando-se na Escola Nacio-
nal de Belas Artes. Nos três anos seguintes, participou das Nos elementos arquitetônicos, o pintor usou tons terrosos,
exposições gerais de Belas Artes e recebeu, na edição de além do verde acinzentado e do preto, para representar o
1898, o Prêmio de Viagem ao Exterior, com o quadro In Deo limo e a umidade decorrente da ação do tempo. Com pin-
Speravit. Transferiu-se para a Itália, radicando-se em Anticoli celadas fortes e generosas, que enchem a tela de tinta, ele
Corrado, pequeno povoado da região de Roma, onde artistas transmite uma aparência de realidade e dá vida às antigas
como Pedro Weingärtner (1853–1929) e o espanhol Mariano construções. No motivo principal do quadro – a fila de mu-
Barbasán Lagueruela (1864–1924) se refugiavam em busca lheres que desce a escada –, Freitas adotou cores vibrantes,
de belas, luminosas e coloridas paisagens. Ali viveu, com a como o vermelho e o azul das roupas e o branco dos lenços
mulher e duas filhas, por muitos anos, e ainda hoje existe, em de cabeça e das golas das blusas.
sua homenagem, uma rua chamada “De Freitas”, nome pelo
qual o artista é conhecido em toda a Itália. Augusto Luiz de Freitas buscava a harmonia em suas obras,
bem como expressar, nas cenas representadas, a mesma in-
O quadro Saída da missa representa uma cena corriqueira tensidade com que observava a realidade. Seus quadros eram
em Anticoli Corrado, com seu cenário de arquitetura típica estudados em detalhe e atestam sua seriedade e interesse pelo
e construções na encosta íngreme. A escadaria, estreita e “verdadeiro”. Por isso, ele é considerado um artista honesto, em
centralizada, divide o quadro verticalmente, e é nela que re- toda a extensão da palavra, como afirmou Gonzaga Duque.
side todo o movimento da cena: por ela descem, em fila, as
mulheres e as crianças que saem da missa, mas a igreja não Lilian Heuser
Aluno na Escola Nacional de Belas Artes, na qual ingressou reita, está deitada no chão. Das coxas para baixo, há penum-
em 1894, aos 20 anos, Eugênio Latour (Rio de Janeiro, RJ, bra. As pernas estão esticadas, a esquerda sobre a direita,
1874 – Rio de Janeiro, RJ, 1942) atuou como pintor, grava- o que dá um aspecto descansado à figura. A luminosidade
dor e decorador. Tematicamente, tinha preferência por te- é mais forte no braço esquerdo e em parte das costas e do
mas sociais e morais, além de paisagens e figuras femininas. pequeno busto, que se entrevê. A cabeça descansa sobre as
Por influência de Henrique Bernardelli (1857–1936), do qual mãos, estando levemente virada para a direita e para cima;
foi aluno e discípulo, teve contato com o Impressionismo, o ela olha para o polichinelo. O cabelo é uma massa castanha;
Neoimpressionismo e o Divisionismo Italiano. Em sua estada pouco do rosto é mostrado, de perfil.
na Europa, no início do século XX, conheceu o Art Nouveau,
do qual é considerado um dos precursores no Brasil. A menina maior, de perfil para o espectador, senta-se em
uma almofada, as pernas dobradas. O pescoço é uma leve
Devido a problemas de saúde, Latour morou em Porto Alegre diagonal, como as linhas do tronco, das pernas e do braço
em 1919, quando lecionou no antigo Instituto Livre de Belas direito, este enfeitado por uma pulseira dourada. A quase
Artes. Naquele período, doou o quadro Polichinelo à Pinaco- falta de curvas faz presumir a pouca idade. O seio direito,
teca Barão de Santo Ângelo. A Escola adquiriu do artista uma levemente crescido, indica a entrada na puberdade. A mão
outra pintura, Pensativa, e a Intendência Municipal doou uma direita pende sobre o pé, do qual se vê a planta, de pincela-
terceira obra, Invídia. das marrons, rápidas. O cabelo, castanho, está preso por um
laço. A luz do quadro, teatral, incide principalmente sobre
Pintado em Florença, Itália, Polichinelo foi exposto no Salão de ela, que segura o boneco.
1913, no Rio de Janeiro. Segundo crítica de época, do Jornal do
Brasil, esse e outros quadros de Latour presentes à exposição O casaco do Polichinelo é verde e forma um “V” invertido
eram “primores” e mereciam “elogiosas referências”. sobre o colete. As pernas e os braços estão muito abertos
e levemente dobrados. A mão esquerda, à mostra, é prati-
O quadro apresenta, ao fundo e na lateral direita, três gran- camente um borrão. A sola do pé, amarela, mostra a forma
des linhas que demarcam o espaço no qual estão as meninas do sapato, grande demais para o restante do corpo. A face
e o brinquedo: um ambiente burguês. Elas formam um lar- é triste, lábios voltados para baixo. A figura se destaca no
go rodapé marrom e um friso decorado por medalhões em quadro pelo tratamento dado pelo pintor, com pinceladas
azul, marrom e amarelo, que remete ao Art Nouveau; não é largas, bem aparentes, principalmente no rosto. Em toda
possível identificar as figuras, assim como o móvel no canto a obra, o vermelho só aparece no laço do cabelo da menina
direito, na parte mais escura do quadro, sobre o qual há um maior e no colete e no barrete do Polichinelo, estabelecen-
tecido ou roupa azul, bem como um objeto vermelho. Os me- do uma ligação entre as figuras. Personagem da Commedia
dalhões são interligados por finas linhas marrons e encima- Dell’Arte, tido como tolo, simplório, mas, na verdade, am-
dos por arabescos que lembram formas orgânicas. O chão é bicioso e esperto, o Polichinelo, que muitas vezes mostra-
formado por manchas em diferentes tons de verde, pintadas va às pessoas verdades que elas não queriam ver, parece
de maneira não uniforme. anunciar que a infância está acabando, dando lugar a uma
nova fase.
As meninas, ambas nuas, destacam-se contra o fundo. As pin-
celadas remetem ao Impressionismo. A menina menor, à di- Rosane Vargas
A pintura Maricás foi uma das primeiras obras adquiridas Em Maricás, o pintor representa uma paisagem na qual mos-
pelo então Instituto Livre de Belas Artes do Rio Grande do tra uma árvore típica do Rio Grande do Sul, o maricá, que dá
Sul (ILBA), com a intenção de formar um acervo de pintu- título à obra. Os maricás, também conhecidos por espinhei-
ras, base da atual Pinacoteca Barão de Santo Ângelo. Libin- ros, são árvores de tronco curto e muito ramificado, comuns
do Ferrás (1877–1951), desempenhando a função de con- em solos úmidos ou brejosos, onde formam densos agrupa-
sultor na aquisição de quadros para o ILBA, relata, em 1913, mentos. Weingärtner representa um desses agrupamentos,
a aquisição de Maricás para a nascente Pinacoteca (SIMON, dando especial destaque a uma das árvores, que aparece um
2003, p. 190). A intenção de adquirir obras de Pedro Wein- tanto isolada das demais, em posição central, levemente deslo-
gärtner (Porto Alegre, RS, 1853 – Porto Alegre, RS, 1929) cada para a direita da tela. O artista opta por colocar a linha do
para formar uma galeria de pinturas já consta no relatório horizonte na parte superior da tela, dando predominância ao
de 1909–1912 do então presidente do Instituto, Olintho de solo em relação ao céu. Isso permite que o artista ocupe toda a
Oliveira, ao Presidente do Estado (SIMON, 2010). Esse re- parte inferior da obra com o terreno alagadiço, executando um
gistro demonstra o prestígio que Weingärtner desfrutava magnífico trabalho na representação do reflexo do céu e das
na época, de forma a ser citado nominalmente como um árvores na água. A pintura adquire, assim, uma supremacia de
exemplo de artista gaúcho cujas obras qualificariam o acer- tons verdes e azuis, entremeados pelos castanhos dos galhos
vo em construção. e troncos dos maricás. Na galhada das árvores, são utilizados
tons mais claros, indicando a incidência de luz solar. Esse re-
Weingärtner é, de fato, um capítulo à parte na história da arte curso traz um pouco de sensação de calor à obra que, de resto,
no Rio Grande do Sul. Dono de uma técnica apurada, aper- passa uma impressão de frio. A obra apresenta uma grande
feiçoada na Europa, teve uma intensa produção durante sua pluralidade de elementos, que têm tratamento individualizado
vida, na qual se destacam as paisagens, as cenas de costu- pelo artista, especialmente a árvore principal, na qual é possí-
mes e os retratos. A qualidade e precisão técnica das suas vel acompanhar o desenho sinuoso de cada galho. A tela não
obras, ligadas a um estilo de pintura tradicional, garantiram- apresenta marcas perceptíveis de pinceladas, mostrando o
lhe reconhecimento e prestígio nos círculos artísticos de respeito do artista aos padrões acadêmicos. Está assinada e
orientação acadêmica de sua época, da mesma forma que datada no canto inferior esquerdo.
lhe acarretaram uma desvalorização posterior pela historio-
grafia da arte de viés modernista. Marcelo de Souza Silva
Lucílio de Albuquerque (Barras, PI, 1877 – Rio de Janeiro, ro está de costas para o sol, o qual incide no lado aberto e
RJ, 1939) produziu Na encosta em 1913, na sequência de seu claro da tela. O céu azul e leve é o indício do sol, que ilumina
retorno ao Brasil, após uma estadia de cinco anos na Europa, as cores usadas por Lucílio. Com a paleta mais quente, está
beneficiado pelo Prêmio de Viagem ao Exterior, conquistado representado ao fundo, o morro mais elevado, que parece
na Escola Nacional de Belas Artes, em 1906. A observação desmoronar; as gramíneas que o encobriam dão lugar a uma
das obras impressionistas e simbolistas lhe causou efeitos terra árida e castigada. O amarelo que vibra limita os dois ti-
que perpassam o conjunto de suas obras a partir de então. pos de pinceladas da tela: no primeiro plano, ela é mais curta
Em Na encosta, eles igualmente se revelam, dando a tônica e pontual, seguindo-se a outra, larga e pastosa. Os tons violá-
particular das composições desse artista: expressar a nature- ceos, combinados com o verde claro, insinuam a sombra e a
za em seus aspectos puros e exibir algo criado subjetivamente. vegetação rasteira dos campos.
Aqui, a força da natureza evita que os olhos se distraiam com
seus encantamentos, a paisagem se apresenta como ela é. Nesta paisagem, Lucílio de Albuquerque se vale de artifícios
técnicos impressionistas, não pelo cientificismo do uso das
A pintura está dividida por uma grande linha diagonal que cai cores, mas pela espontaneidade da pintura en plein air, das
do canto superior direito até o canto inferior esquerdo, linha pinceladas sobrepostas e da composição sem contornos.
que assume o papel de encosta do morro. Ela delimita o lado Sua obra se insere numa corrente pré-modernista da arte
escuro e mais próximo do espectador; acima dessa linha, brasileira do período, já afastada do chamado academicismo
duas montanhas atravessam o paredão de árvores, configu- – fato perceptível em recursos como as pinceladas irregu-
rando o campo mais luminoso da tela. O declive no primeiro lares, utilizadas como medidas expressivas, e pelo fato de o
plano, proporcionado pela diagonal, colabora com a impres- artista não pintar uma paisagem idealizada, preferindo uma
são de que as árvores, as raízes e a terra foram levadas por atmosfera que nos possibilita inferir como a natureza realiza
uma enxurrada que ainda umedece o local. Os tons de verde a transformação diária e contínua de seus organismos.
escuro e musgo, juntamente com o marrom, deixam perce-
ber que a terra está molhada e reluta em secar, já que o mor- Samara Müller Pelk
No decorrer da carreira de Libindo Ferrás (Porto Alegre, da imensidão inocupada pertence a outra pessoa, talvez um
RS, 1877 – Rio de Janeiro, RJ, 1951) como pintor – uma fazendeiro que também é o patrão do morador da casa.
das várias funções exercidas por ele no universo artístico
local –, Nuvens de estio se insere no conjunto de obras O quadro é harmônico pela presença de uma porção exten-
cuja temática é a construção atmosférica da solidão liga- sa para o solo e outra equivalente para o céu e, assim como
da à paisagem. Essa tela é uma das guias que preencherá o lado esquerdo é ocupado pela residência, o lado direito é
seu repertório na década de 1920, auge de sua produção. preenchido por árvores. O equilíbrio também se manifesta
Conforme Paulo Gomes (2012, p. 27), o artista não tinha com cores moderadas: o ocre predominante se difere da ter-
interesse em apresentar e formar a identidade da região; ra para a casa, uma vez que, no solo, a textura empregada
suas obras são o prolongamento do que pensa a respeito apresenta um aspecto arenoso e quente; já na residência, o
da arte: autonomia. Por isso, o realismo das paisagens é artista propõe a aparência do ocre opaco, de tom mais bai-
preterido em favor da atmosfera. xo na fachada, deixando à mostra os tijolos feitos de barro.
A tonalidade do verde muda entre as folhas de árvores e na
O olhar apresentado nesta tela é como o de um visitante vegetação rasteira que cinge a faixa do meio do quadro. No
que encontra uma típica casa de trabalhadores do campo. ponto médio da tela, as cores que pulsam vêm dos panos,
Em Nuvens de estio, não vemos pessoas, mas sabemos, no em vermelho e branco, estendidos juntos ao cor-de-rosa das
entanto, que alguém vive naquele local, não somente pela flores. As nuvens comprimidas e densas pairam sob essa
porta e janelas abertas e roupas estendidas nas estacas de paisagem sossegada e silenciosa, que se estende por mais
madeira, mas também pela terra que cerca a casa: no pri- algumas supostas extensões de terra.
meiro plano, o solo parece ter sido cavocado por enxadas que
abriram ranhuras para escoar a água das chuvas. A ação do Libindo Ferrás pinta essa paisagem sem sugerir críticas de
homem está presente também nos fundos da casa, local cer- cunho social; trata-se, pura e simplesmente, de uma paisa-
cado que aparenta ser um canteiro de horta. Esse é, aliás, um gem do meio rural, promotora de uma experiência sensorial.
terreno demarcado por muretas, ou seja, quem mora ali é dono
apenas daquele espaço limitado, simples e humilde; o restante Samara Müller Pelk
João Baptista da Costa (Itaguaí, RJ, 1865 – Rio de Janeiro, tes. O lado direito é mais iluminado, com tons claros de verde,
RJ, 1926) teve origem humilde e iniciou seus estudos na Aca- no qual se percebe um pequeno telhado vermelho ao fundo
demia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, em 1885, e outros dois em tons de cinza claro. O barranco à esquerda
onde aprendeu pintura com Zeferino da Costa (1840–1916) conduz o olhar do espectador até a área em que há uma por-
e Rodolfo Amoedo (1857–1941). Durante esse período de es- teira e uma figura humana, que mal se distingue, mero coad-
tudos, que durou até 1889, viveu o processo de transição da juvante. A protagonista, nesse quadro, é a própria natureza.
academia, que, além de se transformar em Escola Nacional
de Belas Artes, na passagem do Império para a República, Observa-se o cuidado que o pintor teve em representar os
saía de uma orientação em grande parte de matriz neoclássi- aspectos mais atraentes e reais da paisagem. Ele utilizou
ca para adotar uma orientação mais realista. A produção de uma ampla gama de tons de verde para expressar os tipos
Baptista da Costa é vasta e inclui cenas de gênero e retratos, de folha ou vegetal presentes no cenário; os amarelos tam-
mas foi na pintura de paisagem que ele se consagrou. bém participam da composição dos verdes mais claros, de-
nunciando a presença da luz, o que causa um belo efeito, ao
O artista era adepto da pintura en plein air, método intro- contrastar com a sombra dos verdes mais escuros e das to-
duzido na academia pelo paisagista alemão Georg Grimm nalidades terrosas. O artista trabalhou com pinceladas segu-
(1846–1887). Homem simples e tímido, Baptista da Costa ras, breves e suaves, quase imperceptíveis, buscando repre-
gostava de levar seu cavalete e sua caixa de tintas para o sentar o frescor e a vitalidade do arvoredo e da relva, o movi-
mato e pintar em contato com a natureza: “Era um contem- mento da água entre as pedras e das nuvens no céu. Tem-se
plativo, um emocional sem arrebatamentos nem revoltas” a impressão de que a paisagem está viva, pulsando, como
(RUBENS, 1947, p. 95). O quadro Paisagem foi pintado pro- o pintor a viu e sentiu. É uma paisagem harmônica e sere-
vavelmente no início do século XX, quando o artista retor- na, que transmite uma sensação de paz e tranquilidade que,
nava ao Brasil, depois de ter realizado viagem de estudos à além de suas qualidades técnicas, comunica-se com o ob-
Europa, como prêmio recebido em 1894. servador, atraindo seu olhar e tocando sua alma (GONZAGA
DUQUE apud RUBENS, 1947).
A tela mostra uma cena de paisagem rural, com um córrego
centralizado no primeiro plano, que contorna algumas pe- Conhecido como o poeta da paisagem brasileira, Baptista da
dras, formando espuma, e segue pela curva dos barrancos. Costa possuía uma ligação íntima com a natureza: amava-a
As árvores no segundo plano parecem ter personalidade e a compreendia, e junto dela sentia-se à vontade. O artista
própria, cada qual com suas particularidades; no plano de expressava sua individualidade em seus quadros: “Suas te-
fundo, percebemos um relevo acentuado. Na parte superior las constituem o seu livro íntimo, dizendo das suas tristezas
da tela, vemos uma pequena fatia de céu, quase que total- e dos seus contentamentos, da sua inata melancolia e dos
mente encoberto por nuvens brancas. Os dois barrancos seus júbilos passageiros” (RUBENS, 1947, p. 93).
que margeiam o córrego formam linhas que convergem para
uma árvore centralizada, que divide o quadro em duas par- Lilian Heuser
Nascido em Porto Alegre em 1883, Oscar Boeira foi para o pão e segurando um leque emplumado em uma das mãos.
Rio de Janeiro em 1909, estudar na Academia Nacional de Na parte superior, algo que se assemelha a um portal emol-
Belas Artes, sendo aluno de Eliseu Visconti (1866–1944). dura a modelo: tanto o rosto quanto a mão são bastante
Após dois anos, retornou a Porto Alegre, onde permaneceu nítidos; no cabelo, identifcamos com clareza os cachinhos.
trabalhando com arte até sua morte, em 1943. Muito exigen- No restante da pintura, porém, observamos as pinceladas
te consigo mesmo, participou de poucas exposições, tendo fortes e bem marcadas do artista, mais preocupado em re-
vendido, em vida, um único quadro: Manhã de bruma, uma gistrar as cores e o tratamento da luz do que em mostrar
paisagem comprada pelo então governador do Rio Grande detalhes sobre a vestimenta da senhora. De fato, o único
do Sul, Getúlio Vargas (1882–1954). detalhe que podemos identificar, com certeza, é a estola
em volta do pescoço da modelo; os demais elementos não
Oscar Boeira trabalhou, durante um pequeno período, como apenas são pouco distintos, como também, em alguns mo-
professor no Instituto Livre de Belas Artes, lecionando Dese- mentos, parecem se misturar com o fundo, pouco definido
nho. Como pintor, sua obra fugia aos padrões da academia: e pintado nas mesmas cores da vestimenta. Os tons são
preferia adotar uma pincelada mais solta, que o aproxima- predominantemente claros, com ênfase no azul e no rosa.
va do Impressionismo. Suas obras mais conhecidas são as No canto superior esquerdo, vemos a assinatura caracte-
paisagens, que representam lugares do Estado, tendência rística de Boeira, com o “B” inserido em um círculo, e o ano
do período, de fixar um padrão de paisagem local, mas essa da criação.
pintura nos mostra outro gênero raro praticado pelo artista:
o retrato. Não sabemos quem é a retratada, se a obra foi pro- Oscar Boeira está representado na Pinacoteca Barão de
duzida por encomenda, ou se é resultado de algum estudo. Santo Ângelo por quatro trabalhos, sendo duas pinturas, in-
cluindo este Retrato de senhora e dois desenhos.
Datada de 1921, Retrato de senhora nos mostra a imagem
de uma bela mulher que nos encara, vestida com um rou- ClÁudia Moura
A pequena pintura intitulada Medas integra o trio de pai- É raro, nos dias de hoje, observar uma meda. Essas medas,
sagens do artista porto-alegrense Libindo Ferrás (Porto vistas na obra, são provavelmente de arroz. Essa dedução
Alegre, RS, 1877 – Rio de Janeiro, RJ, 1951), pertencente baseia-se na representação da água junto às medas e na
à Pinacoteca Barão de Santo Ângelo provavelmente desde topografia plana do vale representado, intenso no colorido
sua execução. verde claro do último plano em diagonal, aparentemente in-
dicando que se dera ali a recente colheita. Libindo, na sua ân-
Da junção de dados biográficos, desde registros, comentá- sia de artista, “vendo” o interior gaúcho, ainda pouco fotogra-
rios, críticas e elogios em autores como Círio Simon (1998), fado e, naturalmente, sem a impressão da cor que traduz a
Susana Gastal (2007), Maria Lúcia Bastos Kern (2007) e realidade, interpreta o sincronismo da luz com o silêncio aba-
Paulo Gomes (2012), deduzimos que estamos tratando de fado e morno da meda. Os dois pequeníssimos vultos cami-
um notável: da personalidade controvertida do professor, do nhando à direita do quadro evidenciam a solidão e distância
administrador, com seu “dinamismo visionário” e “garra”, ao do mundo urbano, além do desnível do terreno; a aparente
rigoroso diretor junto a seus pares, dotado da “inteligência entrada de inverno está pincelada no arbusto amarelado que
construtora adequada a um meio ainda arredio aos experi- “decide” o cair das folhas e reflete na cor da palha ressequida
mentalismos vanguardistas do impressionismo” (GOMES, da meda. Perguntamo-nos o porquê de representar a valeta
2012, p. 29). Tudo demonstra que sobre seus ombros foi de contenção de água da chuva, a terra nua exposta na beira
construído muito do atual Instituto de Artes. Se polêmica foi do curso de água? São testemunhas da contínua degradação
sua extensa e eclética atividade profissional, mais ainda foi da terra, estão ali evidenciadas para a nossa visão.
sua produção artística. Damasceno a considera “inconstan-
te” (apud GASTAL, 2007, p. 42); Guido via sua obra “como de- Considerando sua obra e seu tempo, podemos dizer que,
satualizada e fria...” (apud KERN, 2007, p. 54); o mesmo autor sim, havia “ainda” a necessidade dessa paisagem com o seu
observa que Libindo “executa […] pinturas descritivas, quase desenho “correto”, sua bem usada perspectiva, que leva o
documentais e sem expressividade” (apud KERN, 2007, espectador a perscrutar a tela até o fundo. Talvez a melhor
p. 54). Paulo Gomes nota que o artista está principalmente interpretação de sua arte viria da atenta observação de suas
“[...] envolvido com a criação de um discurso plástico autô- nuvens, que ocupam dois quartos da tela, feitas com pincela-
nomo, fundado na excelência da fatura pictórica, no desenho das temperamentais. Independentemente de opiniões, essa
‘correto’, na perspectiva bem aplicada, empenhado em criar obra precisava ser feita, pois, como nos lembra Heinrich
retratos mais atmosféricos na abordagem da paisagem local Wölfflin “épocas diferentes produzem artes diferentes”.
e, consequentemente, mais emocional e menos comprome-
tido com uma representação realista” (GOMES, 2012, p. 29). Vera Py
Em 1922, era lançada a Semana da Arte Moderna em São castanhos, são marcados por leves manchas marrons, que
Paulo. No mesmo ano, Judith Fortes (1896–?) diplomava-se dão à figura um aspecto entristecido. A boca é pequena, car-
na quinta turma do Instituto de Belas Artes. Lecionaria na nuda. O nariz reto quebra o aspecto de fragilidade da Cigana,
instituição como professora substituta em várias ocasiões e deixando-a indefinida, misteriosa.
manteria, no prédio em frente, um curso de pintura e de-
senho. A revista Formação (1942) nos informa que ela di- Na parte esquerda da pintura, há uma separação clara entre
rigiu uma pesquisa psicopedagógica, em escolas públicas fundo e figura. Essa característica se modifica do centro para
de Porto Alegre, a fim de avaliar a capacidade das crianças a direita, quando ambos se fundem. Na parte central do qua-
para o desenho. dro, os detalhes da roupa parecem inacabados. A fita branca
do colete deixa à vista o vermelho do fundo. O lenço, na parte
Apesar de possuir obras em acervos das principais institui- superior da cabeça, é branco, com detalhes em vermelho.
ções do Rio Grande do Sul, a vida como pintora de Judith For- No entanto, à medida que o olhar avança para a direita, a pin-
tes esvaiu-se e não se sabe sequer o ano de seu falecimen- tura se dilui, com pinceladas amareladas, fazendo as vezes
to. Ficaram informações esparsas, lembranças de alunos, do lenço sobre o ombro direito, no qual o colete não traz o de-
como Regina Silveira, e algumas poucas obras, a maioria talhe branco e a manga resulta de algumas leves pinceladas
retratos. A aquisição da pintura Cigana foi uma sugestão do de branco sob o qual se vê, novamente, o fundo.
então diretor da Escola de Artes, Libindo Ferrás (1877–1951),
em 1928. Na produção de Judith Fortes, não se veem ecos da arte mo-
derna produzida na Europa no início do século, ou daquela
Em formato oval, Cigana mostra uma jovem olhando pensa- mostrada em São Paulo em 1922. A artista inseria-se na tradi-
tiva para a esquerda. A luz leve, suave, vem da esquerda para ção local, que, como aponta Susana Gastal (1994), tinha uma
a direita. As tranças, longas e negras, dividem o quadro em visualidade específica, correspondendo a um processo de
três partes. A central destaca o rosto, o pescoço e parte da modernização regional que começou no final do século XIX.
roupa. Acima das sobrancelhas, grossas e retas, vê-se a fran-
ja, parcialmente coberta por um lenço. Os olhos, oblíquos e Rosane Vargas
O espanhol Fernando Corona (Santander, Espanha, 1895 Flores da Cunha, além de projetos arquitetônicos de ou-
– Porto Alegre, RS, 1979), filho do também escultor Jesus tros importantes edifícios da capital.
Maria Corona (1871–1938), responsável por diversas obras
escultóricas de ornamentação na cidade de Porto Alegre, A herança cultural que deixou, porém, está para além de suas
chegou à capital do Rio Grande do Sul em 1912, aos 18 anos, obras. Em 1938, sua tese Fídias – Miguel Ângelo – Rodin ga-
para auxiliar seu pai na Oficina de Escultura de João Vicente rantiu-lhe o ingresso como professor de Escultura no então
Friederichs, assumindo, em 1922, o comando do ateliê da Instituto de Belas Artes de Porto Alegre, onde também aju-
Corona & Ghiringhelli. Participou, em 1925, do Salão de Ou- dou a fundar o curso de Arquitetura. Sua dedicação como
tono de Porto Alegre, exposição na qual os então jovens ar- professor, por mais de 30 anos, influenciou uma geração de
tistas apresentaram suas produções recentes. Essa mostra artistas e se estendeu às ações que fomentaram a continui-
repercutiu localmente os ecos da Semana de Arte Moder- dade do ensino de artes na capital, como seu auxílio para a
na de 1922, gerando questionamentos e a consciência da construção, em 1943, do novo edifício do Instituto de Belas
necessidade de mudança no cenário artístico e literário do Artes, atual Instituto de Artes da UFRGS.
Sul. Fernando Corona foi recebido como um novo talento,
assim como artistas como João Fahrion (1898–1970) e An- A Máscara cubista em destaque é o retrato de Antônio Au-
tônio Caringi (1905–1981). gusto Borges de Medeiros (1863–1961), advogado de gran-
de carisma, que foi Presidente do Estado do Rio Grande
O artista manteve ao longo de sua carreira uma prolífica do Sul por 25 anos, durante o período da República Velha.
atividade como escultor, sendo responsável pelo monu- Na Máscara cubista de Borges de Medeiros, Corona cria
mento a Ludwig van Beethoven (1770–1827), no Auditó- uma obra, como o próprio título aponta, com forte influên-
rio Araújo Viana, pela imagem de Nossa Senhora do Líba- cia do Cubismo, com elementos fixados à maneira de cola-
no, na fachada da igreja homônima e, no Centro Histórico gens, valorizando o espaço vazio e reduzindo os volumes à
de Porto Alegre, é autor do desenho da Fonte Talavera, sua mínima expressão. Corona mimetiza esse efeito fazendo
em frente ao Paço Municipal. Corona desenvolveu ainda uso das figuras geométricas planas, para reproduzir as fei-
carreira como arquiteto, sendo responsável pelo projeto ções de Borges de Medeiros. Nota-se também na Máscara
do antigo Banco Nacional do Comércio, que atualmente a presença de traços da arte africana, como era comum nos
abriga o Santander Cultural, para o qual também fez o trabalhos ligados a essa corrente estética.
conjunto escultórico presente no frontispício. É ainda de
sua autoria a fachada do Instituto de Educação General Aline Corange
Pintada em 1924, a tela Praça da Alfândega mostra um lo- era, no período, lugar de passagem do bonde. E as pessoas,
gradouro da cidade de Porto Alegre muito conhecido por com suas roupas elegantes, deixam transparecer a que épo-
seus habitantes. Naquela época, era o local mais exube- ca pertencem: apesar da pincelada solta, os vestidinhos e as
rante da cidade, ponto de encontro da alta sociedade. João fatiotas dos transeuntes ali representados.
Fahrion (Porto Alegre, RS, 1898 – Porto Alegre, RS, 1970)
não poderia imaginar que pintava, naquele momento, o pré- João Fahrion, após retornar ao Brasil, em 1922, depois de
dio que, anos depois, seria um dos mais importantes espa- dois anos estudando na Alemanha, tentou aplicar em suas
ços das artes do Estado, o MARGS, Museu de Arte do Rio produções conceitos e padrões aprendidos no exterior. Em
Grande do Sul Ado Malagoli, que, na época, era a Delegacia Porto Alegre, no entanto, também em vista do ambiente artís-
Fiscal da Receita Federal. tico ainda incipiente, dedica-se ao trabalho de ilustrador, junto
à antiga Livraria e Editora Globo e também como professor
No quadro, no primeiro plano, à direita, temos o letreiro de do Instituto de Belas Artes, até sua morte. Seu trabalho como
uma loja da época: Lady. Seria, talvez, uma ode à modernida- artista gráfico acabaria por marcar muito o seu estilo futuro.
de? Para reforçar essa teoria, temos o poste de luz, pintado
em vermelho, um pouco mais à esquerda do quadro. O poste Comparada à sua produção posterior, a obra Praça da Alfân-
era novo, pois a iluminação elétrica em Porto Alegre se fa- dega chama a atenção por ser bastante diferente dos seus
zia recente. No entanto, se quisesse retratar a tecnologia da quadros produzidos na maturidade, nos quais há pouco lu-
época, seria de se esperar que aparecesse pelo menos um gar para a paisagem. Mesmo em seus retratos, trabalhos
carro na rua (na época, a área estava aberta ao tráfego de pelos quais ele ficou mais conhecido, dificilmente veremos
veículos, ao contrário de hoje), mas Fahrion retrata apenas uma paisagem no plano de fundo. Sua Praça da Alfândega,
um homem em direção à calçada. Quem conhece a região obra da juventude, dará lugar às pinturas de ateliê e às en-
central de Porto Alegre pode imaginar, mais do que ver, a comendas da alta sociedade porto-alegrense, que circulava
Avenida Sepúlveda, separando os dois imponentes prédios por logradouros da cidade como o representado nesta obra.
ao fundo. Bem à esquerda, observamos um pedacinho da
Rua da Praia antes de ser transformada em um calçadão, que Cláudia Moura
Nascido Galdino da Costa Bicho (Petrópolis, RJ, 1888 – Rio conquistar a Medalha de Ouro na Exposição Geral de 1925,
de Janeiro, RJ, 1955), Guttmann Bicho adotou como alcunha e foi o responsável por introduzir o Curso de Cerâmica na
o apelido que recebera da mãe, por sugestão de Carlos Maúl Escola Técnica do Rio de Janeiro. Continua participando do
(1887–1974), escritor, um de seus companheiros no circuito Salão Nacional de Belas Artes até que, em 1954, recebe um
intelectual boêmio do Rio de Janeiro. Natural de Petrópolis, segundo Prêmio de Viagem, desta vez pelo Brasil, indo ao
residiu em Sergipe durante a infância, mudando-se, já adul- Maranhão, que passa a ser inspiração de muitas das paisa-
to, para o Rio de Janeiro, então o centro político e cultural do gens que viria a pintar posteriormente.
País, onde buscou terreno fértil para suas aspirações artísti-
cas. Iniciou seu estudos no Liceu de Artes e Ofícios e traba- Na tela Luz e sombra (1925), Bicho representa um banco
lhou, por vários anos, como assistente do retratista francês em uma das ruelas de um parque ou jardim, em que a luz do
Auguste Petit (1844–1927). Frequentou também a Escola sol incide filtrada pelas árvores. Ele acreditava que a sim-
Nacional de Belas Artes, onde foi aluno, entre outros, de João plicidade dos temas não interferia no resultado ou impacto
Zeferino da Costa (1840–1915), Eliseu Visconti (1866–1944) final da obra: “O tema é sempre uma cousa acessória e se-
e Belmiro de Almeida (1858–1935), as principais influências cundária; [...] o mérito de um pintor se manifesta muito mais
em sua trajetória inicial. na qualidade e na maneira da pintura do que nos assumptos
escolhidos” (Apud VALLE, 2006). Explicitando as tendên-
Recebe, em 1921, o Grande Prêmio de Viagem ao Exterior, cias impressionistas de seu trabalho nesse período, privile-
com o quadro Panneau Decorativo (atualmente no Museu giava a complementaridade das cores, utilizando diferentes
Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro), cena em que tons de verdes e azuis, em contraste com vermelhos e ro-
uma figura feminina, inspirada em sua esposa, Diva Freire, sados, presentes mais obviamente nas copas das árvores
serve uma mesa de chá. É uma obra que ilustra seu talento e folhas dos arbustos, em lados opostos da tela, e também
singular para enriquecer com carga poética mesmo os te- harmonicamente espalhados por toda a composição, na
mas mais prosaicos do cotidiano, o que pode ser apreciado sombra delicada criada pela luz natural, que é representada
também na série de pinturas que produziu para o Centro de em tons claros de lilases e violáceos. As formas são criadas
Assistência Psicossocial (CAPS) Ernesto Nazareth, na Ilha do fundamentalmente por pinceladas individuais, sem contor-
Governador, Rio de Janeiro, por volta de 1930, em que retra- nos definidos, e a perspectiva frontal sugere um enquadra-
ta o trabalho dos colaboradores sanitaristas que combatiam mento fotográfico, já que a fotografia também influenciava
a febre amarela. Na Europa, Guttmann Bicho expôs, com os pintores impressionistas franceses.
considerável sucesso, em Lisboa. Ao retornar ao Brasil, em
1924, teve um período de significativo reconhecimento, ao Aline Corange
Angelo Guido nasceu em Cremona, na Itália, em 1893. que viria representá-la diversas vezes, sobretudo após sua
Quando tinha dois anos de idade, a família imigrou para transferência para Porto Alegre, em 1928, quando passa a
o Brasil, vindo a se estabelecer em São Paulo. Guido teve trabalhar como crítico de arte e música do jornal Diário de
uma infância pobre, o que mais tarde influenciaria na es- Notícias e, oito anos depois, em 1936, como professor de
colha da temática de suas pinturas e na sua incrível voca- História da Arte no IBA.
ção para o estudo e a erudição. A observação do entorno
se refletiria nas imagens de suas telas e em sua produção Ponte do riacho, supostamente de 1925, revela a conquista
literária, cuja espiritualidade idealista e a questão social de uma pincelada solta e segura, bem como o diálogo en-
seriam norteadoras. tre o elemento urbano e o rural, que Guido tanto exploraria.
É perceptível a intenção de representar plasticamente o que
Em 1925, viaja a Porto Alegre para realizar uma conferên- é visível na realidade, como a sombra da árvore que cobre
cia sobre arte moderna. Nesse mesmo ano, Libindo Ferrás a ponte, bem como o reflexo da edificação nas águas, que
(1877–1951), professor já estabelecido no Instituto de Belas se integram de modo fluído ao mato que as cerca. As cores
Artes (IBA), intervém na aquisição de uma pintura de Gui- vivas e luminosas conferem um frescor e modernidade in-
do, provavelmente a imagem aqui destacada. A chamada contestes à obra de Guido, resultado de dedicada e terna
“Ponte dos Açorianos”, então na periferia da área central da observação, em que a técnica é superada pela busca de
cidade, era um local muito frequentado por Libindo Ferrás, uma beleza idealista e quase espiritual.
que ali ministrava aulas de pintura ao ar livre. É possível que
ele também tenha apresentado a bucólica ponte a Guido, Sofia Inda
Nascido na cidade do Porto, em Portugal, em 1888, Rodolfo deles, a peça não é polida, o que provoca certo estranha-
Pinto do Couto estudou na Academia Portuense de Belas mento ao espectador. Na base, apresenta uma placa na
Artes, onde foi discípulo de Antônio Teixeira Lopes (1866– parte frontal, com a inscrição do título, o nome do artista
1942) e na qual, posteriormente, lecionou Escultura. Em e o material. Na parte de trás, à mão, constam ano e local:
1911, casou-se, em Paris, com a escultora brasileira Nicoli- São Paulo.
na Vaz de Assis (1874–1941). O artista atuou no Brasil e em
Portugal, para onde retornou na década de 1930, vindo a O menino tem os cabelos ondulados e partidos do lado di-
falecer em 1945. reito e com topete; eles se mostram um pouco foram do lu-
gar, como se a criança tivesse posado logo após chegar de
Pinto do Couto recebeu encomendas de obras em vários uma brincadeira. Os traços são suaves, denotando pouca
estados brasileiros. Em Florença, Itália, onde estudava a idade. A leve inclinação da cabeça para a esquerda dá le-
fim de aperfeiçoar sua técnica, fundiu a herma, os ornatos veza à obra. Chama atenção a boca, aberta em um sorriso
e as inscrições em bronze do Monumento ao Coronel José que deixa entrever os dentes. O escultor teve cuidado em
Niederauer Sobrinho, o mais antigo de Santa Maria (RS), retratar realisticamente a figura, como fica demonstrado
inaugurado em 1922. No Rio Grande do Sul, foi responsá- nos olhos vivazes, nas sobrancelhas bem desenhadas, nas
vel, também, pela obra República, de 1923, para o túmulo pálpebras e na suavidade das maçãs do rosto, que se er-
do senador José Gomes Pinheiro Machado (1851–1915), no guem levemente, acompanhando o movimento da boca.
Cemitério da Santa Casa, em Porto Alegre. Em 1931, pro-
duziu os púlpitos em estilo Art Nouveau para a Igreja Nossa Em 1925, Adalberto Mattos escreveu para a Revista Illustra-
Senhora da Candelária, no Rio de Janeiro. da que Pinto do Couto, “[...] dentre os artistas portugueses
residentes no Rio de Janeiro, é, fora de qualquer dúvida, o
O artista esculpiu diversos bustos em mármore e, prin- mais forte e o mais operoso. A sua obra é característica,
cipalmente, bronze, notabilizando-se por retratar carac- pessoal, emotiva e cheia de imprevistos agradáveis”. Essa
terísticas da personalidade dos modelos. Coquinho, uma cabeça de menino, em que o artista traduz um momento de
cabeça de menino, em bronze, é um deles. Possivelmente alegria da infância, reforça essa afirmação.
o nome da obra se deva ao apelido da criança. A escultura
constitui-se do rosto e do pescoço de um menino. Abaixo Rosane Vargas
Francis Pelichek (Praga, República Tcheca, 1896 – Porto cho. Temos, ao contrário, a paisagem bastante simples de
Alegre, RS, 1937) veio de sua terra natal, Praga, para lecio- uma cidade litorânea (embora, curiosamente, o mar só des-
nar no Instituto de Belas Artes, na década de 1920, bem no ponte como uma insignificante mancha ao fundo). As figuras
início da existência da escola. Devido ao reduzido número humanas não possuem nada de heroico ou chamativo, sendo
de professores atuantes na instituição, ministrou aulas em simples habitantes locais.
todas as disciplinas. Trabalhou também como ilustrador e
caricaturista, publicando suas imagens na Revista do Globo, Nessa aquarela em formato ovalado, podemos ver algumas
editada em Porto Alegre. Suas pinturas eram um pouco mais poucas casas próximas ao mar, junto à vegetação nativa –
livres do que a produção do período (ainda muito ligada ao possivelmente, uma pequena aldeia de pescadores. Ao lado
naturalismo e à pintura acadêmica) e abordavam aspectos de uma dessas casas, à direita, uma cruz se ergue, com
variados, como paisagens, retratos e temas históricos. quase o dobro do tamanho das moradias. Há um homem de
costas caminhando à esquerda dessa paisagem, tendo ao
A temática regionalista foi uma marca da produção literária e seu lado um cachorro que o acompanha; mais adiante, outra
artística nos anos 1920, no Rio Grande do Sul, quase sempre pessoa também é visível. Ao fundo desse vilarejo, podemos
apresentando uma figura de gaúcho idealizada. Pelichek não visualizar um pequeno pedaço de mar e, logo atrás, um dos
era adepto dessa representação: preferia abordar os perso- morros de Torres distingue-se do céu, claro e com poucas
nagens comuns do dia-a-dia, sem idealizações ou represen- nuvens. A paleta cromática é bastante suave, exceto por uma
tações de atos heroicos. Ele gostava de apresentar temas cor mais escura que sombreia parte da vegetação. A obra dá
cotidianos, muitas vezes ligados ao ambiente interiorano. a impressão de que observamos um dia de inverno com um
Praia de Torres, uma aquarela de 1927, é um exemplo: não sol bastante fraco.
vemos uma paisagem arrebatadora da campanha, ou uma
figura imponente, ou algo que lembre a figura mítica do gaú- CLÁUDIA MOURA
Uma das belas obras relacionadas ao nu feminino pertencen- de fatura mais solta, desenvolvendo a figura e o cenário de
tes à Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, a pintura Nu acadê- maneira sem igual, recorrendo ao uso de cores terrosas no
mico, de Theodoro De Bona (Morretes, PR, 1904 – Curitiba, fundo, mescladas no branco e no azul da superfície em que a
PR, 1990), de certa forma reflete as transformações ocorri- figura está deitada.
das na arte brasileira no começo do século XX.
De Bona dedica-se a um cuidadoso trabalho de composição.
