Você está na página 1de 132

ed.

19
TECNOLOGIA E CULTURA:
UMA SOCIEDADE EM REDES

Natureza & cultura


fronteiras dissipadas pela tecnologia

Sistemas de produção em rede


criação, financiamento, fruição
e conservação na era digital

Crise, resistência e reinvenção


participação, cultura hacker e
perspectivas das políticas culturais
2 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Centro de Memória, Documentação e Referência Itaú Cultural

Revista Observatório Itaú Cultural : OIC. - N. 19 (nov. 2015/maio 2016). –


São Paulo : Itaú Cultural, 2007-.

Semestral

ISSN 1981-125X (versão impressa)

1. Política cultural. 2. Políticas públicas. 3. Tecnologia e cultura. 4. Gestão


cultural. 5. Produção artística.
expediente
REVISTA EQUIPE ITAÚ NÚCLEO DE
OBSERVATÓRIO CULTURAL COMUNICAÇÃO E
RELACIONAMENTO
Editor Presidente
Marcos Cuzziol Milú Villela Gerente
Ana de Fátima Sousa
Conselho editorial Diretor
Gilbertto Prado Eduardo Saron Coordenador de arte
Luciana Modé Jader Rosa
Marcel Fracassi Superintendente
Rafael Figueiredo administrativo Produção editorial
Ronaldo Lemos Sérgio Miyazaki Raphaella Rodrigues
Tiago D’Ambrosio
Supervisão de revisão
Projeto gráfico NÚCLEO DE Polyana Lima
Marina Chevrand/ INOVAÇÃO/
Serifaria (terceirizada) OBSERVATÓRIO Revisão (terceirizada)
Rachel Reis
Design Gerente Samantha Arana
Serifaria (terceirizada) Marcos Cuzziol

Produção gráfica Coordenadora


Lilia Góes (terceirizada) do Observatório
Luciana Modé
Ilustração
Daniel Bueno Produção
(terceirizado) Marcel Fracassi
Rafael Figueiredo
Tradução (terceirizada) Tiago D’Ambrosio
Marisa Shirasuna
Sieni Campos
As páginas desta edição da Revista
­Observatório são ilustradas por Daniel
Bueno. Seu trabalho explora contornos
geométricos, texturas, ambiguidade grá-
fica e fantasia. Formado pela Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo da Universi-
dade de São Paulo (FAU/USP) e funda-
dor do coletivo Charivari, colaborou para
diversas publicações, entre elas, três li-
vros contemplados com o Prêmio Jabuti.
Participa de anuários como os da Society
of Illustrators, A
­ merican Illustration e 3x3.
aos leitores

Desde o surgimento da humanidade, culminando na atual sociedade híbrida, po-


possuímos uma relação simbiótica com a tencializada pelo poder do computador e da
tecnologia. Em um eterno feedback autoam- internet. “O ser humano, desde a sua gênese,
plificador, moldamos nossas ferramentas e foi e continua sendo um ser inacabado que
elas nos moldam de volta. Elas atuam tanto se metaboliza transformando em cultura a
sobre nosso aparato cognitivo e sensorial – natureza de onde emergiu.”
verdadeiros upgrades mentais – quanto so- Contextualizando em uma linguagem
bre nossas estruturas econômicas, políticas simples os recentes avanços das máqui-
e sociais. Os aparelhos eletrônicos digitais, nas e seu poder de processamento, Marcos
que hoje parecem monopolizar injusta- ­Cuzziol discute a possibilidade de já estar-
mente o significado do termo “tecnologia”, mos vivendo em um mundo que nos obriga
constituem parte de nossos sentidos e de a nos relacionar com entidades artificiais
nossas redes neurais, assim como óculos e mais competentes do que nós e que pode
telescópios são extensões de nossos olhos e muito bem levantar importantes dúvidas
instrumentos musicais tornam-se membros filosóficas. Um programa de computador
do corpo de um músico. Nesse sentido, como pode atingir um estágio de consciência? O
diz Andrew Clark, sempre fomos ciborgues. que nos define como humanos?
Abrindo a Revista Observatório número A partir desse cenário incerto, são ana-
19, Lucia Santaella afirma que nossa primeira lisados os impactos das tecnologias digitais
tecnologia, a linguagem, é marca constituinte em diferentes fases do sistema de produção
do ser humano, nossa condição inevitável. Do cultural: como criamos, financiamos, fruí-
surgimento da comunicação oral e escrita, da mos e conservamos obras de arte no mundo
narrativa e da memória nascem a cultura e atual. Como economia, política, estética e
a tradição. Ao longo de nosso processo his- cultura se relacionam? E como tudo pode
tórico, as tecnologias foram se acumulando ser mais bem analisado do ponto de vista
e complexificando nossos modos de viver, das redes que se formam? “Rede”, aliás, é
10 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

uma palavra recorrente – e polissêmica, é repleta. Seriam os hackers, estudados por


verdade. Das neurais à de computadores, Gabriella Coleman, os grandes sendeiros
das sociais às de produção, das analógicas desse percurso?
às digitais, o fato é que a sociedade globali- Se a vital importância da alfabetiza-
zada levou o número de conexões ao limite ção – domínio formal da primeira tecnologia
do que parecia possível. Hoje, qualquer sis- humana de todas – não é mais questionada,
tema é complexo. hoje dominar a linguagem digital torna-se
Além da linguagem – ou melhor, antes necessário. Apropriar-se dela é tornar-se su-
mesmo da linguagem, como sugere Edilamar jeito emancipado. A tecnologia não só muda
Galvão –, a experiência interativa surge mais a cultura, como também é parte dela. E “a cul-
proeminente que nunca. Vivemos num tempo tura sempre será um campo de incertezas”
em que participação é pressuposto para tudo. (Lúcia Maciel).
Não à toa o mercado de videogames é um dos Boa leitura a todos.
que mais faturam no mundo, como bem apon-
ta Arthur Protasio. E o mesmo se pode prever Equipe do Observatório Itaú Cultural
sobre inúmeros aspectos da vida social.
Enquanto Santaella fala da semiosfe-
ra – esse exosqueleto de signos e linguagem
que reveste nossa natureza humana –, Ivana
Bentes afirma que, no “semiocapitalismo”
em que estamos vivendo, a cultura é um
processo transversal e decisivo, cujos mo-
dos de produção não são mais exceção, mas a
regra da contemporaneidade. Regra essa que
nos obriga a repensar nossas instituições e
nossos modelos de representatividade num
contexto de crescente disjunção entre Es-
tado e sociedade civil, como apontado por
Lúcia Maciel. Quando a política e a gestão
tradicionais parecem não conseguir acom-
panhar a velocidade da dinâmica cultural, de
desejos múltiplos, a interface de proximidade
trazida pelas redes parece um bom modelo
a ser seguido. As tensões permanentes da
democracia e do mundo da cultura exigem
que se abram fendas e se encontrem brechas
de movimentação, das quais a internet está
sumário
9. Aos leitores 64. Um ser de sensação
Equipe do Observatório Itaú Cultural Edilamar Galvão

1.
77. Arquivos de arte digital –
estratégias, metodologias
NATUREZA & CULTURA e paradigmas
Jorge La Ferla
17. Adeus às fronteiras entre

3.
natureza e cultura
Lucia Santaella
CRISE, RESISTÊNCIA
24. Programas de computador E REINVENÇÃO
e imprevisibilidade
Marcos Cuzziol 88. Cultura de redes e políticas
culturais no Brasil

2.
Ivana Bentes

SISTEMAS DE 96. A estética do novo ativismo


PRODUÇÃO EM REDE Ronaldo Lemos entrevista
Gabriella Coleman
34. Uso criativo e crítico
de redes complexas 111. Política de experimentação:
Burak Arikan nas redes e nas ruas
Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira
44. Games: uma linguagem
em descoberta
Arthur Protasio

52. Crowdfunding baseado


em blockchain: qual seu impacto
sobre a produção artística e o
consumo de arte?
Primavera De Filippi
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES  15

1. NATUREZA & CULTURA

17. ADEUS ÀS FRONTEIRAS ENTRE


NATUREZA E CULTURA
Lucia Santaella

24. PROGRAMAS DE COMPUTADOR


E IMPREVISIBILIDADE
Marcos Cuzziol
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lucia Santaella 17

ADEUS ÀS FRONTEIRAS ENTRE


NATUREZA E CULTURA
Lucia Santaella

Para compreender a hipercomplexidade da cultura contemporânea, este artigo coloca em


discussão a atual coexistência de seis eras culturais: a oralidade, a escrita, a cultura impressa,
a cultura de massas, a cultura das mídias e a cultura digital. Tendo sua gênese nas tecnologias
de linguagem, cuja inexorável tendência é crescer e se multiplicar, essas formações culturais
foram cada vez mais imprimindo suas indeléveis marcas sobre a face do globo, até o ponto de
dissipar quaisquer fronteiras entre a natureza, de um lado, e a cultura, de outro.

A
cultura digital veio para embaralhar por genealogia como método de trabalho a
todas as cartas do jogo das lingua- busca por fatores que sejam capazes de ilu-
gens, tornando densas, intrincadas minar, do passado, as determinações do pre-
e hipercomplexas as tramas da cultura. Além sente. Não se trata de sair à caça de origens
de incessantes novidades que não param de ou causas explicativas de que o presente se-
surgir, o que mais espanta no mundo digital ria um efeito; portanto, não se trata de seguir
são os passos acelerados de suas transfor- uma linha cronológica para construir uma
mações e, sobretudo, a naturalidade com que totalidade histórica. Ao contrário, é preciso
elas são absorvidas pela sociedade em todas exercer uma atividade criadora de descober-
as faixas etárias, sobretudo pelos muito jo- tas de pontos luminosos, muitas vezes hete-
vens. Quanto mais jovem, tanto mais rápida rogêneos, que vão elaborando um tecido de
e espontaneamente se dá a adaptação às emer- analogias e contaminações entre passado e
gentes paisagens das interfaces interativas de presente com relativa força explicativa para
acesso à informação e à comunicação em te- aquilo que nos espanta no presente.
cidos híbridos de linguagem nos quais sons,
ruídos, imagens, diagramas, pistas, ícones e Linguagem e cultura como
escrita indissoluvelmente se misturam. Qual condições do humano
o segredo de tudo isso? Tudo isso para dizer que o universo di-
Para abrir algum caminho de resposta, gital ainda conserva as longínquas mas inde-
é preciso abandonar a tendência corrente de léveis marcas da constituição do ser humano
considerar o universo digital como um fenô- como um ser de linguagem. Desde que emer-
meno explicável no seu isolamento, sem se giu na evolução, a linguagem impregnou o hu-
preocupar com sua genealogia. Entende-se mano com a consciência do tempo, da vida e
18 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

da morte, do outro e de si mesmo, condição da sistematizar esse percurso crescente e cada


memória, da sociabilidade e das antecipações vez mais complexo que hoje resulta na cultu-
de futuro. Há autores, como Merlin Donald ra digital, tenho trabalhado com o que chamo
(1991), que defendem que, antes de se comu- de seis eras culturais (SANTAELLA, 2003).
nicar por meio das palavras, a cultura huma-
na passou por um estágio mimético, imitativo Seis eras culturais:
de gestos, movimentos, sons, figurações. Foi da oralidade ao digital
a fala, entretanto, que trouxe a garantia de A divisão em eras culturais não é senão
que o passado não desaparecesse na fugaci- uma estratégia metodológica que tenho uti-
dade do presente, mas se fixasse na memória lizado para compreender o imenso caldei-
por meio da transmissão oral das gerações rão de intrincadas misturas constitutivas
mais velhas para as mais jovens. Nascem aí da contemporaneidade. São elas: a cultura
as culturas e suas tradições. Entretanto, para oral, a escrita, a impressa, a de massas, a das
satisfazer o requisito da memória, o cérebro mídias e a digital, também chamada de ci-
é muito frágil, visto que é mortal. As escritas bercultura. A divisão baseia-se nas tecnolo-
surgiram para compensar essa vulnerabilida- gias de linguagem que estão no alicerce de
de e, antes disso, ensaios de protoescritas já cada uma dessas eras e que foram surgindo
apareciam em imagens nas grutas. e se transformando ao longo do tempo. Em-
A partir da escrita foi encontrado o bora, evidentemente, a linguagem e seus
caminho para o incremento gradativo da mecanismos de produção, transmissão e
memória para fora do corpo biológico: o ser preservação da memória não sejam por si
humano começou, desde então, a povoar a sós definidores de uma cultura – pois cultu-
natureza não só com os rebentos que procria ra envolve também subsistência material e
de si mesmo, mas também com as linguagens econômica, tanto quanto poderes políticos –,
que não cessa de produzir, reproduzir e mul- defendo que tudo isso está inextricavelmente
tiplicar. Alguns autores (entre eles MORIN, interconectado, o que nos permite delinear
1975) chamam isso de camada que o humano o perfil de uma cultura pelos seus modos de
sobrepôs à natureza mineral, vegetal e ani- produção de linguagem e pelos intercursos
mal, marcando-a com uma profusão de si- sociais de comunicação que ela possibilita.
nais de sua onipresença. Prefiro usar o termo Além disso, os meios de comunicação, des-
“semiosfera” (semio = signo), para fazer jus de o aparelho fonador até as redes digitais
à natureza de linguagem dessas marcas na atuais, como mediadores da informação que
agricultura, no cozer dos alimentos, em arte- circula socialmente, ao criarem ambientes
fatos, construções, livros e museus, passando socioculturais, são capazes de moldar o pen-
pelas mídias reprodutoras da industrializa- samento, os modos de ação e a sensibilidade
ção, fotografia, cinema, rádio, televisão, até dos seres humanos.
chegar ao computador, à comunicação pla- O termo “eras” é utilizado na falta de um
netária, à nuvem informacional, às cidades nome melhor, pois com isso a intenção não é
inteligentes, aos satélites, às naves etc. Para significar períodos culturais lineares, como
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lucia Santaella 19

se uma era fosse desaparecendo com o surgi- aparecimento de uma cultura do disponível e
mento da próxima. Ao contrário, há sempre do transitório: fotocopiadoras, videocassetes
um processo cumulativo de complexificação. e aparelhos para a gravação de vídeos, equi-
Um novo ambiente vai se integrando ao(s) an- pamentos como walkman e w ­ alkie-talkie,
terior(es), provocando reajustamentos e re- acompanhados de uma remarcável indús-
funcionalizações, em uma verdadeira guerra tria de videoclipes e videogames, além da
e paz em busca de sobrevivência. Mas é certo expansiva indústria de filmes em vídeo para
que, em cada período histórico, a cultura fica ser alugados nas videolocadoras – tudo isso
sob o domínio da técnica ou da tecnologia de se somando ao surgimento da TV a cabo, para
comunicação mais recente. Contudo, esse do- atualmente culminar, entre outros exemplos,
mínio não é suficiente para asfixiar as forma- no fenômeno da Netflix. Essas tecnologias
ções culturais preexistentes. Afinal, a cultura têm como principal característica propiciar
comporta-se sempre como um organismo vivo escolhas e consumos individualizados, em
e, sobretudo, inteligente, com poderes de adap- oposição ao consumo massivo. Foram esses
tação imprevisíveis e surpreendentes. processos que arrancaram o ser humano da
Levar as eras em consideração permite inércia da recepção de mensagens impostas
perceber especificidades importantes e re- de fora, passando a buscar a informação e o
veladoras. Por exemplo: a cultura impressa entretenimento desejados, o que preparou
não nasceu diretamente da oral, mas foi an- sua sensibilidade para a chegada dos meios
tecedida por uma rica cultura da escrita não digitais cuja marca principal está na busca
alfabética, pictográfica. A memória dessas dispersa, alinear e fragmentada, mas certa-
escritas traz grandes contribuições para a mente uma busca individualizada da men-
visualidade contemporânea. Da mesma for- sagem e da informação.
ma, embora haja uma tendência de ver a cul-
tura digital como continuidade da de massas, A hipercomplexidade
houve uma fase transitória entre elas, que da cultura contemporânea
caracterizo como cultura das mídias. Para Hoje, todas as formas de cultura – desde
isso, basta rememorar que, por volta do iní- a oralidade até a cultura escrita, a impressa,
cio dos anos 1980, se intensificaram cada a de massas, a das mídias e a cibercultura –
vez mais os casamentos e as misturas entre coexistem, convivem e sincronizam-se na
linguagens e meios, misturas essas que fun- constituição de uma mescla cultural hiper-
cionam como um multiplicador de mídias. complexa e híbrida. Tudo isso incrementado
Elas produzem mensagens híbridas como pela potência do computador, uma verdadei-
as que se podem encontrar nos suplemen- ra metamídia, capaz de absorver, misturar
tos literários ou culturais especializados de e devolver transmutadas todas as formas
jornais e revistas, nas revistas de cultura, no culturais que lhe precederam e que fora dele
radiojornal, no telejornal etc. continuam coexistindo para a exacerbação
Ao mesmo tempo, surgiram equipa- da densa rede de produção e circulação de
mentos e dispositivos que possibilitaram o bens simbólicos dos nossos dias.
20 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Como se tudo isso não bastasse, na resorts ou, então, de spots mais modestos
sequência ininterrupta de suas transfor- para o turismo consumista. Alguns buscam
mações a cultura digital trouxe ao nosso no capitalismo as causas para todas essas
convívio uma invenção notável: os dispo- avalanches de produções humanas, tidas
sitivos móveis (SANTAELLA, 2007). Eles, como desvirtuadoras da essência de uma
em muito pouco tempo, reduziram a docu- vida natural. Sem dúvida, sem o incremen-
mento histórico obsoleto a tríade dos filmes to produtivo do capital, seus rebentos não
Matrix, que encena a separação exacerba- seriam possíveis. Todavia, sem negar suas
da entre o mundo virtual e o mundo físico. evidentes contradições e mazelas, o capi-
Com os equipamentos móveis, portáteis, talismo não contém a chave da explicação
os usuários passaram a abrigar, na palma para tudo. Não explica, por exemplo, que
das mãos, computadores poderosos que os uma pretensa essência humana só exis-
têm transportado para novas dimensões de tiu para Adão no Paraíso, já que o mundo
espaço e tempo nas misturas inextricáveis pós-adâmico traz a insígnia da linguagem
entre o virtual (o ciberespaço) e os ambien- cujo destino é crescer, tanto quanto está no
tes físicos em que o corpo biológico circula crescimento o destino da própria vida. Não
(ver SOUZA E SILVA, 2006). por coincidência, é no cerne da vida que as
A emergência de tecnologias portáteis tecnologias de linguagem, miniaturizadas
contribuiu para a possibilidade de estar cons- em chips, estão cada vez mais se infiltrando.
tantemente conectado a espaços digitais e de,
literalmente, levar a internet para todos os O atual estado da arte
cantos, esquinas e recintos do cotidiano. Com Nos últimos anos, a aceleração na ten-
isso, modificam-se relações afetivas, sociais e dência multiplicadora das mídias atinge
de trabalho, impulsionadas não apenas pela níveis desconcertantes e perturbadores.
mobilidade, mas também pela incorporação Sob o nome de internet das coisas, big data,
ao computador de plataformas e aplicativos realidade aumentada e tecnologias portáteis,
que, nas trocas incessantes de mensagens, vestíveis e implantáveis, as tendências tec-
imagens e vídeos pelas redes, estão levando as nológicas, que se avizinham, levam a prever
relações sociais ao limite do paroxismo. ambientes de computação em rede globais,
Junto com isso surgem programas de imersivos, invisíveis, construídos “por meio
computação como realidade aumentada, da proliferação contínua de sensores inteli-
mista, computação ubíqua, pervasiva e gentes, câmeras, softwares, bases de dados e
vestível. Os nomes dados a esses programas centros de dados massivos em um tecido de
são sintomáticos do apagamento a que os informação de abrangência mundial.” (FA-
construtos humanos sobre a Terra levaram NAYA, 2014, p. 112-113) O panorama elabora-
a pretensa naturalidade da natureza. Desde do por Fanaya (ibid.) é ainda mais eloquente
o século passado já se sabia que a natureza no que se segue.
havia se tornado cartão-postal, atualmen- Quando as redes da internet envolve-
te incrementado por fôlderes e sites de rem também as coisas, como já começa a
22 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

acontecer, as pessoas estarão usando dispo- comportamento humano. Todas essas ten-
sitivos de conexão que lhes darão feedback dências que se avizinham transformarão o
sobre suas atividades, sua saúde e fitness. gigantesco organismo comunicativo que já é
Esses dispositivos serão capazes de moni- hoje a web em um superorganismo planetário
torar outras pessoas, como filhos e empre- estendido por todas as peças dos ambientes.
gados, também munidos de sensores ou ao Além disso, grupos de cientistas e
entrar e sair de lugares sensorializados. As engenheiros que trabalham com robótica
pessoas poderão controlar, remotamente, evolutiva (developmental robotics) estão
um grande número de tarefas em suas resi- engajados no desenvolvimento de robôs
dências – nelas, os sensores avisarão tudo, capazes tanto de identificar, analisar e in-
indicando desde objetos que precisam de terpretar o ambiente de maneira dinâmica
reparo até se o jardim já foi regado. quanto de aprender com essas experiências,
Dispositivos embarcados e aplicativos à maneira de um organismo vivo dotado de
para smartphones (ou quaisquer outros inteligência. Trata-se da busca de desen-
dispositivos que venham a substituí-los) volvimento de uma computação subjetiva
permitirão o transporte mais eficiente de que vise à emulação de alguns traços da
cargas e mercadorias. Os sistemas inteli- subjetividade humana – como a adaptação
gentes poderão fornecer eletricidade e água e a flexibilidade em ambientes desconhe-
de forma mais eficaz e alertar sobre proble- cidos –, da reflexibilidade, da percepção e
mas de infraestrutura. Indústrias e cadeias das relações entre humanos por meio de
de abastecimento terão sensores e leitores algoritmos capazes de desenvolvimento
que acompanharão de modo mais preciso a mental autônomo [autonomous mental
fabricação e a distribuição de mercadorias, development (AMD)]. Isso significa dotar
de modo a acelerar e suavizar os processos. o agente tecnológico de uma concepção
Haverá leitura em tempo real dos níveis de individual a respeito do ambiente, em um
poluição, umidade do solo e extração de re- impulso normativo de arbítrio e de abertura
cursos nos campos, nas florestas, nos oceanos às experiências no mundo.
e nas cidades, o que permitirá um acompa- Sem entrarmos aqui nas acaloradas
nhamento mais detalhado dos problemas. discussões sobre os perigos iminentes da
Dizem os especialistas que tudo isso se tor- crise ecológica, as inestimáveis perdas ou
nará realidade rotineira até 2025, mas muitas os possíveis ganhos para a humanidade, é
dessas previsões já estão começando a povoar preciso constatar que o ser humano, desde
as paisagens do mundo e a se insinuar no psi- a sua gênese, foi e continua sendo um ser
quismo e nos comportamentos sociais. inacabado que se metaboliza transforman-
A realidade atual de conexão e comu- do em cultura a natureza de onde emergiu,
nicação entre pessoas irá se expandir até até o ponto de levar à completa dissipação
os objetos (máquinas e/ou artefatos) que as fronteiras entre natureza e cultura que
as cercam. Eles irão interagir de maneira o pensamento ocidental tão ilusoriamente
inteligente, gerando ações responsivas ao costumava resguardar.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lucia Santaella 23

Lucia Santaella
É professora titular nos programas de pós-graduação em tecnologias da inteligên-
cia e design digital e em comunicação e semiótica na Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC/SP), com doutoramento em teoria literária na PUC/SP, em 1973, e
livre-docência em ciências da comunicação na Escola de Comunicações e Artes da Uni-
versidade de São Paulo (ECA/USP), em 1993. É diretora do Centro de Investigação em
Mídias Digitais (Cimid) e coordenadora do Centro de Estudos Peirceanos e do Grupo de
Estudos Sociotramas, na PUC/SP. É presidente honorária da Federação Latino-Americana
de Semiótica e correspondente brasileira da Academia Argentina de Belas Artes, eleita
em 2002, além de vice-presidente (1989-1999) da Associação Internacional de Semiótica
e presidente (2007) da Charles S. Peirce Society, nos Estados Unidos. Recebeu os prêmios
Jabuti (2002, 2009, 2011 e 2014), Sérgio Motta (2005) e Luiz Beltrão (2010). Organizou
13 livros e, de sua autoria, publicou 41 livros e cerca de 300 artigos em livros e revistas
especializadas no Brasil e no exterior.

Referências bibliográficas

DONALD, Merlin. Origins of the modern mind. Three stages in the evolution of culture
and cognition. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1991.

FANAYA, Patricia. Autopoiese, semiose e tradução: vias para a subjetividade nas


redes sociais. Tese (Doutorado)–Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2014.

MORIN, Edgar. O enigma do homem: para uma nova antropologia. Rio de Janeiro:
Zahar, 1975.

SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano. Da cultura das mídias à


cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.

_______. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007.

SOUZA E SILVA, Adriana. Do ciber ao híbrido. Tecnologias móveis como interfaces


de espaços híbridos. In: ARAUJO, Denize Correa (Org.). Imagem (ir)realidade.
Comunicação e cibermídia. Porto Alegre: Ed. Sulina, 2006. p. 21-51.
24 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

PROGRAMAS DE COMPUTADOR
E IMPREVISIBILIDADE
Marcos Cuzziol

Apesar de não passarem de conjuntos predeterminados de instruções que, por mais com-
plexos que sejam, executam unicamente aquilo que lhes foi instruído por programadores hu-
manos, programas não são necessariamente previsíveis nem incapazes de gerar resultados
surpreendentes. Este artigo aborda a imprevisibilidade e a surpresa que se originam dessas
sequências de instruções.

Força bruta próprias jogadas. O princípio das instru-

D
ções executadas por esse computador era
e um lado, Deep Blue, supercom- simples: avaliar o maior número possível
putador criado pela IBM nos anos de jogadas com base nos dados disponíveis
1990, com um programa desen- e escolher a que tivesse maior p ­ robabilidade
volvido especificamente para jogar xadrez. de sucesso. Mas, quando instruções simples
De outro, Garry Kasparov, então campeão como essas são repetidas muitas vezes por
mundial absoluto de xadrez. Entre 1996 e segundo, algo interessante acontece: o pro-
1997, Deep Blue enfrentou Kasparov em 12 grama passa a exibir capacidades estraté-
partidas de xadrez jogadas segundo regras gicas. Não se tratava apenas de avaliar o
internacionais. Apesar da polêmica levan- próximo lance; Deep Blue podia avaliar
tada por Kasparov sobre o resultado final longas sequências de jogadas e escolher a
das partidas de 1997, o fato é que Deep Blue melhor delas. Esse volume de processamen-
perdeu a sequência de seis partidas jogadas to foi fundamental para que o programa pu-
em 1996 (uma vitória, dois empates e três desse vencer o campeão humano de xadrez.
derrotas), mas venceu a revanche de 1997 De fato, o sucesso de Deep Blue deveu-se
(duas vitórias, três empates e uma derrota). à estratégia de “força bruta”, com seu progra-
Para a época, Deep Blue era um compu- ma tentando avaliar todas as jogadas possí-
tador avançadíssimo, com 256 processado- veis entre os dados disponíveis para só então
res especializados, capazes de analisar mais decidir qual movimento fazer. Mas da mera
de 100 milhões de posições por segundo. repetição de instruções em altíssima velo-
Além disso, possuía armazenadas em sua cidade emergiu algo novo, pois o programa
memória milhares de partidas de mestres foi capaz de fazer o que seus criadores jamais
enxadristas e as usava para computar as conseguiriam: vencer o campeão mundial de
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Marcos Cuzziol 25