Esteticamente, segundo Erasmo Pilotto, autor do livro Th. A cor acima da figura central remete ao tratamento verifica-
De Bona (1968), o artista tivera uma preocupação constante do em obras do século XIX, de autoria de artistas como Paul
com três pontos: consciência da arte, domínio técnico e ex- Gauguin (1848–1903) e Paul Cézanne (1839–1906). Já a fi-
pressão pessoal, sendo nitidamente contra a imitação ruim. gura central, horizontalmente, exige uma atenção específica:
Segundo o autor, quando De Bona esteve em Veneza (local as pinceladas tornam-se mais lentas, deixando-a mais nítida
onde a obra foi produzida), a partir de 1927, a pintura italiana em relação ao todo.
conhecia o Futurismo, a Pintura Metafísica, o Novecentismo, o
Expressionismo, a Abstração. Era o estouro da nova arte, em Com a introdução de alguns elementos estilísticos mais
contraposição a uma produção mais tradicional. Por certo, ele ousados em relação ao cromatismo, De Bona deixa o seu
não quis participar de nenhum desses movimentos, visto que, estilo marcado para a posteridade. Versátil, legou um vasto
por temperamento, o artista fugia ao sombrio e ao Expressio- conjunto de obras, dentre as quais cintilam cenas de gêne-
nismo, isto é, “fugia ao feio” (PILOTTO, 1968, p. 28). ro, retratos, alegorias, nus, composições de temática his-
tórica e murais religiosos – além de considerável conjunto
O auge de sua carreira foi na década de 1940, quando expôs de paisagens.
nos principais salões do Brasil e no Museu Nacional de Belas
Artes, no Rio de Janeiro. Nesta tela, o artista consegue fazer reluzir uma harmonia en-
tre a arte e a realidade; talvez um pouco tensa, mas sincera
Este Nu acadêmico, pintado em 1930, não integra esse mo- no quesito gesto e cor.
mento de De Bona. Foi elaborado a partir de um interessante
trabalho de composição e realizado com pinceladas rápidas, Kethlen Santini Rodrigues
O Rio Grande do Sul, até os anos 1930, apresentava uma A cena criada pelo autor está incluída, exatamente, neste
economia dividida, basicamente, em dois polos: enquanto, período em que o regionalismo ainda estava muito presente.
no meio rural, a base estava na agricultura e na pecuária, no As paisagens rurais, que retratam o trabalho diário dos pe-
ambiente urbano assistia-se ao processo de industrializa- ões, serviriam para reforçar a tradição e a identidade do tipo
ção. No contexto cultural e artístico, observa-se uma adesão gauchesco. A aquarela intitulada Pampa mostra gaúchos a
ao tradicionalismo e ao regionalismo, ao mesmo tempo em cavalo na lida campeira, provavelmente conduzindo a tropa
que ideias e conceitos relacionados à modernidade come- de uma estância a outra. Em primeiro plano, um peão cerca
çam a ser discutidos. É em meio a esse cenário que José um cavalo desgarrado do grupo e tenta reconduzi-lo para o
Lutzenberger (Altötting, Alemanha, 1882 – Porto Alegre, RS, caminho correto, enquanto outro cavaleiro pode ser obser-
1951) vai produzir sua mais famosa série de aquarelas, Farra- vado ao fundo, guiando os demais cavalos pelo cenário. Ape-
pos, exibida em 1935, durante as comemorações do cente- sar do belo colorido, é a forma e o desenho que norteiam a
nário da Revolução Farroupilha. obra, sugerindo o viés mais tradicional adotado pelo autor.
José Lutzenberger era engenheiro e arquiteto de forma- José Lutzenberger realizou uma longa série sobre os cos-
ção e, a convite de uma construtora, mudou-se para Porto tumes gauchescos e buscou, com elas, registrar situações
Alegre no início dos anos 1920, acabando por se radicar e e momentos únicos, salientando seu caráter por vezes pito-
constituir família na cidade. Praticamente desconhecido resco, por outras, cotidiano. Com seu olhar estrangeiro, ex-
como artista, ganhou notoriedade após a morte, em 1951, plorou a figuração naturalista e optou por ser um cronista de
quando seu trabalho, que traduz aspectos típicos e histó- sua época, documentando, com seu exímio desenho e aqua-
ricos da vida urbana e campesina, enfatizando persona- relado, a terra que o acolheu.
gens como o gaúcho, o colono e o caixeiro-viajante, entre
outros, seria conhecido. Diego Beck
Por que tantas pessoas sentem a necessidade de se olhar Seus traços carregam um toque de ironia e humor: seria o
no espelho e tirar uma fotografia? Buscamos no reflexo nos- ursinho na tela uma lembrança de sua infância na República
sa aparência ou personalidade? Somos impelidos a regis- Tcheca, ou uma sutileza em relação à sua baixa estatura, já
trar cada momento de nossas vidas de forma a permanecer que ursinhos são brinquedos comuns de crianças? Não se
na memória e manter arquivos. Assim como as milhares de sabe ao certo, mas sua estrutura corpórea aproximava-o do
fotografias que produzimos a cada ano, os artistas se cons- nanismo. É irrefutável, porém, que foi homem de grandes
tituem nos arquivos de si mesmos, e esse autorretrato de amizades, que incluíam Mario Quintana (1906–1994), Erico
Francis Pelichek (Praga, República Tcheca, 1896 – Porto Verissimo (1905–1975), Angelo Guido (1893–1969) e João
Alegre, RS, 1937) é um ótimo exemplo disso. Na obra, Peli- Fahrion (1898–1970) (HERBSTRITH, 2012, p. 178).
chek parece refletir sobre os lugares que o cercam, como o
espaço de trabalho, mas também como professor, homem Maria Lúcia Bastos Kern sugere que, nesta pintura, “[...]
público e agente cultural. temos um Pelichek irônico e humorado, que revelou a sua
experiência na prática da caricatura” (KERN, 1998, p. 30).
Este quadro nos revela o ambiente de seu ateliê, no qual o De linguagem direta e gesto rápido, quase como uma ano-
artista aparece cercado por bisnagas de tinta e quadros, por- tação, nos desenhos dos seus diários, guardados no Ar-
tando um pincel com a mão direita e que demonstra, na leve- quivo Histórico do Instituto de Artes, sua produção como
za e delicadeza, alguém muito acostumado com seus instru- caricaturista fica evidente. Produção semelhante a que ele
mentos de trabalho. Se destro, ele devia fazer um malabaris- divulgava em páginas de periódicos produzidos em Porto
mo entre o cigarro aceso e o pincel. A leveza da luminosidade Alegre, como na Revista do Globo, na qual o artista fre-
do quadro evidencia a liberdade do artista no colorido de pin- quentemente divulgava seus desenhos irônicos assinando
celada gestual, e os tons de rosa e cinza captam a expressão como “Peli”. Júlio Herbstrith explica que “[...] o persona-
de sua figura: um olhar terno, simpático e à vontade, de quem gem Pelichek dentro de seus diários, quando ‘retratado’,
se olha no espelho e está satisfeito com a imagem. mantém sempre a mesma forma caricatural” (2012, p. 38),
como se ele estivesse construindo a história de seu pró-
Bem vestido, aqui o artista provavelmente decide pintar-se prio personagem.
em roupas formais. Porém, sua gravata dá um toque cômi-
co, meio palhaço, como alguém pronto para sair e divertir-se. Francine Kloeckner
Dia e noite é considerada por muitos especialistas como a A obra em questão aparece em alguns registros mais antigos
obra-prima de Benito Mazon Castañeda (Cádiz, Espanha, com o nome de Pai e filho, a partir da semelhança física das
1885 – Porto Alegre, RS, 1955). O quadro foi pintado em duas figuras representadas. A tela retrata um cego de perfil,
1933, com o objetivo de ser rifado em benefício da Santa que, confiantemente, apoia-se no ombro esquerdo do meni-
Casa de Uruguaiana, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, no, de olhos negros e bonitos, fixados intensamente no es-
mas a rifa não aconteceu por motivos desconhecidos. A obra, pectador: “A expressão do pequeno guia, compenetrado de
então, foi exibida dois anos mais tarde, na mostra comemo- sua missão, merece a confiança do cego, e este caminha nas
rativa ao centenário da Revolução Farroupilha, ocorrida em trevas conformado e sereno” (CORONA, 1955). Metaforica-
Porto Alegre, sendo louvada por artistas e críticos da época mente, seria o dia guiando a noite.
e revelando, para muitos, um novo e surpreendente artista.
Produzida em Uruguaiana, Dia e noite está inserida em um
Castañeda destacou-se como professor do Instituto de Belas contexto rural: é possível notar sinais de urbanização no hori-
Artes, devotado a seus alunos e ao ensino da pintura e do de- zonte representado, que, aliás, é colocado bastante rebaixa-
senho. Ele foi um dos primeiros artistas atuantes no Rio Gran- do em relação à imensidão do céu azul. É interessante notar
de do Sul a se interessar por temas sociais. Mesmo sendo con- a indumentária das figuras: elas, mesmo sendo paupérri-
siderado um mestre da pintura de paisagem, as figuras huma- mas, estão condizentes com as tendências dos anos 1930:
nas e animais eram os motivos que mais o impressionavam as bombachas e os lenços vermelhos foram substituídos por
e eram, também, seus preferidos (KREBS, 1955). Castañeda ternos, gravatas e o chapéu coco, roupas mais formais, ten-
pintava com emoção e de forma minuciosa; cada pincelada dência urbana que também se difundiu nos espaços rurais
era medida, embora muitas de suas obras pareçam proposi- do Estado naquela época. As roupas desgastadas do menino
talmente ter um ar de esboço. O artista usava as cores com e do cego mostram sua condição social e são tão bem pinta-
generosidade, pincelando seus motivos com grande expressi- das que, em alguns momentos, quase enxergamos o mofo e
vidade: “O pincel de Benito Castañeda era farto, deslizava pela a poeira sobre os casacos.
superfície da tela, transportando os pigmentos que encontra-
va pelo caminho” (BOHNS, 2005, p. 272). Thais Canfild
Lívio Abramo (Araraquara, SP, 1903 – Assunção, Paraguai, passa então a recriar o mundo ao seu redor, explorando as
1992) foi um dos pioneiros da moderna gravura no Brasil, estruturas geométricas de forma mais delicada e refinada,
expressando-se, majoritariamente, por meio da xilogravura. passando de uma linguagem expressionista figurativa para
Antes de artistas como Abramo e Oswaldo Goeldi (1895– uma mais abstrata. Em sua trajetória, destacam-se também
1961), a xilo era mais adotada no ambiente da imprensa. as ilustrações produzidas para o livro Pelo Sertão, de Afonso
Arinos de Melo Franco (1868–1916), datadas de 1947.
Engajada em causas sociais, a obra de Lívio Abramo reflete
seus ideais políticos. O artista foi membro do Partido Comu- A xilogravura que integra a coleção da Pinacoteca Barão de
nista Brasileiro (PCB) durante o governo de Getúlio Vargas Santo Ângelo, intitulada Figura e datada de 1933, também é
(1882–1954); porém, em 1932, após ter sido expulso sob conhecida pelo título de Operário. No exemplar do acervo,
acusação de trotskismo, passou a integrar o Partido Socia- uma anotação na parte inferior do papel informa que a cópia
lista Brasileiro (PSB). foi “Exposta no Salão Paulista de Belas Artes, 1935–36”.
Gravador, desenhista e ilustrador, Lívio Abramo começa a Na composição, que pertence à fase inicial do artista, Abra-
produzir gravuras a partir de 1926. Dois anos depois, já faz mo cria, em primeiro plano, a imagem de um homem, cuja
gravuras em linóleo para o jornal Lo Spaghetto, nas quais talha na madeira ressalta a fisionomia castigada, provavel-
representa a vida operária e a temática social; nessa época, mente, pelo trabalho excessivo. Em segundo plano, já perce-
conhece a obra de Goeldi e entra em contato com a gráfica bemos as formas geométricas que o artista viria a explorar
expressionista alemã, que o marcariam profundamente. posteriormente, com mais intensidade, em suas gravuras;
aqui, elas possivelmente representem um campo de obras,
Sua produção pode ser dividida em duas fases. A primeira, deixando o destaque para a realidade do protagonista em
atravessada pelas questões sociais e operárias, cujas formas primeiro plano.
e temática dialogam com o Expressionismo germânico; a se-
gunda, quando o artista dedica-se ao sindicalismo. Sua obra Marina Muttoni Roncatto
Pedro Bruno (Ilha de Paquetá, RJ, 1888 – Rio de Janeiro, uma temática árcade, em que dois grupos de figuras se so-
RJ, 1949) foi um importante artista carioca, obtendo reco- brepõem: quatro mulheres em primeiro plano e um grupo de
nhecimento internacional por sua pintura. De talento ex- três pessoas ao fundo, sem ser possível distinguir se são ho-
cepcional, foi um caso raro de artista plástico que também mens ou mulheres. O grupo do primeiro plano dança anima-
era cantor, tendo estudado música antes de se dedicar às damente, de uma forma quase primitiva, enquanto o segun-
artes visuais, diplomando-se como cantor lírico na Itália em do grupo fica diluído pela distância e pelas manchas de cor.
1910. Antes disso, porém, já demonstrava grande interesse
pela pintura e desenho, tornando-se aprendiz de Giovanni É uma obra alegre e de tendências expressionistas, na qual
Battista Castagneto (1851–1900) em sua passagem por Pa- tudo é cor e não existem linhas que delimitem as figuras ou
quetá, cidade natal de Bruno. a paisagem. As formas são moldadas pela paleta do artista,
que basicamente constroi a cena do quadro com manchas
A ilha sempre foi inspiração e motivo de orgulho para o ar- coloridas, produzindo uma luminosidade equilibrada e ade-
tista, que viveu a maior parte de sua vida no local e pintou quada. O artista utiliza uma gama de cores bastante suave,
diversos motivos daquela paisagem. Pedro Bruno estudou trazendo uma leveza que contribui na ideia de movimento e
na Escola Nacional de Belas Artes e foi aluno, entre outros, expressão do que é representado.
de João Baptista da Costa (1865–1926). Ganhou Prêmio de
Viagem para a Itália em 1919, com o quadro Pátria, uma de O movimento das dançarinas é contagiante e parece ter
suas mais famosas pinturas, que pertence ao acervo do Mu- vida, sendo mérito do artista, por equilibrar suas figuras
seu da República, do Rio de Janeiro. tão majestosamente. Conforme Maria Cristiana Serpa, no
website sobre o artista, “[...] seus quadros revelam uma
Pedro Bruno não teve contato direto com o Rio Grande do perspectiva estudada, uma noção equilibrada de valores
Sul, porém realizou uma exposição individual em Porto Ale- e um desenho correto e bem cuidado, ainda que com con-
gre depois de retornar ao Brasil. Embora não se identificasse tornos indefinidos. O artista optou por obter as massas, os
com nenhuma escola artística, foi claramente influenciado volumes, os valores e a profundidade unicamente com a
pelo Impressionismo, estabelecendo um equilíbrio dessa cor. Sua pintura apresenta empastamento, com pincela-
tendência com a linguagem realista em sua produção. das cheias e rápidas dadas ao sabor da inspiração do mo-
mento, numa fatura macia e flexível”.
Pouco se sabe sobre Dança pagã, datada de 1938. A obra foi
realizada em um período de maturidade artística e possui Thais Canfild
O olhar contemporâneo à obra de Leopoldo Gotuzzo (Pelo- De fato, é o que se verifica na obra A écharpe rosa. Trata-se
tas, RS, 1887 – Rio de Janeiro, RJ, 1983) pode considerá-lo de um nu feminino, cuja composição se estrutura em uma
um artista essencialmente ligado aos cânones da arte aca- grande curva formada pelo corpo da mulher, sentada em
dêmica. O contraste de sua produção com obras modernis- uma poltrona e levemente reclinada, e por um vaso com flo-
tas, de fato, é grande. No entanto, o olhar da época de ativi- res, situado atrás dela, que sugere um corte diagonal. Seus
dade do pintor pode revelar algo diferente. O crítico e artista elementos de fundo e de cenário apresentam um tom azu-
Angelo Guido (1893–1969), por exemplo, salienta a liberdade lado, quebrado pelos elementos da diagonal, como o ama-
de expressão de Gotuzzo, que o afasta da frieza puramente relo das flores e os tons acobreados do corpo da mulher, e
acadêmica, ao mesmo tempo em que o elogia por evitar ex- também por um fino tecido rosa, ocupando a parte inferior
travagâncias modernistas (KERN, 2007, p. 54–55). Gotuzzo da tela. O tecido, identificado pelo título da obra como uma
estaria, assim, em uma espécie de limiar entre o acadêmico écharpe, cobre as pernas da mulher, mas acaba por revelá-
e o moderno, incorporando alguns aspectos desse, mas evi- -las e moldá-las, devido à aderência e transparência, contri-
tando seus excessos. buindo para suscitar sensualidade à cena. A luz incide pela
esquerda da tela, distribuindo-se homogeneamente, sem
A obra de Gotuzzo se caracteriza por uma série de temas re- criar zonas escuras em excesso e contribuindo para a sensa-
correntes: a figura humana (em especial, o nu feminino), as ção de volume e tangibilidade.
paisagens, as naturezas-mortas (LIMA, 2001, p. 27). Nesses
dois últimos, talvez se verifique com maior facilidade a “liber- Gotuzzo apresenta, assim, uma bela mulher, tipicamente
dade de expressão” a que Guido se referiu. Pinceladas soltas, brasileira, em uma composição equilibrada e racional. A obra
visíveis na obra, deixando a marca do artista, são caracterís- recebeu o Grande Prêmio Rio Grande do Sul, o maior prêmio
ticas mais presentes nessa sua produção, aproximando-o do I Salão de Belas Artes do Rio Grande do Sul, realizado em
talvez de uma linguagem mais moderna. No trato da figura 1939 pelo Instituto de Belas Artes.
humana, Gotuzzo parece mais convencional, menos dado às
liberdades e mais fiel aos cânones acadêmicos. Marcelo de Souza Silva
Convidado por Tasso Corrêa (1901–1977) a ser professor do de modo frugal. Também ao contrário da maioria das obras
Instituto de Belas Artes em 1938, dois anos após a integra- do período, cujo tema residia nos operários e trabalhadores,
ção deste à então Universidade de Porto Alegre (UPA, hoje não temos a expressão de uma crítica social. Há o olhar do
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS), Luiz artista para uma faceta ainda calma e bucólica da cidade,
Maristany de Trias (Barcelona, Espanha, 1885 – Porto Ale- com seus personagens: pescadores e vendedores de laran-
gre, RS, 1964) permanece como professor dessa instituição jas. Outras pinturas de Maristany, como Belém Novo (sem
até o ano de 1955. Sua tese de cátedra para a entrada na data) e Barco no Estaleiro (1939), apresentam ambiente e
Universidade foi intitulada Anatomia artística no ensino su- atmosfera semelhantes.
perior. Antes de se fixar em Porto Alegre, porém, Maristany
percorreu várias cidades: Paris, Buenos Aires, Rio de Janeiro. Pelo título, sabemos que o lugar representado é um acora-
Em 1940, já professor do IBA, participa do II Salão de Belas douro junto ao Bairro Navegantes, na Zona Norte da capital
Artes, organizado pela instituição, quando recebe o Prêmio gaúcha. A identificação da cidade se dá tanto pela escrita
Barão de Santo Ângelo pela pintura em destaque, Vendedo- em um dos cascos, como pela massa pictórica ao fundo,
res de Laranjas – Navegantes. na linha do horizonte, revelando o sutil, porém notório con-
torno proporcionado pelos edifícios centrais e pelos arma-
Assim como no tríptico Abrindo a Av. Borges de Medeiros zéns na região portuária.
(sem data, pertencente à Pinacoteca Aldo Locatelli da Pre-
feitura Municipal de Porto Alegre), a obra traz a cidade de Suave, a pintura é marcada pelos tons róseos e violáces, en-
Porto Alegre, onde Maristany vivia, como a grande prota- quanto a pincelada solta mostra-se bem aparente. A compo-
gonista. Entretanto, aqui, o artista não está interessado em sição, quase fotográfica, é estruturada em linhas diagonais,
registrar as transformações urbanas, mas algo que, naquele que conferem uma leve dinâmica à cena.
momento, começava a se tornar cada vez mais raro: os tra-
balhadores simples, despojados, fazendo algo prazenteiro e Carolina Sinhorelli Oliveira
Falar do pintor Osvaldo Teixeira (Rio de Janeiro, RJ, 1904 Em meio a tantas controvérsias, é curioso observar, hoje, a
– Rio de Janeiro, RJ, 1974) significa, quase que necessa- obra Natureza-morta com cebolas e encontrar nela menos ca-
riamente, trazer à tona os embates entre acadêmicos e racterísticas acadêmicas do que se esperaria para uma obra
modernistas que marcaram parte do século XX no campo de Osvaldo Teixeira. A tela, por um lado, segue os padrões tra-
das artes. Teixeira foi diretor do Museu Nacional de Belas dicionais das naturezas-mortas: objetos dispostos de modo
Artes de 1937, ano da sua fundação, até 1961, estabelecendo- a criar uma composição, presença de alimentos trazendo a
se como um forte crítico do modernismo. Defensor do ensino noção de efemeridade e representações de reflexos e texturas
acadêmico das artes, Teixeira se tornou uma liderança entre que exigem conhecimento técnico apurado. Os cânones tam-
artistas conservadores, exercendo sua influência também no bém se fazem presentes na supremacia de linhas verticais e
Salão Nacional de Belas Artes (SNBA), que presidiu por nove horizontais, pontuadas por um elemento principal em diagonal
anos (KERN, 2007, p. 66). Devido ao turbulento contexto dos (a panela do lado esquerdo) que dá um pequeno toque de ins-
anos 1930 e 1940, os conflitos no campo das artes acabaram, tabilidade à cena. Por outro lado, como enquadrar no modelo
muitas vezes, refletindo diferenças políticas e disputas pelo acadêmico as grossas pinceladas de tinta, visíveis em vários
poder, trazendo o radicalismo ideológico daquele momento pontos da tela, que chegam a formar acúmulos espessos?
histórico para o debate artístico (BULHÕES, 1983). Como não perceber a marca visível da mão do artista compon-
do reflexos e texturas com aplicação de manchas de tinta, nas
No Rio Grande do Sul, a situação era similar. No Instituto de quais se veem os rastros deixados pelas cerdas do pincel?
Belas Artes (IBA), o ensino seguia os padrões da Escola Na-
cional de Belas Artes (ENBA), baseado na rígida disciplina e O testemunho que essa obra parece dar é de que as muitas
no domínio do desenho (GOMES, 2012, p. 34). Em 1939, o IBA desavenças entre modernistas e acadêmicos estavam prin-
começou a organizar os Salões de Belas Artes do Estado, cipalmente nos discursos. Na prática artística, nota-se certa
ampliando sua influência na legitimação de obras que enfati- permeabilidade de ideias, uma absorção mútua de valores,
zassem seu pensamento sobre arte naquele momento. Con- permitindo que até mesmo uma tela produzida por um ar-
tando com a participação de artistas de projeção nacional, a tista expoente do pensamento acadêmico, premiada em um
segunda edição do Salão de Belas Artes, em 1940, concedeu salão de viés conservador, apresentasse elementos caros
o Prêmio de Honra Cidade de Porto Alegre à obra Natureza- aos experimentos modernistas.
morta com cebolas, de Osvaldo Teixeira, que participou do
evento com cinco telas. Marcelo de Souza Silva
Paula Ramos
também os retratos de João Fahrion, Ernani Dias Corrêa (1900–1982) e Tasso No painel de Aldo Locatelli,
Corrêa, professores e membros do CTA, Conselho Técnico e Administrativo; e, produzido para assinalar
os 50 anos do Instituto
no centro, entre representações de estudantes e alegorias do Desenho, da Pin-
de Artes, a homenagem aos
tura e da Escultura, a autorrepresentação de Locatelli e o perfil de Fernando
fundadores e construtores
Corona. O espanhol Fernando Corona era não apenas o carismático professor de uma tradição, 1958
de Modelagem e Escultura, incentivador das inovações artísticas, como um dos
autores do projeto arquitetônico do edifício que, desde 1943, abrigava o Institu-
to 4; já o italiano Aldo Locatelli, aclamado pelos afrescos em prédios públicos e
religiosos de Porto Alegre, Pelotas e Caxias do Sul, era o baluarte de um legado
que remontava à pintura renascentista e, por extensão, aos cânones acadêmicos.
Ambos estão ali, vigorosos, no eixo da composição. De certo modo, eles represen-
tam o próprio momento vivenciado pelo Curso de Artes Plásticas: entre a tradição
e a modernidade. Tal debate cingia o campo artístico brasileiro e se verifica nas
obras que ingressaram na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo (PBSA) ao longo
das décadas de 1940 e 1950, sobretudo por meio dos Salões de Belas Artes.
O primeiro desses Salões aconteceu em 1939, ano dramático para o IBA.
No dia 5 de janeiro daquele ano, o Instituto era expurgado da Universidade de
Porto Alegre (UPA), que havia ajudado a criar cinco anos antes. 5 Ao todo, foram
seis desanexações, decorrentes de diversas conjunturas 6 , que, ao contrário do
que se possa imaginar, não fragilizaram, mas fortaleceram a entidade. Após
vários embates e movimentos, o Instituto de Belas Artes seria efetivamente in-
tegrado à Universidade em 1962. Foram 23 anos, portanto, em que precisou lutar
pela sua sobrevivência e reconhecimento. Uma das formas de fazê-lo estava na
organização dos Salões.
Um círculo de relações
fértil frequentação entre as partes. Acerca disso, vale a pena resgatar algu-
mas passagens. Em julho de 1938, artistas e instituições do Rio de Janeiro
saudaram a “Caravana Artística do IBA”. 20 Entre as visitas realizadas, a mais
emblemática foi ao Museu Nacional de Belas Artes, criado em 19 de janeiro
de 1937 e que, quando da presença do grupo, nem sequer havia sido inaugura-
do. 21 Lá, professores e estudantes foram recebidos pelo seu primeiro diretor,
Osvaldo Teixeira (1905–1975), à frente do cargo até 1961 e que também presidiu,
por nove anos consecutivos, nomeado por Getúlio Vargas (1882–1954), o Salão
Nacional de Belas Artes, o maior e mais significativo do País. Teixeira falou
sobre a organização do museu e apresentou os destaques do acervo, centrado,
como é sua característica até os dias de hoje, na produção oriunda da Acade-
mia Imperial de Belas Artes, seus mestres e egressos. 22 Crítico feroz da arte
moderna, Osvaldo Teixeira costumava atacá-la, afirmando que era refúgio
dos que não sabiam desenhar ou pintar, e dos críticos que não sabiam ver ou
escrever. Sua opinião acerca do ensino da arte igualmente era ortodoxa: só
o modelo tradicional poderia dotar o artista da técnica necessária para o seu
ofício. 23 Num momento, portanto, de rupturas, questionamentos e de acirrada
luta pelo poder simbólico no campo da arte, a “Caravana Artística do IBA”
filiou-se ao estabelecido, ao institucional. Seria improvável, na verdade, algo dis-
tinto. Afinal, o próprio modelo de projeto pedagógico adotado em Porto Alegre
reverberava o cânone da ENBA.
Castro Filho, parceiro e apoiador inconteste, seria convidado a presidir o
Júri do II Salão de Belas Artes, inaugurado em novembro de 1940, no Armazém
A1 do Cais do Porto. Textos de sua lavra, publicados tanto na revista Rotary
Brasileiro24, quanto na coluna Bellas Artes, prestigiam a iniciativa do diretor e dos
professores da instituição, consolidando uma imagem de abrangência cada vez
mais nacional do IBA e de suas atividades.
Registro da visita do sustentando firmemente a régua T sobre um dos pés do próximo personagem:
arquiteto e urbanista João Fahrion. Esgueirando-se, o autor do desenho emerge, com sua sobrancelha
uruguaio Mauricio
arqueada e expressão de fauno, paleta e pincel nas mãos, como se estivesse regis-
Cravotto ao IBA,
trando o momento. Por fim, na extrema direita, Ernani Dias Corrêa, idealizador do
em 1948. Ao fundo, as
obras de João Fahrion, Curso de Arquitetura e único dos professores que participou dos júris de todos
cingidas pela mesma os Salões de Belas Artes presididos por Tasso Corrêa. Irmanados em torno de
sensualidade e elementos um projeto coletivo, esses profissionais e amigos assumiram, cada qual, papel de
compositivos | AHIA destaque naquele momento. Estamos diante, portanto, de uma imagem calcada
não apenas em personagens-chave da história do IBA, mas de indivíduos que
abraçaram, juntos, uma situação de enfrentamento e superação.
O mesmo Fahrion produziu, naqueles anos 1940, outras obras referenciais
no âmbito institucional. Uma delas é o painel azulejar que se encontra no 8 o
andar do edifício, na área destinada ao bar e restaurante. Finalizado em 1945,
é provavelmente o mais antigo elemento decorativo do prédio. Como muitas de
suas pinturas de bastidores e temática circense, essa composição também apre-
senta figuras dividindo o mesmo espaço, cada qual, porém, em seu universo
particular. A sensualidade, temática e tratamento reportam à litografia A fonte,
desenvolvida um ano antes e que ficava no mesmo recinto, como podemos ob-
servar no registro fotográfico da passagem do arquiteto e urbanista uruguaio
Mauricio Cravotto (1893–1962) pelo IBA, em 1948.
Exuberantes e solenes, as figuras de Fahrion parecem de outro século.
Não sugerem, em suas poses, olhares e no desembaraço dos pés descalços, os
dias agitados daquela década. Nos jornais e revistas em circulação, um cau-
daloso material imagético valorizava a urbe, seus arranha-céus, viadutos, ruas
movimentadas, sistemas de transporte, automóveis: signos da modernidade, cada
vez mais presentes, também, como mote para as artes visuais.
Na pintura de Castañeda, Se, nos decênios anteriores, a pintura de paisagem enfocava a natureza ou,
como na fotografia quando muito, a presença sutil do homem nos arrabaldes e zonas rurais, agora
realizada dos altos do novo
a cidade tornava-se protagonista. Tal fato se observa, inclusive, na coleção da
edifício, uma Porto Alegre
PBSA. De Paisagem – Rio – Tarde, de Henrique Cavalleiro (1892–1975), passando
que se descortina a partir
do IBA. Ao lado, a cidade por Clube do Comércio (1941), de Angelo Guido, ou pelas pinturas do ítalo-brasi-
e seus edifícios: a pintura leiro Ermanno Ducceschi (1920–1998), sediado em Porto Alegre desde 1947, en-
de paisagem se renova contramos casas convivendo com prédios e torres cada vez mais altas, blocos
geométricos sugerindo a aglomeração dos edifícios.
Muitas vezes, a observação da paisagem dava-se da própria vista oferecida
pelo IBA. Uma fotografia oriunda do acervo pessoal de Tasso Corrêa, preservada
junto ao Arquivo Histórico do Instituto de Artes (AHIA), revela um ângulo muito
próximo da composição de Benito Castañeda, datada de 1947 e pertencente à
PBSA. Em ambas imagens, identificamos a área central da capital gaúcha, com o
Guaíba e suas ilhotas.
Naquele período, como uma autoafirmação, foram produzidas dezenas de
obras que trazem os personagens e o ambiente criativo do Instituto: no retrato
de Corona feito por Ermanno Ducceschi, por exemplo, identificamos, ao fundo, a
representação da Máscara cubista de Borges de Medeiros (1924), bem como a pintu-
ra de Alice Soares conhecida como Corona e suas alunas (final da década de 1940).
Nesta última, o mestre está em meio às pupilas, dentre as quais a própria Alice, no
canto direito, e Dorothea Vergara (1923), de perfil, ao lado do gesso Medusa (1946).
A relação entre docentes e discentes era amistosa. Vasculhando os ar-
quivos do IBA, encontramos uma fotografia que revela um faceiro grupo com os
professores João Fahrion e Ado Malagoli, este último recentemente contratado.
Malagoli foi professor da instituição entre 1952 e 1976. Importante agente cul-
tural, idealizou e fundou o MARGS, Museu de Arte do Rio Grande do Sul, em
1954. 37 Sua obra, forjada no rigor técnico da Escola Nacional de Belas Artes e
no modernismo moderado dos integrantes do Núcleo Bernardelli, introduziu no
Estado novas abordagens da pintura, priorizando a construção pictórica ao ex-
plorar delicadas e consistentes camadas de tinta, muitas vezes num flerte com a
abstração. Os preceitos de Malagoli se verificam, entre outros, nas requintadas
Na pintura acima, tantemente representava, em suas obras, a sala e as modelos posando durante as
entre as alunas, aulas. É o que vemos, também, no Autorretrato aqui reproduzido, no qual o fundo
destacam-se Dorothea
é manipulado com sobreposição de fragmentos dessas mesmas figuras femininas,
Vergara, de perfil,
esquematizadas. Chama a atenção, neste trabalho da década de 1950, a fatura
diante de sua escultura
Medusa, e Alice Soares, expressionista do artista, bem como a ênfase no desenho.
no canto direito Fahrion não estava interessado, como Malagoli, em discutir a constru-
ção da imagem pictórica a partir de camadas de tinta e sobreposição de cores.
O artista desenhava com cor, adotando o suporte e os materias da pintura,
assim como fizera, décadas antes, um nome referencial para ele: Henri de
Toulouse-Lautrec (1864–1901). Nesse sentido, embora sua obra representasse,
naqueles idos, a “tradição”, não se tratava, propriamente, de uma “tradição
acadêmica”. Esta apregoava o desenho como base para tudo, inclusive para a
pintura: o aluno, assim, passaria a pintar se tivesse um bom desenho, e passaria
à escultura se tivesse êxito com os pincéis, como se uma coisa estivesse relacio-
nada à outra. Em seu trabalho, Fahrion não separava desenho de pintura, e essa
abertura e compreensão foi importante para muitos de seus alunos, como Regina
Silveira (1939), sua assistente nas aulas de Desenho, entre 1959 e 1961.
Tomando esse momento, observando tanto as obras produzidas pelos pro-
fessores e alunos do IBA, como as que passaram a integrar a Pinacoteca Barão
de Santo Ângelo por meio dos Salões de Arte, reconhecemos um período de tran-
sição e questionamentos. Leves, mas presentes.
confirmados no Congresso, dentre os quais Mario Cravo Júnior (1923), Cyro dos
Anjos (1906–1994), Mário Pedrosa (1900–1981), Pietro Maria Bardi (1900–1999)
e Lúcio Costa (1902–1998), que, entretanto, não chegaram a participar.45 Estru-
turado em sessões 46 , o Congresso tinha como objetivo discutir problemas rela-
cionados ao ensino das artes, sua difusão, assim como direitos e deveres das
instituições públicas. Os comunicadores interessados em apresentar as “teses”47
se inscreviam previamente. Foi durante o evento que Mario Barata (1921–2007)
defendeu, por exemplo, Da criação de um curso superior de História da Arte no
Brasil, seguida de apontamentos sobre a necessidade da inclusão da disciplina
de História da Arte nas Faculdades de Filosofia e mesmo nos colégios.48 Quirino
Campofiorito, em reportagem no jornal Diário de Notícias, um mês antes do epi-
sódio, anunciava:
De fato, nada se viu, em âmbito nacional, de mais arrojado. Para Luis Mar-
tins, o evento era “inconveniente”:
As Artes
Ele [Paglioli] havia sido suficientemente sensível para Junto à sala do Conselho
diagnosticar o mal e receitar o remédio adequado para que Universitário da UFRGS,
os saberes universitários se reencontrassem no projeto ci- órgão máximo da
vilizatório entre a arte e a ciência. Ao longo de seu reitora- instituição, o mural
do [...], não só conseguiu contornar, como também sanar as As profissões, de 1958.
velhas e dolorosas feridas das relações tumultuadas entre Nele, Locatelli enfatiza dois
a arte e a Universidade. (SIMON, 2003, p. 470–471) personagens fundamentais
para a história do Instituto
de Belas Artes: os reitores
Tão forte quanto documentos e protocolos, as imagens de Locatelli, em Manoel André da Rocha e
seus discursos e lugares, remetem a um dos períodos mais decisivos da história Elyseu Paglioli, que lutaram
do Instituto de Artes. Um período de crises, negociações, trânsitos, criação de pela integração do IBA
à Universidade
redes, reflexão acerca das escolhas pedagógicas, luta pela autonomia institucio-
nal. Um período que as obras de arte preservadas na Pinacoteca Barão de Santo
Ângelo, pelos seus temas e tratamentos, ousadias e anacronismos, ajudam a
compreender.
2 Tasso Bolívar Dias Corrêa (1901–1977) foi figura de proa no 3 As três obras são apresentadas e discutidas detalhadamente,
cenário artístico e cultural do Rio Grande do Sul. Teve formação no bloco de leituras de imagem, pela pesquisadora Cintia Neves
como pianista, concluída no Instituto Nacional de Música, Bohmgahren, que desenvolveu Dissertação de Mestrado,
na Capital Federal, em 1921. Naquele ano, em concurso orientada pela Profa. Dra. Ana Maria Albani de Carvalho, sobre os
público no mesmo Instituto, foi laureado com duas Medalhas citados murais. Infelizmente, os murais de Ado Malagoli e Alice
de Ouro, sendo uma correspondente ao Prêmio Alberto Soares estão sob camadas de tinta branca. Ver BOHMGAHREN,
Nepomuceno. Também iniciou, na Capital Federal, o curso de Cíntia Neves. A modernidade nos murais de Aldo Locatelli e de
Direito, que concluiu em Porto Alegre, em 1933, sob o olhar João Fahrion na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e o
do Desembargador Manoel André da Rocha (1860–1942), cinquentenário do Instituto de Belas Artes, 1958. Dissertação
primeiro Reitor da Universidade de Porto Alegre (UPA), criada (Mestrado em Artes Visuais). Instituto de Artes, Universidade
em 1934, base da UFRGS. Exibia, assim, nas palavras de Círio Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2013.
Simon, uma “iniciação para a burocracia” (SIMON, 2003,
4 Corona divide a autoria com Ernani Dias Corrêa (1900–1982),
p. 291). Na sua atividade profissional, Tasso lecionava piano
irmão de Tasso Corrêa e também professor junto ao IBA.
no Conservatório de Música de Porto Alegre desde 1922.
Em outubro de 1933, como paraninfo, atacou publicamente a 5 A UPA foi criada em novembro de 1934 a partir de seis
Comissão Central, que administrava o Instituto, dizendo, no instituições: Faculdade de Medicina, com suas Escolas de
discurso que publicaria em 26 de outubro, no jornal Diário de Odontologia e Farmácia; Faculdade de Direito, com sua Escola
Notícias: “O Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul é de Comércio; Escola de Engenharia; Escola de Agronomia
uma instituição dirigida por médicos, advogados, engenheiros, e Veterinária; Faculdade de Educação, Ciências e Letras;
comerciantes etc. Daí se verifica que o Instituto, sendo uma e Instituto de Belas Artes. A UPA passou a se chamar, em 1947,
organização destinada à difusão do ensino artístico no Rio URGS, Universidade do Rio Grande do Sul, e, desde 1950,
Grande do Sul, é orientada por cavalheiros de alta distinção, federalizada, UFRGS.
mas que, infelizmente, na sua grande maioria, nada entende
de arte. Para demonstrar o absurdo de nossa organização 6 Sobre o tema, ver SIMON, 2003.
administrativa, lembraria o seguinte: uma Faculdade de
7 Usaremos, ao longo do texto, ora a terminologia Instituto de
Medicina dirigida por uma comissão de músicos, pintores,
Artes, ora Instituto de Belas Artes. Trata-se, efetivamente, da
escultores... A sua situação deveria ser idêntica a do Instituto
mesma instituição.
de Artes”. O fato lhe rendeu a demissão, revogada a partir
de abaixo-assinado de 102 estudantes. Tasso sai do embate 8 Sobre os Salões organizados pelo Instituto de Artes, ver
fortalecido e, em 1936, tendo o ex-professor Manoel André KRAWCZYK, 1997; BOLZAN, 2011.
da Rocha como primeiro Reitor da UPA, é designado diretor
do Instituto. “Quando Tasso Corrêa foi nomeado, concentrou 9 Em sete edições, os Salões de Belas Artes do Rio Grande do
os poderes dos dois diretores das duas unidades autônomas Sul aconteceram nos seguintes anos: 1939, 1940, 1943, 1953,
(Conservatório de Música e Escola de Belas Artes), além 1954, 1955 e 1956.
daquelas inerentes às funções e competências do presidente
10 Voltados à produção contemporânea, os Salões de Arte da
e vice da diretoria. Instaurou dois Conselhos Técnicos e
UFRGS aconteceram em quatro edições: 1970, 1973, 1975 e 1977.
Administrativos (CTA), sobre os quais se apoiava a sua função
executiva hipertrofiada ao modelo do Estado Novo. [...] 11 Tasso Corrêa ocupou o espaço político do IBA criando uma
Tasso redesenhou o campo das Artes Plásticas do Instituto, nova estrutura institucional, com alteração de postos, cargos e
numa lógica capaz de responder a um mundo que se estava disciplinas. Se, na primeira fase da Escola de Belas Artes, havia
transformando pela industrialização e pelas consequências tão somente dois professores, Libindo Ferrás (1877–1951) e o
que essa nova infraestrutura estava provocando na cultura e na tcheco Francis Pelichek (1896–1937), a partir de 1936 o diretor
arte” (SIMON, 2003, 218–219; 220–221). Tasso Corrêa só se empreende uma mudança significativa: naquele mesmo ano,
despediria desse cargo em 1958, após 36 anos de magistério, contrata seu irmão, Ernani Dias Corrêa, que teria papel fulcral
tendo conduzido as obras de construção do novo prédio do IBA, na criação do Curso de Arquitetura (primeiramente como curso
bem como enfrentado várias expulsões e reincorporações do técnico, em 1939), e o italiano Angelo Guido (1893–1969), para
Instituto à Universidade. Tanto o Auditório do Instituto de Artes, as disciplinas de História da Arte. Em 1937, com o falecimento
como o Centro Acadêmico dos estudantes de Artes Visuais e de Pelichek, chama João Fahrion para ministrar Desenho
História da Arte prestam-lhe homenagem, adotando seu nome. de Modelo Vivo e, em 1938, são contratados os espanhois
Sobre a história do Instituto de Artes e, em especial, sobre a Fernando Corona, para as disciplinas de Modelagem e
atuação de Tasso Corrêa, ver a referencial Tese de Doutorado Escultura, Benito Castañeda (1885–1955) e Luiz Maristany
de Círio Simon, orientada pela Profa. Dra. Maria Lúcia Bastos de Trias (1885–1964), para as disciplinas de Pintura de
Kern e intitulada Origens do Instituto de Artes da UFRGS – Paisagem, e o alemão José Lutzenberger (1882–1951), para
Etapas entre 1908–1962 e contribuições na constituição de Desenho Geométrico e de Perspectiva. Observa-se, rápida
expressões de autonomia no sistema de artes visuais do Rio e unicamente a partir desses dados, a presença maciça de
Grande do Sul. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de profissionais estrangeiros vivendo e trabalhando em Porto
12 O Salão de 1939, comemorativo aos 50 anos da Proclamação 23 Sobre a atuação de Osvaldo Teixeira no campo das artes visuais
da República, aconteceu no edifício da Domus Itálica, que durante o Estado Novo, ver BULHÕES, 1983.
ficava na antiga Rua da Misericórdia (atual Rua Annes Dias),
esquina com a Rua General Vitorino, ou seja, diante da Santa 24 2º Salão de Belas Artes do Rio Grande do Sul. In: Rotary
Casa de Misericórdia. O I Salão teve 141 artistas inscritos, Brasileiro, Rio de Janeiro, jan. 1941, n. 143.
com 407 obras apresentadas; já o Salão de 1940, festejando o
25 CASTRO FILHO, Manoel Ferreira de. O Segundo Salão de Belas
Bicentenário de Porto Alegre, ocorreu no Armazém A1 do Cais
Artes do Rio Grande do Sul [Coluna Bellas Artes]. In: Correio da
do Porto, com 178 inscritos, que apresentaram 514 obras.