xadrez. Se o programa fosse previsível, como não têm nenhum raciocínio aparente para
leva a crer o fato de ter sido escrito como se- sustentá-las, e os programas não conse-
quência fixa de instruções, Kasparov dificil- guem explicar as jogadas além de observar
mente perderia uma única partida. que as melhores produzem um xeque-mate
Mas a previsibilidade tem limites, pelo em 42 lances, enquanto as alternativas le-
menos para os seres humanos. Podemos vam mais tempo. (CAMPBELL, 2010, p. 64)
entender perfeitamente como funciona um
neurônio, por exemplo, e até prever com pre- Mas a repetição de instruções progra-
cisão o que a célula fará em decorrência dos madas não está limitada à estratégia da força
sinais que recebe de outras. Mas como prever bruta. Um programa pode também ser instruí-
o resultado do conjunto interconectado dos do a encontrar soluções de forma evolutiva.
100 bilhões de neurônios que formam um cé-
rebro humano? De modo similar, como prever Adaptação evolutiva
um programa absolutamente determinista, Difundidos pela pesquisa do cientista
mas capaz de analisar mais de 100 milhões americano John Holland nas décadas de
de posições de peças de xadrez por segundo 1960 e 1970, os algoritmos genéticos são
e que tenha os dados de milhares de parti- especialmente aptos a esse tipo de solução.
das armazenados em sua memória? Murray A pesquisa de Holland tinha dois objetivos
Campbell, um dos principais programadores principais: contribuir para a compreensão
de Deep Blue, ilustra o estranho efeito causa- dos processos de adaptação natural e proje-
do por esse estilo força bruta de programação: tar sistemas artificiais que apresentassem
propriedades similares a sistemas naturais.
A capacidade da máquina de ignorar No lugar de planejarmos e escrevermos
ideias humanas preconcebidas permite um programa, imagine que simplesmente
que ela encontre lacunas no conhecimen- sorteássemos instruções ao acaso para for-
to humano que muitas vezes são difíceis de má-lo. Cada número sorteado definiria uma
entender sem estudo e esforço. Há situa- instrução específica (o que é muito conve-
ções específicas no jogo de xadrez, consi- niente, pois as instruções de um programa
deradas uma parte dos finais de jogo, em não passam de valores numéricos interpre-
que é possível para os programas jogar com tados por um processador). Definimos dessa
perfeição. A experiência de jogar contra ou maneira um “genoma” muito simples para o
observar esses programas de jogo perfeito programa: uma sequência de variáveis que,
é quase fantasmagórica: as jogadas ótimas ao assumir valores específicos (por exemplo,
26 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

após o sorteio), representa um “genótipo”, um 3. Caso exista resultado satisfatório,


dos muitos programas possíveis dentro do parar a execução e apresentar uma
genoma proposto. solução.
Dificilmente um programa escrito assim
faria algum sentido. Ainda menos provável 4. Selecionar os programas mais efi-
seria que ele funcionasse como solução para cientes e eliminar os restantes.
um problema específico. Potencialmente, en-
tretanto, existem sequências de instruções 5. Gerar nova população de programas
permitidas pelo genoma que solucionariam por meio de hibridização, mutação ou
diversos problemas diferentes. Convencio- clonagem dos genótipos dos progra-
nalmente, encontrar a sequência correta de mas selecionados.
instruções para solucionar tais problemas se-
ria função de um programador. É justamente 6. Retornar ao passo 2.
aqui que um novo paradigma se faz presente:
É interessante notar que não há nada
O novo paradigma baseia-se fortemente de essencialmente diferente num algorit-
nas regras da seleção natural, procriando no- mo genético: ele é apenas uma sequência de
vos programas a partir de uma variada reser- instruções, como qualquer outro programa.
va de genes. As primeiras poucas décadas do Mas sua aplicação é relativamente aberta.
software foram essencialmente criacionistas Como os resultados dos programas são sele-
em sua filosofia – uma vontade todo-podero- cionados segundo uma função de avaliação, é
sa conclamava o programa à existência. Mas possível evoluir programas com finalidades
a próxima geração é profundamente darwi- completamente diferentes por meio de uma
niana. (JOHNSON, 2001, p. 169) simples troca da função de avaliação no mes-
mo algoritmo genético.
Sequências de instruções inicialmente Programas desse tipo existem há algum
aleatórias podem evoluir até uma solução ade- tempo. Dois exemplos no campo das artes são
quada. Para tanto, é necessário um laço de rea- as obras Eden (Jon McCormack, 2000) e
limentação entre os resultados dos programas Evolved Virtual Creatures (Karl Sims, 1994),
e as sequências de valores que os compõem. que apresentam criaturas simples capazes
Essa realimentação é executada pelo algorit- de evoluir os próprios comportamentos pro-
mo genético, que neste caso pode ser descrito, gramados por meio de algoritmos genéticos.
de modo bastante simplificado, como: Em Eden, por exemplo, as pequenas criaturas
circulares são capazes de evoluir comporta-
1. Gerar uma população de programas mentos sonoros que atraem a atenção dos
aleatórios. humanos sem que o autor do programa tenha
sequer previsto algo semelhante. Na obra, a
2. Avaliar o resultado de cada programa presença de pessoas em frente às telas gera
(função de avaliação). indiretamente “alimento” para as criaturas, e
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Marcos Cuzziol 27

a capacidade de atrair a atenção de pessoas é difícil para um programador estipular quais


uma significativa vantagem evolutiva. características definem cada letra. O que
Instruções como essas não são progra- torna um “f ” um “f ”? Como associar a ima-
madas, mas, antes, “cultivadas” por evolução gem da letra “f ” ao caractere “f ”? Esse não é
artificial. Ao programador do sistema original um problema trivial, ainda mais se conside-
cabe apenas definir uma função de avaliação rarmos todas as possibilidades de represen-
apropriada para o comportamento desejado. tação para cada letra e a forma como cada
Ele não precisa sequer compreender as solu- pessoa a representa.
ções desenvolvidas por seu programa inicial. Numa rede neural é possível apresentar
Algoritmos genéticos criam soluções que po- a imagem da letra “f” aos neurônios de entra-
tencialmente podem estar além da capacida- da e associar o caractere “f ” aos neurônios
de criativa de seus programadores humanos. de saída. O processo de treinamento envolve
Mas seria possível, para um programa, apren- recalcular os pesos das conexões, as sinapses,
der com a própria experiência? para que os neurônios de entrada resultem
no valor de saída. Repete-se o treinamento
Redes de instruções para diversas versões da letra “f” e de todas
Redes neurais artificiais também se ba- as outras letras. Após treinada, mesmo que
seiam na repetição de instruções bastante se apresente à entrada da rede uma imagem
simples. São redes formadas por “neurônios” de letra diferente das que fizeram parte do
que se conectam entre si. Cada neurônio é treinamento, a rede responde de forma coe-
representado por nada mais que um mero rente. Redes neurais aprendem a reconhecer
valor binário, podendo estar ligado ou des- padrões que seriam muito difíceis, senão im-
ligado dependendo das conexões com ou- possíveis, de codificar diretamente.
tros neurônios. As conexões representam Sempre que utilizamos programas de
sinapses, simples multiplicadores que tor- reconhecimento de voz ou de escrita ou mes-
nam determinada conexão mais ou menos mo um corretor ortográfico de última gera-
importante. O estado de um neurônio é defi- ção, estamos usando um programa como o
nido então pela soma dos estados de todos os que foi descrito. Mas um descendente de
outros neurônios a ele conectados, multipli- Deep Blue, o computador Watson, é um
cados pelos respectivos pesos das sinapses: exemplo mais impressionante. Capaz de
se a soma ultrapassar determinado valor, o responder a questões em linguagem natu-
neurônio liga; caso contrário, ele desliga. ral, Watson foi criado especificamente para
Redes neurais são programas, con- competir com seres humanos no programa
juntos de instruções como as descritas an- Jeopardy!, quiz show da TV americana.
teriormente. Mas programas como esses Com acesso a mais de 200 milhões de pá-
têm uma característica interessante: eles ginas da web, incluindo todo o conteúdo da
aprendem. Podem ser treinados. Uma apli- Wikipédia, o software criava a própria base
cação comum para redes neurais é o reco- de conhecimento, era capaz de encontrar
nhecimento da escrita. Seria extremamente padrões nas perguntas, pesquisar a base de
28 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

conhecimento em busca de padrões simi- Moravec que compara o poder de proces-


lares, acionar o botão quando confiante na samento de computadores, por mil dólares
resposta e responder, também em linguagem de custo, com o de seres biológicos. A curva
natural. Em 2011, Watson competiu com de crescimento ilustrada é uma exponencial
dois dos mais bem-sucedidos ganhadores curiosamente contínua – e vertiginosa. Os
do Jeopardy!, Brad Rutter e Ken Jennings. computadores mecânicos de 1900 mal se
O computador, executando instruções como equiparavam à velocidade de processamento
as descritas anteriormente, venceu. do cálculo manual. Em 1950 atingia-se a uni-
dade: uma instrução por segundo, por milhar
Consciência artificial? de dólares, nas primeiras gerações de compu-
A performance de um computador pode tadores eletrônicos. Em 1990, computadores
ser medida pela velocidade com que ele exe- pessoais alcançaram a marca de 1 milhão de
cuta um programa, mais especificamente instruções por segundo – foram necessários
pelo número de instruções executadas por 90 anos para que essa marca fosse atingida.
segundo. Como exemplo, Deep Blue execu- Apenas dez anos depois, em 2000, compu-
tava 11 bilhões de instruções por segundo, tadores processavam 1 bilhão de instruções
enquanto Watson era capaz de seguir 80 por segundo pelo mesmo valor. Na virada do
trilhões de instruções na mesma unidade milênio, 1 milhão de instruções por segundo
de tempo – ou seja, Watson tinha uma per- – marca que levou 90 anos para ser atingida
formance mais de 7 mil vezes superior. Essa – eram acrescentadas aos processadores a
diferença brutal pode ser esperada de dois cada 5 horas. Se no início dos anos 1990 um
supercomputadores desenvolvidos com mais computador pessoal tinha a performance
de dez anos de intervalo. comparável à do cérebro de uma aranha, a
Na verdade, diferenças brutais também projeção do gráfico indica que, por volta de
devem ser esperadas dos computadores de 2020, um computador similar deve ultrapas-
nosso dia a dia. Um smartphone comum de sar a performance de um cérebro humano,
2015 apresenta uma performance entre dez estimada em 1016 instruções por segundo.
e 15 vezes superior à de Deep Blue. Isso signi- Se projetarmos o gráfico mais adiante, um
fica que, com o software correto, seu celular computador pessoal teria, entre 2050 e 2060,
poderia vencer qualquer ser humano em uma mais performance que os cérebros de todos
partida de xadrez. Se é possível já há algum os seres humanos reunidos.
tempo simular o funcionamento de neurô- Podemos discordar da estimativa de
nios, será possível simular integralmente o performance do cérebro humano apresen-
funcionamento de um cérebro humano? Um tada no gráfico de Moravec, mas o cresci-
programa de computador pode atingir um es- mento da velocidade dos computadores é
tágio de consciência? Ainda é difícil respon- inquestionável. Se o cérebro humano tiver,
der à segunda pergunta, mas não à primeira. digamos, cem ou mesmo mil vezes mais
No livro The Singularity Is Near (2006), poder de processamento que o estimado,
Ray Kurzweil publica um gráfico de Hans computadores pessoais levariam somente
30 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

mais alguns anos para alcançá-lo – e o gráfico tem potencial matemático para avaliar 10500
considera o poder de processamento por mil possibilidades diferentes simultaneamente.
dólares. Supercomputadores atuais já bei- Falamos do número 1 seguido de 500 zeros
ram a marca de 1016 instruções por segundo. numa única instrução. É virtualmente im-
Simular integralmente um cérebro humano, possível imaginar um número tão grande.
pelo menos em termos de poder de proces- Ele não é sequer comparável ao número
samento, talvez já seja possível. estimado de átomos em todo o universo
Mesmo no caso de programas que se conhecido, que é de “apenas” 1 seguido de
utilizem unicamente de “força bruta”, com 80 zeros. Para executar tarefa semelhante
as velocidades de execução projetadas, po- à de uma instrução do algoritmo de Shor, o
demos esperar feitos notáveis já nos próxi- supercomputador mais rápido de 2015 leva-
mos anos. O que dizer então de programas ria muito mais tempo que os 13,7 bilhões de
que evoluam e aprendam? Ainda que tais anos da idade estimada do universo.
programas jamais atinjam uma verdadeira Protótipos de computadores quânticos
inteligência ou consciência, algo que pode já existem. Mesmo que ainda com um núme-
ser questionado, não deve existir dúvida de ro de qubits reduzido (entre 4 e 7, portanto
que eles venham a ter impacto significativo muito longe do potencial previsto matema-
sobre nossa sociedade e nossa cultura, mui- ticamente), esses protótipos demonstraram
to mais do que o demonstrado até aqui por que o algoritmo de Shor funciona e que a ava-
seus antecessores. É importante notar que as liação simultânea de possibilidades é real. O
possibilidades aqui descritas se desenvolvem que será então de programas que hoje pre-
sob a ótica “bem-comportada” da chamada cisam avaliar diversas soluções diferentes
computação clássica, de programas que são de forma sequencial? Como um programa
executados linearmente, com uma instru- quântico avaliará diferentes posições de pe-
ção após a outra. Mas há algo surpreenden- ças num tabuleiro de xadrez? Ou soluções de
temente mais poderoso em plena gestação: uma população num algoritmo genético? Ou,
a computação quântica. ainda, estados diferentes de neurônios numa
Um computador quântico trabalha rede neural artificial?
com qubits, que podem assumir diversas Independentemente das eventuais res-
superposições dos valores zero e 1 (em opo- postas a essas perguntas, é sensato ter em
sição ao zero ou 1 dos bits clássicos). Devido mente uma possibilidade intrigante: a de
à característica do paralelismo quântico, termos de nos relacionar – de competir até
um programa escrito para esse novo tipo – com entidades artificiais muito diferentes
de computador pode avaliar um número de nós mesmos. Com programas de compu-
inimaginável de possibilidades diferentes tador. Entidades que, pelo menos em alguns
numa única instrução. O adjetivo “inimagi- campos, já são mais competentes que nós. E
nável” não é um exagero: o algoritmo quânti- que evoluem em velocidade incomparável.
co proposto por Peter Shor, em 1994, para a Um cenário como esse já pode estar
fatoração de números inteiros, por exemplo, acontecendo.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Marcos Cuzziol 31

Marcos Cuzziol
É engenheiro mecânico pelo Instituto de Ensino de Engenharia Paulista (IEEP), com
mestrado e doutorado em artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo (ECA/USP). É desenvolvedor de games e sócio-fundador da Perceptum
Software Ltda., além de gerente do Núcleo de Inovação/Observatório Itaú Cultural. Atua
principalmente nos seguintes temas: games, realidade virtual, comportamento artificial
e arte e tecnologia.