Noite, Rio de Janeiro, set. 1940.
13 Em 1919, por sugestão de Raul Pederneiras (1874–1953)
26 O 2º Salão de Belas Artes de Porto Alegre. In: Beira-Mar, Rio de
e Rodolfo Chambelland (1879–1967), o Centro Artístico
Janeiro, 21 dez. 1940, p. 5.
Juventus, fundado em 1910, passa a se chamar Sociedade
Brasileira de Belas Artes (SBBA). Isso ocorre em assembleia 27 Excerto do discurso proferido por Tasso Corrêa durante o jantar
realizada no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. oferecido pela Sociedade Brasileira de Belas Artes, em 29 abr.
Entre os fundadores da nova entidade estão artistas como 1941 | AHIA.
Helios Seelinger (1878–1965), Arthur Timótheo da Costa
(1882–1922), Pedro Bruno (1888–1949), Henrique Cavalleiro 28 A mostra aconteceu entre 11 e 31 de outubro de 1941,
(1892–1975), Lucílio (1887–1939) e Georgina de Albuquerque apresentando obras tanto de professores (como Guido,
(1885–1962). Em 1925, a Sociedade inaugura, em sua sede, Fahrion, Corona e Maristany), como estudantes ou egressos
junto à Rua do Lavradio, na Lapa, o primeiro curso de Desenho recentes, a exemplo de Vera Wiltgen (1917–1992) e Jacintho
com Modelo Vivo fora da Escola Nacional de Belas Artes, ao Moraes (1917–1982). Também participaram artistas gaúchos
qual acorreriam muitos artistas de tendência moderna, que residentes na Capital Federal, como Leopoldo Gotuzzo.
não dispunham de outros locais para essa prática de desenho
29 É interessante registrar, acerca disso, que desde o início da
(MORAIS, 1995).
década de 1940 o IBA organizava pequenas expedições a
14 Em 30 de novembro de 1940, inclusive, foi organizado um zonas mais afastadas do centro de Porto Alegre, como Belém
banquete em homenagem à recente inclusão de Tasso Corrêa Novo, com o objetivo de incentivar o desenho de observação
no quadro de Sócios Honorários da Sociedade Brasileira de e de paisagem. Esses passeios, fartamente registrados em
Belas Artes. O jantar aconteceu no “Club do Comércio”, em fotografias, eram chamados de “Expedição Castro Filho”.
Porto Alegre. Assim, portanto, como as salas de aula e os espaços do
edifício na Rua Senhor dos Passos prestavam reverência a
15 CASTRO FILHO, Manoel Ferreira de. Um grande movimento de antigos professores e a vultos da arte brasileira, as excursões
arte no Sul do País [Coluna Bellas Artes]. In: Correio da Noite, homenageavam esse importante parceiro da instituição.
Rio de Janeiro, 6 dez. 1939.
30 “Foi lançada, há dias, a pedra fundamental do novo edifício do
16 A obra, um óleo sobre tela de 117 × 90 cm, integra o acervo Instituto de Belas Artes, tradicional educandário rio-grandense,
da PBSA. a quem a cultura artística brasileira deve inestimáveis serviços.
Nas obras do seu novo edifício, o Instituto empregou todos os
17 O mesmo Castro Filho passaria a assinar, em dezembro de
fundos de que dispunha e, dada a sua insuficiência, ainda está
1939, uma segunda coluna sobre artes visuais, desta vez na
lançando mão de donativos que são endereçados por amigos
revista do Rotary Club do Brasil, a Rotary Brasileiro. E, em sua
das belas artes de todo o Brasil. A Sociedade Brasileira de Belas
primeira participação, o assunto também foi o Salão do IBA,
Artes, que mantém a mais estreita ligação com o prestigioso
destacando, com reproduções, as obras de Manoel Santiago,
estabelecimento do ensino artístico do Rio Grande, lançou um
Leopoldo Gotuzzo e Armando Vianna.
apelo a todos os seus associados, no sentido de que fizessem o
18 CASTRO FILHO, Manoel Ferreira de. Um grande movimento de donativo de trabalhos para uma exposição de arte a realizar-se
arte no Sul do País [Coluna Bellas Artes]. In: Correio da Noite, em Porto Alegre, já no próximo mês de janeiro, e cujo produto
Rio de Janeiro, 6 dez. 1939. reverterá em benefício das obras [...]”. CASTRO FILHO, Manoel
Ferreira de. O novo edifício do Instituto de Belas Artes do Rio G.
19 I Salão de Belas Ares do Rio Grande do Sul. O Malho, Rio de do Sul [Coluna Bellas Artes]. In: Correio da Noite, Rio de Janeiro,
Janeiro, 28 dez. 1939, p. 33. 16 dez. 1941.
A família de Giuseppe Giannini “José” Pancetti (Campinas, suas pinturas de marinhas, como o enquadramento de perto,
SP, 1902 – Rio de Janeiro, RJ, 1958) não tinha muitos recur- da altura do solo, e próximo de um primeiro grupo de figuras,
sos econômicos e, quando ele contava com onze anos, foi contemplativas ou simplesmente “abandonadas” no local,
enviado à Itália, para morar com parentes. Na Europa, não podendo exibir um segundo grupo de figuras mais ao fundo,
se adaptou a nenhum dos muitos trabalhos que exerceu, re- estas interagindo com o cenário, geralmente em uma ativida-
tornando ao Brasil em 1920, onde começa a pintar paredes de de trabalho, que poderia ser pescar, lavar roupas, mas que,
e cartazes, além de auxiliar, em São Paulo, o pintor Adolfo neste caso, dá-se na forma da derrubada das árvores.
Fonzari (1880–1959). Em 1922, alistou-se na Marinha de
Guerra Brasileira, na qual seguiu carreira. Onze anos depois, A essas representações humanas me refiro como “figuras”,
em 1933, ingressou no Núcleo Bernardelli e lá teve Bruno pois Pancetti não chega a criá-las como personagens. Elas
Lechowski (1887–1941) como seu principal orientador. Em não têm características próprias, iconografia específica ou,
1950, expôs na Bienal de Veneza e, em 1951, participou da I ao menos rostos. São figuras humanas genéricas; poderiam
Bienal de São Paulo (ZANINI, 1983). ser consideradas uma representação vaga de um tipo social
ou mesmo uma metáfora para a solidão humana.
No quadro Os pioneiros, Pancetti mostra-nos a represen-
tação de um cenário de derrubada de mata. Suas pinturas Ainda formalmente, Pancetti mantém das pinturas de pai-
de paisagem estabeleceram uma tradição de criar ambien- sagem a representação figurativa que tende a construir-se
tes tranquilos, muitas vezes até solitários, em que algumas a partir de elementos simplificados. Econômico, o pintor se
figuras interagem ao longe, no espaço, ou simplesmente vale de formas básicas, às vezes geometrizadas, mínimas,
acompanham o observador no ato de contemplar, como retendo uma carga de melancolia.
se apreciando a própria imagem da qual fazem parte. Em
sua maioria, as paisagens do artista representam cenários A mais notável diferença desta imagem, em relação às suas
litorâneos, possivelmente um reflexo de seu período como pinturas de paisagem, é quanto ao uso das cores. Pancetti
marinheiro e militar naval; todavia, neste trabalho em ques- comumente se valia de muitas cores para compor o cenário,
tão, o ambiente é um pouco distinto. Aqui se trata, como é com azuis e tons terrosos e de areia. Em Os pioneiros, além
possível interpretar considerando o título que Pancetti deu dos poucos e escuros tons, não existe horizonte. Há somen-
à obra, de um grupo de recém chegados derrubando algu- te o vermelho que se torna terra, grama, céu e infinito. Com
mas árvores para se instalar, usando a madeira obtida em essa cor, ele mostra-nos a imensidão do horizonte sem fim
alguma forma de construção ou limpando o terreno para o que sempre tentou representar em suas marinhas.
plantio. Independente da temática diferenciada, o artista
mantém as características que comumente adotava em Rafael Machado Costa
Benito Juan Quinquela Martín nasceu em março de 1890, Os “elevadores”, nesta gravura de 1945, são as pequenas
em Buenos Aires, e foi abandonado na chamada Casa de pontes que conectam os barcos e o solo, dando passagem
los Niños Expósitos, sendo adotado pelo casal Justina Mo- aos carregadores. Na imagem, a postura e o sombreamento
lina, de origem indígena, e o italiano Don Manuel Chinchella das figuras transmitem o peso do trabalho e o papel funda-
em 1896 (MUÑOZ, 1961). Sua primeira exposição ocorre em mental desses homens no desenvolvimento urbano; entre-
1910, na Asociación Ligure de Socorros Mutuos de La Boca. tanto, eles seguem no anonimato. O artista foi um desses
Quatro anos depois, em 1914, participa do Salón de Recusa- operários e buscou dar visibilidade à sua gente e ao seu lu-
dos. Permaneceu no bairro La Boca por praticamente toda a gar, por meio das obras que produziu. A luz sobre o rio e os
sua vida, e é nesse ambiente que está a inspiração da maioria prédios contrasta com a escuridão que domina as figuras
de suas obras. humanas e as embarcações. Esse tratamento formal pare-
ce expressar que a estrutura edificada do porto, ao mesmo
O porto de La Boca, no início do século XX, era o grande tempo consequência e meio de produção de riquezas, é mais
mercado de carvão de lenha da capital argentina. A família valorizada do que o labor das pessoas e seus instrumentos
de Quinquela também estava envolvida nesse ramo: seu pai de trabalho. Tal interpretação é própria das manifestações
descarregava os barcos carvoeiros, enquanto a mãe cui- críticas do período, pautadas, majoritariamente, na lingua-
dava de um pequeno comércio de venda de carvão. Aos 15 gem expressionista. A atmosfera densa do ambiente tam-
anos de idade, Quinquela passou a trabalhar no porto, en- bém remete a essa tendência.
volvido nas mesmas atividades dos pais. Os moradores do
bairro, a maioria imigrantes italianos, traziam consigo a vo- Quinquela expôs pela primeira vez na Europa no Círculo de
cação associativa, e muitas instituições, fundações e uniões Belas Artes de Madri, em 1923. Realizou mostras em Nova
foram criadas. Foi no Salón Unión de la Boca, em 1907, que Iorque (1928), Roma (1929) e Londres (1930). Em 1936,
Quinquela realizou seus primeiros estudos artísticos, sob a inaugurou a Escola-Museu Pedro de Mendoza, cujo terreno
orientação do professor Alfredo Lazzari (1871–1949), mas foi doação sua. Dois anos depois, fundou o Museu de Belas
respeitando, fundamentalmente, suas intuições. No am- Artes de La Boca, que hoje leva seu nome.
biente em que cresceu, encontrou seus temas prediletos:
o porto, os barcos, os trabalhadores. Muitas de suas obras Não só a arte de Quinquela Martín demonstra seu compro-
são paisagens nas quais não se individualizam as figuras metimento social. Ele foi deveras atuante em sua comunida-
humanas, como é o caso de Elevadores, uma água-forte de e doou terrenos e dinheiro para a construção de diversas
de 1945. entidades, entre elas a Escola de Artes Gráficas, o Jardim
Maternal Quinquela Martín e o Museu de Belas Artes de Ar-
A gravura representa, em primeiro plano, os trabalhadores tistas Argentinos. Além disso, o artista foi um dos principais
do porto, aparentemente suprindo uma pequena embar- responsáveis pela criação do famoso Caminito, no bairro de
cação de madeira. Essa cena é recorrente na produção de La Boca, em Buenos Aires.
Quinquela, como vemos, por exemplo, nas pinturas Veleros
reunidos (1930) e Dia luminoso (1960). Em Elevadores, o No ano de 1971, em uma área também doada pelo artista, foi
rio e os armazéns ocupam grande parte da composição. inaugurado o Teatro de la Ribera. Em 1972, tornou-se Mem-
As passarelas de metal entre as edificações se destacam: bro Honorário dos Claustros pela Universidade de Buenos
são as marcas do progresso e da modificação da paisagem Aires. Dois anos depois, em 1974, casou-se com Alejandra
(FERNÁNDEZ, 2011). La Boca, a região representada, sur- Marta Cerruti; no mesmo ano, recebeu o Gran Premio do
giu e se desenvolveu em função das atividades portuárias; Fondo Nacional de las Artes, e o Ministério da Cultura e Edu-
seu ambiente foi erigido por mãos humanas, pelo trabalho. cação organizou uma mostra retrospectiva de sua produção.
Aliás, os operários da construção são contemplados pelo Quinquela faleceu em 1977, em Buenos Aires.
artista nas águas-fortes Puente vieja (1940) e La ciudad
futura (1940). Andréia Carolina Duarte Duprat
Benito Mazon Castañeda nasceu em Cádiz, Espanha, em brantes. O cenário e as figuras representadas como borrões
1885, e foi um artista e professor atuante no Rio Grande do de tinta, mesmo aquelas que estão em primeiro plano – a
Sul na primeira metade do século XX. Estudou pintura na Es- perspectiva, aliás, fica dissolvida na planaridade da tela –,
cola Industrial de Artes e Ofícios em Cádiz, de 1901 a 1909. aparecem de maneira sintetizada e sem grandes detalhes,
Após esse período, frequentou o ateliê de Felipe Abárzuza quase esquemáticas. O quadro mostra uma cena comum
Rodríguez (1871–1948), mudando-se para a Argentina e es- do período, já que o circo era muito popular no Brasil, des-
tudando na Escola de Belas Artes de Buenos Aires entre 1911 de o século XIX. Tratava-se de uma das temáticas caras ao
e 1915. Chegou ao Brasil em 1919, e passou a viver no interior pintor, que também gostava de representar barracas de
do Rio Grande do Sul, primeiro em Uruguaiana, e depois em ciganos em seu meio natural (CORONA, 1955). A composi-
Bagé, atuando como artista e também como professor par- ção adotada tem clara influência da linguagem fotográfica,
ticular. Em 1941, transfere-se para Porto Alegre, passando a lembrando algumas das pinturas de corridas de cavalos de
integrar o Corpo Docente do Instituto de Belas Artes, institui- Edgar Degas (1834–1917) – tema, aliás, que também des-
ção na qual lecionou até o final de sua vida. Ali, era bastante ponta de modo recorrente na obra de Castañeda, que ado-
próximo dos compatriotas Fernando Corona (1895–1979) e rava representar animais.
Luiz Maristany de Trias (1885–1964), sendo lembrado até
hoje como um professor dedicado aos seus alunos. É consi- A movimentação das figuras sugere que o espetáculo ainda
derado um dos precursores da arte moderna no Rio Grande não começou, pois elas se encaminham para a entrada do
do Sul. Em seus 55 anos de carreira artística, produziu relati- circo. Os tons de laranja e verde escolhidos para a tenda são
vamente pouco, sendo a maioria de seus trabalhos conheci- luminosos e fazem contraponto aos tons mais neutros, usa-
dos datados dos últimos 15 anos de vida. dos nas figuras humanas.
“Don Benito”, como era carinhosamente chamado pelos As cores de O circo são recorrentes na obra de Castañeda,
amigos, colegas e alunos, dizia ter um “temperamento im- como se pode observar na ampla coleção pertencente à Pi-
pressionista” (KREBS, 1955). O tratamento que suas obras nacoteca Barão de Santo Ângelo.
recebem, no entanto, parece estar mais de acordo com as
tendências expressionistas: as pinceladas são marcadas Benito Castañeda recebeu premiações em vários salões e
e carregadas de material pictórico; o colorido geralmente realizou duas exposições individuais, a primeira em 1941,
intenso dá forma às figuras e paisagens, que não possuem na Casa das Molduras, e a segunda na Galeria do Correio do
contornos. Em certos momentos, a obra de Castañeda pare- Povo, em 1946, ambas em Porto Alegre. Considerado um
ce caminhar para o abstracionismo, graças à síntese das for- mestre da paisagem, está representado no MARGS Ado Ma-
mas e figuras diluídas nas cores fartamente aplicadas sobre lagoli, na Pinacoteca da APLUB, na Pinacoteca Aldo Locatelli
a tela. “Ninguém, em solo gaúcho, até então, tinha usado as e no Museu Júlio de Castilhos, mas a maior parte de suas
cores com tanta generosidade, explorando a viscosidade das obras encontra-se preservada na Pinacoteca Barão de Santo
tintas, como ele” (BOHNS, 2005, p. 272). Ângelo, do Instituto de Artes da UFRGS. Sem herdeiros, fale-
ceu em Porto Alegre em 1955.
O circo é uma dessas obras de matriz expressionista, sen-
do totalmente construída com pinceladas fortes e cores vi- Thais Canfild
Na pintura Costas do Brasil, Helios Aristides Seelinger (Rio A representação de caravelas ao mar como recurso retóri-
de Janeiro, RJ, 1878 – Rio de Janeiro, RJ, 1965) nos apresen- co para tratar do descobrimento é outra constante em sua
ta duas características fortes na sua poética: a tradição vinda obra. Pinturas em que comumente usa cores fortes e uma
do Simbolismo e a temática da construção de uma identida- pincelada intensa e heterogênea, deixando visível o caminho
de nacional brasileira. percorrido na tela. Tal característica adquiriu de seus mes-
tres simbolistas, como Franz von Stuck (1863–1928), que
No quadro, Seelinger nos mostra uma caravela navegando também teve como alunos os grandes expressionistas Was-
em águas revoltas. As velas da embarcação estão estufa- sily Kandinsky (1866–1944), Paul Klee (1879–1940) e Franz
das, o que indica a presença de um forte vento que a golpeia, Marc (1880–1916), o que explica as possíveis aproximações
construindo a impressão de que a nave está lutando contra entre sua pintura e o Expressionismo. Além dos ensinamen-
essas forças da natureza para chegar ao seu objetivo. Nos tos de von Stuck nos dois períodos em que passou sob sua
dois lados da tela, logo acima do mar, podem ser observa- orientação, Seelinger teve formação na Escola Nacional de
das as figuras de aves litorâneas, que sugerem a presença Belas Artes, de 1891 a 1896. Também frequentou o ateliê dos
de terra firme não muito distante, podendo fazer referência irmãos Henrique Bernardelli (1858–1936) e Rodolfo Bernar-
à passagem bíblica da ave que se aproxima da arca de Noé. delli (1852–1931), sendo o primeiro o responsável por incen-
Ao fundo, há um céu escuro e dourado, mas há mais. Nesse tivá-lo a ir estudar na Europa, onde também foi aluno de Je-
céu, no lado esquerdo superior da tela, em meio a uma sé- an-Paul Laurens (1838–1921). Foi ainda assistente de Eliseu
rie de manchas de cores imprecisas, forma-se uma imagem, Visconti (1866–1944) e produziu ilustrações e caricaturas
uma figura humana que contempla com olhar pesaroso a para revistas como O Malho e Fon Fon. Seelinger também
chegada da nau europeia a seu território. A figura com carac- conquistou vários prêmios, entre os quais nas Exposições
terísticas indígenas é uma alegoria do Brasil nativo, prestes a Gerais de Belas Artes e o Prêmio Viagem ao Exterior (MO-
deixar de existir para assumir uma nova forma, colonizado. RAIS, 1995).
O uso de alegorias para representar momentos históricos do O destaque em Costas do Brasil é o fato de Helios Seelinger
País são uma recorrência na produção do artista. Encontra- usar dessa expressão ultra-romântica para representar o
mos alegorias em trabalhos como Minha Terra, de 1921, em conflito entre o Brasil ancestral (o nosso equivalente ao pas-
que representa o Brasil em três momentos: descobrimento, sado mitológico europeu) e o Brasil histórico surgido a partir
independência e república, ou mesmo em Rio Grande de Pé da colonização.
pelo Brasil, de 1925, quase sempre valendo-se de elementos
e personagens das mitologias grega e alemã, entre outras. Rafael Machado Costa
Realizado na cidade do Rio de Janeiro, em 1949, o Retrato No mesmo ano da feitura do retrato, 1949, com sua obra Por
do pintor Raul Deveza explora a densidade de várias cama- quê?, Malagoli ganha o Prêmio de Viagem pelo Brasil, no Sa-
das de tinta, como era típico de Ado Malagoli (Araraquara, lão Nacional de Belas Artes, graças ao qual visitou muitas ci-
SP, 1906 – Porto Alegre, RS, 1994). O fundo é trabalhado dades do Nordeste e do Sul do País. Durante a breve estadia
com a representação de pequenas figuras e edificações de no Rio Grande do Sul, conheceu o artista e professor do IBA,
tons majoritariamente terrosos, o que pode ser interpre- Angelo Guido (1893–1969), que, em 1952, convida-o a lecio-
tado como um prelúdio dos casarios que apareceriam na nar na instituição, onde seria um dos responsáveis pela revi-
poética do artista, sobretudo a partir da década de 1960. talização do ensino. No Instituto, Malagoli foi professor gene-
Neste quadro, em especial, fica evidente a habilidade de roso, ensinando seus alunos a desenvolver o senso crítico e
Malagoli em captar o caráter psicológico a partir de um a liberdade de expressão. Figura de proa no cenário artístico
viés realista. do Estado, foi o idealizador e primeiro diretor do Museu de
Arte do Rio Grande do Sul, que hoje leva seu nome.
Raul Deveza (1891–1952), o retratado, era paisagista, ce-
nógrafo e professor de arte. Concorrente, desde 1915, do Senhor de sólida técnica, Ado Malagoli imprimiu às suas pin-
Salão Nacional de Belas Artes, obteve Menção Honrosa, turas um tratamento impecável, verificado na composição,
Medalhas de Bronze (1918), Prata (1919) e Ouro (1948), na paleta e nas texturas cuidadosamente empregadas. Para
esta última com a tela Camponesa Búlgara (CAVALCANTI, ele, a obra de arte era resultado, também, do profundo co-
1973). Em 1940, participou do II Salão do Instituto de Belas nhecimento técnico, que não cansava de aprimorar. Dizia-se
Artes de Porto Alegre, recebendo Medalhas de Bronze e de um “indivíduo insatisfeito”: “[...] esta é talvez a razão que me
Prata. Deveza foi, durante muitos anos, membro de diver- mantém em constante atividade no atelier. Não posso parar.
sas comissões organizadoras e de seleção de importantes [...] Tenho uma necessidade tão grande de pintar, quanto um
salões de arte do Brasil. No retrato, ele desponta com um passarinho de cantar. Preciso pintar, só vou parar quando
caráter introspectivo, mas atento. Em semiperfil, encara o morrer. É como o ar que respiro” (In: KLINTOWITZ, 1985, s/p).
observador, ao mesmo tempo em que segura, com a mão
direita, um cigarro. Laura Clara Gehrke
Bartolomeu Cozzo, mais conhecido como Humberto Coz- A gestualidade e a fisionomia são o caminho empreen-
zo, nasceu em 8 de agosto de 1900, em São Paulo. Aos 14 dido pelo artista para adentrar no emocional da figura,
anos, ingressou no Liceu de Artes e Ofícios da cidade e, três assim como as esculturas do ítalo-brasileiro Ernesto de
anos depois, com apenas 17 anos, conquistou o 1º Prêmio Fiori (1884–1945) e do alemão Wilhelm Lehmbruck (1881–
nessa mesma instituição. Foi diplomado em 1920 e passou 1919), este último um dos nomes mais importantes da es-
a assinar com o nome Humberto Cozzo. Em 1922, recebeu cultura moderna, com o qual é possível estabelecer tanto
o Primeiro Prêmio de Escultura no Salão do Centenário, em diálogos formais, quanto expressivos.
São Paulo; em 1928, foi agraciado com a Medalha de Prata no
Salão Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Entretanto, apesar de, nesta escultura, Cozzo revelar ca-
racterísticas modernistas, ele não se restringia a produzir
Cozzo recebeu diversas encomendas para obras públicas, apenas em determinada tendência ou escola. De acordo
executando bustos, mausoléus, decorações e fontes, tais com R. A. Freudenfeld, o artista transitava entre acadêmi-
como o monumento a José de Alencar, em Fortaleza (CE), e co e moderno porque sua “[..] preocupação era sempre a
o monumento a Machado de Assis, no pátio da Academia de expressão da beleza” (FREUDENFELD, p. 9). Pelo mesmo
Letras, na cidade do Rio de Janeiro (RJ). Também realizou motivo, explorou materiais diversos, esculpindo tanto em
as esculturas em mármore junto aos jazigos da Princesa mármore, como fundindo em bronze.
Isabel e do Conde d’Eu, na Catedral de Petrópolis (RJ).
Adeus passou a integrar a Pinacoteca Barão de Santo Ân-
Representativa da produção modernista de Humberto Coz- gelo em 1953. Naquele ano, recebeu o “Prêmio Caixa Eco-
zo, Adeus é marcada pelo movimento esquemático e de ma- nômica Federal do Rio Grande do Sul”, no IV Salão Oficial de
triz expressionista. Embora pautada no cânone de tensão e Belas Artes do Rio Grande do Sul. A obra aparece represen-
repouso, a figura de Cozzo coloca-se de modo inovador. Ela tada em algumas pinturas de João Fahrion (1898–1970),
expressa uma mobilidade que vem à tona, sobretudo, pela como no Retrato de Maria José Cardoso (1956). O artista
expressividade das mãos, que parecem prescrever um movi- faleceu em 1981, na cidade do Rio de Janeiro.
mento de dança, remetendo, nesse sentido, às esculturas de
Edgar Degas (1834–1917). Natália Lehmen de Moraes
Napoleon Potyguara Lazzarotto nasceu na cidade de Curitiba, que convida o observador a adentrar numa espécie de espa-
Paraná, em 1924, onde faleceu em 1998. Foi pintor, gravador, ço-tempo indefinido. Matadouro I é uma imagem vigorosa, e
ilustrador, muralista e professor. Estudou pintura na Escola ao mesmo tempo serena. Na relação que o artista estabelece
Nacional de Belas Artes e gravura no Liceu de Artes e Ofícios, entre o homem e o animal, percebe-se uma espécie de corte
no Rio de Janeiro, em 1942. Cursou litografia na Ècole Supé- horizontal que divide a gravura em um plano superior e outro
rieure des Beaux-Arts, em Paris, entre 1946 e 1948. Nos anos inferior. Na parte de cima, em tons mais escuros, está o ho-
1950, funda, com Flávio Motta (1916), a Escola Livre de Artes mem, preparando-se para suspender o animal que acaba de
Plásticas, em São Paulo, e organiza o curso de gravura do golpear. Abaixo, em tonalidades claras, está o boi, que aguar-
MASP. Participa das três primeiras Bienais de Arte de São Pau- da mansamente seu destino. Há, na gravura, a marcante
lo, de 1951 a 1955, com trabalhos em gravura. Ganha o Primei- presença da mancha e uma forte linha de contorno, com um
ro Prêmio da exposição Gravadores Brasileiros, em Genebra traço vigoroso que destaca as figuras. Ao contrário do verifi-
(Suíça), no Museu Rath, em 1954. Em 1950, executa o mural cado nas gravuras Matadouro II e Matadouro III, a presença
da Casa Brasil, em Paris, e, em 1988, o painel do Memorial da da ponta seca não é tão acentuada, bem como os detalhes
América Latina, em São Paulo. É na Editora José Olympio que, de ambiente interior, que praticamente inexistem.
em 1953, inicia sua trajetória como ilustrador, com o livro Pa-
raná Vivo, tornando-se um dos principais artistas da casa, ao A preocupação de Poty em representar o homem comum em
desenvolver uma obra que se tornou indissociável da própria seu cotidiano de trabalho, lazer ou intimidade, é uma carac-
literatura brasileira. Nesse âmbito, deixou um maravilhoso le- terística de sua obra. Para imprimir vida e um certo caráter
gado artístico, agraciado com vários prêmios. Ilustrou, entre documental às imagens, o artista investia na observação. As
outros livros, Sagarana e Grande Sertão: Veredas, ambos de várias séries e ilustrações que produziu para a Editora José
Guimarães Rosa (1908–1967). Seu último trabalho como ilus- Olympio, por exemplo, são resultado de suas viagens a Ca-
trador foi a edição das Obras Completas de Machado de Assis, nudos e a Salvador, bem como a Pernambuco, ao sertão mi-
publicada pela Editora Itatiaia, em 1988. neiro e ao Xingu.
Com as gravuras Matadouro I, II e III, Poty recebeu a Medalha Seja por sua temática de valorização da tradição e do ofício
de Prata em Gravura e o “Prêmio Caixa Econômica Federal do campo, ou pelo tratamento de viés expressionista, pare-
do Rio Grande do Sul” em 1956, no VII Salão Oficial de Belas ce compreensível que, especialmente Matadouro I, remeta
Artes do Rio Grande do Sul, organizado pelo IBA. A obra em o observador a outro magnífico artista, Danúbio Gonçalves
análise, Matadouro I, encanta o observador e revela a intimi- (1925), que com sua série Xarqueadas (1953) também re-
dade do artista com os recursos gráficos. presenta, de maneira intensa, esse homem simples, em seu
cotidiano laboral.
A água tinta, utilizada por Poty nesta gravura, possibilitou-lhe
uma significativa variação tonal, verificada no fundo difuso, Laura Arce
Aldo Locatelli, nascido em 1915, era um artista intenso, na gerindo, quem sabe, um momento de grande cansaço, dor e
vida e no trabalho. Ainda menino, teve contato com o univer- fragilidade. Isso também nos dá um contraponto entre uma
so artístico por meio de pintores de afrescos de sua cidade figura vigorosa, mas ao mesmo tempo “derrotada”. A força
natal, Bergamo, na Itália. Lá, estuda na Academia Carrara do corpo versus a fraqueza do ser.
de Belas Artes, diplomando-se em 1935. No mesmo ano,
recebe uma bolsa de aprimoramento na Escola de Belas Ao fundo, formas geométricas, como o círculo e o quadrado,
Artes de Roma, onde aprofunda seus estudos sobre a arte cortados por uma diagonal, que compõem a cena sem rou-
da Roma Antiga e da Renascença, cristalizando uma filia- bar a atenção do foco principal. Essas formas geométricas
ção estética que seguiu por toda a vida. Foi convocado para nos remetem ao Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci
o serviço militar, combatendo durante a II Guerra Mundial; (1452–1519). Entretanto, na obra do mestre renascentista,
entretanto, um ferimento em batalha o dispensa, o que lhe a figura masculina domina o espaço, diferentemente do que
permite retomar sua carreira artística. Também inicia tra- vemos na pintura de Locatelli, na qual o homem encontra-
balho como restaurador, chegando a recuperar peças das se em um espaço exíguo, abatido e engolfado por situações
coleções do Vaticano. que desconhecemos, contra as quais ele parece incapaz de
lutar. O próprio campo da pintura e a forma como o artista
Em 1948, viaja ao Brasil a convite de Dom Antônio Zattera trabalhou os elementos na composição reforçam tal aspec-
(1899–1987), bispo de Pelotas, no Rio Grande do Sul, para to. Observemos que a figura está visivelmente sufocada:
pintar a Catedral São Francisco de Paula, naquela cidade. não há espaço em volta, não há respiro.
Na mesma Pelotas, assume como professor na Escola de
Belas Artes e, em 1950, firma contrato para a decoração da Acostumado a grandes espaços, Locatelli decorou alguns
Igreja de São Pelegrino, em Caxias do Sul. Logo sua fama edifícios religiosos, como a Catedral de Santa Maria (1954),
chega à capital, vencendo em 1951 uma concorrência do Go- a Igreja de São Pelegrino, em Caxias do Sul (1951–1960), e
verno do Estado para executar um ciclo de painéis no Palácio a Catedral de Novo Hamburgo (1959). Entre os edifícios ci-
Piratini (BRAMBATTI, 2008). vis, encontramos obras suas junto à Reitoria e o Instituto de
Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1958),
A obra em destaque, Desventura, foi produzida em 1952 e e ao antigo Aeroporto Salgado Filho, além do já citado Pa-
representa uma figura masculina nua, sentada de lado. Seu lácio Piratini.
corpo é jovem, forte e imponente, representado com grande
naturalismo, a partir de padrões francamente renascentistas. Na técnica de pintura mural que desenvolveu, Locatelli foi
Influenciado pela tradição de Michelangelo (1475–1564), Lo- praticamente uma figura isolada no Estado. Sua influência
catelli mostra “[...] a contração do espaço para acrescentar a sobre a arte local assumiu tal dimensão que o crítico de arte
potência das figuras, a forte modulação na forma e a capaci- Aldo Obino (1913–2007) chegou a dizer que o Rio Grande,
dade de esculpir com pinceis” (LORETO & SILVA, 1996, p. 56). por falta de concorrência e também pelos inegáveis méritos
do artista, sofria um processo de “locatellização”. Aldo Loca-
Podemos identificar, nesta obra, uma orientação de profun- telli faleceu em Porto Alegre, em 3 de setembro de 1962, aos
didade, de quem observa a imagem de baixo para cima, ten- 47 anos, vítima de câncer.
do a parte inferior em primeiro plano. A figura traz a cabeça
baixa e o rosto escondido, bem como as mãos calejadas, su- Valdriana Corrêa
Nesta obra, Amanhecer em Itaipú, Cadmo Fausto de Souza Pintor e professor, Cadmo Fausto estudou na antiga Escola
(Rio de Janeiro, RJ, 1901 – Rio de Janeiro, RJ, 1983) apresen- Nacional de Belas Artes, tendo como professores Rodolfo
ta ao observador uma cena que remete ao retorno de uma Amoedo (1857–1941), Lucílio de Albuquerque (1877–1939)
pescaria. A luminosa manhã, à beira de águas cristalinas, pa- e Rodolfo Chambelland (1879–1967), entre outros. Esteve
rece acolher sob a vela da embarcação um grupo de homens presente em diversas edições do Salão Nacional de Belas
que volta da pesca e que vem ao encontro de outros prontos Artes, sendo premiado, em 1922, com Medalha de Bronze;
a receber os frutos dessa empreitada. Com sua composição em 1924, com a Pequena Medalha de Prata; em 1927, com a
quase fotográfica, a pintura traz um elemento inusitado: as Grande Medalha de Prata. Finalmente, em 1930, conquista o
figuras não estão voltadas para o observador. Dois homens Grande Prêmio de Viagem ao Exterior e, em 1934, o Prêmio
estão de costas, dois de lado e outro possui o rosto encober- de Viagem ao País. Obteve Diploma e Medalha de Ouro no
to pela vela do barco. A ênfase não está, portanto, nas fisio- Salão Fluminense de Belas Artes (1952), além de ter partici-
nomias ou expressões faciais, mas na sugestão de narrativa, pado de salões organizados pelo IBA, em Porto Alegre. Sua
bem como no “flagrante do cotidiano” de pescadores. Ou- trajetória também é marcada por participação em salões em
tras obras do artista abordam temas dessa natureza, como é Rosário, na Argentina, e na Sociedade Nacional de Belas Ar-
o caso da pintura Pescadores (1930), com a qual conquistou tes, em Paris. Integrou comissões organizadoras e de sele-
o Prêmio de Viagem ao Exterior, no Salão Nacional de Belas ção de vários salões oficiais no Brasil. Cadmo Fausto é ainda
Artes, em 1930, além de Depois da Pesca e Volta da Pesca, autor das obras alegóricas Proclamação da República, Lei
as duas últimas preservadas no Museu Histórico Nacional do Áurea, Cultura Nacional e Abertura dos Portos, com as quais
Rio de Janeiro. venceu o concurso para ilustração dos versos das cédulas
de cruzeiros antigos, em 1943. E também são de sua autoria
Em Amanhecer em Itaipú, a luminosidade é abrandada pela dois painéis localizadas no Aeroporto Santos Dumont, no Rio
sombra da vela, que se abre sobre os personagens; porém, de Janeiro, intitulados Aviação Antiga e Aviação Moderna,
é no reflexo da água quase transparente que a intensidade inaugurados em 1951.
da luz se faz presente. As pinceladas curtas e a sobreposi-
ção de várias camadas de tinta destacam as figuras que se Amanhecer em Itaipú foi exposta em Porto Alegre em 1953,
encontram no primeiro plano, conferindo-lhes um aspecto durante o IV Salão Oficial de Belas Artes, sendo agraciada
quase palpável, como ocorre com os cestos sobre o primeiro com o “Prêmio Banco do RS / Banco da Província do RS”.
cavalo, à esquerda. A figura central de um dos pescadores O artista ainda participaria, na capital sulina, do I Salão Pan-
chama a atenção não só por sua posição no quadro, mas pelo -Americano, em 1958.
branco intenso da camisa. Assim, o olhar passeia pela pin-
tura, mas retorna magnetizado para deter-se nesse detalhe. Laura Arce
Marinha, de Geraldo Freire de Castro (Rio de Janeiro, RJ, 1914 é particularmente importante. Geraldo Freire de Castro a es-
– Rio de Janeiro, RJ, 1992), participou do V Salão do Instituto trutura a partir de eixos diagonais, dando dinâmica à obra,
de Belas Artes de Porto Alegre, no ano de 1954. Trata-se de apesar de todos os barcos e navios representados estarem
uma obra de viés realista, que representa o final de tarde em ancorados. Rubem Braga, escrevendo sobre o artista, assim
um cais, com os trabalhadores encerrando suas atividades observou: “[...] a própria desarrumação inevitável desses
após um longo dia de trabalho. Não há, no tratamento confe- canteiros parece mobilizar no artista o seu senso de constru-
rido por Geraldo Freire de Castro, a preocupação de idealizar: ção... ‘Deve ser bom, saber fazer um barco’, diz ele [Geraldo
o céu é cinzento, os barcos estão ancorados, e o local parece, Freire de Castro]. Eu faço notar que toda obra de arte é uma
de certa forma, desolado. A pintura provoca um sentimento espécie de barco” (In: CASTRO, 1985, s/p).
ambíguo: ao mesmo tempo em que retrata as imensas em-
barcações, símbolos de progresso e movimento, evoca certa Geraldo Freire de Castro, reconhecido por suas marinhas,
melancolia, acentuada pela cartela de cores rebaixada. também está representado no acervo artístico da Pinacote-
ca Barão de Santo Ângelo com a obra Palhaço, igualmente
O artista constroi sua imagem a partir de grandes áreas de de 1953. Com ela, o artista conquistou o “Prêmio de Honra
cor, adotando a linha apenas para destacar algumas figuras. Estado do Rio Grande do Sul”, no IV Salão Oficial de Belas
Nesse sentido, um aspecto notável é o reflexo dos barcos na Artes do IBA.
água, que confere um sutil estranhamento à obra. Como se
trata de uma pintura de grandes proporções, a composição Laura Clara Gehrke
O pintor, gravador e muralista Danúbio Villamil Gonçalves fosse longe, enquanto o corpo se dedicaria, naquele cenário,
nasceu em Bagé, Rio Grande do Sul, em 1925. No ano de à labuta cotidiana. No entanto, uma certa ambiguidade é re-
1935, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde estudou com forçada pelo gesto de mascar capim: estaria entediado ou
Cândido Portinari (1903–1962) e o escultor August Za- indiferente? Já a camisa simples, entreaberta, e o chapéu de
moyski (1893–1970). Em 1946, frequentou aulas de xilogra- palha, sugerem a sua condição humilde. O feitio das nuvens
vura com Axl Leskoschek (1889–1975), de gravura em metal densas e das águas dos rios dá a impressão de um movimen-
com Carlos Oswald (1882–1971) e de desenho com Tomás to caudaloso. Não se sabe ao certo o local representado pelo
Santa Rosa (1909–1956) (SCARINCI, 1982). Em 1951, funda artista. Entretanto, em 1953, Danúbio conquistou o Prêmio
o Clube de Gravura de Bagé com Glauco Rodrigues (1929– de Viagem ao País, no II Salão Nacional de Arte Moderna do
2004) e Glênio Bianchetti (1928–2014). Foi em xilogravura Rio de Janeiro; essa distinção lhe permitiu visitar diversas
que executou alguns de seus trabalhos mais expressivos e regiões brasileiras, inclusive os estados atravessados pelo
emblemáticos, como as séries Xarqueadas (1953) e Minei- Rio São Francisco, como Minas Gerais, Bahia e Pernambuco.
ros de Butiá (1956). Provavelmente foi a partir dessa experiência que ele desen-
volveu a imagem.
Sobretudo ao longo das décadas de 1940 e 1950, a produ-
ção gráfica de Danúbio Gonçalves foi marcada pela temática Para Danúbio, “[...] a gravura, por sua missão sociológica e
social, expressando sua crença na ideia da arte como ferra- cultural na humanidade, continua insuperada até o presen-
menta de transformação da sociedade. Como sabemos, ele te milênio, podendo expressar algo inesgotável na temática
não estava sozinho. Muitos artistas brasileiros e latino-ame- do cotidiano” (GONÇALVES, 2003, p. 23). As relações de
ricanos, preocupados em fortalecer identidades locais e em Danúbio com o Instituto de Artes se estreitaram quando,
valorizar os trabalhadores, voltaram-se, no período, a proje- pouco tempo depois, lecionou a disciplina de Gravura, entre
tos engajados politicamente e comprometidos, via de regra, 1969 e 1971.
com os propósitos do Partido Comunista. Como indica Aracy
Amaral (2003, p. 175), esses artistas tratavam da vida nas ci- Danúbio foi professor do Atelier Livre da Prefeitura de Porto
dades, das condições dos trabalhadores, do drama humano Alegre entre 1962 e 1995, tendo sido, também, diretor da ins-
decorrente das situações de guerra, das mobilizações clas- tituição. Realizou diversas exposições individuais e coletivas,
sistas e populares, além da exaltação do operariado. Essa com destaque para: 12ª Bienal de São Paulo (1973); Grupo de
concepção de Realismo foi entendida como o ressurgimento Bagé – Mostra do Projeto Cultura da Secretaria de Turismo e
do humanismo na arte, em contraposição ao formalismo e às Educação, em Porto Alegre (1976); Grupo de Bagé no Clube
tendências abstracionistas. E a gravura, devido à sua natu- de Gravura, mostra do projeto Caixa Resgatando a Memó-
reza popular, reproduzível e não elitista, foi uma das expres- ria, em Porto Alegre, Brasília, Curitiba, Rio de Janeiro e São
sões artísticas mais valorizadas. Nesse sentido, a experiên- Paulo (1996–1997); Investigações – A Gravura Brasileira, no
cia do Taller de Gráfica Popular (TGP), surgido no México em Itaú Cultural, em São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro (2000–
1937, foi reveladora para muitos artistas brasileiros, como o 2001). Danúbio Gonçalves recebeu vários prêmios, entre os
próprio Danúbio, participante, no Brasil, dos Clubes de Gra- quais: Prêmio em Gravura no Panorama da Arte Brasileira do
vura de Bagé e de Porto Alegre, francamente inspirados no Museu de Arte Moderna de São Paulo (1974); Prêmio Anu-
TGP e que tinham como uma de suas marcas a ênfase no re- al de Artes Plásticas da Associação Riograndense de Artes
gionalismo, pois a representação dos tipos locais acarretaria Plásticas Francisco Lisboa (1994). O artista lançou os livros
a maior identificação do público com as imagens. Do Conteúdo à Pós- Vanguarda (1995), Processos Básicos
da Pintura (1996) e Ser ou Não Ser Arte (2003). Danúbio
O Pescador do São Francisco (1954) é uma das obras em possui uma produção de painéis e murais, cerâmica e mosai-
que Danúbio enfatiza o homem no seu ambiente de traba- co, como o painel comemorativo ao Centenário da Imigração
lho. Na gravura, vemos a representação de um jovem com Judaica no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, e o mural em
traços típicos de um caboclo: rosto largo, lábios grossos e mosaico da fachada do Santuário do Sagrado Coração de Je-
nariz levemente chato. A luminosidade da cena é generosa, sus (ou Santuário Padre Reus), em São Leopoldo.
percebendo-se o efeito dramático da luz e sombra no rapaz:
seu olhar sugere um pensamento distante, como se a mente Andréia Carolina Duarte Duprat
Glênio Bianchetti (Bagé, RS, 1928 – Brasília, DF, 2014) iniciou madeira e trança tentos (fitas) de couro, criando uma trama
sua trajetória artística na cidade natal, com o chamado Grupo que possivelmente se tornaria um laço utilizado na lida com
de Bagé, formado por jovens aspirantes a artistas, que tinham os animais. Cravada no chão, ao alcance do homem, está a
no escritor Pedro Wayne (1904–1951) e no pintor José Moraes faca, que pode ter sido usada para cortar e alisar os tentos.