Referências bibliográficas

BROWN, Julian. The quest for the quantum computer. New York: Touchstone, 2001. 400 p.

CAMPBELL, Murray. Autonomia e sistemas de jogos. In: ITAULAB (Org.). Emoção


Art.ficial 5.0: autonomia cibernética. São Paulo: Itaú Cultural, 2010. p. 61-68.

HOLLAND, J. H. Adaptation in natural and artificial system. Ann Arbor: The University
of Michigan Press, 1975. 228 p.

JOHNSON, Steven. Emergence: the connected lives of ants, brains, cities, and software.
New York: Scribner, 2001. 288 p.

KURZWEIL, Ray. The singularity is near. New York: Penguin Books, 2006. 672 p.

MCCORMACK, Jon. Arte evolucionista: pirâmides cósmicas de baixo para cima. In:
ITAULAB (Org.). Emoção Art.ficial 5.0: autonomia cibernética. São Paulo: Itaú
Cultural, 2010. p. 47-59.

SIMS, Karl. Evolved virtual creatures. In: ITAULAB (Org.). Emoção Art.ficial 5.0:
autonomia cibernética. São Paulo: Itaú Cultural, 2010. p. 71-97.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES  33

2. SISTEMAS DE
PRODUÇÃO EM REDE

34. USO CRIATIVO E CRÍTICO


DE REDES COMPLEXAS
Burak Arikan

44. GAMES: UMA LINGUAGEM


EM DESCOBERTA
Arthur Protasio

52. CROWDFUNDING BASEADO EM


BLOCKCHAIN: QUAL SEU IMPACTO
SOBRE A PRODUÇÃO ARTÍSTICA E O
CONSUMO DE ARTE?
Primavera De Filippi

64. UM SER DE SENSAÇÃO


Edilamar Galvão

77. ARQUIVOS DE ARTE


DIGITAL – ESTRATÉGIAS,
METODOLOGIAS E PARADIGMAS
Jorge La Ferla
34 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

USO CRIATIVO E CRÍTICO


DE REDES COMPLEXAS
Burak Arikan

Uso as redes complexas como meio criativo e crítico no meu trabalho há muitos anos.
Começo este artigo explicando por que a rede lógica hoje é significativa em relação ao que é
chamado de big data; em seguida, examino estratégias criativas por meio de meus trabalhos
recentes MyPocket (2007), Artist Collector Network (2011-) e Monovacation (2013); por fim,
percorro a Graph Commons, plataforma colaborativa de mapeamento em rede.

Para entender as redes complexas sistemas que podem diferir em sua nature-

A
za, em sua aparência ou em seu escopo. Por
s redes complexas são uma área de exemplo: três sistemas bem diferentes – al-
estudo dos sistemas complexos, guns atores que atuaram nos mesmos filmes,
geralmente descritas como com- organizações conectadas por meio de parce-
posições de muitas partes autônomas inte- ria e dispositivos que enviam mensagens uns
ragindo umas com as outras. Sinalização no aos outros – poderiam, em tese, ter estrutu-
nosso sistema neural, transmissão de dados ras de rede similares. A natureza dos nós e
entre os dispositivos de sistemas de teleco- das conexões difere muitíssimo, ao passo que
municação, atividades comerciais em merca- cada rede pode ter a mesma representação de
dos, formações sociais em comunidades são rede. Podemos usar esse método simples de
alguns exemplos genéricos dessas interações mapeamento de rede para começar a estudar
de massa. Para entender um sistema comple- toda uma série de sistemas complexos.
xo, primeiro precisamos de um mapa de seu
diagrama de relações, que é composto de nós Por que a lógica de rede hoje
e conexões, ou pontos e linhas. é significativa?
O diagrama de rede oferece uma lin- Vamos ver por que as redes hoje têm
guagem comum que é tanto visual como importância, embora tenham existido em
matemática. A partir de um mapa de rede, todas as sociedades da história. Sabe-se
podemos inferir informações qualitativas que, 3 mil anos atrás, as colônias de fení-
lendo seus atores e suas relações, bem como cios e gregos criaram suas rotas comerciais
fazer análises quantitativas calculando sua e construíram redes de portos no Mediter-
estrutura de conexão. Na verdade, podemos râneo1. Hoje, contudo, na mesma geografia,
usar essa linguagem comum para estudar cabos submarinos conduzem mensagens e
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Burak Arikan 35

possibilitam um sistema global de comuni- é um bem global; outras vezes somos pessi-
cação2. O que temos atualmente não são ape- mistas, sabendo que estamos sob vigilância
nas redes analógicas ou eventos cotidianos, contínua. Neste mundo contraditório, que ao
mas redes digitalizadas, assim como muitos mesmo tempo é plano, caótico, livre e confina-
aspectos da vida são digitalizados. do, mais uma vez se coloca a pergunta: onde
Hoje as redes são importantes porque os está e por onde circula o poder?.
sistemas de comunicação eletrônicos basea- Uma das respostas à questão do poder
dos em software tornaram as redes mensurá- nas redes reside na prática da mensuração.
veis. Só em nosso tempo as redes são capazes Mais particularmente, na “concordância vo-
de atingir uma escala global e infiltrar-se luntária” em ser o sujeito da mensuração
em todos os aspectos de nossa vida. Com as em vez de o observador que mede. Se você
atuais tecnologias avançadas de informação, fizer uma pesquisa em um campus univer-
as métricas do efeito de rede tornaram-se sitário pedindo aos estudantes que listem
rastreáveis e mensuráveis inclusive em nossa seus melhores amigos e depois r­ eunir essas
vida diária, estruturando, ao mesmo tempo, listas e cruzar os nomes, poderá simples-
o mundo social como tal. mente construir um mapa de uma rede so-
Na verdade, todos nós experimentamos cial no campus. Isso não é novidade depois
o efeito de rede – do e-mail ao e-commerce, do Facebook e tudo mais. Contudo, menos
das redes sociais ao banco pela internet, das conhecido é o fato de que, uma vez tendo o
telecomunicações ao transporte. Todos nós mapa de uma rede social, você pode come-
reconhecemos o fato de que o mundo está çar a explorar atores centrais, atores perifé-
mais complexo do que nunca. Parece-nos ricos, conexões indiretas e grupos orgânicos
tanto plano – podemos alcançar qualquer – um tecido social que de outra maneira lhe
pessoa em qualquer momento – quanto caó- seria invisível. Além disso, podem-se fazer
tico – nossa caixa de entrada de e-mails é cálculos baseados no diagrama da rede e
inundada por informações vindas de todas predizer futuras conexões possíveis entre
as direções. Desde sua infância, a internet os incluídos no mapa.
mostrou sua natureza contraditória ao Mas veja: o mapa da rede social do cam-
evoluir de redes para redes. Dependendo pus só poderia ser criado se os estudantes
de como a usa, você pode ser extremamen- concordassem em declarar suas relações,
te livre e anônimo ou controlar e vigiar as e de forma exata. Se algum estudante se re-
populações. Às vezes somos oportunistas cusasse a listar seus amigos ou se levasse a
em relação à internet, apregoando que ela pesquisa na brincadeira e declarasse sem
36 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

exatidão, ele bloquearia o que o mapa pode Moreno usa esse método para observar e
capturar e afetaria sua estrutura. É claro medir a atividade em escolas; demonstra
que, no mundo real, o controle “protocoló- que as crianças do jardim de infância for-
gico”, como diz Alexander Galloway (2004), mam grupos aleatórios, ao passo que as da
gera consentimento para seguir certas re- 3a série se reúnem entre meninos e meninas.
gras convencionadas, ou protocolos, que Bem, as próprias crianças, seus professores
regem o conjunto de padrões possíveis de e seus pais podem estar conscientes dessa
comportamento em um sistema heterogê- estrutura social; depois de mapeada, con-
neo. Assim, por exemplo, todos desejamos tudo, a informação passa a estar disponível
clicar o botão “Adicionar aos amigos”, o que e a ser útil para qualquer terceiro. Moreno
resulta na geração de um mapa de rede so- inventou na década de 1930 essas técnicas
cial. Você pode fazer download de toda a sua de mapeamento de relações, cujas versões
lista de contatos, mas não das informações digitalizadas e mais avançadas hoje estão
sobre as relações entre eles, que são de pro- nas mãos de corporações e agências go-
priedade do Facebook Inc. e seus parceiros. vernamentais. Assim, quando um setor de
Hoje sabemos que os dados de forma co- nossa vida é sensoriado e capturado como
nectada, como em gráficos, são informações dado, ele é ligado a outras pessoas, aconteci-
valiosíssimas. É por isso que toda atividade mentos e coisas e passa a fazer parte de um
humana está sendo continuamente captu- grande gráfico proprietário, “comoditizado”
rada como dado e mapeada sob a forma de como todo o resto, aberto a intermináveis
gráficos proprietários, também chamados inferências dos poderosos.
de gráficos sociais, gráficos de conhecimento A questão do direito à privacidade dos
ou gráficos de interesse, que contêm relações dados pessoais é amplamente discutida, mas
capturadas em escala e visíveis apenas para são igualmente importantes tópicos como a
quem as captura. geração de dados sob o ponto de vista do tra-
As técnicas usadas para capturar e balho, a economia política da coleta massi-
medir as relações como dados já foram va de dados e o uso dessas técnicas de forma
bem explicadas no livro publicado em 1934 crítica e criativa não só pelos que estão no
por Jacob Levy Moreno, fundador da so- poder, mas também pelas pessoas comuns.
ciometria, da psicoterapia de grupo e do Uma força motora clara para os negócios mo-
sociodrama3. O livro explica o uso de um vidos a dados é o fato de que, se você capturar
gráfico X-Y para capturar uma atividade uma atividade, medi-la e mapeá-la, poderá
social, colocando as pessoas como filei- formulá-la matematicamente e a modelar; se
ras e o tempo como colunas, fazendo uma puder modelá-la, poderá predizer seu futuro;
marca cada vez que uma pessoa fala com se puder predizer seu futuro, poderá contro-
outra. Se duas ou mais pessoas falarem em lá-lo. Quando a captura e o mapeamento de
determinada coluna de tempo, emerge um dados são aplicados apenas por um pequeno
padrão vertical. Ao cruzar fileiras e colunas, número de instituições às demais pessoas,
gera-se um mapa relacional. Por exemplo: começa a aumentar a desigualdade de poder.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Burak Arikan 37

As redes complexas como meio York, mas a obra foi considerada “inadequa-
criativo e crítico da” pelos gestores do museu e a exposição
Agora, vamos examinar exemplos do foi cancelada porque os gráficos continham
meu trabalho sobre o uso criativo e crítico o nome de um truste do Guggenheim4.
das redes complexas. A discussão será feita Esses artistas usaram diagramas e da-
de acordo com três estratégias: dos de maneira crítica e criativa em seu tem-
po. Minha obra é impelida por sua influência,
1. predição – gerada pela análise de da- mas utiliza técnicas contemporâneas de tra-
dos conectados, como nos trabalhos balho com software e dados e é focada nas
MyPocket e Artist Collector Network; condições sociais e políticas do nosso tempo.

2. transversal – agregação de experiên- MyPocket (2007)


cias a partir da navegação na rede, Em 2005, quando estudava no Labo-
como em Monovacation; ratório de Mídia do Instituto de Tecnologia
de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês),
3. mapeamento coletivo – conexão en- tive uma reunião com a MasterCard, um dos
tre dados parciais para compor uma patrocinadores do laboratório. Eles pergun-
imagem mais totalizante, como no taram se poderíamos visualizar as milhares
projeto Graph Commons. de transações da empresa no mundo todo.
Saí da reunião com uma sensação incômoda.
Antes de passar a essas estratégias, eu Pensei: se eles podem ver meus padrões de
gostaria de mencionar três artistas que traba- gastos, eu também deveria vê-los. Então fiz
lharam com pesquisa e diagramas no passado o download das transações de minha conta
e influenciaram o meu trabalho. Em meados bancária e comecei a inserir os dados em grá-
da década de 1950, Guy Debord criou o termo ficos básicos, observando com que frequên-
“psicogeografia” como estudo de ambientes cia compro coisas. A lista contém xícaras de
geográficos em relação às emoções e aos café de várias cafeterias, passes mensais de
comportamentos de indivíduos. Na década metrô, compras de supermercado de vez em
de 1970, George Maciunas, lançador do movi- quando, saques em caixas automáticos etc. O
mento “fluxus”, desenhou gráficos de história crucial aqui é que os bancos compartilham
da arte, uma crônica exaustiva desse movi- essas informações com terceiros, inclusive
mento que também narraria suas origens com serviços financeiros, lojas e empresas
desde o início da arte performática. Hans de marketing. Até dizem em seu acordo com
Haacke, que começou a pensar e a fazer arte o consumidor: “Se você solicitar que não
como sistema na década de 1960, criou em compartilhemos informações com terceiros,
1971 uma instalação documental – ­Shapolsky mesmo assim podemos fazê-lo”5.
et al., Manhattan Real Estate ­Holdings, um MyPocket é um sistema de ­software que
Sistema Social em Tempo Real –, que seria pega dados das minhas transações bancárias
exibida no Museu Guggenheim, em Nova para predizer o que vou comprar dia sim, dia
38 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