(1921–2003) seus mentores sobre arte. Entre os integrantes Suas vestimentas não deixam dúvidas de sua origem: são
estavam Glauco Rodrigues (1929–2004), Clóvis Chagas, Deny peças típicas da indumentária gaúcha; ali estão botas de gar-
Bonorino (1935) e Danúbio Gonçalves (1925). Carlos Scliar rão de potro, esporas, bombacha e chapéu de barbicacho.
(1920–2001) teve uma breve passagem por essa congregação Os detalhes da representação são fruto da observação cui-
artística informal, mas foi fundamental ao transmitir seus co- dadosa, que almejava captar a realidade plenamente, a fim
nhecimentos sobre as tendências em voga na Europa. O “gru- de que a obra transmitisse a cena de modo fiel. Aliás, essa
po” durou poucos anos, desfazendo-se em 1949; entretanto, meta era uma premissa da concepção de realismo adotada
foi o gérmen do Clube de Gravura de Bagé, fundado em 1951 pelos artistas ligados ao Realismo Socialista, que preconiza-
por Glauco, Danúbio e Scliar. Bianchetti também participou do va a exaltação do homem em seu meio, evitando interven-
Clube de Gravura de Porto Alegre, já que havia se mudado para ções subjetivas e experimentações formais que dificultas-
a capital em função do ingresso no curso de Artes Plásticas do sem a apreensão do conteúdo da obra.
Instituto de Belas Artes, em 1947 (SCARINCI, 1982).
Trançando foi exposta no VI Salão do Instituto de Belas Artes,
A técnica da linoleogravura foi a que mais despertou o inte- em 1955, juntamente com Pilão e Sesta, que tratam de as-
resse de Glênio Bianchetti. A matriz em linóleo foi muito em- suntos semelhantes – a primeira representa um peão fazen-
pregada pelos artistas mexicanos do Taller de Gráfica Popu- do a moenda de folhas ou grãos com um pilão de madeira, e
lar (TGP, a instituição que serviu como modelo para os Clu- a segunda, o momento de descanso do trabalhador. Naquele
bes de Gravura), devido ao baixo custo e ao feitio simplificado evento, Bianchetti recebeu a Medalha de Bronze da Seção
dos cortes, favorecendo a aprendizagem e permitindo maior de Gravura e o “Prêmio Banco Industrial e Comercial do Sul”.
número de experimentações. A gravura foi eleita o meio Também foi no ano de 1955 que o artista concluiu o curso de
preferido, por ser reprodutível em vários meios e ser menos Artes Plásticas no Instituto de Belas Artes.
onerosa em relação a outras técnicas, o que propiciava uma
ampla divulgação do trabalho. O tratamento empreendido No ano de 1954, Bianchetti trabalhou no Setor Gráfico da
pelo artista deixa transparecer sua ligação com tendências Divisão de Cultura da Secretaria de Educação e Cultura
expressionistas, e sua temática abarca os interesses do Rea- do Rio Grande do Sul. Assumiu a diretoria do MARGS em
lismo Socialista, adotado pelos Clubes de Gravura, que de- 1960. Um ano depois, mudou-se para Brasília, a fim de co-
terminava como prioridade o conteúdo social e político. laborar com a criação da Universidade de Brasília (UnB),
a convite de Darcy Ribeiro (1922–1997), onde foi profes-
Entre 1952 e 1953, Bianchetti morou em Curitiba, mas reali- sor bastante ativo. Em 1976, encontramos Bianchetti
zou várias obras que representam cenas do interior do Rio como membro fundador do Centro de Realização Criado-
Grande do Sul. No ano de 1951, Danúbio, Glauco, Scliar e ra (CRESÇA), entidade focada na formação de artistas e
Bianchetti passaram um período na estância de Ubirajara educadores. A maior parte de sua produção é em pintura.
Morais, no interior de Bagé, a fim de aprimorar suas habili- Entre suas inúmeras mostras, estão: exposição de pintura
dades artísticas e observar a paisagem e os tipos humanos no MARGS, em Porto Alegre (1959); exposição de pintura
da região, precisamente, a aparência e as atividades dos no Museu de Arte Moderna de São Paulo (1971); Tradições
peões (QUADROS, 2010). Os artistas utilizavam os galpões Gaúchas, Projeto Cultura, Porto Alegre (1976); Grupo de
como ateliês, sobretudo nos dias de chuva, e isso possibilitou Bagé no Clube de Gravura, do Projeto Caixa Resgatando
assistir atentamente a determinados afazeres campeiros, a Memória, em Porto Alegre, Brasília, Rio de janeiro, São
como a confecção artesanal de artefatos de couro. Paulo e Curitiba (1996–1997). Bianchetti faleceu em Bra-
sília, no dia 18 de fevereiro de 2014.
Na gravura Trançando (1955), um peão, absorto em sua
tarefa, encontra-se sentado à frente de uma estrutura de Andréia Carolina Duarte Duprat
O mural cerâmico que hoje fica “escondido” em um vestí- tante episódio da história do Rio Grande do Sul e também
bulo no 8º andar do prédio do Instituto de Artes da UFRGS relacionado à constituição da identidade cultural gaúcha.
ocupava lugar de destaque no momento de sua conclusão.
Em meados da década de 1950, quando, naquele espaço fí- O mural sustenta uma proposta modernista, tanto pela téc-
sico, funcionava o Salão de Festas do antigo IBA, esta obra nica, quanto pela temática. É bidimensional e de linguagem
ornamentava as aberturas que davam acesso àquele espa- bastante enxuta, sobretudo pela simplificação e alongamen-
ço de convívio. Era onde aconteciam importantes encontros to das formas. Com essa obra, Fernando Corona (Santander,
culturais entre a classe artística e o público. Espanha, 1895 – Porto Alegre, RS, 1979), artista e professor,
mostrava as novas possibilidades plásticas da escultura. Sua
Sua temática é sugerida pela caracterização das figuras hu- presença no Salão de Festas do antigo IBA deixa explícita
manas, principalmente pela indumentária da figura mascu- a legitimação da cerâmica enquanto disciplina e, principal-
lina, composta por um chiripá sustentado por uma guaiaca mente, como uma modalidade artística. Naquele momento,
e botas de garrão de potro. A atmosfera mítica é dada pelo ela deixava de ser tratada como “etapa preparatória” da Es-
arranjo das figuras humanas, mostrando seres terrenos na cultura para se tornar uma linguagem reconhecida academi-
base e figuras femininas nuas, em suspenso, na metade su- camente e de apreciação estética em si mesma.
perior da composição, sugerindo divindades. Esse conjunto
remete à cultura das Missões Jesuítico-Guaranis, impor- Cíntia Neves Bohmgahren
Alice Soares nasceu em Uruguaiana, em 1917, vindo a falecer Sevigné, em Porto Alegre, frequentemente desenhava suas
em Porto Alegre em 2005. É figura fundamental no cenário alunas. Essa espécie de estado de graça da infância é marco
artístico sul-rio-grandense, sobretudo no campo da formação do imaginário da artista. É quase como se ela compartilhasse
de gerações de artistas. Em 1943, diplomou-se em Pintura um segredo com as crianças, que a linha suave de suas ima-
pelo IBA; em 1945, começou a lecionar na instituição, enquan- gens, sem pressa, sugere ou revela.
to também era aluna do curso de Escultura, formando-se em
1947. Realizou estudos de pintura com Horacio Juárez (1901– Na pintura Menina e suas bonecas, de 1955, a artista retrata
1977), em Buenos Aires, e com André Lhote (1885–1962), no a sobrinha Moema Soares, aos seis anos de idade. A crian-
Rio de Janeiro, em 1952. Também fez cursos de serigrafia com ça se apresenta sentada com bonecas; o seu rosto possui
Julio Plaza (1938–2003), gravura em metal com Iberê Camar- expressão alegre e confiante. Na composição, observamos
go (1914–1994) e litografia com Marcelo Grassmann (1925– como a escolha cromática da artista se dissolve em brancos
2013). Recebeu vários prêmios em salões nacionais, em dese- e cinzas marmóreos, que, produzidos através da sobrepo-
nho e em pintura. Foi presidente da Associação Riograndense sição da pincelada, proporcionam à pintura uma atmosfera
de Artes Plásticas Francisco Lisboa em 1963, e fundadora e etérea. Em meio ao cinzelado, a menina desponta contra o
primeira diretora da Escolinha de Artes do IA, em 1964. No ano fundo verde e a almofada amarela. Traz, nas duas mãos, bo-
de 1980, recebeu o título de “Professor Emérito” da UFRGS. necas. Uma delas, olhos intensos, tem a boca tapada; a ou-
tra, de costas para o observador, busca o olhar da menina,
A obra de Alice Soares é marcada pela figura feminina e pelo enquanto esta parece sonhar, como se os brinquedos não
exercício permanente do desenho. Escreve, na sua tese de estivessem lá e desejassem sua atenção. A posição do corpo
cátedra Linha: fundamentos do desenho, de 1961, que o de- da pequena retratada confere um jogo de duplos que é usual
senho é a verdadeira fonte da arte, que é a base para a ex- na obra de Alice: a própria menina é também uma boneca,
pressão do artista, que a linha traduz a expressividade da distante e sonhadora.
emoção do artista. Seus desenhos revelam o mistério da
delicadeza. As cores, matrizes e suportes estão sempre em Ao lado da amiga Alice Brueggemann (1917–2001), com
equilíbrio: nada destoa, ainda que, certas vezes, suas obras quem, durante mais de 40 anos, dividiu ateliê, foi uma das
sejam fortemente melancólicas. Se o resultado final exprime precursoras dos veios modernos da arte no Rio Grande do
essa simplicidade, esta é conquistada graças a um trabalho Sul, trazendo um frescor à produção local. As duas trabalha-
meticuloso, um treinamento incansável por meio do dese- ram juntas por décadas, no “ateliê aliciano”, como denomi-
nho, especialmente o “desenho da imaginação”, como a ar- nado carinhosamente pelo professor Ado Malagoli (1906–
tista definia sua prática desde a infância. 1994). No ano de 2013, foram homenageadas com uma ex-
posição no Museu da UFRGS, em Porto Alegre.
Alice adorava desenhar crianças. Quando pequena, retra-
tava suas irmãs; mais tarde, quando foi lecionar no Colégio Sofia Inda
A obra Cabeça de menino, de Alice Brueggemann, participou naturezas-mortas e às figuras femininas. Segundo Neiva
do VI Salão de Belas Artes do Rio Grande do Sul em dezem- Bohns, “[...] seus desenhos e suas pinturas povoaram o
bro de 1955. Trata-se de uma tela com grande economia de universo visual do Rio Grande do Sul de mistério, silêncio
elementos e de evidente expressividade. A figura suave e me- e delicadeza” (BOHNS, 2007, p. 107). Há um viés onírico
lancólica do menino nos captura. É um pré-adolescente que e intimista nas obras da artista, características que se
se encontra imerso em seus pensamentos e cujo olhar se evidenciam ainda mais pela opção por tons rebaixados e
fixa no vazio. Seus ombros parecem relaxados, mas seu ros- pelo emprego da técnica da veladura, que ressalta a sua-
to denota tensão. O rosto, de traços ainda infantis, expressa vidade das figuras representadas, quase sempre imersas
uma preocupação quase adulta. em uma espécie de névoa, conferindo algo de etéreo à
sua poética.
O tratamento do quadro, no que tange à classificação pro-
posta por Heinrich Wölfflin (1864–1945), é pictórico, embora Em 2013, o Museu da UFRGS sediou uma importante ex-
haja o emprego de uma linha tênue. É possível observarmos posição acerca da trajetória da pintora e de sua amiga, Ali-
também uma forte proximidade da obra de Alice com a de ce Soares (1917–2005). Através de documentos, vídeos e
seu principal mestre, Ado Malagoli (1906–1994). Ambos ado- obras, extraídos do acervo do Instituto de Artes e do Museu
tam em seus quadros uma fatura tributária de Paul Cézanne da UFRGS, a exposição apresentou desde a formação das
(1839–1906). Na obra em análise, isso é claramente visível artistas no Instituto de Belas Artes da UFRGS, passando
ao observarmos a textura da pele do retratado, bem como o pelo percurso profissional, chegando à remontagem ceno-
tratamento do fundo, marcados por densas pinceladas. Verifi- gráfica do ateliê que as duas dividiram por mais de 40 anos,
ca-se, também, que o fundo foi trabalhado com planos de cor. na Rua Riachuelo, centro de Porto Alegre. Alice Bruegge-
mann faleceu na capital gaúcha em 2001.
Alice Brueggemann, nascida em Porto Alegre em 1917, e
formada pelo IBA, dedicou sua produção notadamente às Laura Clara Gehrke
Arcangelo Ianelli nasceu em São Paulo, em 1922. Desde cedo de modo sutil, caracteriza a maior parte de sua obra, desde a
desenhava e, em 1944, passou a estudar pintura. Durante fase figurativa até a abstrata.
16 anos, seus trabalhos foram figurativos, flertando com
tendências expressionistas, cubistas e abstratas, até que Além disso, é visível como a geometria se impõe, desde o
descobriu seu principal assunto: a cor. Na década de 1950, início, como suporte para a cor, que é, evidentemente, sua
ele passou a integrar o chamado Grupo Guanabara, junta- maior preocupação. Ele começa geometrizando, em suas
mente com Manabu Mabe (1924–1997), Yoshiya Takaoka primeiras obras, as casas e fábricas da cidade de São Paulo;
(1909–1978), Tikashi Fukushima (1920–2001) e Wega Nery logo após, passa a geometrizar cenas de barcos ancorados,
(1912–2007), entre outros. Entre 1965 e 1967, viveu na Eu- como o exemplo aqui analisado.
ropa, graças ao Prêmio Viagem ao Exterior, obtido no Salão
Nacional de Arte Moderna (1964). Ianelli fez parte de diver- A sensibilidade racional da Marinha é gerada a partir da com-
sos júris de seleção e premiação de salões oficiais brasileiros, posição, pautada na distribuição harmoniosa das cores. Digo
bem como comissões de artes plásticas nacionais (ALMEI- “sensibilidade racional” justamente pela fusão que se obtém
DA, 1976). Está representado em vários museus do mundo, entre o elemento da análise intimista do artista e a busca, for-
tendo participado de mais de cem exposições no Brasil e no mal e organizacional, pela expressão de emoções pela cor.
exterior. Faleceu em 2009, também em São Paulo, produzin-
do até o fim da vida. Na obra, a visão que nos é dada é um recorte específico de
um momento de dois homens e dois morros. É como se os
A obra em destaque indica a transição do artista de sua dois homens, anônimos, estivessem conectados aos dois
fase figurativa, mas já fortemente geométrica, para os morros. São como eles. Existe algo reflexivo nessa imagem,
trabalhos mais abstratos, que desenvolveu a partir da dé- que se desdobra nos morros distanciados um do outro e,
cada de 1960. Marinha passou a integrar a Pinacoteca Ba- portanto, sozinhos, mas que ainda assim são morros, no
rão de Santo Ângelo em 1956, quando recebeu o “Prêmio plural. Consonantes, então, com as representações dos dois
da Província do Rio Grande do Sul”, no VII Salão Oficial de homens, quase alinhados, na diagonal, com a imagem dos
Belas Artes. dois morros, que também se distanciam entre si, mas mes-
mo assim são homens, também no plural.
Essa pintura transmite, antes de mais nada, silêncio, através
de seus tons rebaixados. A sobriedade nas cores, dispostas Natália Lehmen de Moraes
Formado pela Academia de Belas Artes da Ucrânia em 1918, taca pelo tratamento naturalista, pelo volume e sombreado
Dimitri Ismailovitch (Satanov, Ucrânia, 1892 – Rio de Janeiro, delicado, bem como pela fatura pictórica. As mãos postas
RJ, 1976) teve sua obra influenciada tanto pela tradição das delicadamente sobre o regaço e a vestimenta imponente não
artes bizantina e persa, quanto pelas vanguardas modernis- deixam dúvidas: trata-se de uma dama da alta sociedade.
tas da época. Depois de passar por Constantinopla, Grécia
e Estados Unidos, chegou ao Rio de Janeiro em 1927, onde Ismailovitch foi, durante anos, um dos grandes retratistas
foi introduzido ao meio artístico e intelectual pelo escritor desse público, e entre suas obras se destacam o retrato de
Graça Aranha (1868–1931). Naturalizado brasileiro em 1937, Lily de Carvalho Marinho (1961) e do intelectual João Fernan-
foi considerado um mestre da representação naturalista, do de Almeida Prado (1953), talvez suas obras mais conheci-
consagrado por seus retratos, cenas sacras e cotidianas. das. Junto com a obra em destaque, compartilham a postura
Sua participação em importantes salões artísticos do Brasil reservada e o olhar penetrante e seguro.
(Salão Revolucionário na Escola Nacional de Belas Artes, em
1931; Salão Nacional de Belas Artes em 1939, 1952, 1964, O retrato de encomenda, essa “imagem negociada”, para
1966 e 1970; Salão de Belas Artes do Instituto de Belas Artes usar a expressão de Sergio Miceli, geralmente confirma um
do Rio Grande do Sul, em 1939 e 1940, entre outros) foi re- tipo de poder, que pode ser de várias ordens: econômico, cul-
conhecida através de prêmios como a Medalha de Bronze tural ou mesmo físico, relacionado à beleza, como no caso de
no Salão da Sociedade Brasileira de Belas Artes (1948), a muitos retratos femininos. Ele coloca em evidência o status
Medalha de Prata no Salão Nacional de Belas Artes (1964), de seu personagem, um sujeito que se expõe e se identifica.
e a Medalha de Honra no Salão da Sociedade dos Artistas Estando investido pelo uso de seu tempo, o retrato de enco-
Nacionais (1970). Realizou também exposições individu- menda referencia a classe social, o caráter, as inquietudes do
ais, com destaque para as mostras na embaixada norte- retratado em um misterioso monólogo (BULHÕES, 2002).
-americana do Rio de Janeiro (1927) e no Museu de Arte de Esse tipo de obra, também é bom lembrar, pressupõe um
São Paulo (1952). pacto entre “aquele que representa” e “aquele que é repre-
sentado”, entre o que é mostrado e o que é escondido, entre
Encarando o espectador diante de um fundo dourado, a fi- o “desejo de obra”, por parte do artista, e o “desejo de ima-
gura feminina em destaque, pintada por Dimitri Ismailovitch gem”, por parte do retratado (MICELI, 1996).
no Brasil, é um importante exemplar da arte do retrato. Ela
encontra-se centralizada, com o tronco ereto e frontalmente A pintura de Dimitri Ismailovitch passou a integrar a Pinaco-
posicionado, as pernas enviesadas. Altiva, encara o especta- teca Barão de Santo Ângelo em 1955, quando foi uma das
dor, estabelecendo uma relação de cumplicidade e intimida- premiadas no VI Salão Oficial de Belas Artes do Rio Grande
de. É justamente no rosto de feições delicadas que reside a do Sul. Pela obra, o artista recebeu o prêmio intitulado “Cia.
força expressiva do quadro: ele se impõe pela contraposição Previdência do Sul / Banco do RS / Banco Agrícola Mercan-
com o fundo dourado, uma paisagem montanhosa, longín- til”, numa homenagem a algumas das instituições patrocina-
qua e onírica, provavelmente a representação de um biom- doras do evento.
bo com motivos decorativos orientais. Enquanto o fundo do
quadro é eminentemente gráfico, a figura feminina se des- Lais Stell Rizzato
Pintor, ilustrador e professor, João Fahrion (Porto Alegre, encontramos suas imagens nas capas da Revista do Globo
RS, 1898 – Porto Alegre, RS, 1970) é dos nomes mais impor- (1929–1967), também um importante veículo de divulgação
tantes do cenário artístico do Rio Grande do Sul na primeira de seu trabalho como retratista (RAMOS, 2007).
metade do século XX. Iniciou seus estudos com Giuseppe
Gaudenzi (1865–1941), junto ao Instituto Técnico Parobé, No Retrato de Maria José Cardoso, como em muitas outras
da Escola de Engenharia. Em 1920, foi agraciado com uma obras de Fahrion, pode-se perceber a conciliação entre as
bolsa de estudos do então governador Borges de Medeiros tradições gráfica e pictórica do artista. Enquanto a figura é
(1863–1961), para aperfeiçoar-se na Alemanha, onde se trabalhada com requintada técnica de pintura, o fundo é emi-
dedicou, sobretudo, à litografia e à pintura. Envia trabalhos, nentemente gráfico. O rosto e, sobretudo, o olhar da modelo,
ainda na Europa, para o Salão Nacional de Belas Artes (RJ), assim como a maioria das retratadas por Fahrion, sugere um
recebendo, em 1922, Medalha de Bronze pela pintura Velha estado de melancolia e distanciamento. Acerca disso, Maria
holandesa. Em 1924, no mesmo salão, leva a Medalha de Amélia Bulhões, em estudo sobre o universo feminino de
Prata por Retrato de senhora. A partir de então, sistemati- Fahrion, afirma: “[...] o olhar de suas retratadas quase sem-
camente, vai conquistando prêmios e distinções: em 1939, pre se mostra distante, perdido em devaneios imaginários.
Prêmio Hemisfério Ocidental para o Retrato de Eunice Costa, Entretanto, o rosto não é somente uma forma plástica na
no Salão Nacional de Belas Artes (RJ); em 1940, Medalha de tela, mas um sujeito em si, em seu momento de pausa. [...] A
Ouro no II Salão de Belas Artes do Rio Grande do Sul, com as roupa negra, que envolve muitas delas, permite que o rosto
ilustrações realizadas para o livro Noite na taverna, de Álva- faça uma aparição, como se entrasse em cena por uma pe-
res de Azevedo, publicado pela Editora Globo em 1952; ainda quena fenda” (BULHÕES, 2002, p. 20).
em 1940, Prêmio Aquisição no Salão Nacional de Belas Artes
(RJ), com a obra Interior com figuras; em 1944, Medalha de Outra característica da obra do artista é o uso eloquente de
Prata no Salão Nacional de Belas Artes (RJ), com a litografia elementos decorativos, como vasos, flores, tecidos. No caso
Modinha; em 1953, Prêmio Aquisição no Salão Nacional de de Maria José Cardoso, eleita Miss Brasil em 1956, temos
Belas Artes (RJ), com a obra Mulher com véu rosa. a representação da escultura Adeus, de Humberto Cozzo
(1900–1981), à direita, que já integrava a coleção da Pinaco-
Professor do Instituto de Belas Artes a partir de 1937, as- teca Barão de Santo Ângelo, e a revista nas mãos da retrata-
sumindo o lugar do tcheco Francis Pelichek (1896–1937), da. O elemento mais marcante, todavia, é o fundo, trabalha-
Fahrion formou gerações e foi o principal retratista da elite do com figuras femininas estilizadas junto à natureza e que
porto-alegrense durante as décadas de 1940 e 1960. Assim remetem, por sua vez, a outras obras que Fahrion estava pro-
como Di Cavalcanti (1897–1976) e vários outros artistas do duzindo naquele mesmo período, como as pinturas murais
início do século XX, começou sua trajetória como ilustrador, junto ao 8º andar do Instituto de Artes e à Reitoria da UFRGS,
neste caso, junto à “Secção de Desenho” da antiga Livraria na sala que hoje leva seu nome.
do Globo, onde produziu centenas de vinhetas, anúncios
publicitários e ilustrações para livros e revistas. Já em 1929, Sofia Inda
Ado Malagoli (Araraquara, SP, 1906 – Porto Alegre, RS, 1994), to. Paul Cézanne (1839–1906), Edgar Degas (1834–1917) e,
sem sombra de dúvida, pode ser considerado um dos grandes principalmente, Pablo Picasso (1881–1973), representaram
pintores brasileiros. Durante toda a sua trajetória, realizou um várias vezes sua figura. Na arte brasileira, ele pode ser en-
trabalho de altíssima qualidade, imprimindo personalidade e contrado na obra de artistas como Di Cavalcanti (1897–1976)
um estilo próprio à sua pintura. Diplomou-se em Artes Decora- e João Fahrion (1898–1970), enquanto o modernista Mário
tivas na Escola Profissional Masculina e cursou o Liceu de Ar- de Andrade (1893–1945), por exemplo, definia-se como uma
tes e Ofícios em São Paulo. Posteriormente, transferiu-se para “criatura arlequinesca”. O próprio Malagoli representou rei-
o Rio de Janeiro, onde ingressou na Escola Nacional de Belas teradas vezes esse personagem, como nas telas de 1945 e
Artes e participou do Núcleo Bernardelli, que ajudou a consoli- 1982, ambas com o mesmo título, Arlequim, e em A Queda,
dar o modernismo na cidade. Foi para os Estados Unidos, onde de 1983 (na qual também aparece um gato preto).
cursou por dois anos o Fine Arts Institution of the University of
Columbia e realizou estudos em História da Arte e Museologia. Na obra em questão, visivelmente cingida por ecos cubistas,
Veio para Porto Alegre a convite de Angelo Guido (1893–1969) temos a representação de um arlequim sentado de modo de-
em 1952, quando passou a lecionar no Instituto de Belas Artes, sajeitado sobre uma mesa, na qual repousam uma garrafa, um
sendo um dos principais responsáveis pela revitalização do en- copo, um manto branco e, em um dos cantos, um gato preto.
sino nesta instituição. Foi o idealizador e o primeiro diretor do O fundo é trabalhado de modo quase abstrato, com planos de
Museu de Arte do Rio Grande do Sul, que hoje leva seu nome. cor de paleta rebaixada. Já o primeiro plano, no qual despontam
os elementos citados, é luminoso, marcado por uma pincelada
Fiel ao princípio de que o essencial para a arte é a própria arte, densa, tributária de Cézanne. O caráter pictórico da tela, com
Ado Malagoli certa vez afirmou, em entrevista a Jacob Klin- suas camadas revelando-se umas sob as outras, potencializa
towitz, que “[...] A obra de arte surge da aptidão do artista na o aspecto melancólico da composição. O arlequim silencioso,
seleção dos seus principais elementos expressivos, isto é, da de olhar distante e hamletiano, é representado sério, talvez um
forma, cor, composição e matéria” (In: KLINTOWITZ, 1985). pouco triste, com a cabeça levemente inclinada e os braços cru-
Malagoli procurava ser contemporâneo, porém sempre per- zados, numa postura introspectiva, como que congelado num
maneceu fiel ao rigor técnico da “tradição acadêmica” da pin- tempo e espaço indefinidos. A bebida junto à mesa reforça o
tura; e embora, algumas vezes, os temas representados apon- aspecto boêmio da figura.
tem um certo caráter regional, sua obra é universal. Analisando
o conjunto de seu trabalho, percebemos uma obsessão pelo Em Ado Malagoli, como já apontamos, é constante a presença
passado, certo saudosismo. Para José Luiz do Amaral, nas te- das figuras do arlequim e do gato preto, e, nesta obra, em es-
las de Malagoli encontramos uma “[...] síntese tensa e proble- pecial, encontramos ambas, possibilitando estabelecer uma
mática entre o que foi e o que vai ser” (In: KLINTOWITZ, 1985, relação dialética sobre o significado de suas representações.
p. 26). Ele foi um homem de seu tempo, sensível aos dramas Popularmente, o gato preto está associado a azar, enquanto o
humanos, colocando-os em destaque em suas obras, como arlequim à alegria. Contudo, o animal também poderia evocar
um pensador, numa dimensão quase metafísica. Para Walmir boas novas, assim como o arlequim poderia remeter a um pa-
Ayala, o pintor era um: “[...] observador valoroso do mundo em lhaço triste. O artista explora essa dubiedade: seu arlequim é
transformação, guardião de uma memória afetiva da paisa- tanto um “malandro inquieto”, como um “palhaço triste”, e pode
gem e do ser humano” (AYALA, 1986, p. 30). E preferia, como ser pensado como uma construção da memória, em que não
revelou em entrevista a Paulo Cabral, em dezembro de 1942, há um tempo definido, mas uma montagem de tempos hetero-
destacar o humano: “A paisagem é bela. Mas a figura humana é gêneos e descontínuos, que se conectam e se interpenetram.
tudo. Seus contornos, permitindo uma interpretação humana
daquilo que se pinta, os traços psicológicos, característicos de Em 1956, no VII Salão Oficial de Belas Artes do Rio Grande
cada um, nada é mais sublime” (In: KLINTOWITZ, 1985, p. 119). do Sul, Arlequim e gato preto recebeu o “Prêmio Cia. Previ-
dência do Sul/Banco Comercial e Industrial do Rio Grande
Observando Arlequim e gato preto, estamos diante de uma do Sul”, passando a integrar a Pinacoteca Barão de Santo
das muitas representações deste personagem da Comme- Ângelo e sendo exibida, desde então, nas várias mostras or-
dia dell’Arte, bastante popular no início do século XX, visto ganizadas a partir desse rico acervo.
como sedutor, amante e dançarino, mesmo que, original-
mente, suas características estivessem associadas ao opos- Elvio Rossi
Com formação autodidata, Carlos Alberto Petrucci (Pelotas, Jovem sentado, de 1956, dialoga com a sua produção de
RS, 1919 – Porto Alegre, RS, 2012) construiu sua trajetória característica mais realista. Em primeiro plano, vemos a
como pintor, desenhista e cenógrafo, em paralelo ao seu tra- figura de um rapaz sentado de modo frugal, rosto baixo
balho junto à Secretaria Estadual de Obras Públicas. Sua pri- e olhar melancólico, cujos traços faciais longilíneos lem-
meira individual aconteceu na Galeria do Correio do Povo, em bram os personagens de Amedeo Modigliani (1884–1920).
1947. Expôs no I Salão Moderno de Artes Plásticas (1942), Ele traz as mãos cruzadas sobre as pernas abertas despo-
bem como no IV Salão de Arte da Associação Riograndense jadamente, enquanto, à esquerda, vemos um fragmento
de Artes Plásticas Francisco Lisboa (1942) e no III Salão de de porta na diagonal.
Belas Artes do Rio Grande do Sul (1943) – no qual recebeu
Medalha de Bronze em Pintura –, ganhando destaque no Na poética de Petrucci, a obra dialoga formalmente com seus
campo artístico gaúcho. Participou ativamente do Clube da retratos, que mesmo reduzidos, constituem, na opinião de
Gravura de Porto Alegre, bem como da Chico Lisboa, tendo especialistas, sua produção mais pungente, captando a per-
sido seu presidente entre 1953 e 1954. Após uma fase abs- sonalidade, os gestos e as expressões dos representados.
tracionista, nos anos 1960 e 1970, passou a se dedicar à pin- Como aponta Susana Gastal, “[...] os retratos talvez sejam a
tura hiperrealista, sobretudo de paisagens urbanas. Sobre parte mais viva e significativa de sua obra” (GASTAL, 1997,
essa produção, Fernando Corona (1895–1979) escreveu, em p. 14). Jovem Sentado, em seu tratamento formal, aproxima-
1976: “Petrucci pintou as casas como elas são na realidade, se dessa vertente, sobretudo se o compararmos com os re-
imprimindo-as de verdades subjetivas que encantam. [...] tratos do crítico de cinema Paulo Fontoura Gastal e do ator
Entrou na madureza pela força de quem domina desenho e José Lewgoy, ambos de 1947.
técnica como poucos” (In: ROSA & PRESSER, 2000, p. 405).
Jovem sentado, assim como os retratos citados e demais
O trabalho de Carlos Alberto Petrucci, que ele próprio gostava obras do mesmo período, mostra-nos um Petrucci que bus-
de qualificar de “amador” – no sentido de não ter sido fonte de cou amadurecer permanentemente na técnica. Como um
seu sustento pessoal –, é marcado pelo rigor técnico e pela ex- artista de alma inquieta, não teve medo de experimentar as
perimentação com distintos materiais. O artista, que produziu possibilidades que estavam à sua frente, sempre em busca
em desenho, aquarela, têmpera e óleo, primava pela excelên- de uma identidade artística, que se revelou marcante nas ar-
cia: “Porque a coisa pela qual o artista é realmente responsá- tes plásticas do Rio Grande do Sul.
vel é o rigor técnico. Talento é a parte discutível, a gente nunca
sabe se tem ou não” (In: GASTAL, 1997, p. 11). Laís Stell Rizzato
Guido Pelegrino Viaro, pintor, desenhista, gravador e pro- A cena que Guido Viaro representa é o momento em que o santo
fessor de arte, foi um dos pioneiros do modernismo no profere o chamado “sermão aos pássaros”. Segundo Jacopo de
Paraná. Nascido na Itália, em Badia Polesine, 1897, ele se Varazze, “[...] com simplicidade de uma pomba, o beato Fran-
transferiu para o Brasil em 1927, estabelecendo-se em cisco convidava todas as criaturas ao amor do Criador. Prega-
Curitiba (PR) em 1929, onde permaneceu até o final de sua va aos pássaros, que o escutavam, deixavam-se tocar por ele
vida, tendo exercido a docência junto à Escola de Música e só se retiravam depois de ter recebido sua permissão.” (VA-
de Belas Artes do Paraná. Em 1942, recebe Medalha de RAZZE, 2011, p. 842). Expressando uma profunda sensação de
Bronze no Salão Nacional de Belas Artes, bem como, ao comunhão com a natureza, Viaro representa o santo com as
longo das décadas de 1940–1960, várias outras premia- mãos sobre o peito e o rosto calmo. Isso garante a sensação
ções, em salões organizados em São Paulo, Rio de Janei- de ternura e cumplicidade que parece envolver a imagem.
ro, Rio Grande do Sul e Paraná. Em 1946, ao lado de Poty
Lazzarotto (1924–1998), Viaro trabalha como ilustrador Na sua materialidade, a obra apresenta elementos da gravu-
da revista Joaquim, editada em Curitiba. Em 1975, na ca- ra e da técnica do scratchboard, comumente aplica às artes
pital paranaense, é inaugurado o Museu Guido Viaro, que gráficas. Percebe-se que o artista utilizou instrumentos para
preserva parte importante de seu legado. desbastar a linha e as manchas, iluminando a obra e dando
movimento à figura principal. Por outro lado, tais desgastes
Guido Viaro se dedicou a cenas da cidade de Curitiba, re- também harmonizam as cores, como se os mesmos tons
tratos e, inclusive, narrativas religiosas. É o caso da obra terrosos conferidos à paisagem, na qual a figura humana
em destaque, uma representação de São Francisco de As- está inserida, dialogassem com a cor da túnica do santo. O
sis (1182–1226), um dos santos mais populares da Igreja movimento do corpo de São Francisco, em suave diagonal,
Católica. A tradição de obras sobre o santo vem de longa e a posição da árvore, também contribuem para a dinâmica
data. Exemplos são os ciclos narrativos junto à Capela e a circularidade da imagem. Como o santo apresenta-se
de São Francisco em Assis, Itália, obra prima de Giotto envolto pelos galhos, a sensação é de que tanto a árvore
(1267–1337), assim como as famosas pinturas de Giovan- como os pássaros se movem para ouvi-lo, da mesma forma
ni Bellini (1430–1516), representando o santo em êxtase que ele se move para estar no meio deles e ser como eles.
com a natureza, ou as de El Greco (1541–1614), marcadas
pelo furor místico em torno de São Francisco. Natália Lehmen de Moraes
Alfredo Guido (Rosario, Argentina, 1892 – Buenos Aires, Ar- ção entre essa figura “contemporânea”, que morre alvejada
gentina, 1967) foi pintor, gravador, ilustrador, ceramista, mu- de braços abertos, com a figura de Jesus Cristo. No lado di-
ralista, cenógrafo e decorador. Estudou na Academia Nacio- reito, surge a representação de um banquete entre membros
nal de Belas Artes de Buenos Aires e participou ativamente de uma nobreza, tendo sobre eles o que poderia ser identifi-
do desenvolvimento do ambiente artístico em que estava in- cado com o “inferno”, com a presença de um ser demoníaco
serido, juntamente com outros artistas. Recebeu vários prê- de grande estatura e feições simiescas. Há também outros
mios nacionais e internacionais; escreveu artigos e ministrou elementos terrificantes, como a roda de torturas, correntes,
conferências sobre temas relacionados à problemática artís- seres aprisionados em jaulas e figuras sinistras.
tica. Foi ilustrador de diversas obras literárias, como Martin
Fierro, Facundo, La Guerra Gaucha, entre outras. Estudou as Na parte superior da gravura, no centro da imagem, em meio
origens da arte inca e sua iconografia, aspectos que apare- ao torvelinho de personagens e situações, aparece a repre-
cem em algumas de suas obras. sentação de Cristo carregando a cruz, auxiliado por Simão
Cirineu; ambos estão amparados por anjos, sendo que um
A gravura em metal intitulada Vía Crucis – Cristo y el Cireneo deles brande uma espada. Esses personagens são represen-
representa bem o estilo pessoal do artista argentino, cuja tados numa área de transição, não só entre a terra e o céu,
produção está, em sua grande maioria, voltada à busca ou mas também entre o inferno e o paraíso, num local de dis-
à retomada de uma identidade latino-americana. A obra pas- puta entre o bem e o mal, entre o pecado e a salvação, entre
sou a integrar a Pinacoteca Barão de Santo Ângelo em 1958, os demônios e os anjos. No lado esquerdo, novamente há a
após ter conquistado a Medalha de Prata da Seção de Gravu- representação do “inferno”; ali encontramos uma criatura
ra do I Salão Pan-Americano. grotesca dotada de sorriso maligno (muito semelhante às
iconografias da arte pré-colombiana), e envolta em figuras si-
Num primeiro e rápido olhar, a imagem remete às compo- nuosas que lembram serpentes; também temos imagens de-
sições de Hieronymus Bosch (1450–1516), bem como aos moníacas sendo consumidas pelas chamas. Já no lado direito,
impressos que circularam na América colonial, com repre- um anjo de asas abertas e acolhedoras, como se estivesse
sentações escatológicas sobre os últimos momentos do ser esperando a chegada de Cristo; este, por sua vez, está sendo
humano, enfatizando aspectos como a morte, o juízo final, conduzido pelas demais figuras angelicais à glória do paraíso.
o inferno e, com sorte, a salvação. No entanto, a gravura
de Guido é marcadamente expressionista, e tanto a técnica Na representação de Alfredo Guido, tempos e referências
adotada – a água tinta, com suas texturas e densidades –, se sobrepõem: as passagens bíblicas confundem-se com
como a forma de representar passagens e fragmentos – so- cenas contemporâneas à época da execução da obra. Cristo
brepostos, encadeados – o revelam. passa com sua cruz em meio à violência, à crueldade, às bru-
talidades e à guerra, lembrando que o mundo então acabava
Na parte inferior, encontramos a representação do mundo de sair de um conflito bélico de proporções mundiais, com
terreno, no qual, no lado esquerdo, identificamos um fuzi- milhares de mortes, campos de concentração, verdadeiros
lamento que nos remete, de modo inconteste, à pintura Os “infernos na Terra”. Ao sobrepor esses tempos, Guido atuali-
Fuzilamentos de Três de Maio (1814), de Francisco de Goya za as diversas narrativas e lhes confere humanidade e emo-
(1746–1828), podendo também fazer referência a uma das ção, sentimentos que tocam o observador.
tantas execuções ocorridas na América espanhola, durante
o período da conquista; há, igualmente, uma clara associa- Elvio Rossi
Objetos inanimados são representados nas artes plásticas outros artistas uruguaios, defendeu a abstração e o expe-
desde a Idade Média, porém foi em meados do século XVI rimentalismo, procurando aproximar a produção local ao
que a “natureza-morta” emergiu como gênero artístico inde- que estava sendo feito em esfera internacional. Suas obras,
pendente e, desde então, oscilou entre momentos de aceita- grandemente influenciadas pelo Cubismo e pelo Expressio-
ção e de negação. Os elementos escolhidos para essas com- nismo, atestam o momento de transição verificado na arte
posições são geralmente mesas com comidas e bebidas, latino-americana.
flores, frutas, louças, entre outros, e se referem ao ambiente
privado, à esfera doméstica. Caravaggio (1571–1610) foi um A pintura representa mais do que uma simples natureza-
dos pioneiros na revitalização do gênero, e com Paul Cézan- morta, mas todo um ambiente interno, no qual aparece uma
ne (1839–1906) a natureza-morta ganhou outra dimensão, mesa, tendo sobre ela vasos com flores e plantas; uma garra-
atravessando a arte moderna e aparecendo nas compo- fa, emoldurada ao fundo por um armário, sobre o qual estão
sições cubistas de Pablo Picasso (1881–1973), Juan Gris mais dois vasos; uma parede com um grande relógio e, ao
(1887–1927) e Georges Braque (1882–1963), bem como na lado, uma janela com a veneziana entreaberta. Neste quadro
obra de Giorgio Morandi (1890–1964). de grandes dimensões, a composição se aproxima bastante
das naturezas-mortas dos pintores cubistas, pela disposi-
A Natureza-morta do pintor uruguaio Julio Verdié (1900– ção angular e geométrica dos seus elementos. É evidente a
1988) é um importante exemplo desse gênero na Pinacote- noção de volume, impressa pelo vigor das pinceladas, en-
ca Barão de Santo Ângelo. A obra de Verdié ganhou o Prê- quanto delicados traços desenhados formam o contorno de
mio Aquisição conferido a artistas estrangeiros pelo Banco alguns objetos, produzindo transparências que se opõem à
da Província do Rio Grande do Sul, no I Salão Pan-America- dureza da matéria.
no de 1958, organizado pelo IBA. Por ocasião do certame,
Fernando Corona (1895–1979), um dos defensores e incen- A escolha das cores que contrastam e, ao mesmo tempo,
tivadores da arte moderna na instituição, elogiou as obras dialogam entre si, ao lado das diversas tonalidades, e a dis-
expostas pelos artistas uruguaios e argentinos, destacan- posição dos elementos na tela, criam a atmosfera própria
do sua inovação, num momento em que a maior parte dos de um ambiente interior, porém iluminado por uma luz ex-
professores e alunos da escola ainda eram adeptos de um terior difusa, que entra pela janela e se reflete nos objetos.
estilo mais convencional. A sobreposição dos elementos, que aparentemente poderia
confundir e embaçar a noção de espaço, extrapolando a tela
Verdié – que, além de artista plástico, era novelista, poe- além de sua moldura, cria uma espécie de ilusão espacial, e
ta, e dramaturgo – foi um dos grandes nomes das artes no a cena vai sendo montada aos poucos pelo espectador, ao
Uruguai e na América Latina. Durante sua trajetória, combi- observar a obra.
nou os interesses plásticos com suas inquietudes literárias,
colaborando ativamente em diversas revistas. Junto com Elvio Rossi
Formado em Arquitetura (1933) pela Escola Nacional de O período de atuação de Vasconcellos como arquiteto e pin-
Belas Artes (ENBA), no Rio de Janeiro, Ernani Mendes de tor é de significativa efervescência. Havia, de um lado, artis-
Vasconcellos (Rio de Janeiro, RJ, 1912 – Rio de Janeiro, RJ, tas que defendiam arduamente a figuração, sobretudo a de
1988) frequentou essa tradicional instituição no período em temática social. E havia outros que buscavam um diálogo
que foram realizadas importantes reestruturações curricu- com as correntes construtivistas e abstrato-geométicas in-
lares, encabeçadas pelo seu diretor, o arquiteto Lúcio Costa ternacionais, em voga desde os anos 1920.
(1902–1998). Embora sua passagem à frente da ENBA te-
nha sido meteórica (1930–1931), Costa introduziu o debate Em Composição, o artista apresenta uma estrutura de linhas
sobre a arquitetura moderna, graças à contratação de Gre- e planos de cor, de aparência não tão calculada e chapada. Os
gori Warchavchik (1896–1972) como professor. Warchav- tons oscilam entre vermelhos, terrosos e escuros, e as formas
chik é o autor, entre outros, da chamada Casa Modernista, são menos geometrizadas que as verificadas em obras con-
considerado o primeiro projeto com linhas modernas no cretistas, regidas pela precisão e pela matemática; veem-se,
País (São Paulo, SP, 1928), e da Casa da Rua Itápolis (São por exemplo, linhas não tão retas e hachuras. Observa-se,
Paulo, SP, 1930), outro marco nesse segmento. E ele foi pro- também, uma aproximação com os trabalhos desenvolvidos,
fessor, assim como Lúcio Costa, de nomes como Oscar Nie- desde 1951, no Atelier Abstração, fundado e coordenado por
meyer (1907–2012) e Ernani Mendes de Vasconcellos, autor Samson Flexor (1907–1971) na capital paulista. A produção
da obra em destaque. desse grupo apresenta, segundo Maria Alice Milliet, uma “li-
nha de menor rigidez programática” ou, como escreveu o pró-
Costa, Niemeyer e Vasconcellos, junto com outros arquite- prio Flexor, em um convite para a terceira exposição do grupo,
tos e tendo a consultoria do suíço Le Corbusier (1887–1965), preservados “tanto dos exageros esterilizantes dum geome-
trabalharam no histórico projeto para o antigo Ministério da trismo simplista ou industrial, quanto da delinquência dos jo-
Educação e Saúde Pública (1937–1945), no Rio de Janeiro, gos arbitrários do pincel” (In: AMARAL, 1998, p. 83).
então Capital Federal. Conhecido como Palácio Capanema,
o prédio é um marco da arquitetura modernista brasileira, A tela de Vasconcellos recebeu, em 1958, a Medalha de Prata
trazendo painéis azulejares e murais de Cândido Portinari no I Salão Pan-Americano do Instituto de Belas Artes, mo-
(1903–1962), bem como esculturas de Bruno Giorgi (1905– mento em que dialogou com as produções de artistas argen-
1993), Adriana Janacopulos (1892–1978) e Celso Antonio tinos e uruguaios, muitos dos quais herdeiros do legado de
(1896–1984). O edifício tem sua relevância ampliada ainda Joaquín Torres García (1874–1949).
mais devido ao momento histórico em que foi inaugurado:
durante o Estado Novo. Carolina Sinhorelli Oliveira
Expressando um misto de imponência e serenidade, a ção de modelo vivo. É possível identificar nesta escultura sua
Figura feminina de Dorothea Vergara captura de modo relação com a matriz realista de parcela significativa da arte
indubitável a atenção do observador. Feita em gesso, a moderna, tendência da metade do século XX.
grandiosa escultura remete à tradição clássica, tanto por
se tratar de um nu, como pela materialidade do gesso, que Dorothea Vergara Pinto da Silva (Porto Alegre, RS, 1923),
em sua alvura busca aproximação com o mármore, como escultura, desenhista e professora, ingressou no Instituto
pelas proporções equilibradas e pelo modo de representa- de Belas Artes em 1942, tendo se diplomado em Pintura em
ção do corpo, referenciando o cânone de Policleto: tensão 1944 e em Escultura em 1947. Em 1967, depois de ter traba-
e repouso. No entanto, independente dessa referência, a lhado como voluntária na mesma instituição, assume como
artista estabelece um elo com a escultura moderna, gra- docente, substituindo o antigo mestre Fernando Corona
ças às formas simples e despojadas, longe de excessos. (1895–1979) até 1991. No IBA, foi Professora Titular das dis-
De acordo com Paulo Gomes, a monumental figura de Do- ciplinas de Escultura e Teoria e Técnica dos Materiais. Tam-
rothea Vergara é “[...] sintética e econômica como as obras bém lecionou artes no interior do Rio Grande do Sul: fundou
de seu professor, Fernando Corona” (In: 100 Anos de Ar- e ministrou as disciplinas de Escultura e Modelagem na Es-
tes Plásticas no Instituto de Artes da UFRGS: três ensaios, cola Superior de Belas Artes Santa Cecília, em Cachoeira
2012, p. 59). do Sul (1964–1966), bem como a disciplina de Escultura na
Universidade Federal de Santa Maria (1964–1975). Nunca
Observando com atenção a figura, é possível identificar, no expôs individualmente.
rosto, traços que ora lembram características indígenas,
ora africanas. A escultura traz, portanto, esse elemento Com sua Figura feminina, a artista conquistou a Medalha de
constitutivo do próprio povo brasileiro: a miscigenação. Por Ouro na Seção Escultura do I Salão Pan-Americano.
outro lado, apesar da solidez, expressa forte feminilidade.
Seu olhar, um tanto distante, sugere-nos uma atitude na- Na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo do Instituto de Artes,
tural, como se a artista tivesse capturado um momento de há outras quatro esculturas suas, todas em gesso, referen-
abstração e devaneio. Não há qualquer ação ou narrativa ciando a matriz clássica, tão presente em sua formação.
sugerida; a figura simplesmente mostra-se, ereta, mas leve,
referenciando a prática da modelagem a partir de observa- Laura Arce
O mural localizado na atual Sala 81 do prédio do Instituto de A ambiência se caracteriza por elementos cênicos dispersos
Artes da UFRGS foi executado entre 1957 e 1958, no espaço no espaço. Ao fundo e nas laterais, os ambientes menores
que então abrigava o Salão de Festas do IBA e que seria um ficaram apenas sugeridos, por meio daquelas formas orgâ-
dos palcos, em abril de 1958, do I Congresso Brasileiro de nicas constituídas de zonas monocromáticas mais escuras,
Arte. Ali, João Fahrion (Porto Alegre, RS, 1898 – Porto Ale- nas quais as personagens parecem posar intencionalmente
gre, RS, 1970) desenvolveu sua pintura etérea, marcada por para a contemplação do observador.
adoráveis figuras femininas convivendo em uma atmosfera
fantástica, composta por vários planos sobrepostos. As mulheres de Fahrion, criadas para o espaço do Salão de
Festas, parecem seres etéreos da mitologia grega: são como
A cena é constituída por um conjunto de figuras de um colo- “musas”, divindades “inspiradoras da arte, sobretudo da mú-
rido sutil, que se sobressai do fundo branco da parede, em sica e da poesia”.
um ambiente excessivamente iluminado pela luz natural. Li-
nhas bem definidas, escuras e contínuas sobre a superfície Assim como o painel de azulejos com as moças junto à fonte,
de cores pálidas variam suas espessuras ao longo da área. localizado no mesmo andar do Instituto de Artes, na área do
Cores pouco contrastantes entre si foram trabalhadas so- antigo bar, esta pintura tem estreita relação com o desenho.
bre um fundo acinzentado, para que as silhuetas humanas As linhas têm aqui a função construtiva de delinear as silhue-
em branco estivessem em evidência. A volumetria é alcan- tas, mas nem todas determinaram os limites plásticos das
çada pelo efeito de luz e sombras, no preenchimento dos superfícies. Não obstante, o contorno continuou presente,
planos configurados pelas manchas de cor, praticamente como o elemento compositivo dominante.
sem variação de tons.
Em sua visualidade que remete ao déco, o mural As Musas
As figuras femininas, em corpos muito claros, são longilí- ecoa nas pinturas que Fahrion produziu junto à Reitoria da
neas, esguias, em mantos e vestes esvoaçantes, de cores UFRGS, na sala multiuso que hoje leva seu nome. Figuras fe-
esmaecidas. As posturas são descontraídas, em gestos mininas semelhantes também podem ser verificadas no Re-
amplos e lânguidos. As moças têm o semblante tranquilo, trato de Maria José Cardoso, outro destaque da Pinacoteca
algumas delas, quase apáticas. No primeiro plano, vemos Barão de Santo Ângelo.
uma mulher que se ajoelha, reverenciando outra que, por
sua vez, retribui, empunhando-lhe a mão sobre a cabeça. Cíntia Neves Bohmgahren
O mural As artes foi criado por Aldo Locatelli (Bérgamo, Itá- composto pelo Desenho, na base; pela Escultura, ao centro;
lia, 1915 – Porto Alegre, RS, 1962) no mesmo período de As pela Pintura, ao fundo e à direita.
musas, de João Fahrion (1898–1870). E, não somente isso,
no mesmo espaço: onde funcionava o Salão de Festas do As regiões de tons médios da pintura, logo à direita do CAP,
IBA, no 8º andar. Assim como a obra de Fahrion, foi conce- figuras humanas, em posturas e gestos, tributadas com ob-
bida para as festividades do cinquentenário de fundação da jetos – instrumentos musicais –, indicam atividades caracte-
escola, ocorrido em abril de 1958. rísticas do Curso de Música. No mural, Locatelli apontou os
cursos vigentes na época, a saber: Harpa, Violino, Violonce-
O mural é marcado por dois núcleos figurativos em sua zona lo, Flauta, Canto e Piano. No primeiro plano desse conjunto,
central e equilibrado por outros dois polos menores, em co- está mais uma imagem feminina sentada ao chão, em postu-
res fortes, nas extremidades laterais. No núcleo central da ra contemplativa, “[...] com a qual Aldo homenageia o públi-
composição, Locatelli representou o Professor Fernando Co- co”, nas palavras de Cirio Simon.
rona (1895–1979), retratado de perfil e com um esteco em-
punhado, a modelar o busto do também artista José De Fran- Nas extremidades laterais da composição, o artista profes-
cesco (1895–1967), seu contemporâneo. Corona foi coloca- sor representou o amparo político-administrativo da institui-
do entre estudantes e colegas de profissão, indicados pelas ção. À esquerda da cena, as efígies retratam os três integran-
duas imagens femininas, a sua direita, e a masculina, atrás tes do Conselho Técnico Administrativo (CTA) do IBA, na-
dele. Estes personagens retratados são Maria José Cardoso, quele momento: Tasso Corrêa (1901–1977), diretor, na base;
eleita Miss Brasil em 1956, à esquerda, e Círio Simon (1936), o arquiteto e professor Ernani Corrêa (1900–1982) – irmão e
logo atrás. Assim, foi representada a disciplina de Escultura, parceiro profissional de Tasso –, no seu lado direito; e o pintor
ministrada no Curso de Artes Plásticas (CAP) do IBA. O retra- e professor João Fahrion (1898–1970), no topo da tríade. Na
to de Círio Simon, que na época estava em formação no CAP, extremidade oposta, Locatelli colocou os médicos Olympio
representava a própria categoria dos estudantes, agentes de Olintho de Oliveira (1865–1956), caracterizado pelos óculos
indubitável importância para a constituição, consolidação e de grau e o barrete cobrindo a cabeça, com metade do ros-
permanência da escola (SIMON, 2009). À direita, a figura do to escondido, e Carlos Barbosa Gonçalves (1851–1933), em
homem de jaleco é o autorretrato de Locatelli, que inseriu a destaque, com o rosto totalmente visível. Ambos foram per-
si próprio na cena, com uma prancheta na mão, a observar o sonalidades políticas que viabilizaram a constituição do IBA.
episódio. O autorretrato, em proporções sutilmente maiores, Deste modo, Aldo Locatelli representou a ligação direta entre
conferiu uma postura de imponência à sua imagem – modo a academia e o Governo do Estado do Rio Grande do Sul, em
tradicional de os pintores renascentistas assumirem a auto- uma relação de colaboração. Fazendo fundo a esses perso-
ria da obra, como uma espécie de assinatura. nagens, está uma ambientação urbana, que torna a aparecer
entre os membros do CTA e do coro. É a referência à cidade
Atrás de sua imagem, Aldo Locatelli colocou outra figura fe- de Porto Alegre. Isso coloca a importância da urbanidade, ou
minina, a mexer com um pincel em uma paleta apoiada no seja, da sua estrutura socioeconômica e política, como as
braço, remetendo à disciplina de Pintura. Na base do gru- condições necessárias para a consolidação e o desenvolvi-
po, a moça sentada, com olhar fixo em algum ponto fora da mento de um sistema de artes.
tela, uma prancheta no colo e um lápis empunhado, indica
a disciplina de Desenho. Ao pé desta, Locatelli representou
Através dessa obra, um mural de caráter alegórico, Aldo Lo-
a obra Inca, uma cabeça esculpida pelo já citado Fernan-
catelli posicionou-se como docente, diante das discussões
do Corona. Inca (sem data), escultura em bronze polido
artísticas então em voga: o embate entre academicismo e
(45,6 × 19,2 × 22,5 cm), integra o acervo do Museu de Arte
do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (MARGS) (BRAMBATTI, modernidade visual.
2008, p. 129). Desse modo, Aldo Locatelli representou o nú-
cleo central do mural As artes (o Curso de Artes Plásticas) Cíntia Neves Bohmgahren
Blanca Brites
Ainda no final dos anos 1950, não era só a academia que apregoava os
preceitos de uma arte figurativa, pois permanecia a herança da arte realista,
de cunho social, comprometida com uma força expressiva, defendida pelo Grupo
de Bagé, que reuniu, em 1948, jovens e talentosos artistas como: Danúbio
Gonçalves (1925), Glauco Rodrigues (1929–2004), Glênio Bianchetti (1928–2014)
e Carlos Scliar (1920–2001). Esse grupo buscava mostrar a força do gaúcho
campeiro em seu árduo trabalho e fazia a defesa de uma identidade regional.
Também repudiava a arte abstrata, por considerá-la cosmopolita, antinacional
e burguesa. Em um segundo momento, foi criado o Clube de Gravura de Porto
Alegre 3 (1950–1956), contando com maior número de participantes, entre os quais
Zoravia Bettiol (1935), Vasco Prado (1914–1998), Plínio Bernhardt (1927–2004),
ção de novos nomes. É possível constatar a inquietude dos alunos da IBA, como já
citado, que se distanciavam, tanto dos cânones da academia, quanto da herança
do expressionismo social do Clube de Gravura. Em seus trabalhos, há uma busca
de autonomia formal, sintetizando e eliminando a representação, até encontrar,
cada qual, sua identidade artística. Waldeny Elias, Yeddo Titze (1935), Nelson
Wiegert (1940), Rubens Cabral, Paulo Peres (1935–2013), Regina Silveira, Avatar
Moraes, Paulo Porcella (1936), Antônio Gutiérrez (1934–2004) e Leo Dexheimer
estão entre esses. Se muitos deles fizeram incursões pela abstração, este não foi
um caminho sem volta, pois, acompanhando a carreira dos citados artistas, cons-
tata-se que muitos retomam, em algum momento, a figuração. A maioria desses
artistas conservava e aprimorava seu domínio técnico adquirido no aprendizado
acadêmico, seja na pintura, escultura, desenho.
Junto a esses está Vera Chaves Barcellos, que embora tenha tido uma for-
mação diferenciada, será um nome de ponta nas mudanças que estavam ocorren-
do. A destacar que ela, assim como Regina Silveira, são artistas da mesma gera-
ção que continuam, ainda hoje, respondendo às demandas da contemporaneidade
sem, contudo, submeter-se à mesma.
Temos no acervo do Instituto de Artes uma pintura de Regina Silveira que,
acreditamos, seja de quando ela ainda era aluna de Ado Malagoli e Aldo Locatelli, final
dos anos 1950, pois, nessa obra, percebe-se a presença do aprendizado com os dois
mestres. Os ensinamentos de Locatelli se manifestam na força expressiva das mãos e
dos pés das figuras, que indicam uma cena religiosa, ma qual a personagem feminina
Madalena, ajoelhada, recebe uma benção ou admoestação de Jesus. No tratamento
da cor intensa e paleta rebaixada, verificamos como a artista captou as lições de
Malagoli. Em seus trabalhos iniciais, vê-se a liberdade de seu percurso artístico.
REGINA SILVEIRA (1939)
Madalena, sem data
Nossa Pinacoteca recebeu, entre os premiados do IX Salão de Artes
Óleo sobre tela, 95 × 50 cm Plásticas do IBA, a pintura de Jenner Augusto da Silveira (1924–2003). O título,
REAL MUDANÇA
em 1955 e 1956, com obras figurativas, também pertencentes à coleção da PBSA. A obra foi Prêmio
Também o Zaluar premiado neste I Salão já havia sido, como vimos ante- Aquisição em Pintura
no I Salão de Artes
riormente, agraciado no Salão de 1962. No desenho por ele apresentado em 1970,
+Visuais da UFRGS, 1970
explora recursos de geometria que, juntamente com o sfumato, cria efeitos de
volume e sensação de sobreposição dos mesmos. A combinação da geometria, do
claro escuro e o contraste entre cores quebra a frieza formal da composição, pois,
segundo Roberto Pontual: “[...] houve sempre margem para a disponibilidade, a
fantasia e o acaso nas montagens gráficas que Zaluar produziu, em especial no
período de 1965 a 1978” (PONTUAL, 1987, p. 384).
Na coleção do Instituto de Artes, está o Prêmio Aquisição que Fayga Os-
trower (1920–2010) recebeu neste mesmo Salão pelo conjunto de xilogravuras,
cujas sobreposições de cores mostra a imersão da artista pelo mundo da abs-
tração informal, com o qual ela se identificava. Fayga sempre fundamentou sua
praxis na reflexão teórica sobre arte, o que resultou em várias publicações. Sobre
como dar sentido ao seu mundo de formas e cores, José Américo Motta Pessanha
faz uma sensível apreciação:
gério Luz (1936) pelo livro de artista Classificação da Memória (1975), com o que
fica evidenciada a valorização à inovação da proposta.
De fato, o livro de Rogério Luz é inovador por seu suporte, assim como pelo
conteúdo. Nele, o artista evidencia as condições políticas do momento.
Faz parte da coleção do Instituto de Artes outra proposta premiada nesse
mesmo SAV e que também se destacava por seu suporte inovador. Denominado
Capa do catálogo do
III Salão de Artes Visuais
Triacantho (1975), é composto por seis painéis que mesclam desenho e fotogra-
da UFRGS, 1975 | AHIA fia, proposto pelo grupo formado por Carlos Pasquetti, Clovis Dariano (1950),
Mara Álvares (1950) e Fernanda Cony (1948). Este trabalho pode ser lido, como
sugere Flavio Krawczyk:
Herdeiro da grande tradição da pintura italiana, Aldo Lo- Em trabalhos como Duas figuras (também conhecido como
catelli (Bérgamo, Itália, 1915 – Porto Alegre, RS, 1962) Mulheres na areia), reproduzido ao lado, é que o talento de Lo-
recebeu formação clássica em sua terra natal, onde teve catelli lhe possibilita inovar esteticamente, sem deixar de lado
contato direto com obras dos mestres do Renascimento, a técnica primorosa que lhe era tão cara. Tirando partido da
do Maneirismo e do Barroco. É evidente, em sua trajetória ousadia cromática, apresenta uma composição mais solta, na
profissional, como ele se serviu da disciplina acadêmica qual identificamos dois corpos femininos deitados. Em primei-
e do seu método. Entretanto, Locatelli esteve aberto para ro plano, uma das mulheres ocupa metade da tela em diagonal,
incorporar a contribuição dos modernos. Ao migrar para enquanto a outra, logo atrás, surge em escorço. As formas são
o Brasil, em 1948, entrou em contato com os debates de- tão estilizadas que um olhar desatento poderia afirmar tratar-se
correntes do modernismo e assimilou alguns de seus as- de uma abstração. Ao fundo, vê-se o mar e as rochas; a sequên-
pectos, mas fazendo uma interpretação muito pessoal dos cia de planos que se sucedem dá profundidade à cena.
mesmos, sem abster-se da técnica e dos princípios ineren-
tes à sua formação. A pintura tem pinceladas soltas e grossas camadas de tinta
aplicadas com espátula, que criam texturas na tela, em cores
Locatelli é mais conhecido por seus murais e afrescos, entre que se sobrepõem, quase não deixando identificar as figuras.
os quais se destaca a série da Via Sacra, (1958–1960), que Os tons terrosos que predominam dialogam com partes tra-
produziu para a Igreja de São Pelegrino, em Caxias do Sul, na balhadas em vermelho, amarelo e azul, numa harmonização
qual explora efeitos de perspectiva. Mas é na pintura de ca- de cores que marca a fase final da obra de Aldo Locatelli.
valete que ele se afasta das rígidas regras acadêmicas para
mostrar sua faceta mais arrojada. Adriana Raupp
Tapeçeiro, pintor e desenhista, Yeddo Titze (Santana do Li- que resulta da junção dos materiais impele o espectador a
vramento, RS, 1935) fez seus estudos no Instituto de Belas ambicionar uma experiência sensorial. Nesse processo, um
Artes de Porto Alegre, sendo aluno, entre outros, de Ado Ma- dos aspectos mais interessantes está relacionado à percep-
lagoli (1906–1994). De 1960 a 1962, foi bolsista do governo ção das cores, que se modifica, dependendo da distância es-
francês, estudando pintura com André Lothe (1885–1962) colhida pelo espectador para observar o trabalho.
e realizando estágio na École Nationale Superieure des
Arts Decóratifs, tendo como professor Marcel Gromaire O fundo verde e esmaecido sugere a gênese da mistura de
(1892–1971), cujos mestres, por sua vez, foram Henri Ma- diversas cores, e deixa perceber um leve toque de amare-
tisse (1869–1954) e Fernand Léger (1881–1955). O aspecto lo na última aplicação. Este se destaca sozinho em alguns
decorativo e as pesquisas com cores e superfícies são ca- momentos, em outros adquire uma função complementar.
racterísticas de sua poética, e muito se deve a esse período O traçado inconstante do preto, em espessuras variadas, é
formativo na França. um elemento de estruturação da obra, e que só escapa ao ser
sugado para a indefinição entre o violeta e o vermelho escuro.
Foi durante sua primeira passagem por Paris, no período
assinalado, que Titze produziu a obra em destaque, eviden- As formas, as cores e suas densidades oferecem um campo
ciando seu percurso pela abstração. A pintura leva a assina- de contemplação e deleite. Em sua materialidade, esta pintu-
tura frontal, com indicação de data e local de sua execução. ra de Yeddo Titze nos convida a percorrer, com o olhar, sua
Destaca-se, nela, o material granulado misturado à tinta, de- superfície, indo e voltando, retrocedendo e avançando, em
monstrando a utilização de novos elementos e um sentido de um brando admirar. A escolha da rota e a velocidade a ser
experimentação do autor. As formas sobrepostas criam uma adotada cabem a cada observador.
composição equilibrada, com vários pontos de atração, que
são trilhados de maneira aleatória. A aparência incomum Sandra Vargas
Alice Esther Brueggemann (Porto Alegre, RS, 1917 – Porto reas, nas quais os objetos parecem ser feitos de luz. Mesmo
Alegre, RS, 2001) foi integrante da primeira geração de mu- que as imagens sugiram frutas e objetos, como garrafas e
lheres artistas profissionais e acadêmicas do Rio Grande do pratos, as mesmas se confundem muitas vezes com o fun-
Sul. Formada pelo Instituto de Belas Artes, teve como grande do da cena, graças à paleta rebaixada e ao tratamento em-
mestre o pintor Ado Malagoli (1906–1994) e, como grande preendido à matéria, que conferem uma notável harmonia e
amiga, Alice Soares (1917–2005), com quem dividiu ateliê beleza à composição.
por mais de 40 anos.
Discorrendo sobre o processo da artista, o crítico de arte
De uma produção mais figurativa, Brueggmann foi desen- Jacob Klintowitz certa vez afirmou: “[...] a qualidade da pin-
volvendo, nos anos 1960, um trabalho mais sintético nas tura de Brueggemann é grande. Ela trabalha com veladuras,
formas. É o caso da obra aqui comentada, assinalada por es- esfumados, eliminando apoios visuais” (apud: ROSA, 2000,
pessas camadas de tinta e na qual as figuras se apresentam p. 70). O depoimento de Alice Soares complementa: “Ela era
de modo quase esquemático. Pode-se observar, na imagem, incansável. Sempre pintando, descobrindo coisas novas. A
uma certa influência das composições de Giorgio Morandi cor maravilhosa que ela atingiu foi-se desenvolvendo, apu-
(1890–1964), não somente pelo gênero, natureza-morta, rando-se em qualidade de pintura, que poucos artistas al-
mas pelo jogo de luzes, característico do pintor italiano. cançaram. Aquela qualidade era o que nós chamávamos de
transparência de cor, de pureza da cor [...]” (SOARES, 2002).
Na trajetória de Brueggemann, é marcante seu trânsito entre
a figuração e a abstração, buscando composições quase eté- Luciano Barbian
Considerada uma das figuras mais importantes das artes curioso perceber, ao observar diversas obras da artista com
plásticas do Rio Grande do Sul, ao longo da segunda metade esta mesma temática, que dificilmente encontramos uma
do século XX, Alice Ardohain Soares (Uruguaiana, RS, 1917 – menina com um semblante alegre.
Porto Alegre, RS, 2005) teve, desde cedo, seu interesse pelo
desenho estimulado por seus pais. A luz que Alice explora na figura está focada no centro do rosto
e nas mãos, como se tivéssemos aberto uma porta por cuja
Formada pelo antigo Instituto de Belas Artes, primeiro em fresta a luminosidade penetra e atinge a garotinha de forma
Pintura (1943) e, na sequência, em Escultura (1945), Alice irregular. E é também exatamente este jogo de claro e escuro
foi convidada a participar da I Bienal de São Paulo, em 1951. que define o sóbrio panejamento do vestido que cobre a crian-
Por mais de seis décadas de atividade profissional e, sobre- ça, ao mesmo tempo em que cria efeitos de transparência em
tudo, a partir dos anos 1960, sua obra foi dominada pelo certas partes, o que demonstra a virtuose que foi Alice Soares,
tema das “meninas”. ao conseguir este resultado somente com grafite.
A obra Menina traz, ao mesmo tempo, a delicadeza do traço A pequena menina, sentada com os pés descalços cruza-
e ganha robustez pelo elaborado emprego de luz e sombra, dos timidamente com as mãos também cruzadas sobre os
que dá vida ao desenho. São linhas carregadas de emoção, joelhos, em um gesto um tanto quanto pudendo, olha-nos de
que Alice definia como sensíveis e inquietas. Apesar das inú- frente, com uma expressão assustada, porém firme. O olhar
meras considerações sobre esta temática contumaz, e que vivo da Menina de Alice Soares faz despertar o ser infantil
suscita a ideia de uma possível intenção de idealização da dentro de cada um que a observa.
criança, quando estamos diante da doce Menina de Alice, ve-
mos simplesmente uma figura com olhar triste e profundo. É Adriana Raupp
Este Jardim encantado é o local no qual todos nós demos o em grande dimensão no mural Que mundo é esse?, produzi-
nosso primeiro beijo na infância. A pureza, as cores, os traços do em 2003, num trabalho colaborativo com outros artistas,
simples reforçam a genuína alegria de estar em comunhão durante o III Fórum Social Mundial, ocorrido em Porto Ale-
com o outro e, mesmo sem saber a definição de amor, nós o gre. A obra permanece na grande fachada externa do prédio
sentimos. A série Namorados, realizada em 1965, é pautada da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Rio
na felicidade do encontro, atravessada por um olhar delicado Grande do Sul e pode ser vista da Avenida Ipiranga, uma das
sobre os eventos que, no seu conjunto, remetem-nos a uma maiores vias da cidade.
narrativa sobre esta fase dos relacionamentos amorosos: ci-
randa, passeio no parque, fotografia de casamento... Na gravura em destaque, não há distância entre as figuras
e o fundo. A menina, que ocupa toda a extensão do espaço,
Artista de múltiplos talentos, Zoravia Bettiol (Porto Alegre, está entre flores, ramos, pombos, mas vai além: ela é parte
RS, 1935) explorou, sobretudo nas décadas de 1960 e 1970, deles e eles dela, numa sobreposição de planos e cores que
a madeira e seus veios. A xilogravura encontrou nessa artista reforça a ideia de simbiose. Embora haja uma representação
uma intérprete singular, que introduziu um tratamento novo, de chão, seus pés flutuam, indicando o estado de encanta-
ao privilegiar a cor, que explode em suas composições, bem mento para o qual foi alçada.
como os desenhos lúdicos, a inclusão de texto ou interferên-
cias posteriores. Como sempre, Zoravia se reinventa, amplia Em termos simbólicos, as pombas são frequentemente as-
suas possibilidades de atuação e presenteia o espectador sociadas à paz, à esperança, à alma e à liberdade, mas tam-
com uma nova visão da técnica. bém estão relacionadas com o amor, pois esta é a ave da
deusa Afrodite. A herança mitológica perdura até hoje em
“Ela se chama amor” é o texto inscrito na imagem, que apre- expressões como “dois pombinhos”, que indica um casal
senta uma jovem de vestido branco e cabelos vermelhos, se- apaixonado. Já as flores amarelas do jardim dão vivacidade
gurando uma pomba com a mão direita. A afirmação é clara e e luminosidade à composição: elas são símbolo de amiza-
objetiva, mas, como em toda poesia, é a simplicidade da fra- de e alegria. Associam-se, aqui, à simplicidade e à leveza,
se que nos instiga a buscar seus múltiplos significados. Será percebidas também pelo papel delicado no qual a gravura
uma personificação do amor? Será apenas a jovem amada? foi impressa.
Ou será a representação do sentimento como um todo?
A beleza da imagem e a sensação sugerida são acessíveis a
Um amor universal, que se manifesta não só entre os namo- todos, através da utilização de simbologias conhecidas para
rados, mas também em relação aos amigos, aos familiares e a maioria dos espectadores. É impossível observar esta obra
a todos os seres. e não penetrar no seu universo de encantos, tanto os técni-
cos, quanto os temáticos.
A importância desta figura no trabalho da artista e o signi-
ficado compassivo são denotados pelo seu reaparecimento Ana Laura Benachio
Jacintho de Souza Moraes (Porto Alegre, RS, 1917 – Rio de Não há uma luz que as diferencie, de modo que a hierarquia
Janeiro, RJ, 1982) foi pintor e ilustrador gaúcho, com for- entre os elementos é dada fundamentalmente pela disposi-
mação no Instituto de Belas Artes de Porto Alegre, tendo ção dos mesmos nos planos, pela estrutura formal da pintu-
fixado ateliê em Copacabana, no Rio de Janeiro, no início ra. Especialmente nesta obra, em que o plano de fundo azul
dos anos 1940. é formado por uma única aparente coloração, mas que, na
realidade, apresenta uma variação sutil de tons, perceptível
Em uma época de ebulição de novas tendências artísticas, nas linhas da rede. São as linhas verticais da rede de pesca
Jacintho Moraes permaneceu vinculado a temas do cotidia- que ganham maior atenção, por sua extensão em relação às
no, como paisagens e naturezas-mortas, mantendo-se fiel outras partes do quadro, mas com os demais elementos aca-
ao figurativismo, fundamentando seu trabalho de desenho, bam gerando um arranjo harmonioso.
em oposição ao abstracionismo, que se impunha como ten-
dência artística. Percebemos isso na tela Siri e o lampião, que Em um primeiro nível, há uma estrutura de tons acinzenta-
traz elementos gráficos com forma e traçado bem definidos, dos, na qual se apoia o lampião, à esquerda, que acaba sendo
gerando uma identificação imediata. o ponto de equilíbrio para o restante da composição. Em um
segundo nível, temos o siri à direita, que estabiliza a imagem
Na pintura em análise, destacam-se os elementos da compo- do lampião e liga-se a uma espécie de haste, que comunica
sição, referentes ao mar, corporificados no siri e na rede de esses elementos com o plano de fundo. Com isso, podemos
pesca. É interessante notar como o artista explorou as cores perceber que, apesar dos elementos que compõem a obra
frias como o azul, o cinza e o roxo, para tratar de uma paisa- não terem um tratamento tridimensional, há, ainda assim,
gem tropical, na qual talvez fosse natural esperarmos o uso uma noção de profundidade, sugerida pela disposição das
de cores quentes. figuras. Colabora para a estrutura harmoniosa o uso que o
artista faz das cores, visto que cada elemento traz alguma
Sua obra possui um cromatismo sensível, com nítida influên- tonalidade também encontrada em outro. Tais elementos
cia de seus mestres, Tomás Santa Rosa (1909–1956) e An- conferem um indubitável equilíbrio à sua composição.
dré Lhote (1885–1962), na década de 1940. Trabalha com
cores chapadas, que geram contrastes intensos entre si. Andressa Borba
As duas xilogravuras da artista Fayga Ostrower (Lodz, Polô- matemática eram fundamentais. Nesse contexto, a artista
nia, 1920 – Rio de Janeiro, RJ, 2001), em papel arroz, são da- deparou-se com grande relutância ao seu trabalho, que era
tadas de 1969, sendo uma delas com predominância de tons considerado por muitos como “abstracionismo ornamental”.
frios em azul e verde, e a outra em tons quentes, próximos Isso até ser reconhecida, especialmente em 1957, quando
aos alaranjados. conquista o Grande Prêmio Nacional de Gravura na IV Bienal
de São Paulo e, um ano depois, o Grande Prêmio de Gravura
Sua obra majoritariamente em tons de laranja lembra, na Bienal de Veneza.
tanto na linguagem, como nas cores, um de seus conjun-
tos mais famosos: o Políptico do Itamaraty, de 1968. Ele é A partir de seus estudos sobre a obra de Paul Cézanne
composto por sete xilogravuras com 80 × 35 cm, impres- (1839–1906), suas imagens ganham maior sensação de
sas em papel arroz e encomendadas pelo embaixador movimento e fluidez, através dos planos que se sobrepõem
Wladimir Coutinho para uma das salas do Palácio dos Ar- assimetricamente, formando uma estrutura de linhas dia-
cos, em Brasília. gonais que proporciona dinamismo e ritmo à composição.
As obras aqui apresentadas, por sua linguagem lírica pecu-
A artista polonesa inicia sua carreira no Rio de Janeiro, liar, transmitem uma sensação de transcendência e imateria-
no ano de 1946, onde se estabelece com sua família, após lidade. À primeira vista, suas imagens poderiam facilmente
fugir da Alemanha nazista. No início dos anos 1950, come- confundir um espectador desavisado, passando-se por aqua-
ça a desenvolver xilogravuras abstratas, de cores variadas. relas, dadas as nuances e transparências de seu colorido.
Sabemos que esta técnica está tradicionalmente ligada ao
uso do preto e branco, herdada da figuração expressionista Como uma intelectual das artes, Fayga via o ato artístico
alemã. Fayga se encaminha para a abstração informal, em como uma experimentação que deveria priorizar o espontâ-
que a expressão sensível e inconsciente do artista é o essen- neo e o intuitivo, em que tudo se justificava e se relacionava,
cial para a elaboração da obra. Isso ocorre no momento em formando um conjunto harmonioso e também expressivo.
que, no Brasil, o Concretismo ganha importante reconheci-
mento institucional, no qual a racionalização e a objetividade Andressa Borba
Período Antigravitacional, trabalho de Henrique Leo Fuhro temáticas de artistas das vanguardas europeias das primei-
(Rio Grande, RS, 1938 – Porto Alegre, RS, 2006), é uma ras décadas do século XX. A ideia de trabalhar com uma qua-
obra dividida horizontalmente, na qual, no espaço superior, se-narrativa, que se aproxima do nonsense, evoca trabalhos
uma figura masculina posiciona-se à esquerda de uma área de René Magritte (1898–1967) ou, mais ainda, de Max Ernst
quadrilátera. É difícil identificar se essa área apresenta-se (1891–1976). A imagem de um maquinário que opera segun-
como uma figura exposta em uma parede, ou como uma do preceitos de uma física impossível, talvez desprovido de
espécie de vão ou janela. O padrão de textura dessa área função, também remonta aos trabalhos de surrealistas e da-
lembra uma rede, e sobre esta há uma área oval, de fundo daístas, como Marcel Duchamp (1887–1968). Quanto à sen-
branco, na qual se encontra um tronco feminino despido. sualidade na gravura de Fuhro, como em alguns trabalhos de
Nas áreas escuras, Fuhro prefere o tom azulado. Não há, na Man Ray (1890–1976) ou Salvador Dalí (1904–1989), o cor-
obra, a cor preta. po da mulher surge mais como ideia, forma de sonho, do que
como personagem.
Se, na parte superior, a figura masculina encontra-se apoia-
da sobre uma representação de chão, na área inferior, que Quanto à física impossível, anteriormente referida, o cienti-
ocupa a maior parte da gravura, o artista abdica desse rigor, ficismo do título já indica essa leitura. “Período”, em física, é
ao eliminar o chão e permitir ao seu personagem, agora em o tempo necessário para que um movimento realizado por
posição espelhada, que flutue, assim como o tronco feminino um corpo volte a se repetir. Estabelece-se esse tempo ao
ao seu lado. Na parte superior, os dois elementos parecem dividir a duração de uma única oscilação sobre a frequência
pertencer a universos mais distantes, uma vez que cada um que a mesma acontece. Tempo e frequência são, portanto,
existe sobre um fundo diferente. Embaixo, o personagem grandezas inversas na física tradicional. Inversas como a
masculino e o tronco feminino se encontram sobre o mesmo área superior e inferior dessa obra. Se a gravura ilustra um
azul e a mesma textura, que não mais lembra uma rede, mas período, então configura um processo não só dicotômico e
uma grade. Pairando sobre esses dois elementos, encontra- onírico, mas também cíclico. Esse processo de inversão é
se uma imagem enigmática, que surge exatamente no centro catalisado pelo único elemento ausente no plano superior,
da obra: uma máquina, cuja função é incerta. mas presente no plano cuja gravidade foi diluída: a enigmáti-
ca engenhoca mecânica, cuja funcionalidade permanece tão
O período de criação da obra coincide com a forte influên- desconhecida quanto o rosto do tronco feminino imaginado
cia da Pop Art na arte brasileira, apresentando certa relação pela figura masculina.
com o movimento euro-americano. No entanto, essa xilogra-
vura parece estar ainda mais conectada a algumas questões Giordano Gil
Arcangelo Ianelli (São Paulo, SP, 1922 – São Paulo, SP, 2009) linha delimita o campo a ser ocupado por cada cor. As fron-
foi desenhista, pintor, ilustrador e escultor. A sua trajetória, à teiras entre os tons são respeitadas, mas não provocam a
primeira vista, pode ser considerada como o caminho natu- separação extrema entre as partes; elas parecem formar,
ral de muitos artistas de sua geração, que iniciaram na pintu- no entanto, as peças de um encaixe, que fora desmembra-
ra figurativa e se voltaram às tendências abstratas. do pelo traço branco irregular na vertical, que ora fica es-
treito, aproximando os lados, para em seguida distanciar-se
Ianelli começou seu percurso de modo autodidata. Na dé- das porções intensas de preto. As várias camadas do fundo
cada de 1940, passa a frequentar o ateliê de Waldemar da branco desvelam a habilidade impressa pela leveza e preci-
Costa (1904–1982), com Lothar Charoux (1912–1987), Her- são das diversas pinceladas. De outro tanto, a plasticidade
melindo Fiaminghi (1920–2004) e Maria Leontina (1917– do preto emana de sua silhueta como um relevo persistente
1984), entre outros. A partir desse período, produzindo e pronunciado, evocando, quem sabe, a serenidade da noite,
cenas de cotiano, paisagens urbanas e marinhas, já revela como permite pensar o título da obra. A sensação é de tran-
a síntese formal e a gama cromática em tons rebaixados, quilidade, deixando espaço para o alinhamento das formas
que seria uma de suas marcas. Por volta dos anos 1960, e a firmeza do branco e do preto, soma e ausência de cores.
volta-se ao Abstracionismo Informal e desenvolve telas de
densidade matérica e cores escuras, mantendo o uso de O desejo pela forma fica evidente e encontra sua melhor ex-
grafismos. Na década seguinte, adotando planos super- pressão no resultado concebido pelo pintor. Em entrevista
postos e interpenetrados de formas retangulares, produz concedida no início dos anos 2000, Arcangelo Ianelli revelou
obras afinadas à Abstração Geométrica. É o caso de Dentro que a motivação para enveredar pela pintura abstrata estava
da noite, que recebeu o Prêmio Especial no I Salão de Artes em uma necessidade interior, que foi nutrida com o passar
Visuais da UFRGS, em 1970. do tempo, desabrochando no decurso do seu amadureci-
mento como artista.
Sobre o fundo de tinta branca desprende-se a extensão
bem marcada e profunda do preto, enquanto o contorno da Sandra Vargas
O álbum Visão multidirecional (1971), com tiragem de 50 có- sendo importante lembrar que todos os seus autores ti-
pias assinadas, é composto por 20 serigrafias sobre papel, veram formação integral ou parcial no Instituto de Artes,
sendo seis de Luiz Fernando Barth (Taquara, RS, 1941), sete de sendo docentes no momento de sua elaboração, compro-
Rose Lutzenberger (Porto Alegre, RS, 1929) e sete de Rubens vando a abertura gradual da Academia a essas novas dire-
Costa Cabral (Porto Alegre, RS, 1928 – Porto Alegre, RS, 1989). ções artísticas.