não. Cada vez que eu usava meu cartão, os as informações únicas sobre eles, data com
dados da transação iam para a minha conta detalhes de segundos e identidade única, os
bancária e eram automaticamente incluídos recibos se tornaram o que chamo de objetos
na base de dados do MyPocket, então anali- preditos. A existência dessas evidências
sada e transformada em predições. Essa físicas de um evento único era predita por
pode ser considerada uma primeira crítica meio de análise e vivência deliberadas. Eles
ao fenômeno do eu quantificado. Vejamos são readymades, como os objetos ordinários
seu material. O trabalho é um sistema e tem apropriados por artistas contemporâneos.
três instâncias que manifestam as ideias: o No entanto, esses readymades são encon-
gráfico de transações, o feed de transações e trados no futuro, e não no passado, dife-
os objetos preditos, que são exibidos juntos. rentemente dos readymades que Duchamp
O gráfico de transações é o mecanismo inventou no início do século XX.
central de predição do modelo em rede, no
qual os nós são os eventos de transações in- Artist Collector Network (2011)
dividuais e as conexões são similaridades, Outro exemplo de estratégia de predi-
criadas se dois gastos pertencerem à mesma ção no uso de redes complexas é o projeto
categoria ou acontecerem no mesmo dia da Artist Collector Network [Rede Colecionador-­
semana. As cores das bordas mudam com Artista], que iniciei em 20116.
base na intensidade da força: são mais cla- Em 2010, morando em Istambul, na
ras quando maiores, mais escuras quando Turquia, me envolvi com mais intensidade
mais fracas. Com o uso desse modelo de rede no ecossistema artístico, percebendo que o
e com a ajuda das regras personalizadas, o mercado de arte em expansão em Istambul
programa foi capaz de fazer predições corre- tem bastante influência sobre a produção
tas a respeito de meus gastos diários. artística. Senti a necessidade de examinar a
O feed de transações informa se mi- forma desse mercado, mais particularmente a
nhas compras haviam sido postadas publi- influência dos colecionadores no sistema. As-
camente na internet. Qualquer um podia sim, comecei a pesquisa que chamo de Artist
ver o que eu tinha comprado no passado e Collector Network, um mapa exploratório de
o que compraria no futuro. Aqui, os verme- colecionadores e artistas baseado na relação
lhos i­ ndicam predições atuais, os verdes que implica estar em uma coleção de arte.
­compras corretamente preditas e os bran- É claro que o artista pode estar em
cos compras não preditas. Como resultado, várias coleções e que o colecionador pode
os dados relativos aos meus gastos deixaram ter muitos artistas em sua coleção. Alguns
de ser exclusividade de bancos e empre- colecionadores reúnem, em profundidade,
sas de marketing. muitas peças de poucos artistas, ao passo que
Por fim, os recibos coletados eram or- outros fazem coleções laterais, com poucas
denados em uma caixa; cada vez que eram peças de cada artista. Essa intensidade é re-
corretamente preditos, eu marcava sua pro- presentada como o peso das bordas, que guia
babilidade com um carimbo verde. Junto com a organização do layout desse gráfico.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Burak Arikan 39

Quando o modelo de rede é preenchido do mapa. Há um chamado aberto no seu site;


com dados da pesquisa, obtemos as relações não é necessário dizer que o mapa de rede
artista-colecionador em escala. Os nomes interativo está disponível on-line para que
dos artistas estão em vermelho; os dos co- todos o vejam.
lecionadores, em preto. O mapa contém 46 Com a última fase desse trabalho é
colecionadores, 738 artistas e 3.256 cone- introduzido um sistema de predição algo-
xões. Os dados para o mapa foram gerados rítmica para apresentar futuras conexões
fazendo-se perguntas diretas a coleciona- entre artistas e colecionadores, ou seja, a
dores e artistas, de forma que as informa- probabilidade de um colecionador adquirir
ções foram fornecidas por ambas as partes uma obra de um novo artista e vice-versa.
de uma aquisição. No entanto, os dados só Isso foi calculado com base nas conexões
foram verificados uma vez pela pessoa que compartilhadas pelos atores. Ao digitar um
forneceu as informações. Esse é o “protocolo nome no mapa, ressaltam-se suas conexões
de pesquisa” que decidi acrescentar delibera- diretas e também as predições em verde. A
damente ao trabalho, o que cria uma tensão predição de conexão é outro uso algorítmico
entre os dois lados, os donos dos dados rela- de um diagrama de rede, no qual a estrutura
tivos a uma aquisição de arte. de dados e seu uso revelam novas informa-
Se examinarmos um detalhe do mapa, ções sobre poder.
a proximidade dos nomes significa que são
similares em termos do mercado de arte. A Monovacation (2013)
centralidade de um nome representa sua in- Agora vamos para a estratégia do
fluência no mercado de arte da Turquia. É “transversal” no uso de redes complexas.
possível explorar o diagrama de rede intera- ­Monovacation refere-se “às férias” das fé-
tivo ressaltando certas partes e filtrando ou- rias… Comerciais turísticos oficiais de paí-
tras, analisar e entender a estrutura da rede e ses que concorrem uns com os outros foram
ver quem são os atores centrais, quais deles selecionados e cada filme foi dividido em cli-
estão na periferia, que atores têm relações pes o menor possível. Os clipes, com dura-
indiretas, onde são formados os grupos orgâ- ção de três a quatro segundos por natureza,
nicos e onde há lacunas entre certos grupos foram codificados com tags. Por meio de um
– assim, são exploradas relações invisíveis diagrama de rede que roda como simulação
de poder. Mesmo em casos em que a grande por software, essas tags são conectadas umas
quantidade de dados obriga a fazer um mapa com as outras via clipes compartilhados que
maior do que um plano visível, a interface do encontraram suas posições no mapa. Em
algoritmo dá acesso a seu uso. seguida, foi gerada uma nova sequência por
Trata-se de um projeto em andamento. meio de uma transversal no mapa de rede,
Enquanto o trabalho está em exibição, soli- pulando de um nó para o nó mais próximo,
cito às instituições que o expõem que me co- seguindo o caminho dos nós mais centrais.
nectem com a rede de arte ao seu redor para Do litoral do Egito a Portugal, da mulher de
que eu possa pedir às pessoas que participem Israel à da Índia, de figuras mitológicas da
40 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Tailândia às da Turquia, aqui vem uma fan- Estados Unidos], entre outras situações,
tasia extraída de “férias”…7 também atraíram nossa atenção para uma
Esses comerciais oficiais comparti- ferramenta inacessível, porém bastante
lham temas mais ou menos comuns. Por mágica, usada para saber e predizer o que as
exemplo, nos Emirados Árabes Unidos e no pessoas querem. Isso foi possível ao entender
Egito as pessoas cavalgam como esporte; a estrutura inter-relacionada ou conectável
na Turquia, o cavalo é um objeto mitológico; da informação gerada por muitos, mas, como
em Portugal e na Espanha, pode-se treinar foi dito, aberta só a poucas instituições.
cavalos... Os países do Sudeste Asiático se Em outras palavras, a lógica de rede foi
anunciam como lugares místicos; a região do mistificada aos olhos do público. Apenas os
Mediterrâneo se concentra em gastronomia, especialistas em determinados campos têm
vinho e vida noturna; a Europa Meridional agregado grandes quantidades de dados e
quer ser a vizinha onde você descansa, e as- usado ferramentas científicas para visuali-
sim por diante. Cada sequência recortada é zá-los e analisá-los em base relacional. Nem
codificada com tags descritivas, reflexivas os dados relacionais nem as ferramentas de
e conceituais. Quando se unem as tags, as visualização e análise são acessíveis às pes-
tags compartilhadas nos clipes fazem um soas comuns. Contudo, é um mito dizer que
mapa de similaridade. Ao rodar o diagrama as pessoas comuns não têm acesso a dados.
de rede como simulação por software, foram Nós somos, no entanto, os dados para gover-
encontradas suas posições no layout da rede. nos e corporações, que fazem “sensoriamen-
Depois, começando de uma periferia, o nó to” contínuo de nossas atividades.
“barco a remo” na parte inferior, roda-se Na verdade, a interconexão de pontos
um algoritmo transversal, pulando de um nó de dados ao nosso redor e o mapeamento co-
para o mais próximo, seguindo o caminho letivo de relações que podemos observar de
dos nós mais centrais. O que vemos como re- fato tornariam estruturas complexas visíveis
sultado desse gráfico transversal é um novo e, assim sendo, discutíveis. Juntos podemos
tipo de montagem cinematográfica, que se mapear relações e desdobrar as questões que
move por meio de morfos de conceitos, e não têm impacto sobre nós e sobre nossas comu-
de morfos de imagens. nidades. Todos nós deveríamos ser capazes
de mapear conscientemente as redes que nos
Graph Commons e uso coletivo de interessam e nossas relações, entender sua
redes complexas complexidade, apropriar-nos de nossos big
Agora, como estratégia final, vamos data pessoais ou coletivos, controlar seu uso
examinar o mapeamento coletivo. A tática e agir sobre eles para compreender e adminis-
do Estado, em parceria com certas corpora- trar futuros possíveis (CASTELLS, 2004).
ções, para monitorar os próprios cidadãos Para usar a inteligência de rede e ir além
por meio do que foi chamado de big data e das metas que ela pretende alcançar, preci-
os vazamentos da National Security ­Agency samos de ferramentas acessíveis e fáceis de
(NSA) [Agência de Segurança Nacional, nos utilizar, com muitos exemplos, e de meios
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Burak Arikan 41

para colaborar em mapas. Por meio de uma Commons International 4.0. Se nossas re-
espécie de alfabetização em redes, os não es- lações e nossa conectividade criarem uma
pecialistas poderiam penetrar na mais fina espécie de bem imaterial, um gráfico forma-
complexidade e desfrutar de seus méritos. A do por essas conexões constituirá uma pro-
ideia da plataforma Graph Commons nasceu priedade imaterial, que pode ser criada por
dessas intenções em 2011. meio do fazer coletivo, da propriedade cole-
Graph Commons é uma plataforma co- tiva e do controle coletivo. Assim sendo, os
laborativa de mapeamento de rede baseada gráficos tornam-se bens comuns como parte
na web e que também atua como base de do conhecimento em comum da era da rede.
conhecimento diagramático de relações8. Ao se envolver no processo de mapea-
Na Graph Commons, você entende redes mento de rede e visualizar muitos exemplos
complexas ao transformar os seus dados em de gráficos, você começa a se conectar com
mapas de redes interativas, descobrir novas um pensamento racional contra o que era mí-
relações e compreender questões complexas tico, pode entender quanto valor gera quan-
a partir de uma interface simples. Pode-se do o seu gráfico é capturado e ver o quanto é
compilar coletivamente dados sobre os tó- visto sobre você. Não se assume mais uma
picos que o interessam, definir e categorizar posição submissa – você não é mais o objeto:
relações e mapear as questões que têm im- agora é o próprio sujeito da ação.
pacto sobre você e sua comunidade e, assim,
experimentar coletivamente o ato de mapear
como prática em andamento. Faça um power
search em diversos gráficos, convide pessoas
para colaborar no seu trabalho e peça para
contribuir no delas, envolva-se em profun-
da colaboração.
Ao usar a interface baseada na web,
qualquer indivíduo pode começar a mapear
redes, a aprender o vocabulário de análise
de rede e a utilizar a inteligência de rede.
Os membros da Graph Commons têm usa-
do a plataforma para investigar questões de
áreas como jornalismo, pesquisa de dados,
ativismo cívico, estratégias, análise organi-
zacional, design de sistemas, exploração de
arquivos e curadoria de arte.
Todos os pontos de dados – nós e bor-
das – da Graph Commons são de propriedade
dos membros que os criaram e licenciados
para seus autores com a licença Creative
42 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Burak Arikan
É um artista que divide seu tempo entre Nova York (Estados Unidos) e Istambul
(Turquia) e trabalha com redes complexas. Usa as questões sociais, econômicas e políticas
óbvias, como o input, e passa por um maquinário abstrato que gera mapas de rede e
interfaces algorítmicas, resultando em performances e procriando predições para tornar
visíveis – e, assim, discutíveis – relações inerentes de poder. Seus softwares, suas gravuras,
instalações e performances já foram apresentados em várias exposições internacionais.
É fundador da Graph Commons, plataforma colaborativa de mapeamento de rede. Já
expôs em instituições como o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) e as bie-
nais de arquitetura de Veneza (Itália), São Paulo, Istambul, Berlim (Alemanha), Sharjah
(Emirados Árabes Unidos) e Marrakesh (Marrocos), além de Ashkal Alwan (Líbano), Ars
Electronica (Áustria), Sonar (Espanha), Demf, Museu de Arte de Neuberger (EUA), Ins-
tituto KW de Arte Contemporânea (Alemanha), Borusan Contemporary, Depo, Arter e
Salt (Turquia). Também expôs em locais independentes, como Art Interactive (EUA),
Künstlerhaus ­Bethanien (Alemanha), Hafriyat (Turquia) e Turbulence (on-line). Ministrou
e realizou workshops em instituições como o Instituto de Tecnologia de Massachusetts
(MIT, na sigla em inglês), a Escola de Design de Rhode Island, o Programa de Telecomu-
nicações Interativas da Universidade de Nova York, The New School (todos nos EUA), a
Universidade Técnica de Istambul, a Universidade Bogazici, a Universidade Sabanci e a
Universidade Istambul Bilgi (as quatro na Turquia). Concluiu mestrado no Laboratório de
Mídia do MIT, no Workshop de Linguagem Física (PLW, na sigla em inglês), sob a direção de
John Maeda. No MIT, também realizou pesquisas explorando sistemas em rede que tratam
da transição da conectividade para a coletividade no contexto da expressão criativa. É
mestre em comunicação visual pela Universidade Istambul Bilgi (2004) e bacharel em
engenharia civil na Universidade Técnica Yildiz (2001), também na Turquia.

Referências bibliográficas

CASTELLS, Manuel. Posfácio: why networks matter. In: MCCARTHY, H.; MILLER, P.;
SKIDMORE, P. (Ed.). Network logic. London: Demos, 2004. p. 221-225.

GALLOWAY, Alexander R. Protocol: how control exists after decentralization.


Cambridge: MIT Press, 2004.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Burak Arikan 43

Notas

1 Veja mais em: <https://ridgeaphistory.wikispaces.com/


Mediterranean+Trade+Routes>. Acesso em: 31 ago. 2015.

2 Veja mais em: <http://www.submarinecablemap.com/>. Acesso em: 31 ago. 2015.

3 MORENO, Jacob Levy. Who shall survive? 2nd ed. 1953. Disponível em:
<http://www.asgpp.org/docs/wss/wss.html>. Acesso em: 31 ago. 2015.