A página que abre o álbum apresenta seis variantes da mes- Em geral, cada artista utilizou duas cores. Barth foi o que ado-
ma frase, escritas em caixa alta, na cor azul royal, distribu- tou maior variedade em uma mesma composição (com oito
ídas em arco, são elas: visão muldimensional; visão dimen- cores distintas), evidenciando sua maestria como responsável
sional multi; dimensional multivisão; dimensional visão multi; pela implementação da disciplina de Serigrafia na instituição.
multi dimensional visão e multivisão dimensional. Na folha
seguinte, há um excerto de Umberto Eco (1932), na mesma As serigrafias de Rose Lutzenberger apresentam os entrela-
cor, mas com as letras em grafia regular, que ilustra a inten- çamentos mais complexos, passando uma ideia fortemente
ção dos artistas com sua obra, como mostra o destaque tridimensional, de elementos quase arquitetônicos, possivel-
dado por eles nas últimas palavras: mente influenciada pelo seu trabalho como escultora.
“[...] enquanto que a cultura média e popular (ambas Cada serigrafia apresenta o uso de hexágonos sob diferentes
já produzidas em níveis mais ou menos industrializa- modos, empregando cores chapadas e vibrantes, forman-
dos, e sempre mais altos) não vendem mais a obra do composições variadas. Cria-se uma ideia de movimento,
de arte, e sim o seu efeito, eis que os artistas se sen- de profundidade, de ilusão óptica, de continuidade, de espa-
tem impelidos, por reação, a insistirem no polo opos- cialidade, com formas que tendem ao infinito, como nas pro-
to: não mais sugerindo efeitos, nem se interessando gressões matemáticas. O conjunto final resulta em concep-
pela obra, mas sim pelo processo que leva à obra”. ções geométricas, afastando qualquer noção lírica ou sim-
bólica, seguindo princípios do Abstracionismo Geométrico.
Nos anos 1970, a abstração estava afirmando seu espaço
no Rio Grande do Sul. E essa obra evidencia essa busca, Andressa Borba
Carlos Tenius (Porto Alegre, RS, 1939) formou-se em Escul- Walter Zanini (1983). A escala de Visão IV projeta um desdo-
tura no Instituto de Belas Artes, mesma instituição na qual, bramento de suas dimensões justamente pelo confinamen-
mais tarde, assumiria como professor, substituindo o mestre to ao qual a obra é formalmente submetida. Contrapondo
Fernando Corona (1895–1979). Segundo o próprio Tenius, essa projeção espacial, insurge o detalhe acima apontado,
uma das características de Corona era a liberdade dada aos referente à área vermelha central, na qual o círculo luta para
alunos, inclusive na criação de formas abstratas, o que era impor seu desenho por trás de um bambuzal de barras de
recente no ensino acadêmico de arte no País. Tenius usou ferro texturadas.
dessa liberdade, mas seu reconhecimento, tanto no campo
da arte, como fora dele, veio de sua capacidade de síntese Visão IV se beneficia da capacidade do artista em criar, a
entre o empenho de um material apropriado da economia in- partir de um material fundamentalmente identificado com
dustrial e a expressão mítica e simbólica de um povo, como a crueza da indústria, levando-o a uma outra condição.
no Monumento aos Açorianos (1974), portentosa escultura O ferro bruto, acionado pelo poder da pintura, mergulha nas
pública localizada no Centro Administrativo de Porto Alegre. possibilidades de significação dessa superfície encarnada,
reflexo difuso da emanação cromática do círculo, gerador
Visão IV é um relevo escultórico produzido em 1971. Trata-se da “convecção” da matéria fria em matéria simbólica. Se a
de um perfil de ferro soldado com 30 cm de largura e pelo grandiloquência da escultura monumental de Tenius apre-
menos cinco vezes essa medida de altura. Ele sugere, pelo senta facilmente um viés expressionista, Visão IV subsume
corte reto de suas laterais, uma continuidade do plano sobre esse aspecto a uma presença sutil, íntima, prefigurando um
a parede, criando a possibilidade de se imaginar uma paisa- novo expressionismo.
gem: uma paisagem de ferro soldado, tingida nos limites des-
sa massa central, com a cor vermelha, aparentemente de- Ultrapassando a abstração, Tenius reafirma a presença
corrente do reflexo do prato esmaltado em rubro, recolhido do que o guiará na década seguinte: o resgate dos mitos
de seu ateliê; este, guindado à sorte de material privilegiado identitários e da história local, perpassados por sua ex-
da criação, faz agora o papel de foco da visão. periência pessoal frente à realidade, capaz de forjar uma
nova visão.
O caráter expressivo da escultura de Carlos Tenius se en-
caixa na definição “expressionista” aplicada à sua obra por Cláudio Jansen FERREIRA
Rose Lutzenberger (Porto Alegre, RS, 1929) é filha do tam- No início dos anos de 1970, Rose Lutzenberger desenvol-
bém artista plástico José Lutzenberger (1882–1951) e, as- veu trabalhos com peças modulares geométricas, como a
sim como o pai, foi professora junto ao Instituto de Artes da escultura reproduzida ao lado. Confeccionada a partir da
UFRGS, mesma instituição na qual realizou sua formação. técnica de corte, dobra e solda de chapas metálicas, a es-
Em 1959, estagiou nas Universidades de Yale e na Harvard cultura é estruturada em três módulos em base de madei-
Sculpture Center, ambas em Nova Iorque, Estados Unidos. ra revestidos por chapas de alumínio com intervenção de
Mais tarde, frequentou a Folkwangschule für Gestaltung, em pintura em algumas faces; as três peças geométricas são
Essen, Alemanha. Essas experiências internacionais propi- volumetricamente idênticas, mas permitem diferentes for-
ciaram à artista um firme ingresso no Abstracionismo, em mas de agrupamento, possibilitando, assim, composições
um momento em que os debates sobre figuração e abstra- abstratas de dimensões variáveis.
ção eram o cerne das discussões no cenário sulino.
As questões formais e perceptivas presentes nesta obra tri-
Sua relevância é plenamente reconhecida, não apenas nos dimensional também se verificam na obra gráfica de Rose
dias atuais, mas durante todo o período em que se fez ativa: em Lutzenberger. É importante lembrar que, na mesma época,
1958, Rose participou do I Salão Pan-Americano de Arte, em a artista lançava o álbum de serigrafias Visão Multidimen-
Porto Alegre, sendo agraciada com uma das medalhas de pra- sional (1971), em parceria com Luiz Fernando Barth (1941) e
ta; e, em 1973, com a obra aqui destacada, conquistou o Primei- Rubens Costa Cabral (1928–1989), no qual os então profes-
ro Prêmio em Escultura, no II Salão de Artes Visuais da UFRGS. sores do Instituto de Artes experimentavam o processo de
No âmbito internacional, Rose apresentou seu trabalho na Ga- rebatimento de formas geométricas, num eco das correntes
leria Dinasty, em Buenos Aires, em 1966, com uma exposição concretistas internacionais.
individual; e, nacionalmente, integrou o 6º e o 7º Panorama de
Arte Atual Brasileira, no MAM, São Paulo, em 1974 e em 1975. Débora da Silva Margoni Barbian
Avatar Moraes (Bagé, RS, 1933 – Rio de Janeiro, RJ, 2011) tran- da pintura. No término do terço superior desse círculo, uma
sitou por diversas técnicas e suportes durante sua trajetória, linha margeia a superfície em papel, que forma um fundo em
utilizando os mais diversos materiais e participando ativamente aspecto triangular alongado, com uma das linhas curvas,
dos debates estéticos no País. O artista lançou-se na década de sendo recoberto por pinceladas de tinta branca, em grossa
1960, alcançando reconhecimento e distinções, como o prê- camada, em ambas as partes, superior e inferior.
mio na IX Bienal de São Paulo, conhecida como a “Bienal Pop”,
uma mostra que desafiou a repressão do regime militar. Um Ao fixar o olhar, nota-se ainda uma leve textura de tinta em
ano depois, transfere-se para Brasília (DF) e passa a lecionar salpicado branco, localizada na parte superior da pintura,
na UnB, sendo afastado do cargo por motivos políticos. próxima à curva elíptica que dá forma a um dos lados da com-
posição. A obra parece articular esses elementos geométri-
Composição destaca-se pela clareza e suavidade das for- cos como uma alusão à pureza e à simplicidade, sugeridas
mas, bem como por uma proposição de infinito, graças às tanto pelo círculo e pela linha, quanto pelos matizes claros.
cores diáfanas, que ocupam a quase totalidade do suporte,
de onde emergem formas geométricas, uma bem definida e O verdadeiro se faz presente neste contexto, que está im-
outra que apenas vislumbra certa exatidão. pregnado nas formas fixas e na cor crua, explorando os limi-
tes do visível.
Na superfície vaporosa, evidencia-se um círculo, que se des-
taca em leve relevo, como se metade da esfera emergisse Sandra Vargas
Waldeny Elias (Capoeiras, RS, 1931 – Porto Alegre, RS, Na década de 1970, em seu trabalho, Waldeny Elias vai pau-
2010) estudou no antigo Instituto de Belas Artes de Porto latinamente abandonando a figura humana e passa a dar
Alegre, onde foi aluno de Aldo Locatelli (1915–1962), Ado espaço a planos bem definidos e a cores vibrantes, em con-
Malagoli (1906–1994), João Fahrion (1898–1970), Alice traste com superfícies fechadas, nas quais pontualmente
Soares (1917–2005), Fernando Corona (1895–1979) e An- são registrados elementos figurativos que atribuem leveza
gelo Guido (1893–1969), vindo a se formar em 1961. Tam- ao todo. É a partir desses trabalhos que o artista conquista
bém teve experiência em ateliês de artistas uruguaios, apri- reconhecimento, realizando diversas exposições individuais
morando sua técnica. e tendo sua obra comentada por importantes críticos locais.
No período de 1950 a 1970, como sabemos, ocorrem mu- A pintura aqui destacada é representativa dessa fase de Wal-
danças importantes no campo das artes. Se, no panorama deny Elias. Os elementos da composição, sintéticos, revelam
internacional, desponta a arte conceitual, no contexto nacio- o domínio técnico da fatura de Elias e estimulam a percepção
nal a arte abstrata tem sua aceitação afirmada. No âmbito do observador. É possível ver, na margem esquerda, uma
acadêmico, no entanto, a arte figurativa ainda é defendida. agulha com um fragmento de linha, que permite estabelecer
Diante da complexidade deste momento histórico, novos uma relação de escala com a pequena esfera branca acua-
artistas e grupos surgem, na tentativa de consolidar e de- da, no lado oposto. Tal disposição cria um espaço enigmático
senvolver uma arte própria. No final da década de 1950, um sobre a base de um vermelho intenso e um fundo limitado de
desses grupos, o Bode Preto, surgido em Porto Alegre, tem caráter opressor. Se considerarmos a conjuntura política de
Waldeny Elias como integrante, juntamente com Claudio 1973, esta obra daria margem a sugestivas interpretações.
Carriconde (1934–1981), Leo Dexheimer (1935), Francisco
Ferreira (1935) e Joaquim da Fonseca (1935). Débora da Silva Margoni Barbian
A obra de Paulo Porcella (Passo Fundo, RS, 1936) se carac- Pedro Weingärtner, apresenta-nos uma composição em que
teriza, segundo Helenice Porcella (2009), por apresentar formas líricas despontam em uma atmosfera de mistério.
“[...] uma práxis coerente com seu discurso, como indivíduo Não há narrativas ou símbolos, apenas formas e cores, es-
envolvido profundamente com o autoconhecimento e com o truturadas ora a partir de planos cromáticos chapados, ora a
aperfeiçoamento técnico formal e construtivo de sua obra.” partir de transparências e opacidades.
Formado pelo Instituto de Belas Artes, Paulo Porcella tem Ao fundo, o gradiente de cores nos traz a impressão de uma
produções em desenho, gravura, aquarela e murais, mas sua luz matinal, algo como o alvorecer, tendo à frente uma forma
principal expressão é a pintura, trabalhando com óleo e gua- retangular que também se apresenta como um novo fundo,
che e passando, na sequência, ao uso do acrílico. O artista porém sugerindo, desta vez, um aspecto crepuscular. Perce-
começou na década de 1960, apresentando em suas obras bemos, então, como que uma grande sombra, algo espec-
uma marcada influência do Abstracionismo Informal. Com o tral, impalpável.
tempo, essa tendência foi se transmutando para uma “busca
do concreto”. O universo criado por Paulo Porcella nos remete a uma di-
mensão espacial, própria do artista, que nos leva a vislum-
No início da década de 1970, quando produziu Homenagem brar algo que não é da ordem do céu, da terra, do mar, mas
a um orixá, Porcella se encontrava em busca do espiritual e de um ambiente místico e onírico, evanescente.
esotérico do homem. A obra em destaque, agraciada no II
Salão de Artes Visuais da UFRGS, em 1973, com o Prêmio Luciano Barbian
Quem nunca desejou organizar as suas lembranças para ele esboça um 14 Bis à direita, e à esquerda desenha um
não perder nenhum detalhe importante das experiências “Campo de re-pouso”, mas o que chama mais atenção é a
vividas? Rogério Luz (Rio de Janeiro, RJ, 1936), na obra em frase escrita em maiúsculas, na base da página: “Liberdade,
destaque, utilizou talento, criatividade e poesia para registrar abre as asas sobre nós!”. O excerto provavelmente é uma
reflexões sobre a vida em um livro-objeto. referência ao refrão do Hino à Proclamação da República:
“Liberdade! Liberdade! | Abre as asas sobre nós | Das lu-
Classificação da memória foi produzido a partir de um fichário tas, na tempestade | Dá que ouçamos tua voz!” Rogério Luz
padrão, encontrado em qualquer papelaria à época. O artis- conclama, através da sua arte, os direitos perdidos pelo
ta criou páginas separadoras e, como seu mote de narrativa, Golpe Militar.
aqui, são os selos utilizados pelos Correios, adotou folhas es-
peciais para filatelia, devidamente numeradas. Para comple- A inovação e a importância desse trabalho é corroborada
mentar a metáfora, há um carimbo próprio: “Posta Rogerius.” pelo recebimento do Grande Prêmio no III Salão de Artes Vi-
suais da UFRGS, em 1975. Naquela ocasião, a obra do artista
O intuito não era registrar apenas a sua vida, como podemos carioca foi incorporada à Pinacoteca Barão de Santo Ângelo
observar na primeira página, na qual se lê “Memória Nacio- do Instituto de Artes da UFRGS.
nal”. O artista parte dos selos para trazer fatos comuns aos
brasileiros, de um modo geral: presidentes, jogos da prima- O livro Classificação da memória trata de ciclos, de necessi-
vera, Santos Dumont. Incluindo ainda impressões, poesias dades e de paz. É um homem expressando o desejo do povo
visuais e desenhos a lápis, através dos quais Rogério Luz vai naquele momento; é a informação do sentimento que per-
apresentando fragmentos de memórias que ele cuidadosa- dura na memória, à parte todos os registros oficiais de fatos
mente classificou como: Corpo, Ar, Mundo. históricos. Neste livro de artista, são colocados em xeque
nossos comportamentos, nossos heróis e nossa pátria.
Em plena vigência do AI-5, dentro da seção Ar, na página
cujo título é Mãe, o selo apresentado é “Semana da Asa”: Ana Laura Benachio
Em 1975, Carlos Pasquetti (Bento Gonçalves, RS, 1948), Cló- nariamente o preto e o branco como os atributos definido-
vis Dariano (Porto Alegre, RS, 1950). Fernanda Cony (Porto res de significados simbólicos, o mesmo valendo para as
Alegre, RS, 1949) e Mara Álvares (Porto Alegre, RS, 1950) figuras que são o instrumento pelo qual os artistas criam
recebem, pela obra Triacantho, o prêmio CPD-UFRGS, no III seu discurso crítico a respeito tanto do conteúdo narrati-
Salão de Artes Visuais da UFRGS. Os então jovens artistas vo, quanto artístico.
haviam se conhecido no Instituto de Artes e, por meio desse
trabalho, realizado em fotografia e desenho, apresentam um A personificação do poder tem, além da máscara que tolhe
retrato instigante e irônico sobre o que ocorria, naquele mo- o rosto, o braço esquerdo (o do coração) imobilizado por um
mento, tanto no Brasil, como no cenário da arte. tecido sintético preto que envolve todo o corpo.
A construção alegórica de imagens do poder, da justiça e da A arma de fogo, atributo do poder, é aplicada à dominação de
sabedoria cria uma perspectiva visual representativa de um uns sobre outros; sua única ação é a imposição da força. A
sentimento de insegurança, de expectativa e de esperança justiça carrega a espada e a balança, mas a espada romana é
quanto à superação de uma situação adversa. No âmbito substituída pelo espadim, utilizado nas formaturas das aca-
político, a Guerra Fria, o final da Guerra do Vietnã e o regi- demias militares, e a balança de dois pratos por uma moder-
me autoritário no País sensibilizavam “corações e mentes”. na balança de pressão. Além de não estar vendada (igualda-
No âmbito artístico, o Salão de Artes Visuais da UFRGS bus- de), a justiça usa uma máscara, que substitui sua verdadeira
cava uma renovação e eliminação de estruturas classificató- face. A imagem da sabedoria é uma figura feminina nua co-
rias das obras em gêneros distintos, com o uso dos materiais berta por um véu branco, e recebendo uma iluminação “ce-
tradicionais da arte. E Triacantho veio ao encontro dessa lestial”. A sabedoria é a única esperança para um emprego
ideia de renovação que movia os referidos artistas a criar diligente do poder e da justiça.
novas linguagens artísticas. Pasquetti, Alvares e Dariano le-
variam para o Nervo Óptico (1977–1978) a fotografia como Diante de um momento de incertezas, tanto no âmbito da po-
linguagem estruturante de trabalho. lítica, quanto no da arte, a iluminação, a superação, o porvir
são incógnitas. O raio de sol (Sunbeam) da balança da justiça
As três caracterizações representadas na obra buscam é a fonte, tanto da revelação da sabedoria necessária à supe-
na caricatura o modo de abordagem para construir as ração das incertezas, quanto para esses artistas a fotografia
alegorias. Cada fotografia mostra indivíduos desperso- é uma certeza de inovação para a arte que então se produzia.
nalizados pelo uso de máscaras ou pela supressão da
representação do rosto. Na obra, é empregada discricio- Cláudio Jansen FERREIRA
Os tons ocres e as sombras, que predominam na obra, inse- Esses fragmentos são representativos deste ser que ten-
rem-nos no tema: a opressão. O rosto da figura feminina está ta construir-se ou “colar-se” a partir de pedaços irregulares,
ligeiramente inclinado para baixo, atestando submissão, de materiais distintos. As colagens de notícias do jornal suge-
o que é reforçado pelos olhos fechados: ela não deve enxer- rem um período em que as mulheres começam a ter consciên-
gar. O rosto, como elemento central, bem como o fundo da cia e a lutar contra as injustiças às quais são submetidas.
tela, receberam colagens e a inserção de uma fina corda,
além da base em pintura. Essa mescla de técnicas e mate- Maria Lídia Magliani (Pelotas, RS, 1946 – Rio de Janeiro, RJ,
riais era um recurso inovador à época. 2012) não se considerava panfletária de uma causa; afirma-
va que seus interesses estavam em torno da essência do hu-
O mais surpreendente na imagem é que, ao invés de lábios, mano, independente de raça, credo ou ideologia. Sobre suas
a figura tem amarras, feitas com cordas e nós brancos, obras, falava que não traziam respostas, e sim perguntas,
que saltam do plano, destacando ainda mais a sua mudez. que seu papel como artista era continuar questionando.
Seus ouvidos e cabelos estão cobertos, aparentemente por
uma burca, inferidos pela faixa presente em sua testa e na la- A artista produziu uma obra engajada, social e de denúncia.
teral direita do rosto. Em tons claros, temos a colagem de um Por meio de suas imagens, não fala dos sentimentos de “uma
tapa-orelhas; portanto, ela sequer poderia ouvir, sugerindo mulher”, mas traz à tona problemas universais “das mulhe-
um isolamento total. res”. Levanta questões relacionadas à hierarquia, ao corpo,
à sexualidade. Sua obra é crítica, como ela própria era; e sua
A representação do corpo é constituída por recortes de jor- obra continua ecoando, no silêncio imposto.
nais, com algumas manchetes legíveis, que versam sobre
política e cultura, atentando para o detalhe que os textos são No todo, esta imagem nos envolve numa triste sensação de
em língua espanhola. Destacam-se palavras como “guerra solidão, mas traz em seu centro uma frase, também ela uma
muçulmana”, “subversão [...] América [...] comandante” e a colagem, que se constitui como mensagem de esperança
presença de uma tirinha da Mafalda, personagem de Quino às mulheres, a afirmação de sua importância, um chamado:
(1932), conhecida por ser uma menina muito crítica, que le- “Podemos em qualquer lugar do mundo”.
vanta importantes debates sobre política, educação, condi-
ções sociais, entre outras. Ana Laura Benachio
Carlos Pasquetti (Bento Gonçalves, RS, 1948) participa, em Mundial e a perseguição política da ditadura justifiquem
1977, do IV Salão de Artes Visuais da UFRGS com três dese- esse cuidado.
nhos, pelos quais recebe o Grande Prêmio. São eles: Exercí-
cio para forma, Exercício para espaço e Exercício de espaço. Em Exercício para espaço, os esconderijos são projetados
A imagem da meda, agrupamento de feixes de gramíneas como as câmaras secretas das pirâmides egípcias, com o
postos para secar numa pilha de forma aproximadamen- objetivo de proteger aquilo que lhe é mais caro e vital. A cor
te cônica, é tomada como base de uma especulação so- das figuras é o preto, que reafirma seu caráter ilustrativo, de
bre a constituição do espaço. E há vários espaços, aqui: uma planificação. O marrom-avermelhado aparece indican-
o espaço real, na serra gaúcha, onde realizou a primei- do apenas alguns dos espaços, e a repetição das mesmas
ra obra com uma meda (a intervenção e fotografia Es- cores, diante de uma proposta de representação de algo que
paço para esconderijo, 1972); o espaço da construção “projeta” uma realidade, coloca um questionamento sobre
pictórica, a representação gráfica de uma ideia; e o es- sua função.
paço institucional, para o qual o artista propõe a possi-
bilidade de instalação daquela ideia projetada. Pasquetti Em Exercício de espaço, o uso das cores na construção das
faz referência ao uso tradicional do desenho na elaboração medas projeta, além delas próprias, outras paisagens. A par-
de projetos, no estudo para representação de formas às tir do emprego das mesmas poucas cores, limite imposto
quais pretenda aludir e como registro documental. pelo artista, ele revela sua capacidade de transigir a atitude
conceitualista em busca da história da arte. Além da referên-
O uso arbitrário de algumas poucas cores para a realização cia a Monet, as cores das estruturas cônicas de Pasquetti re-
do desenho reforça o caráter artificial da representação, mas metem à modernidade de Paul Cézanne (1839–1906), assim
também é empregado como referência a outras imagens de como a cor chapada vem do simbolismo da meda amarela de
medas ao longo da história da arte, como as dos impressio- Gauguin (1848–1903), e a representação da forma intensa é
nistas. No período em que fazia seu Mestrado no Art Institute a ação pictórica obstinada, do traço, da cor, do expressionis-
of Chicago, Pasquetti conviveu com várias pinturas de me- mo, presente na paisagem marrom-avermelhada de Vincent
das de Claude Monet (1840–1926), pertencentes ao acervo van Gogh (1853–1890).
da instituição.
Carlos Pasquetti foi, durante vários anos, professor junto ao
Em Exercício para forma, segundo as “instruções” inscritas Instituto de Artes da UFRGS, formando gerações de artistas
na obra, é prevista a construção da meda num subterrâneo, e sendo uma referência inconteste, principalmente na área
um espaço altamente sigiloso, no qual a sonoridade é míni- do Desenho.
ma, um “espaço imigrante”. Talvez um paralelo entre as difi-
culdades enfrentadas pelos imigrantes na Segunda Guerra Cláudio Jansen FERREIRA
Em tempos de globalização
Realizou-se, em 1977, o último salão que garantiu a aquisição direta, via pre-
miação, de novas peças para o acervo artístico do Instituto de Artes da UFRGS.
Dali em diante, todas as obras entraram a partir de doações – sobretudo dos
próprios artistas, mas também por parte de seus familiares e de colecionadores
públicos e privados. As obras correspondentes ao período dos anos 1980 e 1990
não necessariamente foram integradas ao acervo no momento de sua criação.
Algumas são doações recentíssimas, de 2014.
No correr dos anos 1980, a coleção pouco prosperou. Nem mesmo se deu mui-
ta visibilidade aos itens que já constavam do acervo. Uma rara exceção foi a mostra
intitulada Obras do ex-professores (1982), organizada por Yeddo Titze (1935). Adiante,
Nossos mestres, mestres nossos (1988) apresentou trabalhos dos professores-artistas
A História em imagens
ções, pelo contraste entre as cores ou pela sobreposição das camadas, ao clima
hedonista da volta da pintura. Lembremo-nos, a propósito, que o autor, após a
formação inicial no Instituto de Artes da UFRGS 25 , estudou por dois anos na
Hoschschule der Künste 26 , em Berlim, 1984–1985, em que a Alemanha despon-
tava como um dos grandes centros de referência artística do mundo ocidental,
sobretudo graças à produção dos chamados neoexpressionistas. 27 Um exame
mais acurado, porém, há de revelar outras nuances deste Spice.
Não é óbvio o que vai ali representado. Há três figuras de inspiração orgâ-
nica. Uma se ergue verticalmente e se abre, como um vegetal. As outras duas têm
caráter mais circular e dinâmico; uma sugere, talvez, uma fruta ou uma cabaça;
a outra, um prato. O título não ajuda muito. Spice, imaginando-se que venha do
inglês, pode referir-se tanto a algo doméstico, tempero, quanto à cor que ocupa o
plano mais à direita do quadro. Ambos soam admissíveis. A identificação, porém, a
exemplo daquela que procura carneiros em nuvens, não parece decisiva. A figura-
ção, aqui, certamente é mero pretexto. O que desponta, mais do que tudo, é o rigor
com o qual as formas se acomodam na composição, a engenhosa matemática que
dilui, sem anular, as fronteiras entre cores, planos, figura e fundo. Uma precisão
formal emerge desse arranjo. Ecoa Morandi (1890–1964) em sua limpeza, no modo
quase tátil como os objetos se apresentam. Mais do que a infinita expansão para
os lados, que se costuma associar à pintura da suposta “retomada”, Spice oferece
figuras que se projetam à frente, mas sem nunca abandonar a superfície da tela. É
uma pintura que comenta a pintura – assim como certas proposições conceituais
de Kosuth (1945) ou Sol LeWitt (1928–2007) eram comentários sobre elas mesmas.
É uma pintura, supõe-se, informada sobre – e em diálogo com – a tradição e tam-
bém as vanguardas que, temporalmente, a precederam. Por caminhos diversos,
3 Ibidem, p. 253. 11 BRITES, Blanca. Breve olhar sobre os anos 80. In: GOMES, Paulo
(Org.). Artes plásticas no Rio Grande do Sul: uma panorâmica.
4 Ibidem, p. 15.
Porto Alegre: Lahtu Sensu, 2007, p. 137. Sobre o Nervo Óptico e
5 Já em 1979 o crítico Frederico Morais identificava uma seu legado, ver CARVALHO, Ana Maria Albani de (Org.). Espaço
“retomada da pintura”, acompanhada por uma “euforia da N.O., Nervo Óptico. Rio de Janeiro: Funarte, 2004.
cor e do gesto”, e imaginava que essa febre se contrapunha
12 Integrado por Carlos Asp (1949), Carlos Pasquetti (1948),
às tendências conceituais das décadas precedentes: “[...] na
Clóvis Dariano (1950), Mara Alvares (1950), Telmo Lanes
raiz desses novos comportamentos pictóricos pode estar
(1955) e Vera Chaves Barcellos (1938), além de várias
o cansaço das tendências conceituais vigentes nos últimos
exposições coletivas, o grupo promoveu a publicação
dez ou quinze anos, a aridez de uma arte hermética, o tédio
em formato de cartazete denominada Nervo Óptico,
provocado por linguagens cifradas, quase cabalísticas, que
atuante entre os anos de 1977 e 1978. Sobre o tema ver:
necessitam de explicações, de uma arte paravisual que
[1] CARVALHO, Ana Maria Albani de. Nervo Óptico e Espaço
não se dirige aos olhos ou ao coração, mas à mente: a arte
NO – a diversidade no campo artístico de Porto Alegre durante
como ideia”. MORAIS, Frederico. “Panorama confirma novas
os anos 70. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais).
tendências da pintura”. In: FERREIRA. Glória (Org.). Crítica
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Instituto de
de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro:
Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
Funarte, 2006, p. 322. O artigo de Morais foi publicado
Porto Alegre, 1994. [2] CARVALHO, Ana Maria Albani de.
originalmente no jornal O Globo, 1 out. 1979.
Espaço N.O. Nervo Óptico, Rio de Janeiro: Funarte, 2004.
6 Cf. catálogo da mostra: JOACHIMEDES, Christos M.,
13 O Salão de Artes Visuais substituiu os Salões de Belas Artes,
apud ZIELINSKY, Mônica. Para muito além dos limites. In:
organizados pelo Instituto de Artes entre as décadas de 1930
___________ (Org.). Heloisa Schneiders da Silva – Obras e
e 1950. O SAV teve quatro edições, em 1970, 1973, 1975 e
escritos. Porto Alegre: Associação dos Amigos do Museu de
1977, apresentando trabalhos em “técnica mista”, “xerox”,
Arte do Rio Grande do Sul, 2010, p. 83.
“arte ambiental”, “têxtil”, “serigrafia”, além das linguagens já
7 Concebida pelo então diretor da Escola de Artes Visuais do consideradas convencionais pelo campo das artes plásticas.
Parque Lage, o crítico de arte Marcus Lontra, e por Paulo
14 Oi tenta (do verbo tentar), exposição que marca a
Roberto Leal e Sandra Mager, a exposição Como vai você,
inauguração da Galeria Arte & Fato, foi aberta ao público
geração 80? apresentava a produção recente de 126 jovens
em 17 de julho de 1985 com trabalhos de 20 artistas:
artistas de diferentes pontos do Brasil. Do Rio Grande do Sul,
Carlos Kraus, Chyntia Vasconcellos, Dione Veiga Vieira,
participaram Karin Lambrecht (1957) e Mauro Fuke (1961).
Elida Tessler, Fernando Limberger, Flávia Duzzo,
A repercussão foi grande, inclusive fomentando mostras e
Hélio Fervenza, Herbert Bender, Laura Castilhos,
projetos similares em diferentes pontos do Brasil, como a
Leonardo Canto, Lia Menna Barreto, Luísa Meyer,
exposição Casa 7, levada ao MAC-USP, em São Paulo, e ao MAM
Maria Lucia Cattani, Marijane Ricacheneisky, Moacir Guis,
do Rio de Janeiro, em 1985, ou Pintura fora do quadro, realizada
Regina Coeli, Ricardo Prado Lima, Rochelle Costi,
em 1987, na Galeria Espaço Capital, em Brasília.
Ronaldo Kiel e Téti Waldraff. Sobre a história da galeria,
8 Com curadoria da crítica de arte Sheila Leirner e museografia ver: CALDAS, Felipe. Galeria Arte&Fato: 30 anos.
do arquiteto Haron Cohen, a Grande Tela ocupava três Porto Alegre: Gastal & Gastal, 2014.
corredores de cem metros de extensão no Pavilhão Ciccillo
15 CATTANI, Icleia. Arte contemporânea e identidade cultural no Rio
Matarazzo, no Parque do Ibirapuera, com pinturas de grandes
Grande do Sul (1980–1990). In: Porto Arte. Revista do Programa
dimensões colocadas lado a lado, sem aparente hierarquia, e
de Pós-Graduação em Artes Visuais. Universidade Federal do Rio
quase sem espaço livre entre uma e outra.
Grande do Sul. Porto Alegre, v. 3, n. 6, dez. 1992, p. 51–78.
9 Ivair Reinaldim problematiza como se deu a recepção e a
16 Carlos Pasquetti assume como professor de Desenho no
polêmica em torno da Grande Tela a partir da relação entre o
Curso de Artes Visuais da UFRGS no início dos anos 1980. Sua
discurso e a prática curatoriais. REINALDIM, Ivair. “A Grande
relevância para a formação de artistas e pesquisadores em
Tela: curadoria e discurso crítico da pintura na década de
arte egressos do IA ao longo das décadas de 1980 e 1990 ainda
1980”. In: II Seminário de Pesquisadores do PPGartes – UERJ,
aguarda uma avaliação específica.
2008, Rio de Janeiro. Anais do II Seminário de Pesquisadores
do PPGartes – UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, 2008. v. 2. 17 ZIELINSKY, Op. cit., p. 32.
Nascido em Traun, Áustria, Xico Stockinger iniciou artisti- de Stockinger, delineando formas circulares numa superfície
camente no Rio de Janeiro, com Bruno Giorgi (1905–1993). ondulada com maestria. As formas verticais e cilíndricas do
Em 1954, muda-se para Porto Alegre, trabalhando com xilo- mármore esculpido pelo artista podem lembrar, ainda, a rela-
gravura e ilustração, mas logo daria sua maior contribuição ção com a figura humana, bem como com objetos totêmicos.
como escultor. A escultura é o cerne de sua vasta produção,
e suas obras caracterizam-se pela busca de expressão pró- Stockinger naturalizou-se brasileiro em 1956, ano em que foi
pria. “As pessoas diziam que eu precisava aprender a pintar. eleito presidente da Associação Riograndense de Artes Plás-
Eu respondia que não, que queria esculpir”. O reconhecimen- ticas Francisco Lisboa, sediada em Porto Alegre. Na capital
to nacional veio com seus célebres guerreiros e sentinelas, gaúcha, também foi fundador e diretor do Atelier Livre da
primeiramente feitos em bronze e, depois, com troncos de Prefeitura Municipal, inaugurado em 1961. Anos depois, ins-
árvores e peças metálicas soldadas. talou uma escultura em praça pública na cidade de São Pau-
lo, sob a encomenda de Assis Chateaubriand (1892–1968).
No final dos anos 1960, quando passa a produzir esculturas Em 1967, tornou-se diretor da Divisão de Artes do Departa-
em mármore, deixando o “guerreiro” em repouso, reinventa- mento de Cultura da Secretaria de Educação e Cultura do Rio
se uma vez mais. Evocando superfícies lunares, esses már- Grande do Sul e diretor do Museu de Arte do Rio Grande do
mores trazem à tona a sensualidade da forma, dispensando Sul Ado Malagoli, o MARGS.
o tratamento áspero que dava, até então, à matéria-prima.
Essas peças são a porta de entrada para as colunas que pro- Francisco Stockinger realizou mais de 30 exposições indivi-
duzirá, sobretudo, a partir da década de 1980. duais, além de ter participado de dezenas de mostras, sendo
artista convidado nas edições VI e XVII da Bienal de São Paulo.
Na obra em destaque, o entalhe abstracionista em cada con-
torno confere um traço de reconhecimento da virtuosismo Alexsander Britto
Pintor do Brasil, pintor do futuro, Glauco Rodrigues nasceu car seu território com sólidas vigas de concreto; ao fundo,
em Bagé, Rio Grande do Sul, no ano de 1929, vindo a fale- o casario colonial da antiga fazenda. A iconografia do Brasil
cer na cidade do Rio de Janeiro em 2004. Forjado pela luz do colônia emoldura o cenário apontando três nativos da terra,
pampa e pelas vastas geografias da fronteira, foi integrante arcos, flechas, frutas e alimentos. A litografia pertence à sé-
do chamado Grupo de Bagé, praticando o desenho de obser- rie Accuratissima Brasiliae Tabula, na qual o artista se pro-
vação da natureza e a gravura de cunho social. Exímio pintor põe a revisar o Brasil de seus contemporâneos, emolduran-
de retratos, partiu para Porto Alegre no início dos anos 1950, do seu olhar com a história do País, vastas belezas naturais
onde viveu, durante certo tempo, de encomendas da socie- invadidas por obras inacabadas pelo dissenso estético e pela
dade local. No fim da década, o artista sente necessidade de corrupção da nação.
enveredar pela abstração e, pouco a pouco, abandona a figu-
ra; entretanto, resgata o desenho, notadamente em sua obra O contraste proposto por Glauco entre o Brasil cultural de ri-
gráfica para a Revista Senhor (1959–1964). quezas naturais que encantou o colonizador é invadido pela
ambição de seus filhos. O subtítulo da imagem indicando a
No início dos anos 1960, Glauco parte para Roma, onde inau- existência de um assessor interino – que ocupa um cargo
gura a gráfica da Embaixada do Brasil. Sua pintura abstrata público e também uma grande fazenda – revela a ironia de
teve reconhecimento na Europa e o artista foi convidado a Glauco, ao retratar a realidade do seu País, como em En-
participar da Bienal de Veneza de 1964, a primeira com pa- tardecer na casa do assessor em Angra e Monumento co-
vilhão brasileiro. Em Veneza, o impacto da Pop Art norte-a- meçado na administração anterior, títulos da mesma série.
mericana fez com que Glauco repensasse sua pintura. Com Durante os anos de chumbo, Glauco utilizou-se de fundos
a chegada da ditadura militar, o artista é afastado da gráfi- brancos em sua pintura e obra gráfica.
ca da Embaixada e resolve voltar ao Brasil, onde encontra
um cenário de repressão e censura. Através de metáforas Com o fim da ditadura, Glauco viria a colorir novamente
e instigantes relações iconográficas, Glauco estabelece um o fundo de suas telas, conquistando prêmios e reconheci-
embate crítico com o poder político inconstitucionalmente mento, embebido na cultura popular e na explosão carna-
estabelecido pelos militares. valesca. Nesta litografia, o pintor apresenta uma esperan-
ça cromática representada pelo arco-íris. A ditadura esta-
Arco-íris na Fazenda Pau-Brasil (de propriedade do asses- va prestes a ruir e a democracia era um sonho próspero
sor interino) é uma litografia de 1981, período crepuscular para o Brasil.
da ditadura. A terra próspera e o terreno escolhido pela vista
apontam que o privilegiado proprietário pretende demar- José Teixeira de Brito
Desde o início de sua trajetória, na Faculdade de Arquitetura se observasse os objetos expostos (e o nome do artista em
da UFRGS e, depois, como professor do Instituto de Artes da caligrafia infantil), ela acrescenta o caráter individual à obra,
mesma Universidade, Alfredo Nicolaiewsky (Porto Alegre, e liga conceitualmente as duas partes do díptico, ao mesmo
RS, 1952) se dedica principalmente ao desenho. Com parti- tempo em que fecha sua composição formal. Esta sombra
cipação expressiva em salões de Artes Visuais desde os anos também abre caminhos para reflexões sobre a própria cren-
1970, junto com Mario Röhnelt (1950), Milton Kurtz (1951– ça na individualidade das representações artísticas, sobre
1996) e Carlos Wladimirsky (1956), seu trabalho ganha pro- ausência e presença no tempo presente e passado.
jeção no circuito a partir da década de 1980.