4 Descrição do trabalho de Hans Haacke na exposição Open Systems, na Tate


Modern (Inglaterra), em 2005. Saiba mais em: <http://www.tate.org.uk/whats-
on/tate-modern/exhibition/open-systems/open-systems-room-7>. Acesso em:
31 ago. 2015.

5 MyPocket, de Burak Arikan, 2007. Saiba mais em:


<http://burak-arikan.com/mypocket>. Acesso em: 31 ago. 2015.

6 Artist Collector Network, de Burak Arikan, 2011. Saiba mais em:


<http://burak-arikan.com/acn>. Acesso em: 31 ago. 2015.

7 Monovacation, de Burak Arikan, 2013. Saiba mais em:


<http://burak-arikan.com/monovacation>. Acesso em: 31 ago. 2015.

8 Sobre a plataforma Graph Commons, acesse:


<https://graphcommons.com/about>. Acesso em: 31 ago. 2015.
44 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

GAMES:
uma linguagem em descoberta

Arthur Protasio

Os jogos eletrônicos enfrentam um constante processo de transformação. Este artigo busca


gerar uma provocação no sentido de compreender e conhecer melhor a linguagem dos jogos a
partir de seus obstáculos sociais e de suas definições estruturais. Perguntas como “Quais são
as mídias e as motivações que inspiraram a criação dos games?” e “Para onde essa inspiração
nos levou?” são cruciais nessa reflexão.

J
ogo eletrônico. Experiência intera- três dias após seu lançamento –, também foi
tiva digital. Ou simplesmente game. intensamente acusada de estimular os joga-
Não importa a denominação usada; dores a cometer crimes na vida real. Contu-
falar sobre videogames é sempre um desa- do, pouco se conhece ou se discute a respeito
fio. Felizmente, significa que a pauta deverá dos desdobramentos culturais e narrativos
abordar pelo menos um destes três itens: tec- dos games e, consequentemente, dessa série
nologia, cultura, engajamento. A questão, no que tem como base a sátira da história cultu-
entanto, é que, apesar da presença desses três ral da América do Norte.
elementos, a mídia do jogo ainda enfrenta obs- Isso nos leva à curiosa constatação
táculos para conseguir ser aceita como uma de que o contexto global em que os jogos
das uniões dessa trindade. eletrônicos se encontram é peculiar. Em-
A começar pelo fato de que, se reparar- bora sua origem remeta ao fim da déca-
mos na repercussão dos jogos eletrônicos na da de 1950, e desde a década de 1970 eles
atualidade, aparentemente nenhuma outra existam como produtos comercializados,
mídia é tão comentada quando se fala em esses jogos ainda representam uma mídia
sucesso comercial e deturpação de valores. relativamente jovem. Afinal, jogos digitais
Um dos jogos que melhor exemplificam essa são produtos tecnológicos que se valem de
polêmica é a série Grand Theft Auto (GTA), uma plataforma para transformar coman-
criada em 1997 e com o lançamento mais re- dos de programação em uma experiência
cente em 2013. Embora seja conhecida por interativa. No entanto, qualquer que seja a
ter quebrado diversos recordes da indústria atividade criada em um game, ela será um
do entretenimento, conforme os registros reflexo do intelecto de seu criador e deverá
mundiais do Guinness World Records – afi- prender a atenção do público se quiser ser
nal, arrecadou 1 bilhão de dólares em apenas bem-sucedida.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Arthur Protasio 45

Foi assim que os jogos eletrônicos Provando que os games são uma mídia em
nasceram como experimento em um am- ascensão, o Guinness registra os seguintes
biente universitário. Em 1958, William recordes mundiais: Grand Theft Auto IV
Higinbotham criou, com o intuito de entre- (Rockstar Games), em 2008; Call of Duty
ter os visitantes do Laboratório Nacional Modern Warfare 2 (Activision), em 2009;
Brookhaven (Nova York, Estados Unidos), o Call of Duty: Black Ops (Activision), em 2010
jogo Tennis for Two, utilizando um oscilos- (CTS GAME STUDIES, s.d.); Call of Duty
cópio e um computador analógico. Embora Modern Warfare 3 (Activision), em 2011
não seja um ponto pacífico de discussão, (­FIGUEIREDO, 2011); Call of Duty: Black
Kent (2001) afirma que diversos historia- Ops 2 (­Activision), em 2012 (MONTEI-
dores identificam esse momento como a RO, 2013); e Grand Theft Auto V (Rockstar
criação do primeiro jogo eletrônico. Na se- ­Games), em 2013 (PITCHER, 2013).
quência, o primeiro game a ser considerado Ainda assim, se o jogo é visto apenas
comercialmente viável foi Computer Space, no âmbito comercial, seu potencial como
uma adaptação do jogo Spacewar! lançada obra cultural é desperdiçado, o que nos
em 1971, fixando os alicerces para o apare- leva ao questionamento sobre o que de-
cimento de uma nova indústria no setor do fine um game. Com base nos estudos de
entretenimento. Pac-Man, Pong e Asteroids Huizinga (2008), Parlett (1999), Caillois
são outros nomes que se tornaram popula- (1962 apud SALEN; ZIMMERMAN, 2003)
res nessa fase. e Juul e ­C rawford (2002 apud SALEN;
Desde então, o sucesso comercial dos ­ZIMMERMAN, 2003), Salen e Z ­ immerman
jogos eletrônicos permitiu uma gradual acei- (2003) acreditam que um jogo pode ser mais
tação tanto no âmbito de políticas públicas bem definido considerando-se alguns ele-
quanto na forma como são percebidos pelos mentos norteadores. Ambos promoveram
meios acadêmicos e de comunicação. Mais uma definição a partir da síntese das carac-
de 40 anos depois, em 2015, esse mercado terísticas mais comuns identificadas em di-
continuamente fatura bilhões de dólares, versas definições de jogos (eletrônicos ou
superando, inclusive, os números da indús- não). Para eles, jogos são (1) uma atividade,
tria cinematográfica e conferindo destaque um processo ou um evento que (2) possuem
econômico ao segmento. Não coincidente- regras que limitam os jogadores; (3) pos-
mente, desde 2008 o recorde anual de maior suem objetivos; (4) estabelecem conflitos ou
lançamento da indústria do entretenimento competições; (5) envolvem tomada de deci-
tem sido conquistado por jogos eletrônicos. sões; (6) são artificiais e (7) e voluntários.
46 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Em essência, embora a definição ofere- prossegue dizendo que a diversão é o prazer


cida por Salen e Zimmerman intencional- ou a fonte de satisfação que se consolidam
mente inclua os jogos eletrônicos, ela não é quando um jogador passa a compreender e
muito diferente da elaborada por Huizinga. a dominar o jogo – assim como quando um
Significa dizer que, ao passo que a explica- quebra-cabeça é solucionado.
ção desse último se apresenta mais como Curiosamente, embora Salen e
um conceito abstrato (que inclusive pode ­Zimmerman não usem o termo “diversão”,
ser aplicado à experiência de entreteni- eles apresentam uma definição similar sob
mento de uma maneira geral), a definição a alcunha de “participação significativa”
de Salen e Zimmerman é útil para elencar (2003, p. 1.018-1.023). Para eles, todo jogo
itens específicos e particulares à mídia dos deve almejar essa participação, pois ela é a
jogos, como as regras. meta de qualquer design de jogo bem-suce-
Koster (2005) dá prosseguimento a essa dido. Dessa forma, é possível concluir que
discussão da definição de jogo por outro viés. a participação significativa é fruto de um
Ele comenta que os autores supracitados e jogo bem projetado. Isso pode se dar pela
outros designers, como Ernest Adams e Sid relação entre a ação do jogador e o resultado
Meier, concordam em diversos pontos. Todos do sistema, constituindo, então, o processo
entendem que os jogos são uma realidade pró- pelo qual o jogador realiza ações no sistema
pria, uma simulação, um sistema formal, e ne- projetado e a forma como o sistema do jogo
cessitam de regras, além de permitir escolhas responde a essas ações. Assim, essa partici-
e apresentar conflitos. Contudo, para Koster, pação é valorizada, pois as ações do jogador e
nenhuma definição menciona a presença da os resultados do jogo se tornam discerníveis
“diversão” como um elemento crucial. O autor e integrados ao contexto deste.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Arthur Protasio 47

Fica evidente, portanto, que no cerne realizada de maneira espontânea, imediata


do jogo está o diferencial da interação. Sem e informal ou ter mais complexidade e ser
ela, a criação dessa estrutura não cumpre sua mediada pela escrita, como no caso de ro-
função de promover esse vínculo de parti- mances, teses, peças e palestras.
cipação com o jogador. Sem essa estrutura O jogo, no entanto, não é necessaria-
não há engajamento. Contudo, para que a mente escrito, por se tratar, em termos estru-
­interação tenha impacto ou significado, ela turais, de uma obra audiovisual interativa, já
precisa ser uma obra comunicativa, e é a par- que sua postura comunicativa é relacional e
tir desse viés que o game reforça sua relevân- de constante significação (e ressignificação)
cia como linguagem. do indivíduo. É essa característica dinâmica
Para compreender o jogo como obra que garante ao gênero uma constante trans-
transmissora de ideias, é importante tam- formação a partir da interação.
bém atentar para a compreensão do gênero Um exemplo desse caso é a apresenta-
como discurso. Segundo Bakhtin (2003), a ção do jogo LA Noire no Festival de Cine-
comunicação é indispensável aos seres hu- ma Tribeca, em Nova York. Um dos motivos
manos, podendo se dar por meio de variadas para a exposição de um jogo eletrônico em
manifestações linguísticas, como a escrita, um festival de cinema foi a extensão e a
a oralidade, o som, os gestos e as expressões complexidade do roteiro da obra – que, com
fisionômicas. Essas manifestações atingem 2.200 páginas, equivale a duas temporadas
uma grande diversidade, pois se relacionam de uma série de TV. Esse dado nos leva a
diretamente com as esferas da atividade perceber que a linguagem do jogo eletrônico,
humana. Assim, o gênero é uma instân- em realidade, é um amálgama de diversas
cia comunicativa, que pode ser cotidiana e outras linguagens.
48 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Portanto, é impossível falar sobre jogos o pensamento crítico por parte do jogador e
digitais sem perceber que sua formação se caracterizar o jogo como uma mídia ideal para
inspirou em tantas outras formas de arte e discutir e explorar questões pessoais e sociais.
comunicação para se consolidar, bem como Reiterando esse entendimento, é pos-
é indiscutível reconhecer que em todas as sível observar uma relação entre os jogos e o
experiências criadas pelos jogos há discursos ato de contar histórias que acompanha essa
sendo proferidos e histórias sendo contadas. mídia desde sua origem. Como todo processo
Dessa maneira, cria-se uma conexão direta criativo que se fundamenta em alguma ins-
com os jogos e a narrativa. piração, é natural que os jogos eletrônicos
Enquanto uma história é compreendi- sempre tenham sido influenciados por ou-
da como uma sequência específica de even- tras linguagens, como a literatura, o cinema
tos com personagens, a narrativa, por sua e os role-playing games (RPGs). Exemplos
vez, se revela como o gênero, ou seja, a forma desse cenário e sua evolução são percebidos
pela qual essa sequência de eventos é narra- desde o surgimento dos jogos Colossal Cave
da de acordo com a perspectiva subjetiva do Adventure, lançado em 1976, e The Bard’s
narrador. Essa distinção nos permite perce- Tale, de 1985. Embora haja um espaço de
ber que cada linguagem, e especificamente nove anos entre a data de lançamento de um
cada jogo, adota uma forma particular de e a de outro, ambos os jogos fazem parte de
contar sua história. A seleção dos elementos um mesmo paradigma tecnológico, promo-
(que sempre ocorre no momento da estru- vendo uma relação textual com seu usuário
turação das regras) determina a quantidade de forma que toda a atuação do jogador seja
e a qualidade de eventos a ser narrados e, dependente de frequentes – e muitas vezes
portanto, afeta o todo. extensas – leituras.
Sob essa ótica, Frasca (1999) enxerga os Ainda que os jogos sejam distintos, pois
jogos como detentores de elementos narrati- o primeiro se assemelha a um livro-jogo, en-
vos e encoraja a experimentação. O pesqui- quanto The Bard’s Tale é parte integrante do
sador afirma que as regras do jogo devem ser gênero RPG e contém ilustrações, o funcio-
abertas o suficiente para que diferentes abor- namento e a representação do conteúdo são
dagens sejam permitidas ao jogador, diferen- muito parecidos: longas leituras descritivas
temente de uma narrativa tradicional, em que sobre ambientes ficcionais e ênfase na in-
a intriga é fechada e imutável. Assim, os jogos teração com um espaço imaginário criado
têm potencial para deixar que o jogador deter- por meio de textos, e não de imagens. A in-
mine a forma como quer participar da expe- fluência do texto e da literatura na produção
riência – e, apesar de ele não se tornar autor dessas obras digitais é evidente.
da estrutura, a liberdade oferecida lhe confere Nas décadas seguintes, em razão da
a autoria das ações realizadas. Para Frasca, a evolução técnica, os recursos gráficos pas-
narrativa complementa o jogo na medida em saram a ser mais abundantes. Muitos jogos
que, ao apresentar elementos críveis e identi- exploraram diferentes possibilidades vi-
ficáveis em suas histórias, permite estimular suais, tornando-se visível uma transição da
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Arthur Protasio 49

influência literária para a cinematográfica. que de interação simplificada, já sejam con-