Apesar de o trabalho ser todo em lápis de cor, a linguagem
A obra em destaque traz características marcantes do pe- utilizada se assemelha mais à da pintura, já que não é gráfica.
ríodo em que foi realizada. Nos anos 1980, a ditadura e a O apuro e a qualidade técnica na reprodução de elementos
Guerra Fria chegavam ao fim, havendo a diminuição do in- baseados em fotografias impressionam, assim como a com-
teresse pela arte conceitual e uma retomada dos suportes posição formal e cromática, propositalmente kitsch, que
tradicionais. Os artistas então deixam de levantar questões proporciona ao espectador um sentimento inconfundível de
políticas diretamente, preferindo abordar o tema através de nostalgia. O formato de díptico também vai ser recorrente
aspectos individuais e autorreferenciais. nos trabalhos posteriores de Nicolaiewsky, tanto quanto as
montagens que combinam objetos, desenhos e pinturas,
Já em um primeiro olhar, podemos perceber esta caracterís- como podemos ver na obra As santinhas (1995–1996).
tica no díptico de Nicolaiewsky. O fundo, totalmente preen-
chido com dois tipos de padrões florais de papéis de parede As questões sugeridas neste díptico igualmente aparecem
que marcaram décadas passadas, serve de base para figu- em diversas outras obras de Nicolaiewsky, executadas a par-
ras que carregam o que podemos chamar de “ícones cultu- tir de 1982, nas quais encontramos novamente a ênfase no
rais” de uma geração. As fotos e a reprodução da estátua do ambiente doméstico, as inscrições infantis e a apropriação
Laçador, obra de Antonio Caringi (1905–1981), aparecem de objetos de culturas diversas, que, junto com os nus mas-
como souvenirs populares, mas também representam me- culinos, caracterizam parcela importante de sua produção.
mórias bastante particulares do artista, o que é reforçado
pela sombra adulta projetada na parede. Posicionada como Caroline Hädrich
Lenir Garcia de Miranda (Pedro Osório, RS, 1945) é forma- Na página seguinte, uma colagem pergunta: “Que signos
da em Pintura (Escola de Belas Artes de Pelotas, RS, 1966) são esses que me deixaram e que, sozinha, eu retorno para
e Comunicação Social – Jornalismo (PURCS, Porto Alegre, descobrir?”, que parece replicar a imagem subsequente,
RS, 1975), tendo Especializações em Desenho e em História uma ampliação do primeiro bloco caligráfico, remetendo-
da Arte, bem como Mestrado em Artes Visuais, ênfase em nos a um desdobramento da pintura rupestre. “And with the
Poéticas Visuais (UFRGS, Porto Alegre, RS, 2004). Atuou remembering of J. Beuys” é a anotação na quarta página,
como professora junto ao Instituto de Letras e Artes da Uni- imediatamente antes da fotocópia da pintura de um ciclope.
versidade Federal de Pelotas (ILA–UFPEL) e também como Lenir já havia referenciado Beuys em outros trabalhos, como
professora visitante na School of Art and Design, em Suther- na performance Como ensinar pintura a uma galinha viva?,
land, Inglaterra. Marcado pelo viés expressioinista, seu tra- apresentada na UFPEL em 1988, uma referência direta à an-
balho estabelece um vigoroso diálogo entre o universo das tológica Como explicar arte a uma lebre morta? (1965), do
artes visuais e da literatura, sobretudo a partir do resgate do artista alemão.
personagem Ulisses, paradigma tanto de Homero (século
VIII a.C.), como de James Joyce (1882–1941). Na penúltima página, encontra-se, em inglês, um trecho
da parte III do Ulisses de Joyce, do Episódio Ítaca, que Le-
Lenir entrou em contato com Ulisses ainda nos anos 1960, nir também adotou em sua Dissertação de Mestrado. ”Diz
mas foi nas duas décadas seguintes que ele emergiu em sua respeito à nossa dificuldade de entendimento dos carac-
poética. A jornada de Ulisses é marcada não somente pela teres ali citados, do grego, romano, de hieróglifos etc, na
tentativa de retorno à sua casa, como pela busca de conheci- antecipação de modernos caracteres. Fala da nossa ca-
mento. E, nesse percurso, ele enfrenta diversos obstáculos. pacidade de reflexão sobre os significados a partir destes
Para sobreviver, precisa negar a própria identidade, o que signos”, explica.
lhe constitui; precisa perseverar. Lenir diz que “somos todos
Ulisses”, uma vez que, ao lançar-se ao mundo, cada indivíduo A última página, a versão traduzida do trecho anterior, foi co-
enfrenta seus próprios ciclopes, seus próprios demônios. lada à contracapa por uma manifestação da goma laca sobre
o material do livro, que Lenir permitiu para que, ao agir sobre
O livro-objeto Ulisses com Beuys e Joyce presta três grandes ele próprio, o livro, além da história que contava, adquirisse
homenagens: a Ulisses, ao já citado Joyce e ao alemão Jo- outra: a história de si mesmo.
seph Beuys (1921–1986), um dos mais influentes artistas da
segunda metade do século XX. Com uma vigorosa produção pictórica, Lenir de Miranda
trabalhou, nos anos 1970 e 1980, com diversas mídias alter-
A capa, em feltro, é uma referência a Beuys, em cujo traba- nativas, como xerox, vídeo e fax; também teve uma intensa
lho esse material era recorrente. Nela estão presas, graças a participação no circuito da Mail Art internacional, participan-
um fio de nylon, duas penas antigas, que aludem ao universo do de projetos em vários países. Desde a década de 1990,
da escrita e da literatura. O fio que as fixa também prende a principalmente, a artista, que vive em Pelotas (RS), tem
capa à primeira página do livro, fazendo com que, para abrí- desenvolvido livros de artista; todos eles, no dizer de Paulo
-lo, seja necessário empregar força, interagindo com o objeto Silveira, “obscenamente plásticos” (SILVEIRA, 2001, p. 235).
como se fosse um organismo vivo. O exemplar que integra a Pinacoteca Barão de Santo Ângelo
é um desses exemplares, importante não somente pela sua
Na abertura, identificamos o seguinte texto: “São como ca- exuberância formal, mas por expressar de modo intenso a
racteres alquímicos para descortinar alguma verdade que relação de Lenir com Joseph Beuys, sua referência incontes-
deve ser registrada. Um modo de adivinhação, para os in- te no campo das artes visuais, e James Joyce, sua referência
dícios de alguma cena captada. Foram feitos muitos destes inconteste no campo da literatura. Ambos atravessados pelo
desenhos em pequenas folhas que, ao se agruparem, forma- espírito de Ulisses, leitor de sinais.
vam, anunciavam códigos a serem decifrados para algum
vaticínio, uma prenunciação para alguém além de mim.” Aline Corange
Patchwork é um conjunto de três almofadas em cerâmica, da peça oca, impedindo que as placas de barro deformem
decoradas em baixo-relevo com texturas geométricas e co- com o próprio peso. O rigor técnico de Marianita é perce-
loridas em engobe nas cores verde, vermelho, cinza e bran- bido nos detalhes: para que a peça não possua avesso, a
co, com acabamento em baixo-vidrado. A obra, produzida decoração cobre toda a extensão de sua superfície e tam-
por Maria Annita Linck (Porto Alegre, RS, 1924) para o 8º bém disfarça, incorporando em seus sulcos os microfuros
Simpósio Paranaense de Cerâmica, em 1987, foi incorporada destinados à saída do ar quente, evitando a quebra da peça
à Pinacoteca Barão de Santo Ângelo no ano seguinte, como durante a queima.
parte da mostra Nossos mestres, mestres nossos, com tra-
balhos dos professores do Curso de Artes Visuais. Feitas a partir do mesmo molde, cada peça recebe suaves
deformações e texturas geométricas que as individualizam
Patchwork faz parte de uma série de almofadas feitas por e mimetizam o aspecto das almofadas de tecido. Cria-se, en-
Marianita – nome como assina – ao longo da década de 1980, tão, um jogo entre a forma e a matéria, da maciez do mode-
resultado do intenso trabalho de pesquisa e expressão reali- lo contra a dureza da cerâmica. O estranhamento do objeto
zado por ela enquanto docente. Inicialmente pequenas, com macio representado na matéria dura faz eco ao estranha-
menos de 10 cm de lado, a forma é fruto, em igual medida, da mento do objeto decorativo que se transforma, na tradução
experimentação técnica e da expressão intuitiva da artista. do tecido ao barro, em objeto de arte, criando um desloca-
mento de sentido.
A origem das “almofadas” remete ao Jogo das cinco Marias.
Este aspecto lúdico, associado às memórias infantis, é tema Voltando-se à sua interioridade como origem e ao rigor téc-
importante em sua poética, presente também nas Garatu- nico como fim da sua produção artística, Marianita Linck
jas, que decoram potes, e nas corujas iluminadas dos anos atua nas fronteiras entre arte e artesanato acabando, ine-
1970, que remontam às lamparinas utilizadas por sua mãe. vitavelmente, por discutir o espaço deste último no sistema
da arte atual.
Nas obras maiores, como é o caso de Patchwork, uma estru-
tura de paredes internas em forma de cruz faz a sustentação Naieni Ferraz
Mário Röhnelt nasceu em 15 de dezembro de 1950, na cida- essas figuras dá a impressão de esvaecimento ou dissipação,
de de Pelotas (RS). Em 1956, sua família se estabeleceu em em contraste com a sobreposição dos demais elementos.
Porto Alegre, onde reside desde então. Röhnelt é um artista Entretanto, é importante ressaltar que esses dois homens
autodidata, não tendo realizado formação em Artes Visuais. representados são, da esquerda para a direita, Milton Kurtz
No entanto, sua passagem pelo curso de Arquitetura e Urba- e o prórpio Mário Röhnelt. Os dois estão sentados ao redor
nismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, entre de uma mesa, em uma típica cena cotidiana, e é possível
1970 e 1972, foi determinante para seu ingresso no universo estabelecer uma narrativa presente no trabalho, ao obser-
artístico, bem como para sua consolidação como artista. var com mais atenção os demais elementos.
Foi durante este período que o artista estabeleceu alguns
vínculos pessoais que viriam a lhe acompanhar ao longo de Assentada em um plano azul chapado está uma elipse. O in-
sua trajetória artística, como Milton Kurtz (1951–1996), Ju- terior desta é formado por uma série de pinceladas gestuais
lio Viega (1955), Paulo Haeser (1950), Alfredo Nicolaiewsky das mais diversas cores. Chama a atenção o contraste evi-
(1952) e Carlos Wladimirsky (1956). dente entre a aparente fluidez dos traços pictóricos e a rigi-
dez da margem da elipse, que demarca um limite ao espon-
A união de Kurtz, Viega, Haeser e Röhnelt resultou na forma- tâneo, empreendendo um jogo entre esta espontaneidade
ção do coletivo de desenho KVHR, sigla formada pela inicial do traço e as formas geométricas. Pode-se fazer um paralelo
dos sobrenomes de cada um dos artistas. O grupo foi atuan- com o chamado retorno à pintura dos anos 1980, aclamado
te entre os anos 1977 e 1980, e tinha como principal objetivo no período como o retorno da gestualidade na arte.
difundir reproduções em off-set dos desenhos, em forma de
folheto, distribuindo-os via correio. O coletivo acabou dando Já na metade vertical esquerda da obra está uma forma qua-
visibilidade principalmente aos trabalhos de Röhnelt e Kurtz. drangular, que lembra um tabuleiro de xadrez. Röhnelt faz
referência, com isso, ao gosto que Marcel Duchamp (1887–
A obra Sem título, aqui apresentada, data de 1989. Durante o 1968) tinha por esse jogo (TRUSZ, 2014). Seguindo para a me-
período que abrange o final da década de 1970 e os primeiros tade vertical direita, uma espécie de alvo remete aos Targets
anos da década de 1990, o artista empreende uma espécie de Jasper Johns (1930) e, mais abaixo, algumas formas qua-
de acumulação e sobreposição progressiva de elementos no drangulares lado a lado, evocam as investigações formais de
espaço pictórico. Estes são apropriados das mais diferentes Piet Mondrian (1872–1944).
fontes: mídia impressa, arquivos pessoais do artista ou livros
de arte. Destaca-se, ainda, como característica da produção Todas essas referências que Röhnelt faz à História da Arte,
de Röhnelt no citado recorte temporal, o uso de várias cores, juntamente com o caráter inerentemente autorreferencial
as quais são distribuídas em camadas, conforme a sobrepo- da cena cotidiana composta pelo artista e por Kurtz, faz com
sição de elementos. que seja possível perceber em Röhnelt um artista que não
apenas produz seus próprios trabalhos, mas que o faz à luz
Na obra, o artista trabalha justamente unindo seu universo de um questionamento crítico acerca do que foi produzido
privado à História da Arte. Isso se percebe, primeiramente, anteriormente.
ao observar as duas figuras humanas, presentes apenas en-
quanto contorno. O tipo de tratamento que Röhnelt confere a Paula Trusz
Mauro Fuke é escultor, nascido em Porto Alegre, em 1961, e dez, suas formas não deixam de ser delicadas, configurando-
formado pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do se em níveis que se sobrepõem e se encaixam, constituindo
Rio Grande do Sul. Com uma carreira sólida e intensa des- uma paisagem sinuosa.
de os anos de 1980, obteve diversos prêmios, entre eles o de
Desenho, no XI Salão do Jovem Artista, em 1982, e, em 1983, O processo de criação de Mauro Fuke está presente e vivo
o Prêmio Aquisição no 3º Jovem Arte Sul América. No mes- em sua produção. O artista, que desde 1994 utiliza ferra-
mo ano, realizou sua primeira exposição individual na Galeria mentas de computação para planejar suas obras com
Tina Presser, em Porto Alegre. Teve obras expostas em Bie- maior precisão (como a modelagem 3D), sempre desenhou
nais do Mercosul e, em 2002, expôs individualmente no Mu- detalhadamente seus projetos de escultura, para então
seu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (MARGS), em produzi-los. Por serem peças de grande complexidade de
Porto Alegre, e no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo (SP). execução, e realizadas com maestria por Fuke, esse pro-
cesso cuidadoso será perceptível em seu trabalho na me-
A obra de Mauro Fuke que integra a Pinacoteca Barão de dida em que o observador buscar vislumbrar o trajeto feito
Santo Ângelo, intitulada O errado, data de 1992 e é bastan- pelo artista: desde a concepção, clara em sua mente, ao
te representativa de sua poética. A maioria das esculturas processo de passar a ideia a limpo e, então, o momento da
de Fuke são em madeira, ainda que empregue uma série realização; livre de arbitrariedades no momento de feitura,
de outros materiais em suas feituras, como cordão, cabelo, mas não livre de subjetividade. Dessa forma, suas obras
crina, ossos, e possua algumas obras em aço, mas sempre não deixam de ser também proposições que o artista faz a
mantendo a madeira como matéria primordial. Seu trabalho si mesmo. A partir do rigor com que dá corpo a suas ideias,
seduz por se tratar, muitas vezes (e também neste caso), de a produção artística de Mauro Fuke se traduz em delicade-
peças articuladas, que despertam interesse e curiosidade, za e engenhosidade, de peças que discutem, entre outras
ao permitirem a mudança de forma ou de posição. Mas se- coisas, a sua própria forma e funcionalidade, bem como o
duz, principalmente, pelo acabamento, belamente polido, lugar da obra de arte.
que convida ao toque e revela a superfície suave e macia da
madeira. Mesmo em O errado, na qual se percebe maior rigi- Liana Dombrowski
A poética de Romanita Disconzi (Santiago, RS, 1940) é forte- tapostas de cores puras; a fusão, assim, era feita pelo olho
mente marcada pela linguagem pop. Desde seus trabalhos do espectador.
iniciais, majoritariamente em serigrafia, às obras atuais, nas
quais muitas vezes reinventa e modifica o suporte, há uma Sobre Batman, Madonna e Mulher Maravilha, é preciso res-
marcante linha de signos populares e da cultura de massa. saltar suas grandes dimensões, cujas pinceladas amplas e
expressivas acompanham a extensão do quadro. Apreciar a
A obra Batman, Madonna e Mulher Maravilha, de 1993, inse- obra de distanciamentos diversos traz impressões radical-
re-se não somente nesse conjunto, mas na produção que Ro- mente diferentes, variando da clareza das imagens a uma
manita desenvolveu a partir de seu Doutoramento, cujo título certa abstração.
de tese foi Pintura Pós-TV (1991). Sua pesquisa com a televi-
são lhe fez ver a imagem televisiva como uma linguagem, que A união de imagens dentro da pintura é muito influenciada
ela buscou explorar através da pintura. pelo particular da artista. Suas pesquisas trouxeram ícones
televisivos para suas obras, como o sorriso da cantora pop
Durante um período passado em Chicago, Estados Uni- Madonna. Há personagens de histórias em quadrinhos, nes-
dos, nos anos 1980, Romanita realizou pesquisas com ta obra representados pela Mulher Maravilha e o símbolo do
aparelhos televisivos experimentais, que foram de grande Batman, provenientes dos gibis que Romanita leu durante
influência para o seu trabalho posterior. A artista passou sua juventude e que reconheceu como parte importante da
a incorporar, na pintura, elementos da sintaxe do vídeo: a sua iconografia, quando passou a pintar. Por fim, há a ima-
pincelada de cor pura como base, em relação com o pixel, gem de uma grande flor, que sintetiza tanto a visão da natu-
e essas pinceladas dispostas linearmente, como na linha reza como fonte de conhecimento e percepção, como aspec-
do scanner. tos da iconografia cristã, resgatados pela artista.
As poderosas pinceladas de Disconzi trazem múltiplas re- Romanita Disconzi foi professora junto ao Instituto de Ar-
ferências: a retomada dos princípios ópticos adotados pe- tes da UFRGS por vários anos, atuando na Graduação e na
los impressionistas e pós-impressionistas, especialmente Pós-Graduação.
Georges Seurat (1859–1891), que primava por não misturar
as cores, estruturando suas obras a partir de pinceladas jus- Jéssica Bernardi
O desenho é a base do pensamento poético de Flávio Gon- Os grafismos e desenhos que se projetam no espaço e supor-
çalves (Porto Alegre, RS, 1966), artista plástico, pesquisa- te do papel partem do que Gonçalves chama de “documen-
dor e professor do Instituto de Artes da UFRGS, atuando tos de trabalho”, determinantes no processo de instauração
na Graduação e na Pós-Graduação. A concepção, de um da obra concluída. Segundo o artista, documento de traba-
lado, do desenho como desejo, intenção e estratégia, e os lho refere-se ao “[...] estudo do momento anterior à obra e ao
estudos, de outro, dos chamados “documentos de traba- quadro em que esta se situa: são as referências, anotações,
lho”, constituem a tônica de suas reflexões. fotografias, imagens, objetos que circundam ou povoam o
processo de criação” (apud CORONA, 2013, p. 864). Esses
A obra em destaque, intitulada A coleção, foi produzida em documentos são, em suma, a “expressão fantasmática do
1993, durante o seu Mestrado junto ao Programa de Pós- desejo de criar”, fornecendo as formas ou sugestões que se-
Graduação em Artes Visuais da UFRGS. Ela integra a série rão reconfiguradas e interpretadas pelo artista.
Armas do Desenho, na qual Gonçalves, partindo dos con-
ceitos peirceanos de signo, ícone e índice e estabelecendo Esse aspecto constitui, há anos, o cerne do pensamento
um diálogo com artistas como René Magritte (1898–1967) de Flávio Gonçalves. Sua Tese de Doutorado, defendida na
e Jasper Johns (1930), discute o desenho como represen- Université Paris I – Pantheón – Sorbonne, em 2000, revela
tação e também como ação. esse interesse já no título: Où se trouve le dessin? Une idée
de dessin dans l´art contemporain (Onde se encontra o
O título do trabaho sugere uma ligação muito forte com desenho? Uma ideia de desenho na arte contemporânea).
as “figuras” representadas, tanto pela ideia de coleção
de imagens e referências particulares do artista, reunidas Herdeiro de uma tradição que remonta ao mestre Carlos
em um mesmo espaço, como de diferentes processos de Pasquetti (1948), o artista investiga as relações do dese-
construção dessas imagens. Observando a obra, identifi- nho com seus próprios recursos materiais e expressivos,
camos desenhos que lembram peixes ou mesmo aviões; envolvendo aí aspectos como a noção de “espaço”, bem
fragmentos remotos, que se repetem; estruturas eminen- como o diálogo do desenho com as ideias de desejo, in-
temente gráficas; um soldadinho... Somos tentados a per- tenção, projeção e estratégia. Tais lições, explora e discute
guntar: de onde vieram essas formas? E a resposta, prova- permanentemente, seja por meio de seu trabalho plástico,
velmente, está na articulação entre memória, cotidiano e seja em sala de aula, com seus alunos e orientandos.
imaginário do artista, que resgata esses elementos de sua
própria vivência. Jéssica Bernardi
Em um mundo afogado pelo excesso de estímulos visuais, como um espectro do olhar que se derrama inconcluso.
no qual constantemente olhamos e somos olhados, adensar Pouco importa. O que importa não é o que se vê, mas o que,
o olhar deflagra uma atitude de exceção física e ideológica. oculto, entranha-se por detrás do que é visível. O quadro
A participação ativa do espectador na construção de senti- aglomera camadas de tinta que explodem no olho como
dos suscitada por uma obra artística obriga a ruptura com a coisa viva, vibrante. Algumas figuras são violadas, tendo
lógica cotidiana do olhar – que, acostumada a códigos social- seu fundo extirpado, tornando-se contorno através do qual
mente pré-estabelecidos, atribui significados planos ao que é tocamos o fundo. Estamos diante da aparência profunda.
visto. Esta imprescindível reconfiguração do olhar evidencia-se Rompendo com a ilusória perspectiva renascentista, a tela
no encontro com a pintura de Mara Alvares (Porto Alegre, RS, é caos organicamente harmonizado como matéria onírica
1948), professora junto ao Instituto de Artes da UFRGS durante em corpo pictórico. Como em um sonho, ou em uma aluci-
vários anos. Encantamento tardio em sua trajetória artística, nação a nitidez e exatidão factual fraturam-se, deturpando
marcada pelos trabalhos com fotografia, veiculados pelo gru- o consciente às raias do inconsciente, emergido por meio de
po Nervo Óptico, nos anos 1970; a pintura se tornou meio para imagens que, colididas e fundidas, acontecem. Mara Alvares
lidar com questões originais propostas pelos materiais. plasma um evento, condensa com manchas e pinceladas
mais ou menos delineadas, sensações. Os objetos adquirem
Não correspondendo facilmente a expectativas, nem forne- carnadura e, sendo carne, pulsam.
cendo fáceis respostas, a obra detona uma crise da visibili-
dade ao convidar e exigir do olhar tempo para reflexão. Invo- A composição é líquida, sinuosa, promíscua. Tal impressão
cando a dança das retinas, a direção do olhar arbitrada no pode resultar do processo compositivo adotado pela artis-
Ocidente, da esquerda para a direita, é desequilibrada, posto ta que, em entrevista, afirmou que às vezes até o próprio
que inexiste um centro na obra: figura alguma ocupa posição material, a umidade da tinta e o tempo que esta leva para
protagônica. Contrariando linearidades, as pinceladas nos en- secar concorrem para a formação de uma imagem pictóri-
redam em um jogo de cores que nos capturam – não levando ca. É no pleno instante do embate com a matéria que a ar-
o olhar a um determinado destino – mas sedutoramente o de- tista acessa um reservatório de imagens transitoriamente
sencaminhando rumo à nebulosa deriva, ao delírio vertiginoso apreendidas, esquecidas ou denegadas. A arte de Mara Alva-
da sensação, ao passo de dança que eletriza o corpo. res eclode na transubstanciação alquímica da matéria, que
ganha corpórea visibilidade.
A tela exibe um acúmulo de imagens justapostas, que, se-
paradas, podem ser rápida e inseguramente identificadas, Andrei Moura
Vera Chaves Barcellos (Porto Alegre, RS, 1938) é artista mul- colocar em discussão os rendimentos e limites da própria
timídia e presidente da fundação que leva seu nome, locali- linguagem fotográfica. A atenção inicial que a artista de-
zada em Viamão, na região metropolitana de Porto Alegre. dica ao processo de produção e reprodução de imagens
Na década de 1960, estudou artes na Inglaterra e na Holan- se estende a uma investigação da percepção e a estraté-
da e, neste período, dedicou-se à gravura. Em 1975, rece- gias não tradicionais de circulação das imagens. Assim,
beu bolsa de estudos do British Council, no Croydon Col- Vera Chaves Barcellos explora a flexibilidade das imagens,
lege, em Londres, quando a fotografia passa a ser a lingua- abordando questões visuais, semânticas e de uso. Em sua
gem que desempenha papel central em sua obra. Um ano produção, a foto é usada em eletrografias, serigrafia, off-
depois, em 1976, representou o Brasil na Bienal de Veneza set, objetos e instalações.
com a obra Testarte.
No ano de 2014, através de doação da artista, a obra A defi-
Foi na década de 1970 que a artista passou a desempenhar nição da arte passou a fazer parte da Pinacoteca Barão de
papel importante no sistema das artes de Porto Alegre: Vera Santo Ângelo do Instituto de Artes da Universidade Federal
foi uma das fundadoras do Nervo Óptico (1976–1978), do do Rio Grande do Sul.
Espaço N.O. (1979–1982) e também da galeria Obra Aberta
(1999–2002). A artista já participou de diversas exposições Com duração de 24 minutos, a video-performance é data-
individuais e coletivas no Brasil e no exterior. Destacam-se da de 1996 e foi filmada num plano sequencial. Vera Chaves
suas quatro participações na Bienal de São Paulo, além de Barcellos copilou a gravação de várias pessoas discursando
exposições coletivas na América Latina, Alemanha, Austrá- sobre arte e, nesta obra, ela dorme e desperta várias vezes,
lia, Bélgica, Coreia, Estados Unidos, França, Holanda, Ingla- na tentativa de prestar atenção nos discursos. Este trabalho
terra e Japão (SOULAGES, 2009). foi mostrado, em Barcelona, na Fundació “La Caixa”, sala
Montcada, em 1996.
O uso da fotografia é o fio condutor de parte substantiva da
obra da artista. Vera, ao utilizar a imagem fotográfica, busca Fernanda Medeiros
Hélio Fervenza (Santana do Livramento, RS, 1963) é artis- sugere, como em muitas obras de Fervenza, a possibilida-
ta plástico, pesquisador e professor no Instituto de Artes de que a obra de arte contém de revelar e de, ao mesmo
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atuando na tempo, esconder.
Graduação e na Pós-Graduação. É Mestre em Artes Plásti-
cas pela Université de Sciences Humaines de Estrasburgo, Além disso, o trabalho fez parte do projeto Ilimites, concebi-
França (1994) e Doutor pela Universidade de Paris I, Pan- do por Hélio em conjunto com a artista, colega e companhei-
théon-Sorbonne, França (1995). No Brasil e no exterior, ra Maria Ivone dos Santos (1958) e o uruguaio Felipe Secco
realizou exposições individuais e participou de diversas (1964) entre os anos de 1996 e 1997. Ilimites surgiu a partir
exposições coletivas, entre elas a 55ª Bienal de Veneza de um encontro realizado entre esses artistas em 1996, na
(2013), a XXX Bienal de São Paulo (2012), a mostra Inves- fronteira entre o Brasil e o Uruguai. Ao relatar sobre o pro-
tigações: Rumos Visuais 2, em São Paulo (2000), a II Bienal cesso de criação, Hélio comenta que os três artistas ficaram
do Mercosul, em Porto Alegre (1999) e Ilimites, em Monte- vagando pela fronteira entre os dois países e que, muitas ve-
vidéu (1997). Entre suas principais exposições individuais, zes, a demarcação da fronteira não se mostrava visível. As-
destacam-se Passagem Cega, em Brasília (1999); e Plano sim, quando encontravam alguma referência, “[...] o tempo já
de Pasaje, em Montevidéu (1999). Com relação à prática ar- havia passado, as ideias não eram as mesmas, as linguagens
tística, o artista utiliza diferentes recursos, tais como insta- se misturavam e as conversas iam longe. Subjetivamente, já
lações, fotografias, objetos, gravuras, impressos, recortes não éramos os mesmos e a fronteira não tinha o mesmo sen-
em vinil adesivo, entre outros. tido. A essa situação de indefinição que nos interrogava, nós
chamamos ilimites” (FERVENZA, 2006, p. 88).
A Pinacoteca Barão de Santo Ângelo possui em seu acervo
uma obra representativa da trajetória de Hélio Fervenza: Além da exposição supracitada, a obra Ilimites (Constelar) foi
Ilimites (Constelar), de 1997. A obra passou a fazer parte exposta em Porto Alegre e em Montevidéu, em 1997. No ano
do acervo da Pinacoteca após a exposição Artistas Profes- de 2012, também integrou a XXX Bienal de São Paulo.
sores da UFRGS: obras do acervo da Pinacoteca do Insti-
tuto de Artes, realizada no Museu da UFRGS, em 2002. Ela Fernanda Medeiros
Um dos nomes mais importantes no circuito artístico contem- A relação de Regina Silveira com Duchamp é bastante signifi-
porâneo brasileiro, com obras em vários museus e instituições cativa, aparecendo anteriormente em In Absentia M.D. (1983),
nacionais e internacionais, Regina Silveira (Porto Alegre, RS, na qual ela representa as sombras distorcidas de Porta-
1939) está representada na PBSA com a obra Doublé (MD). garrafas (1914) e de Roda de Bicicleta (1914); e é também teóri-
ca, já que ela afirma que a distorção das sombras foram base-
Formada em Pintura pelo Instituto de Belas Artes, Regina foi adas tanto em tratados maneiristas, que faziam da perspec-
aluna de Aldo Locatelli (1915–1962), Ado Malagoli (1906– tiva uma ponte para a fantasia, quanto na ideia de paradoxo
1994) e João Fahrion (1898–1970), dedicando-se primeira- que o artista francês tinha de utilizar a perspectiva como um
mente a esta linguagem, até que, motivada por Iberê Camargo caminho lógico e racional para representações não retinianas.
(1914–1994), passa a adotar a pintura apenas como ferra-
menta para suas reflexões. Nos anos 1970, procura diferentes A utilização de objetos domésticos, que representam parte
meios de expressão, lançando mão de reproduções ou ima- do universo tradicionalmente feminino, aparece também
gens reproduzíveis mecanicamente, como xerox e fotografias. em uma outra série, na qual várias louças brancas comuns,
Procurando questionar o virtuosismo e as técnicas tradicio- como pratos, bandejas e xícaras, são cobertas por sombras
nais, em seu Doutoramento se dedicou às chamadas anamor- de objetos cortantes, alterando, segundo a própria artista, o
foses, ou distorções não tecnicamente corretas e precisas de sentido de inocência e neutralidade desses objetos.
perspectivas, apresentadas com ironia e irreverência.
Com as anamorfoses, Regina Silveira cria discussões bas-
A obra em destaque sintetiza vários aspectos da fase madu- tante trabalhadas no princípio da arte moderna e estendidas
ra da artista. Nela, vemos o desenho de um castiçal de mesa até a contemporaneidade, sobre formas de apropriação do
bastante tradicional, com armas de fogo colocadas nos lu- espaço, usos e significados de objetos cotidianos e a repro-
gares em que estariam as velas. O fundo vermelho vibrante dutibilidade das imagens, pertinentemente colocadas atra-
é cortado por uma sombra branca e alongada que parte da vés de instalações, intervenções em objetos e serigrafia,
base deste objeto, porém a sombra não possui o formato do como em Doublé (MD).
castiçal nem das armas, mas sim o que seria a sombra da obra
Porta-garrafas (1914), de Marcel Duchamp (1887–1968). Caroline Hädrich
Maria Tomaselli, nascida em Innsbruck, Áustria, em 1941, é A litografia Defendendo a casa, de 1997, destaca-se entre a
gravadora, desenhista e pintora. Em sua cidade natal, estu- produção de litografias que a artista realizou junto ao Museu
dou desenho com Heinz Kühn por volta de 1962, e graduou- do Trabalho, em Porto Alegre. Com a presença recorrente de
se em Filosofia Pura, pela Universidade de Innsbruck, em representações figurativas antropomórficas, a obra Defenden-
1965. No mesmo ano, transfere-se para o Brasil e passa a do a casa se relaciona esteticamente com as pinturas que To-
residir em Porto Alegre, onde estuda pintura com Iberê Ca- maselli produziu no final da década de 1980 e início dos anos
margo (1914–1994), entre 1969 e 1970. Na década de 1970, 1990, ainda que preserve as especificidades do meio técnico da
inicia sua formação em Artes Visuais no Atelier Livre da Pre- litografia. O vínculo da obra com a produção desse período se
feitura de Porto Alegre, assistindo às aulas de xilogravura de dá uma vez que, na pintura, a artista liberta as figuras das linhas
Danúbio Gonçalves (1925) e, mais tarde, estuda serigrafia marcadas que caracterizam suas obras anteriores e passa a
com Paulo Menten, em São Paulo, frequentando a Escola defini-las por manchas, buscando rebaixar as cores em tons
Brasil e é premiada na II Exposição Internacional de Gravura, mais suaves e monocromáticos, de modo que se tornem mais
no Museu de Arte Moderna de São Paulo. homogêneas em relação ao fundo do quadro. Da mesma for-
ma, as figuras na litografia de Tomaselli não possuem contorno
Tomaselli também residiu no Rio de Janeiro (RJ), onde to- e preenchimento; elas são formadas por cores chapadas, o pre-
mou cursos de gravura em metal, e em Olinda (PE), onde se to e o terracota, apresentando alguns sombreamentos e falhas.
ligou à Oficina Guaianases de Gravura. Em 1980, em Porto
Algre, cria, juntamente com Anico Herskovits (1948) e Marta Na gravura, Tomaselli consegue trabalhar com sutileza as re-
Loguércio (1945), o ateliê MAM de litografia. Nesse período, a lações de espaço e planos na paisagem, aproximando-se da
artista ainda recebe bolsas de estudo em Roma e Paris. Com sua pintura desse mesmo aspecto. Os temas que a artista tra-
dezenas de exposições individuais em sua carreira, sendo a balha, dos mais variados, mas recorrentemente lúdicos, estão
primeira, na capital gaúcha, no ano de 1967, a inserção de muitas vezes bem apresentados no título das obras, favore-
Maria Tomaselli no sistema das artes reflete a sua vida de cendo a interpretação do observador, porém, sem limitá-la.
constantes mudanças e viagens, com participações e pre-
miações em importantes salões no âmbito internacional. Liana Dombrovski
O primeiro impacto que a obra de Adriano Rojas (Porto Ale- A afirmação de Paul Valèry (1871–1945), de que “o que é
gre, RS, 1967 – Porto Alegre, RS, 2004) causa é em relação às mais profundo no homem é a pele”, sem dúvida se aplica
dimensões da tela. Imponente, o grande formato permite ao à produção artística de Rojas, que, agenciando cor e gesto
artista expandir a participação do seu corpo em altura e largu- pelo plano do quadro, torna profunda a superfície. Superfí-
ra. De fato, para Adriano Rojas, a posição clássica da pintura cie espessa que coagula uma experiência sensorial em um
de mimese representacional do mundo empírico é subvertida experimento visual. Longe de ser decodificada pela razão
em expressão enérgica do gesto diretamente lançado à tela. racionalizante, a pintura deve ser degustada pelos senti-
Morto prematuramente aos 36 anos, o artista graduou-se em dos, em livre fruição. O artista deseja que, no contato com
Pintura pelo Instituto de Artes da UFRGS em 1995. a obra, outros canais perceptivos operem: “Quando pinto,
quero dar ao espectador uma maior sensação de fruição
Sua obra, inventiva e pessoal, é ponto de encontro entre a cor- formal do quadro, uma fruição advinda de suas sensações
poreidade do artista e o corpo pictórico, que resulta singular, visuais do que de qualquer outro aspecto”. Uma pintura que
inconfundível. O tema de sua pintura é a própria pintura, em não afirme – não torne um conteúdo firme, estável, confi-
sintaxe e ação: “Gostaria que minha pintura fosse vista como nado pela figura –, mas que verta, visualmente deslize e,
aquilo que ela efetivamente é, não como o que ela pode ser, incerta e ambígua, mostre.
ainda que eu saiba ser este um desejo difícil de ser alcançado
[...], pois associações acontecerão, inclusive de minha parte”. A abstração é, para Rojas, escolha estética intencional, mar-
ca personalizada carregada de ideologia – que atemporaliza
Mais do que conduzido por uma ideia preconcebida, o ato de sua manifestação plástica, incorporando seu gesto ao amplo
criação, para o artista, é determinado pelos obstáculos e ru- tecido histórico precedente e futuro, ao coração e ao gérmen
mos propostos pelos materiais e instrumentos empregados: da própria criação artística que eternamente retorna, sempre
tinta, tela e pincel – e a dinâmica do gesto. Indisfarçados, os pela diferença, como defende Gilles Deleuze (1925–1995).
vestígios do processo criativo integram essencialmente a to-
pografia do quadro. Andrei Moura
A partir de fotografias coloridas, nas quais há a intervenção de O que percebemos na obra tem seu significado complemen-
outros prédios, de automóveis, de pessoas e mesmo do próprio tado se pensarmos no ato em que não participamos. Pois,
céu azul, Maristela Salvatori (Porto Alegre, RS, 1960) recria no caso dessa série, na própria confecção das gravuras em
estas situações, antes permeadas por diversas interferências, metal já estão o tempo manipulado e o silêncio que provém
em cenas que sugerem distanciamento e abandono. A série de desta técnica (SALVATORI, 2002). É a artista quem apro-
monotipias e gravuras em metal, iniciada em 1997, traz imagens pria-se da quietude e de pausas temporais e transporta-as
do cais de Porto Alegre, sua cidade natal. As ambiências reima- para o papel, criando uma dimensão em que o que podia
ginadas por Salvatori são pautadas pelo contraste acentuado ser controlado já o foi: espaço e tempo, que não eram de
da curta gama de cinzas-escuro e preto das docas e das ruas do ninguém, mas mesmo assim abarcavam a todos, agora tor-
cais contra um céu plenamente branco, intensificando o senti- nam-se só seus.
mento solitário, de afastamento (CATTANI, 2004).
É a partir da pesquisa em gravura que a artista consegue
Um dos resultados obtidos é o díptico Cais do porto XXX, de elaborar um trabalho que discute tanto uma técnica ar-
1998, no qual os horizontes da gravura parecem se estender tística, pautada pelo silêncio e tempo de espera, quanto
para além da nossa percepção, e os dois prédios, em um en- uma temática. Tendo como ponto de partida as fotografias
contro fictício, formam uma arquitetura imaginada por sua coloridas e povoadas, a artista vai extraindo as situações
esquematização lado a lado. A situação em que os grãos e indesejadas, subtraindo por completo cores e movimenta-
as linhas que formam o espaço portuário se contrapõem ao ções, promovendo um esvaziamento absoluto de presença
branco absoluto do céu remete a uma desolação quase com- de ruídos, no qual o rastro de humanidade só é percebido
pleta, mas parece que algo está à espreita, quando nos intro- pelas construções que ela deixa para trás, pairando em um
duzimos na obra (ZIELINSKY, 2004). O que existe por trás tempo imensurável.
das portas lacradas? Além do que vemos, para além desse
horizonte, ainda há humanidade? Estamos completamente Além de artista visual, Maristela Salvatori é professora e pes-
sozinhos? Em completo abandono? A resposta parece não quisadora junto ao Instituto de Artes da UFRGS, atuando na
vir, há um mistério profundo em torno de toda a atmosfera de Graduação e na Pós-Graduação.
dura luminosidade criada pela artista. O frenesi humano do
cais torna-se ausência, desamparo e espera. Lúcia Marques
Escultor, cenógrafo e pesquisador, Felix Bressan (Caxias do realça esse caráter físico, tátil: está presente ali uma espé-
Sul, RS, 1964) é professor de Escultura junto ao Instituto de cie de sujeição dolorosa do corpo feminino imaginário às
Artes da UFRGS. formas e limites da obra.
A obra em destaque integra a prolífica série O corpo ausente, Internamente, vemos dezenas de pequenas estruturas feitas
desenvolvida a partir da década de 1990, durante seu Mes- de látex e sem tamanho uniforme, afirmando o caráter visce-
trado junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais ral da escultura, ao sugerir a ideia de cavidades e entranhas.
da UFRGS. Podemos notar, nessas construções, uma forte As alças do corpete, também aparafusadas, conferem, além
conotação sexual, de viés fetichista, não apenas pelas for- de firmeza à construção, o viés de aprisionamento. A porção
mas, mas pelos materiais recorrentes: couro e metal. inferior, sugerindo uma “saia de armação” oitocentista, é
mais leve, em comparação ao corpete. Deste, saem fios de
Durante anos, Felix Bressan trabalhou como professor em ferro, em formato curvo, encadeados e parcialmente articu-
um curso de modelagem de vestuário, em sua cidade natal, láveis. Lançando mão de presilhas, além de dobras feitas no
Caxias do Sul. Esse conhecimento, ele incorporou aos traba- próprio metal, a estrutura da saia transmite uma aspereza
lhos da série O corpo ausente. Também é marcante, em sua gélida e plúmbea.
poética, de um modo geral, a referência a Marcel Duchamp
(1887–1968), notadamente no que se refere à aproprição de Suspenso por um delicado fio, que lhe permite rotação, este
objetos e artefatos industrializados, que o artista desmonta “corpo ausente” defronta-se com o espectador, devido a seu
e reconstroi, propondo novos significados. tamanho, às proporções humanas e à forma de exposição
sugerida pelo artista, estabelecendo uma relação igualitária,
Observando a escultura, identificamos a parte superior re- de corpo a corpo, com o público.
vestida com couro, sendo que os veios remontam à tonali-
dade e até mesmo à textura da carne crua. O bojo para os Ao lidar com ausência e presença, matéria e evocação, de-
seios está pesadamente cravejado de parafusos que tres- sejo e fantasia, Felix Bressan nos oferece uma obra diante da
passam o pontiagudo acabamento em forma de triângulos, qual não é possível permanecer indiferente.
numa posição ambivalente de enfeites – como se fossem
joias –, mas também como perfuradores e fixadores, o que Diego dos Santos
Cava, como é conhecido Wilson Furtado Cavalcanti (Pelotas, nhecida como ouroboros, símbolo místico que remete a uma
RS, 1950), é artista com formação no Atelier Livre de Porto situação de eterno retorno. Um malabarista, por sua vez,
Alegre. Seu trabalho é pautado por uma forte presença figu- sustenta-as com a planta dos pés, em um desconcertante
rativa. No início dos anos 1980, após sua primeira exposição equilíbrio, uma vez que ele se encontra não apenas de cabe-
individual, escolhe isolar-se temporariamente do circuito ar- ça para baixo, como apoiado em uma vassoura.
tístico rio-grandense, mas prossegue com sua produção ar-
tística. Muda-se para Fortaleza (CE), também passando pelo Percebemos a sugestão do movimento trepidante das fi-
Pará, realizando uma pesquisa de gravação com materiais guras pelas marcações no entorno das mesmas: pequenos
típicos do local (VAZ, 2010). É nesta época que Cavalcanti borrões que nos dão a impressão da dificuldade para manter
inicia a produção de xilogravuras, e é por essa técnica, atual- tal estrutura.
mente, que o artista é mais lembrado, mesmo com uma pro-
dução numerosa de desenhos e gravuras em metal. Quando Pela xilogravura, o artista interpreta e expressa, de um modo
retorna ao Rio Grande do Sul, ainda nos anos 1980, Cava re- singular, assuntos lúdicos e autorreferenciais, símbolos de
toma seu vínculo com o Atelier Livre, atuando, desde então, complexa espiritualidade, bem como situações que ele iden-
como professor de Gravura (VAZ, 2010). tifica como cotidianas e, ao mesmo tempo, fantásticas. Esta
técnica complementa sua produção de viés mais político,
A gravura em destaque, Sentada na cobra, apresenta as manifestada em suas gravuras em metal.
figuras centralizadas, enfatizando a verticalidade; elas es-
tão dispostas contra um fundo neutro, sem interferência de Preferindo organizar as gravuras em grupos e não em séries
outros planos. que iniciam e se encerram, Cava abre a possibilidade de que
certas temáticas sejam retomadas no decorrer dos anos. Sen-
Em uma situação de ares circenses, vemos uma mulher de tada na cobra está inserida no grupo Equilíbrio e foi produzida
cabelos soltos e desgrenhados, em vestimenta burlesca, em 1999 para o Consórcio de Gravuras do Museu do Trabalho.
abrindo um espacate no ar. Curiosamente, ela está apoiada
em uma cobra que devora seu próprio rabo. Tal figura é co- Lúcia Marques
Além de artista plástico, Luiz Antonio Carvalho da Rocha, co- sentido e interpretação, além e através da própria fragmen-
nhecido como Nico Rocha (Passo Fundo, RS, 1954) é arqui- tação de suas formas. Segundo ele, não mais interessava
teto, museógrafo e professor de Desenho junto ao Instituto exclusivamente o resultado final dos trabalhos, mas o estra-
de Artes da UFRGS. Iniciou sua relação com as artes visuais nhamento e questionamento sobre seu próprio fazer artísti-
através do desenho, ao qual se dedicou até meados da déca- co durante o processo criativo. A consciência desse proces-
da de 1970. Desde 1980, quando estreou no circuito artístico so o instigava a perceber novas possibilidades em suas dire-
porto-alegrense, participou de diversas exposições indivi- ções interpretativas ao materializá-las (ROCHA, 2011). Nesse
duais e coletivas, nacionais e internacionais. Possui obras ambiente encontra-se a escultura aqui destacada, que passou
públicas de relevância na Usina do Gasômetro, na PUCRS, a integrar o acervo da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo em
na UFRGS e também no complexo hospitalar da Santa Casa, 2000, por ocasião da participação de Nico Rocha na exposi-
todas em Porto Alegre. ções Singular no plural 4, com curadoria de Blanca Brites.