Diversos games incorporaram elementos siderados jogos imersivos por causa de seus
típicos do cinema, como movimentos de recursos audiovisuais.
câmera e quadros. Os jogos mais preocupa- Na prática, a linguagem dos jogos está
dos com uma experiência narrativa, ou seja, em constante descoberta. Não há uma res-
voltados para a narração de uma história, posta definitiva e provavelmente nunca
iniciaram a fusão de suas bases literárias haverá. O que os games usaram da litera-
com seu visual cinematográfico. tura e da cinematografia para se consolidar
Dessa categoria, jogos como Sam & Max: foi unido ao diferencial da interação para
Hit the Road, lançado em 1993, e ­Baldur’s criar uma linguagem e uma mídia novas. No
Gate, lançado em 1998, exemplificaram as entanto, também não se pode afirmar que
possibilidades de trabalhar com histórias em a interação é a rigor uma criação dos jogos
jogos, unindo o texto ao audiovisual. O pri- digitais, pois essa característica já está pre-
meiro contava com uma apresentação visual sente, desde os primórdios da humanidade,
similar à de um desenho animado, na qual o em diversas atividades culturais.
jogador precisaria explorar o ambiente para Ainda assim, é possível constatar que
coletar e combinar itens a fim de satisfazer toda criação surge de uma transformação.
os desejos de outros personagens e progre- Talvez o termo “jogo” atualmente não seja o
dir no enredo. Embora o já citado Colossal mais apropriado para identificar a pluralidade
Cave Adventure pudesse ser chamado de uma de experiências presentes no mercado e na
versão textual de Sam & Max: Hit the Road, arte. No entanto, é notório que todas essas
esse último era mais próximo de um roteiro experiências interativas se valem de uma
cinematográfico interativo. plataforma tecnológica para promover enga-
Essa inspiração em outras linguagens se jamento pela interação e sentido por meio de
torna ainda mais diversificada e misturada se um discurso cultural. Sem esses elementos,
levarmos em conta produções mais recentes. essa linguagem não seria capaz de existir.
Jogos como Heavy Rain e Beyond: Two Souls Além disso, a forma exata como essa expres-
são frequentemente chamados de “filmes in- são se dá varia não só conforme o seu criador,
terativos” – inclusive tendo sido apresentados mas também de acordo com o jogador – que se
em festivais de cinema –, enquanto Device 6 torna uma espécie de segundo autor.
é identificado como um “livro interativo de Portanto, o game é um amálgama de tec-
investigação”. Adaptações de outras obras, nologia, cultura e interação. Possivelmente
como The Walking Dead, Game of Thrones e mais valioso do que descobrir se existe uma
A Volta ao Mundo em 80 Dias, podem não ser forma de expressão particular dos jogos é
consideradas jogos por muitos, mas têm feito aceitar que o grande trunfo dessa inovadora e
grande sucesso ao contar suas histórias por peculiar linguagem é ser a mistura de tantas
meio de uma narrativa interativa. Por outro outras e, assim, conseguir promover vínculos
lado, a evolução da realidade virtual tem per- emocionais e comunicativos com um vasto e
mitido que diversos ambientes digitais, ainda expansivo público.
50 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Arthur Protasio
É sócio-fundador e diretor criativo da Fableware, produtora especialista em criar
histórias para diferentes plataformas e projetos transmídia. É mestre em design, autor
dos livros Negra Cicatriz e Jogador de Mil Fases e roteirista da atração Xpirado, no Hot
Park (Rio Quente/GO), e dos jogos Sword Legacy: Omen, Cavaleiros do Zodíaco: Cards,
Ballistic e Spy of Us. É conhecido por ter criado o canal on-line de crítica de jogos Ludo-
Bardo e foi consultor da TV Globo na novela Geração Brasil, indicada ao Emmy Digital.

Referências bibliográficas

BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.

CTS GAME STUDIES. Relatório de investigação preliminar: o mercado brasileiro


de jogos eletrônicos. Disponível em: <http://ctsgamestudies.files.wordpress.
com/2011/09/relatorio-preliminar-sobre-o-mercado-brasileiro-de-jogos1.pdf>.
Acesso em: 6 ago. 2015.

FIGUEIREDO, Arthur. Call of Duty: Modern Warfare 3 gerou US$ 1 bilhão mais rápido
que filme Avatar. TechTudo, 13 dez. 2011. Disponível em: <http://www.techtudo.
com.br/jogos/noticia/2011/12/call-of-duty-modern-warfare-3-gerou-us1-bilhao-
mais-rapido-que-filme-avatar.html>. Acesso em: 6 ago. 2015.

FRASCA, Gonzalo. Ludology meets narratology: similitude and differences between


(video)games and narrative. Ludology.org, 1999. Disponível em: <http://www.
ludology.org/articles/ludology.htm>. Acesso em: 6 ago. 2015.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. Tradução João
Paulo Monteiro. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.

KENT, Steven L. The ultimate history of video games: from Pong to Pokémon and
beyond – the story behind the craze that touched our lives and changed the
world. New York: Three Rivers Press, 2001.

KOSTER, Raph. A theory of fun for game design. Scottsdale: Paraglyph Press, 2005.

MONTEIRO, Rafael. GTA 5 entra para o Guinness após quebrar sete recordes mundiais.
Techtudo, 10 out. 2013. Disponível em: <http://www.techtudo.com.br/noticias/
noticia/2013/10/gta-5-entra-para-o-guinness-apos-quebrar-sete-recordes-
mundiais.html>. Acesso em: 6 ago. 2015.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Arthur Protasio 51

PARLETT, David. The Oxford history of board games. Oxford: Oxford University
Press, 1999.

PITCHER, Jenna. Grand Theft Auto 5 smashes 7 Guinness World Records. Polygon, 9
out. 2013. Disponível em: <http://www.polygon.com/2013/10/9/4819272/grand-
theft-auto-5-smashes-7-guinness-world-records>. Acesso em: 6 ago. 2015.

SALEN, Katie; ZIMMERMAN, Eric. Rules of play: game design fundamentals.


Cambridge: The MIT Press, 2003. Livro eletrônico.
52 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

CROWDFUNDING BASEADO
EM BLOCKCHAIN:
qual seu impacto sobre a produção artística e o consumo
de arte?

Primavera De Filippi

O crowdfunding se baseia na contribuição de um grande número de indivíduos para


financiar a produção de determinado trabalho. Algumas plataformas de crowdfunding já fo-
ram desenvolvidas na tecnologia do blockchain, recompensando a contribuição monetária das
pessoas com real participação financeira no projeto. Assim, seus interesses se alinham mais com
os do autor, pois qualquer pessoa que investe no projeto se torna acionista ativo, cujo retorno
sobre o investimento depende, em última instância, do sucesso ou do fracasso daquele projeto.

D
esde o início da civilização, a produ- do manuscrito pelos escribas – que, à época,
ção artística foi financiada e, por- eram quase sempre contratados pela Igreja
tanto, também gerida por alguns ou por órgãos do governo. Da mesma forma,
intermediários: de universidades públicas no âmbito das belas-artes, a produção ar-
e instituições religiosas na Idade Média aos tística era majoritariamente constituída de
patronos públicos e corporativos dos pri- peças únicas, tais como obras de escultura
meiros anos do Renascimento (KEMPERS, e pintura, destinadas, sobretudo, a decorar
1994); das primeiras guildas de editores no edifícios públicos, igrejas e residências
Reino Unido a seus modernos representan- particulares, sem nenhuma expectativa de
tes, como grandes editoras, gravadoras e pro- retorno financeiro.
dutoras cinematográficas, que se tornaram Foi só com o advento da imprensa – e
poderosos guardiões das indústrias criativas de outros dispositivos mecânicos para a
(LESSIG, 2004a). produção em massa de informação – que
É claro que as mudanças na produção a ­produção artística adquiriu valor mais
e no financiamento das obras criativas es- comercial e o resultado dessas práticas
tão intrinsecamente ligadas ao desenvolvi- criativas acabou sendo considerado ver-
mento tecnológico (ROSE, 1995). Antes do dadeiro objeto de comércio (BENJAMIN,
advento da imprensa, a produção (e a repro- 2008). Essa mudança na percepção se re-
dução) de obras literárias era um esforço ár- fletiu imediatamente em modificações na
duo que exigia muitas horas de preparação lei (GRACZ; DE FILIPPI, 2014). Embora
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Primavera De Filippi 53

justificado, em primeiro lugar, pela neces- de obras criativas, as indústrias culturais


sidade de recompensar os artistas por seu foram rapidamente dominadas por um pe-
trabalho criativo, o marco regulatório das queno número de operadores encarrega-
leis de direitos autorais também – se não dos de financiar grande parte da produção
principalmente – foi introduzido como meio artística principal no mundo todo. Em sua
de proteger o investimento de editores ou maioria, esses operadores – por exemplo,
de outros intermediários da informação, grandes gravadoras, como Universal Music
que cada vez mais ansiavam por apoiar a Group e Sony BMG, gigantes da produção
produção de obras criativas como forma de cinematográfica, como Disney, Time War-
investimento comercial para promover seus ner e Universal, e grandes editoras, como
interesses econômicos. HarperCollins, Hachette e Elsevier – hoje
Com o advento do regime de direitos são considerados elementos essenciais das
autorais, a informação passou a ser trata- indústrias criativas, atuando como inter-
da como “propriedade intelectual”, ou seja, mediários entre produtores e consumidores
como ativo que pode ser possuído (mesmo desse tipo de obra (CAVES, 2000).
se apenas por um período de tempo limita- Por muito tempo, para que seu traba-
do) por uma ou mais entidades ou deten- lho conseguisse cobertura da grande mídia
tores de direitos. Por lei, o proprietário dos e ampla distribuição em rede global, escrito-
direitos autorais de uma obra tem uma série res e artistas quase inevitavelmente tinham
de direitos exclusivos sobre sua exploração, de fazer acordos com esses intermediários,
podendo vendê-la (ou licenciá-la) a tercei- que assumiam todos os custos relaciona-
ros em troca de remuneração econômica. dos à produção e à distribuição dessas obras
Graças a esse novo marco regulatório, a criativas em troca de uma margem de lu-
produção artística tornou-se um negócio cro (geralmente altíssima). Os avanços no
lucrativo e o mercado gradualmente supe- campo das tecnologias da informação e co-
rou o financiamento público e de patronos municação tiveram efeito de ruptura nos
como principal sustento da produção artís- negócios dos intermediários tradicionais
tica (SHAPIRO; VARIAN, 2013). (MANOVICH, 2009). As tecnologias digi-
No entanto, dados os elevados custos fi- tais não só reduziram os custos da produção
xos envolvidos na produção e na distribuição (e da reprodução) de conteúdo em formato
54 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

digitalizado, como também permitiram que que recordam os primeiros tempos da in-
qualquer pessoa divulgue esse conteúdo em ternet (DE FILIPPI; MAURO, 2014). Como
escala global – em tempo praticamente zero livro-razão público descentralizado colo-
e a custos muito baixos –, por meio da inter- cado sobre uma rede de pares, o blockchain
net. Portanto, com o advento das modernas pode ser usado para armazenar informa-
tecnologias de telecomunicação, o processo ções sem recorrer a nenhum servidor ou
de desintermediação começou tanto na pro- intermediário centralizado, baseando-se
dução quanto na distribuição de conteúdo apenas na contribuição de cada partici-
(GELLMAN, 1996). pante da rede para desenvolver um banco
No entanto, mesmo que hoje seja mui- de dados totalmente descentralizado cuja
to mais fácil (e barato) para os indivíduos segurança e integridade são garantidas por
produzirem o próprio conteúdo e torná-lo algoritmos criptográficos.
disponível para o público pelos próprios Paradoxalmente, a confiança e a trans-
meios, as pessoas ainda recorrem a um pe- parência aumentam ao eliminar-se a ne-
queno número de intermediários (ou “in- cessidade de terceiros e de intermediários
fomediários”) para acessar a maior parte confiáveis. Modernos desenvolvimentos nas
do conteúdo on-line: de redes sociais, como tecnologias blockchain também implemen-
Google+, Facebook e Twitter, a lojas de mú- tam características adicionais que possibili-
sica on-line do estilo do iTunes, plataformas tam a execução de código computadorizado
de streaming, como Spotify, SoundCloud e sobre esse repositório de dados distribuído,
Pandora, no caso da música, e YouTube, assim permitindo o desenvolvimento das
Netflix e Hulu, para vídeos. Apesar das no- chamadas aplicações descentralizadas, que
vas oportunidades de desintermediação e não estão em determinado servidor, mas são
emancipação individual que a internet e as rodadas, de maneira descentralizada, por
tecnologias digitais oferecem, a maior parte cada participante da rede.
do conteúdo hoje produzido – tanto por ar- Portanto, assim como a internet incen-
tistas amadores quanto por profissionais – tiva o desenvolvimento de comunicações
é armazenada, gerenciada e comunicada entre pares – marcando uma virada que os
ao público por alguns poucos operadores afastava do modelo tradicional de radiodifu-
centralizados, que se apresentam como os são da mídia de massas (de um para muitos)
novos intermediários da sociedade da in- e os levava a canais de comunicação mais
formação (SCOTT, 2000). interativos e distribuídos (de muitos para
Foi só em 2009, com o advento do muitos) –, o blockchain permite o desenvol-
­B itcoin e a subsequente emergência de vimento de uma série de transações (finan-
novas aplicações descentralizadas basea- ceiras e de outros tipos) entre pares que não
das na mesma tecnologia subjacente – o são reguladas nem regidas por nenhuma au-
­blockchain –, que começou uma nova onda toridade centralizada e confiável, como um
de descentralização, revitalizando promes- banco central ou qualquer outro operador
sas de liberdade individual e emancipação centralizado (DE FILIPPI, 2014).
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Primavera De Filippi 55