O desenho pode ser considerado como fundamento estru- Esta escultura está colocada, em uma genealogia proposta
tural de seus trabalhos, embora Nico Rocha apresente-se pelo próprio artista, em um período de fragmentação das
como escultor. O artista, inclusive, afirma que a escultura, de formas do corpo humano, ao qual ele se propõe a partir da
maneira geral, foi um meio para que ele pudesse trazer seu década de 1990. Aqui, sua fragmentada figura humana pro-
desenho à uma presença física, compartilhando o espaço e põe movimento, induz um gesto, equilibrado pelos dois eixos
também dando vida aos seus traços, além de uma extensão estruturais de ferro expostos que a atravessam. A transpa-
do bidimensional para o tridimensional. Não é a toa que as rência de camadas, o volume e a densidade possibilitados
propriedades dos materiais escolhidos por Nico para suas pelo material maleável que utiliza é uma característica mar-
esculturas – malhas metálicas e outros metais deformáveis cante do trabalho, contrapondo-se às pesadas estruturas
– assemelham-se formalmente à linhas desenhadas. de suas obras públicas. Ao ser exposta suspensa, permite
ao observador encará-la de diversos ângulos e sua ilusão de
De uma fase inicial de viés realista, em que o artista produ- leveza nos leva novamente ao desenho, no qual suas figuras
zia figuras humanas integrais, Nico Rocha passa progressi- também flutuam na planaridade do papel.
vamente a propor uma espécie de autonomia subjetiva para
suas esculturas, com a ideia de criar certa ambiguidade de Guilherme Bragança
Espere. Espere um pouco mais. Comece o exercício de sentir Em Chá de banco, Elida dispõe na tela saquinhos de chá que
o tempo da maneira mais honesta possível: sem fazer nada, foram mergulhados na água. O líquido que marca a superfí-
mas bem acordado. Apenas esperar. Permita que aflorem cie já não é a água nas suas propriedades naturais (incolor,
pensamentos e ansiedades, inquietações físicas, movimen- inodora, insípida), mas exatamente o oposto. Cor, cheiro,
tos repetidos com a perna, dedos tamborilantes. Comece sabor, transformação rápida que acontece ao mergulhar o
com esse exercício de sentir o tempo ao longo do tempo e saquinho de chá, transmutação que acontece em um mo-
não apenas os sinais de que ele passou, aconteceu, agiu. Co- mento curto, no contato delicado entre as duas matérias.
mece sentindo o tempo, pois é sobre tempo que fala Chá de A marca na superfície da tela é resultado de um tempo mais
banco (2001), de Elida Tessler (Porto Alegre, RS, 1961). longo, durante o qual o líquido escorreu lentamente e dei-
xou, a partir das novas propriedades adquiridas, marcas.
A artista e professora do Instituto de Artes, que começou Mas evaporou, ficando apenas o que estava diluído, acon-
sua formação graduando-se com ênfase em Desenho pela tecendo uma transformação de outra ordem, lenta, subtra-
própria instituição, apresenta uma obra de sua fase corren- tiva. Não vemos esse processo acontecer. Temos apenas,
te, mais complexa, com a carga de um Doutoramento. Ques- diante de nós, o produto das operações. Mas elas são tira-
tões da arte contemporânea já estão mais desenvolvidas em das do cotidiano, são conhecidas, são nossas também.
sua poética, e a materialidade de suas obras não constitui A partir desse aspecto, podemos intuir procedimentos e
o trabalho em si, mas o vetor de uma percepção e reflexão tempos, apropriar-nos do processo e, assim, da obra.
sensíveis. Enquanto artista-pesquisadora – ou pesquisado-
ra-artista, as duas ideias ao mesmo tempo –, Elida Tessler O título do trabalho refere-se à expressão popular que in-
não desvincula a teoria da sua prática artística. Pesquisa e dica a situação em que uma pessoa fica esperando por ou-
criação acontecem ao mesmo tempo, juntas, sendo difícil – e tra. Tal estado de espera, que tendemos a perceber como
talvez desnecessário – identificar em que ponto termina uma tempo perdido, tempo vazio, aqui é sugerido como tempo de
e começa outra. transformação: transformação súbita ou lenta, suave ou radi-
cal. Essa é uma marca de Elida Tessler. Seus trabalhos são
Apresentada na exposição Artistas Professores: obras do paradoxais nesse sentido. Sutilezas colossais, golpes sua-
acervo da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo do Instituto ves. Ela desperta o espectador, desanestesia para percep-
de Artes da UFRGS, com curadoria de Maria Amélia Bu- ções, sensações e sentidos que já estão ao seu redor.
lhões e José Avancini, no ano de 2002, a obra passa a fazer
parte da PBSA. Filipe Conde
Luiz Gonzaga Mello Gomes, ou simplesmente, Gonzaga, nas- conjunto em 2014, com O crepúsculo e A aurora, durante sua
ceu em Júlio de Castilhos (RS), em 1940. Formado em Escul- exposição na Sala Fahrion, da Reitoria, integrando o projeto
tura pelo IBA, em 1966, o artista foi, durante anos, professor Percurso do artista, promovido pelo Departamento de Difu-
universitário: de 1969 a 1985, trabalhou na Universidade Fe- são Cultural (DDC) da UFRGS.
deral de Santa Maria (UFSM) e, de 1985 a 1996, no Instituto
de Artes da UFRGS, formando diversos artistas. Por sua originalidade, Fases do dia é um conjunto que sin-
tetiza de maneira exemplar as múltiplas referências da pro-
Seu primeiro contato com a escultura e a modelagem teve dução poética de Gonzaga. Não só pelo título de cada peça,
um tom relativamente profético. Morando em uma fazenda, mas também pela ordem própria na qual o artista as conce-
Gonzaga desde cedo esteve cercado por referências que, be, Fases do dia revela, de forma proeminente, o estreito e
mais tarde dariam a entonação essencial de sua produção. passional vínculo que Gonzaga mantém com a natureza em
O artista conta que, na infância, em uma das tantas brinca- seu processo criativo.
deiras em torno de um riacho próximo, decidiu pegar uma
porção do barro que se formava no fundo. Instintivamente, O dia, O crepúsculo, A noite e A aurora: alteração propo-
acabou modelando uma cabeça humana, forma que seria sital da ordem comum que, segundo o artista, deve-se ao
abordada muitos anos mais tarde em seu trabalho, prin- eterno retorno do nascimento do dia e à própria continui-
cipalmente nos anos 1970, já utilizando um material pouco dade eterna e elementar de uma natureza não só terrena,
comum aos escultores, a resina sintética. Desde então, a mas também universal. A abstração das formas e texturas
relação entre Gonzaga, seu fazer artístico e a natureza – hu- apropriadas de plantas, cascas de árvores, espinhos, aves,
mana e vegetal – aprofundou-se exponencialmente. É esse o entre outros; o antropomorfismo próprio da linguagem
universo poético que explorara até hoje. formal do artista; as dimensões de grande proporção; a
frontalidade e o multicolorismo expressivo são marcantes
A expressão da obra de Gonzaga no circuito das artes se dá nesse conjunto, o que causa não só um sensível impacto vi-
principalmente em acervos de instituições, além de algumas sual no observador, mas também amalgamando de manei-
obras públicas, galerias e coleções particulares. O conjunto ra relevante a peculiar interpretação abstrata proposta por
da série aqui destacado, Fases do dia, foi doado à Pinacoteca Gonzaga. Enfim, uma ode ao homem e sua posição frente à
Barão de Santo Ângelo em dois momentos distintos: a pri- exuberância da natureza.
meira “dupla”, O dia e A noite, dentro das comemorações do
centenário do Instituto de Artes, em 2008; completou-se o Guilherme Bragança
A obra Construção I integra a série de desenhos intitula- tônicos, com a ilusão de tridimensionalidade, conquista dos
da Construturas, de Marilice Corona (Porto Alegre, RS, estudos renascentistas em perspectiva.
1964). Foi exibida na mostra homônima, realizada em
2003, na Galeria Iberê Camargo da Usina do Gasômetro, Problematizando a autorreferencialidade e estabelecendo
na capital gaúcha. um profícuo diálogo entre a pintura e a fotografia, a artista
também investiga a representação das três instâncias que
Através de um amálgama de procedimentos e materiais, perpassam o trabalho artístico, notadamente o da pintura: o
como grafite, bastão a óleo, pastel seco, fita adesiva e óleo de espaço de produção, o espaço de representação e o de apre-
linhaça sobre papel, Corona apresenta, neste trabalho, for- sentação das obras. Como um recurso especular, Corona faz
mas que propõem uma relação com elementos que remetem a obra dobrar-se sobre si mesma, sobre suas referências e
a motivos decorativos e arquitetônicos. Identificamos listras, seus modos de exibição (CORONA, 2009).
círculos, linhas retas e curvilíneas, sombreados, noções de
superfície e profundidade, configurando planos sobrepostos Neta de Fernando Corona, Marilice ingressou no campo artís-
num campo pictórico geométrico. Deslocados e reconfigura- tico do Rio Grande do Sul em meados da década de 1980. Foi
dos, esses elementos se distanciam de sua matriz, propondo aluna e hoje atua como docente junto ao Instituto de Artes da
uma nova estrutura. UFRGS, atuando na Graduação e na Pós-Graduação. Em suas
obras, explora perspectivas e ambiguidades perceptivas. Com
Em sua poética, Marilice Corona frequentemente discute as- isso, propõe novas relações entre as figuras e os espaços.
pectos como a construção do espaço pictórico e, para tanto,
recupera a representação de cenários e ambientes arquite- Nataliê dos Santos Silveira
Conhecido pelos trabalhos como ilustrador e quadrinista, de fundo conferem uma certa orientação cartográfica ao es-
Fabio Zimbres (São Paulo, SP, 1960) também se destaca na pectador, uma vez que os elementos desenhados no fundo
produção de publicações independentes, como os fanzines, laranja estão orientados ao contrário dos elementos dese-
e trabalhos em desenho e pintura. Formado pelo Instituto de nhados no fundo de tonalidade azul.
Artes da UFRGS, o artista mescla elementos do desenho dos
quadrinhos em diferentes suportes e técnicas. Zimbres é, de Na parte superior, riscos em amarelo e marrom sobrepõem
certa forma, um artista “marginal”, e suas obras resultam em o fundo laranja. No centro, uma mesa verde com um per-
um trabalho híbrido, com elementos ambíguos ou indefinidos. sonagem de chapéu triangular, metade marrom e metade
amarelo, apoia-se na mesa. O personagem pode ser encon-
A obra Histórias ilustradas nº 1, uma serigrafia com seis im- trado em outras obras ou histórias em quadrinhos do artista.
pressões, foi originalmente produzida para o Museu do Tra- Uma fumaça preta surge da mesa, formando um outro per-
balho, sediado em Porto Alegre, que mensalmente convida sonagem com uma máscara ninja. No canto direito, sobrepo-
artistas para uma experiência com diversas técnicas: seri- sições de elementos geométricos e cores transformam tra-
grafia, xilografia, litografia e gravura em metal. O resultado foi ços e manchas em formas que lembram um animal voador.
apresentado no Consórcio de Gravuras, uma iniciativa cujo Logo abaixo, três listras em azul-escuro.
objetivo é possibilitar ao grande público o acesso a trabalhos
de artistas, bem como auxiliar na manutenção do espaço. Na parte inferior, composto de manchas de azul-claro, azul-
-escuro e preto, um prédio verde lembra o histórico Edifício
Nessa obra, Zimbres utiliza-se do pincel aplicado diretamente Sulacap, com seu topo de forma piramidal, na Avenida Bor-
no acetato para desenhar traços finos ou grandes manchas ges de Medeiros, Centro Histórico da capital gaúcha. No can-
coloridas. Linhas frágeis e grandes formas, densas e pesadas, to direito, uma cadeira em amarelo.
características do artista, são desenhados aleatoriamente.
Zimbres explora a particularidade da técnica da serigrafia, Todos esses elementos fazem parte da relação de Zimbres
sobrepondo desenhos e cores, para, assim, criar seus signos. com seu cotidiano, são temas recorrentes em sua obra: es-
paço urbano, objetos e memórias. Portanto, não há uma pro-
O fundo é composto por duas cores, sendo laranja na par- posição de narrativa, e sim uma experimentação de cores
te superior, azul-escuro e azul-claro na parte inferior. Há um sobrepostas com uma variação de elementos visuais.
espaço em branco, que divide as cores de fundo e serve de
espaço para o artista assinar e numerar o trabalho. As cores Pedro Cupertino
Paulo Silveira
reunia, nos anos 1980, os projetos citados, e depois outros a serem criados (nos
anos 1990, seria rebatizado como Unicultura).1 Não havia, ainda, uma especifi-
cação para as artes visuais e acredito (por envolvimento direto ou indireto com
essas produções) que a desatenção tenha origem no próprio Instituto de Artes,
aqui representado pela Pinacoteca, então o mais óbvio espaço para difusão da
produção artística, mas um pouco apagada durante um intervalo de tempo e
algo distante dos esforços para incremento da divulgação da produção acadê-
mica. No momento em que a atenção foi despertada e efetivada – e a demanda
da Pró-Reitoria de Extensão foi atendida –, algo novo quanto à visibilidade da
presença do IA estaria no ar, o projeto Uniarte, apropriando-se com justiça do
nome preexistente, do antigo Uniarte (que unia vários projetos culturais), uma
correção necessária e urgente. Ele iria fomentar as ambições expositivas apoia-
das em interfaces comunicacionais mais relevantes. É provavelmente a partir
Total presença – Gravura, 2005, Total presença – Desenho, 2007, e Total presen-
ça – Pintura, 2009, que, seguindo seus propósitos, fizeram-se acompanhar de
CD-ROMs homônimos, documentando importantes parcelas da coleção do IA.
Foram frutos diretos do projeto Informatização e divulgação do acervo artístico
e documental da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, Instituto de Artes, UFRGS,
coordenado por Blanca Brites entre 2000 e 2014, e que, a partir de então, pros-
segue a pesquisa Acervos artísticos universitários: artistas professores da Pinaco-
teca Barão de Santo Ângelo do IA/UFRGS, que tem como um de seus objetivos
“[...] preservar e interpretar a Pinacoteca Barão de Santo Ângelo em seu as-
pecto material (obras), o que significa revisar também o aspecto imaterial que
lhe é subjacente, ou seja, sua história artística, tendo como foco a produção dos
artistas professores”. 10 Brites coordena projetos associados ao acervo artístico
desde 1995, em constante parceria com outros professores e estudantes. A ter-
ceira exposição da série, Total presença – Pintura, por causa de suas necessida-
des ampliadas, usou um espaço simultâneo, o Paço Municipal, da Prefeitura de
Porto Alegre.
E um último resultado do trabalho de grupos de pesquisa deve ser mencio-
nado, a exposição Branco de forma, em novembro e início de dezembro de 2014. Foi
organizada pelo grupo Objeto Tridimensional: Transversalidades e Compartilha-
6 Além dos mencionados, Adolfo Bittencourt, Adriane 12 Tome-se, além do mérito pela sua importância nas relações
Hernandez, Alberto Semeler, Carlos Augusto (Carusto) institucionais, o relato de Paulo Gomes, Acervo Artístico da
Camargo, Cláudia Zanatta, Elaine Tedesco, Eny Schuch, Felix Pinacoteca Barão de Santo Ângelo: pesquisas em História da Arte
Bressan, Flávio Gonçalves, Helena Kanaan, Laura Castilhos, e atividades acadêmicas formativas, realizado em março de 2014,
Lenora Rosenfield, Luiz Eduardo Achutti, Maria Ivone dos durante o II Seminário Interdisciplinar de Pesquisa em História
Santos, Marilice Corona, Maristela Salvatori, Nico Rocha, Paula da Arte, promovido pelo Bacharelado em História da Arte, com
Mastroberti, Rodrigo Núñez, Sandra Rey, Teresa Poester, participação de comunicações de 23 professores e alunos do
Teresinha Barachini e Umbelina Barreto. curso, no Auditorium Tasso Corrêa do Instituto de Artes.
Artista que tem em sua trajetória a forte presença da fotogra- de carros. Esses dois veículos transmitem para o artista uma
fia e da pintura, Eduardo Vieira da Cunha (Porto Alegre, RS, relação de passagem do tempo, pois servem como meios de
1956) traz até nós uma atmosfera lúdica e nostálgica. Ba- transporte, nos quais, uma vez dentro deles, o tempo não
charel em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS em passa mais da mesma forma do que no ambiente externo.
1983, atuou como repórter fotográfico do jornal O Globo entre
1978 e 1987. Em 1988, é contemplado com bolsa de estudos A obra em destaque, de 2007, possui uma particularidade no
da CAPES, que lhe permitiu realizar Mestrado em Pintura no seu suporte, que é um material normalmente utilizado como
Brooklyn College, da City University of New York, nos Estados matriz para linoleogravura. Neste aspecto, temos uma rela-
Unidos, que viria a concluir em 1990. Em 1997, viaja à França ção interessante, pois Vieira da Cunha, mesmo executando
para fazer seu Doutorado em Artes Plásticas pela Université algumas incisões, colore o linóleo de forma que seu caráter
Paris I – Panthéon-Sorbonne. Atua como docente no Instituto como matriz é inutilizado. Esta ironia parece estabelecer
de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul desde uma relação com os primórdios da fotografia, na qual as ima-
1985, tanto na Graduação, como na Pós-Graduação. gens do daguerreótipo eram fixadas em uma placa de super-
fície espelhada, resultando em uma imagem única.
Pintor, gravador e fotógrafo, Eduardo Vieira da Cunha pos-
sui quatro obras na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo: uma Na composição, é como se observássemos um cenário ima-
pintura, um desenho e duas gravuras. É constante em seus ginário em construção pela figura do homem. Este digita em
trabalhos a atmosfera de um ambiente fantástico, que reme- sua máquina de escrever e de lá saem dois livros abertos. Um
te à infância e às memórias. O artista apresenta uma série de convite para a leitura e para a imersão no fantástico.
figuras recorrentes, que constituem um repertório próprio
de signos, como, por exemplo, a representação de aviões e Marina Muttoni Roncatto
Artista formada pelo Instituto de Artes da UFRGS, Elaine Guarita Rembrandt faz parte da série, mas não esteve na
Tedesco (Porto Alegre, RS, 1963) desenvolveu uma série de Bienal de Veneza. É um conjunto de nove fotografias colo-
trabalhos relacionados ao uso do espaço urbano e suas re- ridas, agrupadas e arranjadas em linhas e colunas de uma
lações entre arte e vida. Com a série Guaritas, a artista foi mesma guarita de metal, registrada em diferentes ângulos.
convidada pelo curador-geral Robert Storr (1949) para parti- Essa encontra-se vazia, sem presença humana. Em uma
cipar da 52ª Bienal Internacional de Veneza, realizada no ano de suas laterais, há a reprodução ampliada da obra A noite
de 2007, fora do pavilhão brasileiro. da Sagrada Família, do pintor holandês Rembrandt van Rijn
(1606–1669). No lado oposto, propagandas de chaveiros
Entre os anos de 1998 e 2001, Tedesco registrou guaritas e de uma empresa especializada em som automotivo. Em
de segurança como documentos de trabalho para, poste- outra lateral, vemos um adesivo com a frase “orgulho de ser
riormente, desenvolver instalações que foram chamadas gaúcho”. Em todos os ângulos, é facilmente identificável a
Cabines para isolamento. Ou seja: o conjunto de fotografias fragilidade e o estado de decadência que se encontra o ob-
das guaritas surgiu como referência, como anotações. A jeto de “segurança”. Uma imagem que remete ao abandono,
pesquisa não tinha o objetivo inicial de tornar-se um trabalho. ao descaso, assim como as tipologias desenvolvidas por Ber-
O processo da artista envolve o ato de caminhar pela cida- nd (1931–2007) e Hilla Becher (1934).
de, disposta ao estranhamento, à observação e, posterior-
mente, ao registro como reflexão. Durante suas caminhadas, Elaine registra elementos despercebidos de seu local de ori-
a artista procura contrastes urbanos nas ruas da cidade, gem e apresenta-os agrupados e deslocados, como imagem
transformando a rua, poeticamente, em seu ateliê. fotográfica. As guaritas são construções que indicam um
abandono do presente, encontradas em situações precárias e
As guaritas são construções velhas e ínfimas, destinadas solitárias. Desta forma, a artista traz a possibilidade de uma re-
para o isolamento do ser. São feitas para abrigar um único flexão crítica sobre as relações entre indivíduos e a sociedade.
indivíduo, o vigilante, que, por sua vez, deverá garantir pro-
teção. Elas são encontradas no meio urbano e surgem pela Além de artista e pesquisadora, Elaine Tedesco é professora
insegurança dos moradores de uma determinada rua ou junto ao Instituto de Artes da UFRGS, atuando na Graduação
bairro. Há um grande contraste nas imagens: suas formas e na Pós-Graduação.
aparentam a vulnerabilidade de um objeto produzido para
abrigar e trazer segurança às pessoas. Pedro Cupertino
Gisela Martins Waetge (São Paulo, 1955) formou-se em Ar- do Eduardo Veras, curador da mostra de 2012, em um docu-
quitetura pela Universidade Mackenzie, de São Paulo (SP), mentário sobre a exposição, a limitação que existe no espaço
em 1980. No mesmo ano, mudou-se para Porto Alegre, onde da imagem se expande para o ambiente: a obra é um recorte
iniciou a formação em Artes Plásticas através de cursos teó- de algo que está no mundo.
ricos e orientações práticas com artistas. Cursou desenho
com Zoravia Bettiol (1935) e Vasco Prado (1914–1998); com A gravura, por sua vez, apresenta a minúcia que Waetge dedi-
Karin Lambrecht (1957), no Centro Municipal de Cultura; e ca às suas obras. Entre as dimensões de 39,5 × 39,5 cm, qua-
com Regina Silveira (1939). Em paralelo, estudou História tro círculos fechados delimitam a forma de um quadrado de
da Arte Brasileira do século XX, com Flávia Albuquerque 36 cm de lado (tamanho que adota como base: o número é di-
(1946), museus e bienais, com Walter Zanini (1925–2013), visível tanto por 12 como por 9). A partir dessa nova limitação,
e pintura, com Michael Chapman (1948). Participou da XXI a artista utiliza outros doze círculos (estes sem preenchimen-
Bienal Internacional de São Paulo, em 1991, e da I e da V Bie- to) para formar quadrados menores, cada um com 12 cm
nal do Mercosul (1997 e 2005). Ministrou, também, oficinas de lado. Além destes, mais vinte e um círculos fechados, de
de técnicas variadas de criatividade e desenvolvimento de diâmetros reduzidos, constroem dezesseis quadrados com
produtos artesanais do I ao VII Festival de Quilt e Patchwork dimensões de 9 × 9 cm. Para construir o quadriculado, Wae-
de Gramado (RS). Foi indicada e também premiada como tge utiliza, junto às formas circulares, linhas retas paralelas e
destaque em exposições como o I Salão Nacional de Pelo- perpendiculares que se estendem até os limites da imagem,
tas, 1989 (1º Prêmio); XII Salão Nacional, Brasília, 1991 (Prê- criando a ideia de continuidade, reiterando a afirmação de
mio Aquisição); 32º Salão de Arte Contemporânea de Santo Veras sobre as obras serem um recorte de um espaço maior.
André, 2004 (Prêmio Aquisição); e VI Prêmio Açorianos de
Artes Plásticas, Porto Alegre, 2012 (Destaque em Pintura e Outra característica bastante perceptível na obra é a ideia
Prêmio Artista Destaque Especial do Ano). de sobreposição. Embora a gravura tenha sido construída
inteiramente em uma tonalidade acobreada, alguns traços
Realizada no ano de 2012, para a exposição Base 12 – Base 9, são mais intensos do que outros, permitindo ao especta-
a gravura de Gisela Waetge foi doada pelo Museu do Trabalho dor vislumbrar mais de um plano na mesma imagem: até
e integra sua produção artística iniciada ainda na década de mesmo os círculos, diferenciados tanto em tamanho, como
1990, quando os quadriculados se tornaram uma constante em preenchimento, possibilitam e percepção de quadrados
em sua poética. Apresentado em telas de grandes dimen- que se sobrepõem.
sões na I Bienal do Mercosul (1997), o tratamento já eviden-
ciava o caráter construtivista que, ao longo de sua trajetória, Produzida através do uso de instrumentos de desenho
Waetge viria a retomar, em suas linhas entrecruzadas. técnico, a gravura de Waetge possui um traço suave e pre-
ciso que, aliado à recorrência dos números 9 e 12 em sua
Filha de um arquiteto de veio modernista, a artista diz ter composição, remete aos esquemas gráficos e geométricos
sido influenciada pelo estilo, algo perceptível não somente das Ciências Exatas. Por meio de sua produção delicada e
em suas obras, como também em suas exposições – a arqui- sensível, a artista unifica a matemática à arte, lembrando
tetura dialoga com a arte exposta: os mesmos círculos que ao espectador que o limite entre essas duas esferas é ine-
delimitam os quadrados nas obras são postos nas paredes, rentemente abstrato.
de modo a criar uma ideia de que essas formas são trans-
portadas da arquitetura para as obras, e vice-versa. Segun- Camille Silva
A obra de Walmor Corrêa (Florianópolis, SC, 1961) é atraves- ginários confinados em caixas de música. Já em Você que
sada pelos cruzamentos com os campos da Ciência e da His- faz versos, ele construiu uma silenciosa instalação, cenário
tória Natural, áreas que desde tenra idade provocaram seu que remete à realidade urbana e decadente, na qual seres hí-
fascínio e curiosidade. Quando criança, influenciado pela bridos de pássaros e ratos, taxidermizados, conviveriam em
observação da fauna e da flora, Corrêa frequentou os labo- meio ao lixo.
ratórios de biologia do colégio e esforçou-se por representar
a anatomia aninal, aspectos fundamentais de sua obra atual. Foi a partir desses trabalhos que surgiram os dioramas,
pequenos cenários misteriosos, “fragmentos de uma na-
Dono de um desenho preciso, o artista, que durante anos tureza fantástica”, nos quais vislumbramos cenas com
viveu em Porto Alegre (RS), passou a resgatar, nos anos estranhos animais, notadamente híbridos de pássaros.
2000, essa vivência. Desde então, a aproximação entre Elementos diversos, como madeira, plástico, tinta acrílica
as Artes Visuais e a Ciência vem pautando sua poética, e taxidermia dão forma a esse espaço fictício, que reafirma
como eixo de indagação relacionado à sua incredulidade o interesse do artista na ilusão, a partir dessa fração de um
frente às precisões do conhecimento científico. Sua expe- mundo reproduzido.
rimentação passa a se assentar, fundamentalmente, na
criação de seres improváveis e oníricos, mascarados sob Por outro lado, ao atentarmos para o pássaro à mostra, per-
a representação naturalista, que provocam estranhamen- cebemos algo de estranho, uma peculiaridade em seu bico,
to no observador, estabelecendo uma dicotomia entre re- que se contorna formando uma espiral. Como esse animal
alidade e fantasia. Para Tadeu Chiarelli, é um trabalho que se alimenta? Como ele consegue sobreviver? O artista cria
“desafia nossa crença na verdade da estética do natural” inconsistências em sua representação; sua natureza nos
(CHIARELLI, 2002) e estabelece antagonismos entre sua engana. Novamente, Corrêa está redesenhando as relações
linguagem rigorosa, didática e científica, e a criação de um entre arte, ciência e fantasia, subvertendo-as mediante uma
universo ficcional. “inquietante exatidão” (CATTANI, 2007).
A série Dioramas (2012), que compreende a obra aqui repro- As verdades inventadas de Walmor Corrêa, explorando cru-
duzida, surge como desdobramento da produção exibida em zamentos interdisciplinares, ganharam projeção a partir da
Memento Mori (2007) e em Você que faz versos (2010), am- XXVI Bienal de São Paulo (2004) e, desde então, sua obra
bas inicialmente exibidas no Instituto Goethe, em Porto Ale- tem sido apreciada em importantes museus e instituições
gre. Em Memento Mori (agraciada com o Prêmio Açorianos nacionais e internacionais.
nas categorias de Escultura e Destaque Especial), Walmor
apresentou, entre outras obras, esqueletos de animais ima- Paola Fabres
Realizada no ano de 2013, esta obra de Teresa Sousa Poes- elas não formam barreiras; em vez de aprisionar, funcionam
ter (Bagé, RS, 1954) assemelha-se muito à produção expos- como uma libertação. Os traços, desprovidos de regulari-
ta na mostra Anagramas, exibida na Galeria Bolsa de Arte, dades, convidam o espectador a olhar… a sentir. O colori-
em Porto Alegre, no mesmo ano. Diferencia-se, no entanto, do da obra, executado em pinceladas finas e leves, trazem
especialmente pelo fato deste trabalho – uma impressão em ao trabalho uma singularidade: a artista enfatiza o fato de
papel – não possuir o desenho em sua finalização. que a mancha não é específica da pintura, da mesma for-
ma que a linha não é específica do desenho. As tonalidades
Originada de um desdobramento da série Paisagens, esta utilizadas de roxo e azul criam, por sua vez, um contraposto
obra dá continuidade a uma produção artística que retoma aos tons quentes tão característicos de seus trabalhos an-
o desenho e a linha como um caminho natural do gesto: a ar- teriores. A fotografia, por fim, traz a gestualidade manual
tista remete à caligrafia como uma escrita do corpo; o seu da obra de Poester ao meio digital. Impresso em papel, o
interesse, mais do que no resultado, está no processo. Em trabalho possibilita a visualidade de um gesto próprio dos
suportes de grandes dimensões, o posicionamento na ver- suportes pequenos em uma área de dimensões ampliadas,
tical exige uma movimentação do corpo inteiro na produção resultando em uma nova experiência – tanto para a artista
da obra, enquanto as dimensões reduzidas, executadas hori- como para o espectador.
zontalmente, diminuem a amplitude gestual e concentram o
movimento na mão e no punho, fato determinante que confe- As linhas escuras, ao longo do primeiro plano, embora pare-
re ao trabalho de Poester o seu caráter de manuscrito. çam rígidas a um primeiro olhar, conduzem o espectador ao
foco emocional e sensível que está por trás: os traços pos-
Elaborada a partir de uma placa quadrangular de metal com suem aberturas que possibilitam a percepção da ambivalên-
10 cm de lado, a gravura deixa perceptível, em sua versão cia característica da produção artística de Teresa Poester: a
ampliada, as ranhuras derivadas da agressão da ponta-se- dualidade entre a linha e a mancha, a ordem e o caos, o limite
ca sobre a superfície metálica. As linhas precisas, resultan- e a liberdade.
tes do gesto limitado à articulação do pulso, criam um diá-
logo com a suavidade e leveza do desenho: entrecruzadas, Camille Silva
Maria Lúcia Cattani (Garibaldi, RS, 1958 – Porto Alegre, RS, O conceito de “matriz” é articulado com sua produção, visto
2015) despontou no cenário artístico de Porto Alegre com a que a impressão em série se dá em contrapartida com a bus-
chamada “Geração 80”, que visava, naquela década, uma ca por particularidades próprias de cada módulo. O resul-
revitalização artística a partir da emancipação dos grandes tado de espelhamento obtido ressalta o interesse da artista
centros e da afirmação de uma autonomia local. Consagrou- sobre o exercício da imagem seriada, da “expansão do movi-
se, em especial, na gravura, mas trazendo uma nova possi- mento de linhas abstratas”, que antes estariam “contidas em
bilidade de perspectiva a uma disciplina tradicionalmente suas imagens de delicado e rico grafismo” (ROSA; PRESSER,
calcada na expressão de cunho regionalista. 2000, p. 345), além de explorar aspectos como fragmento e
totalidade, repetição e diferença, que são próprias da gravu-
Cattani, que começou sua formação no Instituto de Artes ra. Segundo depoimento da artista, seu procedimento está
da UFRGS e, posteriormente, deu continuidade a seus es- apoiado na “ação de fazer marcas”, não apenas com o intuito
tudos, passando pelos Estados Unidos, Inglaterra, Bélgica de desenhar a superfície, mas modificá-la fisicamente (CAT-
e Japão, desde sua primeira individual, ocorrida na Galeria TANI, 2009).
Arte & Fato (1986), já anunciava sua inclinação ao estudo
modular e serial, dando início a uma produção amplamen- Assim, estabelece uma trajetória na qual explora novos pa-
te apoiada no exercício formal, no estudo de recursos grá- radigmas de uma linguagem já consagrada, desenvolvendo
ficos, na gestualidade e na reprodução: “Fruto legítimo de uma produção em arte contemporânea que não se distancia
uma geração de artistas que herdaram o interesse por um dos procedimentos tradicionais, apesar de, a partir deles,
abstracionismo geométrico não imune às incertezas, Maria gerar novas indagações. Seus trabalhos demonstram um
Lucia Cattani manteve-se sempre fiel ao gosto pelo rigor olhar atento sobre a singularidade da série e perfazem um
formal” (BOHNS, 2005a). percurso do único ao múltiplo e do múltiplo ao único, um ca-
minho de construção e desconstrução, através da “feitura de
Na imagem em destaque, produzida para o Consórcio de marcas” (CATTANI, 2009).
Gravuras do Museu do Trabalho, Cattani desenvolveu um
trabalho com uma dupla impressão de uma mesma chapa Maria Lúcia Cattani trabalhou, durante anos, como profes-
de metal, gravada através de uma máquina de clichê, que sora junto ao Instituto de Artes da UFRGS, atuando na Gra-
possibilita a saliência do gesto em alto-relevo. A impressão duação e na Pós-Graduação. Além da gravura, dedicava-se a
à direita foi feita a partir do entintamento com rolo, para ge- outras linguagens, como a pintura, a imagem em movimento
rar uma imagem em negativo, enquanto que a impressão da e o livro de artista.
esquerda foi realizada a partir da impressão de gravura em
metal, obtendo-se o positivo. Paola Fabres
Dione Veiga Vieira (Porto Alegre, RS, 1954) inicia sua traje- seu rosto permanece encoberto por cabelos e folhas secas.
tória investigando a disciplina pictórica e, posteriormente, E assim manipula, de modo gentil e pausado, essa forma que
amplia sua experimentação para outros suportes e matérias. se abraça por um rede de pesca. Aqui, o corpo nu e primitivo
Seu trabalho, que já percorreu os diversos formatos, explora se esconde por detrás da matéria; por uma matéria que se faz
conjunções entre elementos: corpo e objeto simbólico, reu- aprisionada, atada às circunstâncias. Como um balbucio, ou-
nidos pelo estranhamento e assinalados por uma genealogia ve-se o estalar de folhas e leves manifestações de pássaros.
surrealista. Graduada em Letras (1984) e especializada em
Artes Visuais (1986) pela Pontifícia Universidade Católica do Tanto a esfera como a tarrafa nos remetem a algo familiar.
Rio Grande do Sul, a artista provoca constantemente esse É possível associar com os objetos relacionais de Lygia Clark
visível interstício entre artes plásticas e a literatura; assim, o (1920–1988) ou, ainda, aos trabalhos pendentes de Tunga
aspecto semântico torna-se protagonista na leitura de suas (1952) – Bell’s Fall –, nos quais a teia, em sua leveza, serve
obras. Frequentou o Atelier Livre da Prefeitura na década de como elemento de sustentação da matéria sólida. No vídeo
1970 e, de 1989 a 1992, viveu na cidade de Colônia, na Ale- Extremos, a esfera nos sugere o peso, enquanto a rede, as-
manha, onde atuava no ateliê StadKunst E.V. Köln, espaço semelhando-se a essa teia, serve como seu oposto. Uma
cultural mantido pela prefeitura da cidade. vez articulados, esses elementos se estabilizam, neutrali-
zando-se um com o outro. Conceito, matéria, peso e plasti-
Seu trabalho Extremos, realizado em parceria com a artista cidade passam a se fundir na totalidade da imagem de Dione.
e performer Claudia Paim (Porto Alegre, RS, 1961), nasceu Em seus trabalhos, o que sustenta a leveza é o próprio peso.
em agosto de 2013. Surgiu de forma espontânea, ao somar
o interesse mútuo das artistas em trabalharem juntas em A ação é toda registrada por Dione Veiga Vieira que, auxiliada
um projeto. A ideia da ação ocorreu durante a intervenção por Yuri Veiga (Porto Alegre, RS, 1970), ralenta as imagens
Da emoção das coisas, proposta por Dione na sala de es- na edição, criando um movimento de estagnação que se
cultura Fernando Corona, do Instituto de Artes da UFRGS. A alterna ao longo de um desenrolar que já é vagaroso por si
atividade era um convite da artista e professora Maria Ivone mesmo. A artista evoca uma potência simbólica, a partir de
dos Santos (1958), integrando o projeto Perdidos no Espaço. um ponto de vista feminino, apenas ao apresentar o manejo
O trabalho desenvolvido por Dione, composto de fotografias, com a matéria, com o orgânico, a partir de movimentos len-
projeção de uma imagem e intervenção, estabelecia um diálo- tos e quase imperceptíveis. Essa capacidade de apropriação
go entre o ambiente interno e o externo da sala de aula, no qual e ressignificação é constante em muitos de seus outros tra-
há uma espécie de pequeno jardim. As imagens, na sala, eram balhos. Segundo Angélica de Moraes, “Dione instala estra-
edições e montagens relacionadas a esse curioso local, de di- nhamentos eficazes ao reunir coisas banais e imantá-las de
fícil acesso. Nele, em meio às árvores, Dione inseriu um obje- novos significados. As coisas são elas próprias e algo mais.
to: uma esfera translúcida, suspensa por uma rede. Presente Esse algo brota do inconsciente para costurá-las de sentido”.
durante a atividade, Claudia Paim é sensibilizada e propõe a Assim, seu universo constitui-se a partir de um “vocabulário
execução de uma performance em colaboração com Dione. surreal” (MORAES, 2004). Lembrando de sua relação próxi-
ma com o universo das Letras, não se torna estranho pensar
Dione controla a cena, a imagem; Claudia assume o posto que a figura de linguagem da metáfora torne-se tão presente
performático. Em um dia frio de agosto, imersa em um cená- em suas expressões visuais, atuando como recurso para a
rio soturno e fechado por matas e folhagens, ao se apropriar reflexão sobre a arte e a vida.
do objeto trazido por Dione, Claudia mergulha em uma rela-
ção vagarosa e enigmática entre seu corpo e a esfera de vidro A performance concebida pelas artistas deu margem ao pros-
brilhante. Introspectiva e silenciosamente, percebe-se uma seguimento da parceria. O vídeo Extremos abriu caminho para
conexão de cunho poético entre o corpo natural e o espaço uma exposição de mesmo nome, realizada em outubro de
orgânico, a partir de um olhar feminino que evoca sua maté- 2013, no espaço de criação Plataforma, localizado na Zona Sul
ria sensível em diálogo com a esfera translúcida. “As texturas de Porto Alegre. Além do vídeo, a exibição apresentou outra
do objeto capturam e refletem parte da luz e as dimensões performance de Claudia Paim e fotografias de ambas artistas.
intimistas, deixando vazar as cores úmidas do ambiente”
(FONTOURA, 2013). A identidade de Claudia não se revela: Paola Fabres
Em A ponte de pedra e o olho d’água, Maria Ivone dos Santos e, por fim, transformando-se no canal que acompanha a Ave-
(Vacaria, RS, 1958), artista plástica e professora do Instituto nida Ipiranga, há décadas poluído e fétido, até desembocar
de Artes da UFRGS, dialoga com Ponte do Riacho (1925), de no Guaíba, que delineia o panorama da capital.
Angelo Guido (1893–1969), um dos destaques da Pinacoteca
Barão de Santo Ângelo. Nesta obra, ela discute espaços da O texto do tríptico, absolutamente visual, é, portanto, um
cidade, alinhavando lugar e geografia; para tanto, escolhe texto-imagem, que também se mostra paisagem, à medi-
justamente uma pintura que representa uma das vistas mais da que o leitor o percorre. Maria Ivone toma a obra de Guido
bucólicas de Porto Alegre, a Ponte dos Açorianos, na região para falar sobre a vertente e a desembocadura de um riacho
central. Referenciando os retábulos renascentistas, temos, que não transita mais por aquela ponte representada; sobre
à esquerda, uma fotografia frontal da obra de Ângelo Guido; uma água límpida que foi tomada por esgotos; sobre uma
à direita, uma fotografia do verso da mesma; e, entre elas, a Porto Alegre que, em parte, não existe mais. Ao discutir a
parte principal: um texto que descreve e poetiza as imagens topografia urbana, a artista redescobre a Ponte dos Açoria-
laterais. Um dado importante é que a pintura, em suas duas nos como elemento cênico desse enredo. Enquanto Guido
vistas, aparece sustentada pelas mãos da própria artista, representou o visível por meio da imagem, Maria Ivone traz o
apenas elas. invisível por meio do texto.
O texto inicia como uma leitura de imagem de viés forma- Se Guido foi, em sua época, crítico e professor de História
lista, comentando as cores e direções do pincel de Guido e da Arte junto ao IBA, bem como dos grandes paisagistas
ligando-o à tradição das viagens à Itália, que muitos pintores atuantes no Estado, Maria Ivone dos Santos, hoje, atualiza
adotaram, durante séculos, num processo de formação do essa questão. Doutora em Artes pela Université Paris I –
olhar e de aprimoramento da técnica, buscando traduzir o Pantheón – Sorbonne, ela coordena, desde 2002, o projeto
real e o visível em representação. O texto segue e Maria Ivone Formas de pensar a escultura – Perdidos no espaço, volta-
informa aspectos sobre a ponte em si, com ênfase em sua do, entre outros, às obras e às ações artísticas em espa-
história. Então, volta-se ao verso da obra, conhecido somen- ços públicos. Por meio de Tríptico, apropriando-se formal
te pelos que trabalham junto ao acervo. A partir da identifi- e conceitualmente da imagem de Guido, ela não apenas
cação de fragmentos de uma outra paisagem, habitada por presta uma homenagem ao antigo mestre, como produz
palmeiras e uma alarajanda presença solar, o imaginário da uma obra pulsante, que revisita a tradição da história da
artista é acionado e, num plástico devaneio, ela continua a arte, da pintura de paisagem, bem como o próprio acervo
percorrer a geografia da cidade, aquela na qual o objeto da da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo. Estabelece, assim,
pintura de Guido está inserido. Num átimo, atravessa a ve- uma ponte entre passado e presente, entre a origem e a
getação e está na nascente do arroio, contemplando o “olho desembocadura do arroio, presença marcante na cidade.
d´água” que brota do solo. Observa, então, o filete ganhando
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Outros Documentos
Marianita Linck: A arte da Cerâmica. Vídeo. Direção de Beto Souza. Porto Alegre:
Beto Souza, 2012.
DEPARTAMENTO
DE DIFUSÃO CULTURAL
Diretora do Departamento
de Difusão Cultural
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de Difusão Cultural
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Carolina Peixoto Pires | Bacharelado em Conservação
de Bens Culturais Móveis/UFPEL
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Lilian Fontanari | Bacharelado em Museologia/FABICO/UFRGS
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Lúcia Becker Carpena FABICO/UFRGS
Tânia Cappra | Bacharelado em Museologia/FABICO/UFRGS
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Produção Executiva
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DESIGN
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Lenora Lerrer Rosenfield
Impressão Restauratus | Naida Correa e Keli Scolari
Eliete Corrêa
Gráfica Mosca
Montagem
Alexandre Moreira
Marcelo Moreira
Iluminação
Fernando Ochoa
Este livro foi composto com a família tipográfica Benton, por Roka Estúdio, e impresso em
papel couché fosco 150g/m2, pela gráfica Mosca, para a Editora da UFRGS, em maio de 2015.