De fato, uma das características mais nem cobre os custos da produção artística
importantes do blockchain é oferecer às (o Spotify, por exemplo, paga aos artistas
pessoas a possibilidade de fazer transa- uma média de 0,0007 dólares; e o YouTube,
ções diretas umas com as outras sem pas- 0,0018 dólares)1.
sar por intermediário algum. Isso significa Como reação ao sentimento generali-
que escritores e artistas podem não só se zado de exploração por grandes gravadoras
comunicar com as pessoas de maneira di- e operadores on-line, um número crescente
reta para criar uma relação de artistas tem experimenta-
mais forte com seu público, Uma das características do meios alternativos de dis-
mas também fazer transa- mais importantes do tribuir seu trabalho e financiar
blockchain é permitir
ções diretamente com elas, sua criação de forma mais in-
que as pessoas façam
sendo recompensados por dependente (LESSIG, 2004b;
transações diretas umas
seu trabalho com base em com as outras sem passar GEITH, 2008; ­ZIMMERMAN,
uma relação entre pares – e por intermediário algum. 2009). Em vez de se basearem
não por meio de um opera- na exclusividade que a lei de
dor intermediário encarregado de receber direitos autorais proporciona no intuito de ob-
o dinheiro e redistribuí-lo aos artistas per- ter remuneração com o mero consumo de seu
tinentes. Esses novos avanços tecnológi- trabalho, alguns artistas (inclusive bandas e
cos podem ter impacto considerável tanto músicos famosos, como Radiohead, Nine Inch
sobre a produção artística quanto sobre o Nails e David Bowie) experimentaram usar
consumo de arte. esquemas alternativos de licenciamento – tais
Hoje há dois modelos predominan- como o proposto pela Creative ­Commons2 –
tes para a distribuição de conteúdo digital destinados a promover e a facilitar a livre
­on-line. Um é o de assinatura (como Spotify reprodução e difusão de trabalhos criativos
e Netflix), no qual o usuário paga ao ope- (FITZGERALD, 2004; ELKIN-KOREN,
rador da plataforma uma taxa fixa ou um 2006). Ao eliminar o intermediário, esses ar-
montante do tipo pay-per-view para poder tistas conseguiram criar uma relação muito
acessar obras criativas. O outro é o modelo mais direta e pessoal com seu público, que os
baseado em publicidade, no qual o conteúdo recompensa – por livre e espontânea vonta-
é grátis para o usuário, mas os anunciantes de – com doações.
pagam uma taxa ao operador da plataforma Hoje, contudo, a maior parte dessas doa-
cada vez que seu anúncio é divulgado nela. ções passa pela mediação de uma autoridade
Assim, os operadores da plataforma rece- central (por exemplo, o PayPal), que recebe
bem todo o dinheiro e depois o redistribuem uma comissão por cada transação (CAR-
(normalmente uma parte muito pequena) ROLL, 2006). Incentivados pelas baixas taxas
aos artistas pertinentes. Ambos os modelos cobradas por transação pelos sistemas des-
de negócios são altamente lucrativos para centralizados de pagamento, como Bitcoin e
os operadores das plataformas on-line, mas outras aplicações baseadas em blockchain, os
a remuneração dos artistas muitas vezes artistas agora podem ser pagos diretamente
56 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

por seu público, sem ter de recorrer aos ser- financiamento corporativo, proveniente de
viços de nenhuma instituição intermediária. grandes editoras, gravadoras e produtoras de
Novos modelos de negócios podem acabar cinema (COBB, 1996; WU, 2003; KLAMER;
surgindo com base na execução de um gran- MIGNOSA; PETROVA, 2010).
de número de micropagamentos efetuados Recentemente surgiu um novo meca-
por uma elevadíssima quantidade de pessoas nismo para a produção artística, denomi-
(SWAN, 2015)3. De fato, dado o baixo custo da nado crowdfunding (como as plataformas
transação nesses sistemas descentralizados, ­Kickstarter e Indiegogo) e que consiste em
as pessoas podem ter contato mais direto com reunir um grande número de contribuições
seus artistas favoritos enviando-lhes micro- financeiras de uma quantidade significativa
gorjetas ou microdoações. O que talvez seja de pessoas que muitas vezes não se conhecem
mais importante – já que as (BRABHAM, 2008). Os que
modernas tecnologias block- Crowdfunding consiste contribuem financeiramente
chain permitem a incorpora- em reunir um grande para um projeto – os apoiado-
número de contribuições
ção de fragmento de código res – costumam ser recom-
financeiras de uma
em qualquer transação (os pensados com um benefício
quantidade significativa
“contratos inteligentes”) – é de pessoas que muitas (perk), cujo valor depende do
a possibilidade de incorporar vezes não se conhecem. valor global de sua contribui-
termos e condições específicas ção (por exemplo, podem obter
diretamente na “instanciação” blockchain de acesso ao pré-lançamento da obra em condi-
um ativo digital (FAIRFIELD, 2015). Assim, ções preferenciais ou receber uma camiseta
os artistas podem disponibilizar seu trabalho ou outro tipo de merchandising).
publicamente com certas restrições, que só Apesar de darem a impressão de ser
serão removidas após o pagamento de uma mais descentralizadas (em comparação com
taxa – num esquema semelhante ao de sis- modelos de financiamento tradicionais),
temas de gerenciamento de direitos digitais, essas iniciativas, em sua maioria, são coor-
embora desenvolvido de forma totalmen- denadas e, portanto, reguladas por grandes
te descentralizada. intermediários, que atuam como terceiros
No entanto, todos esses mecanismos só confiáveis responsáveis por cobrar e redis-
são úteis para recuperar os custos de produ- tribuir o dinheiro. As tecnologias blockchain
ção depois de feito o trabalho. Alguns artis- eliminam a necessidade desses intermediá-
tas – especialmente os que se encontram rios, pois permitem a criação de plataformas
em situação econômica precária –, contudo, descentralizadas de ­crowdfunding que ope-
talvez só tenham condições de produzir um ram de maneira autônoma sobre uma rede de
trabalho se conseguirem uma fonte exter- pares. Embora a tecnologia ainda seja mui-
na de financiamento. Exceto por subsídios to experimental e não totalmente madura,
públicos e de patronos privados com base várias dessas plataformas já estão funcio-
em compromissos filantrópicos, a produção nando, como é o caso de Swarm, ­Koinify e
artística hoje depende essencialmente de Lighthouse, para citar apenas algumas.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Primavera De Filippi 57

Mas o caráter descentralizador da pla- passa a depender inerentemente do sucesso


taforma de crowdfunding é apenas um lado ou do fracasso da proposta financiada.
da moeda. Podemos perceber melhor a É claro que esse avanço tecnológico
verdadeira inovação que o blockchain in- também precisa respeitar o marco regula-
troduziu ao examinar a maneira como o tório no qual opera. A venda de participação
projeto está sendo financiado. A tecnolo- financeira é regulada em muitas jurisdições,
gia do blockchain pode ser usada por qual- especialmente nos Estados Unidos, onde a
quer pessoa para criar novos tipos de título Comissão de Valores Mobiliários [Security
– geralmente chamados de “criptocapital” and Exchange Commission (SEC)] exige que
(cryptoequity) –, por meio de tokens crip- quem oferece e vende capital para investi-
tográficos (semelhantes ao Bitcoin, mas mento cumpra formalidades realmente duras
sem conotação financeira alguma) que re- (e geralmente muito caras). Historicamen-
presentam ações do projeto para o qual se te, essas regulações surgiram para proteger
busca financiamento (DIETZ et al, 2014). investidores pouco sofisticados que talvez
Em vez de serem recompensados com um não entendessem os riscos substanciais e
benefício predefinido (cujo valor não evolui pouquíssimo visíveis associados a esse tipo
com o tempo), os apoiadores podem ser con- de investimento. Portanto, as plataformas de
templados com uma parte do projeto que crowdfunding precisam ser cuidadosamen-
estão apoiando e interesses nele – e, portan- te desenhadas para evitar vender algo que se
to, beneficiar-se de receitas adicionais que pareça com um título. De fato, muitos opera-
possam provir da apreciação subsequente dores do espaço blockchain argumentaram
do valor dessas ações. Isso cria uma relação que os tokens criptográficos não deveriam ser
mais simétrica entre quem está promoven- encarados como títulos, e sim como tokens de
do o projeto e quem está contribuindo com acesso que podem ser comprados com ante-
recursos financeiros para sua realização. cedência, muitas vezes por preço mais baixo,
Em uma campanha tradicional de no intuito de o usuário depois desfrutar dos
crowdfunding, como a Oculus Rift, os pro- serviços prestados pela aplicação baseada
jetos não precisam dar nada em troca a em blockchain que está sendo apoiada4. No
seus apoiadores, exceto os benefícios que entanto, essa linha de argumentação ainda
prometeram – e isso independentemente precisa ser testada em um tribunal. No mo-
do sucesso que possam vir a ter (a ­Oculus mento, o ponto de vista da SEC é que, “se ca-
Rift conseguiu 2,4 milhões de dólares no minha como pato e grasna como pato, é pato”.
­K ickstarter e depois foi comprada pelo Não obstante, reformas jurídicas recentes
­Facebook por 2 bilhões de dólares). Por outro relativas ao crowdfunding de capital5 estão
lado, em uma campanha de crowdfunding ba- criando um marco regulatório mais indul-
seada em criptocapital, os apoiadores estão, gente, abrindo gradualmente caminho para
na verdade, investindo no projeto que finan- o crowdfunding de criptocapital.
ciam. Eles se tornam reais acionistas do pro- Apesar desses desafios jurídicos, as pla-
jeto e, assim, o sucesso de seu investimento taformas descentralizadas de crowdfunding
58 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

desenvolvidas sobre o blockchain apresen- no contexto da produção artística (SWAN,


tam duas vantagens importantes em relação 2015), na medida em que possibilitam a ar-
a suas contrapartes centralizadas. Por um tistas emergentes (com orçamento reduzido,
lado, na medida em que o blockchain eli- mas potencial forte e visível) conseguir uma
mina a necessidade de autoridade central fonte externa de financiamento necessária
ou de intermediários, os custos da reali- para a produção de trabalhos que, do contrá-
zação de uma campanha de crowdfunding rio, não poderiam realizar. Independente-
bem-sucedida são significa- mente das razões subjacentes
tivamente reduzidos, já que O criptocapital poderia pelas quais as pessoas possam
não há comissão a ser paga a democratizar os aportar recursos financeiros
um intermediário . Por outro
6 investimentos no setor à produção desses trabalhos
lado, uma vez que não existe cultural, especialmente (porque querem apoiar o ar-
no âmbito das belas-
uma entidade legal operando tista, porque querem que o
artes, caracterizado
a plataforma, os desafios jurí- artista produza mais obras ou
por obras com valor de
dicos supracitados podem ser mercado realmente alto. simplesmente porque querem
menos problemáticos, já que especular sobre o valor futuro
não há quem responsabilizar pela falta de dessas obras), determinado número de ações
cumprimento das formalidades exigidas. será distribuído a cada apoiador, que, por
Nesse sentido, é particularmente interes- conseguinte, receberá uma parte dos lucros
sante o caso do Popcorn Time7, no qual em- auferidos com a venda ou a exploração co-
presas que forneciam e/ou faziam funcionar mercial dessas obras.
a aplicação foram consideradas indireta- O conceito de criptocapital também
mente responsáveis por violação de direitos pode ser desenvolvido no mercado de arte
autorais, embora nenhuma acusação tenha tradicional por meio da venda ou da entre-
sido feita contra os desenvolvedores ou os ga de ações de uma obra de arte a patroci-
usuários dessa aplicação. nadores ou colecionadores individuais com
Além disso, e especificamente em re- vistas a remunerar artistas, a posteriori, por
lação ao âmbito artístico, essa forma des- seu trabalho criativo. Nesse sentido, as tec-
centralizada de financiamento está mais nologias blockchain poderiam, em grande
em sintonia com os ideais descentralizados medida, democratizar os investimentos no
de muitos artistas e criadores, que prefe- setor cultural – especialmente no âmbito das
rem ser remunerados diretamente por seu belas-artes, caracterizado por obras cujo va-
público a recorrer aos serviços de inter- lor de mercado costuma ser elevado demais
mediários centralizados, cujos interesses para que muitas pessoas contemplem essa
comerciais muitas vezes estão em contra- possibilidade. Com o criptocapital, muitos
dição com os deles. indivíduos podem tornar-se proprietários
Em particular, as campanhas de parciais de determinada peça e beneficiar-se
crowdfunding baseadas em criptocapital com seu sucesso da mesma maneira que uma
poderiam ter implicações significativas galeria ou um colecionador.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Primavera De Filippi 59

Essa é a proposta de valor do Artlery,


aplicativo baseado em blockchain que re-
compensa os apreciadores de uma obra de
arte com um presente que representa uma
porcentagem do futuro fluxo de receita
relacionado a essa obra, não apenas pela
venda inicial, mas também por vendas “se-
cundárias” subsequentes. Dessa maneira,
as tecnologias blockchain também pode-
riam facilitar aos próprios artistas o res-
peito a seus direitos de revenda – que são
impostos por lei em muitas jurisdições, mas
com frequência não são aplicados ou o são
de forma precária, sobretudo devido à di-
ficuldade de implementar essas normas –,
alinhando os incentivos tanto de artistas
como de seus patrocinadores.
As implicações para o consumo artís-
tico também são dignas de nota. Tanto no
­crowdfunding baseado em criptocapital
quanto na venda de ações de criptocapital,
o público não é mais consumidor passivo –
ele se torna parte interessada ativa de uma
obra cultural. Como resultado, os interesses
do público alinham-se cada vez mais com os
dos artistas, já que todos têm um incentivo
para promover as obras no intuito de colher
os frutos de seu sucesso. Futuramente, isso
poderia afastar o mercado de arte de seu
atual estado de escassez artificial e exclu-
sividade, aproximando-o de um estado de
coisas mais colaborativo, enraizado na dis-
seminação e no compartilhamento.
60 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Primavera De Filippi
É pesquisadora permanente do Centre d’Études et de Recherches de Science
­Administrative/Centre National de la Recherche Scientifique (Cersa/CNRS), da Universi-
dade Paris II (França). É docente associada ao Berkman Center for Internet & Society, na
Harvard Law School (Estados Unidos), onde está pesquisando o conceito de governança
por projeto em suas relações com arquiteturas on-line distribuídas, tais como Bitcoin e
Ethereum. Obteve Ph.D. pelo European University Institute, de Florença (Itália). É membro
do Conselho da Agenda Global sobre o Futuro dos Serviços de Software & TI do Fórum
Econômico Mundial, além de fundadora da coalizão dinâmica do Fórum de Governança
da Internet sobre Neutralidade da Rede e Responsabilidade pela Plataforma. Além de
sua pesquisa acadêmica, atua como perita jurídica para o Creative Commons na França
e na Fundação P2P.

Referências bibliográficas

BENJAMIN, W. The work of art in the age of mechanical reproduction. United Kingdom:
Penguin, 2008.

BRABHAM, D. C. Crowdsourcing as a model for problem solving: an introduction and


cases. In: Convergence: the International Journal of Research into New Media
Technologies, 14 (1), 2008. p. 75-90.

CARROLL, M. W. Creative Commons and the new intermediaries. In: Mich. St. L. Rev.,
45, 2006.

CAVES, R. E. Creative industries: contracts between art and commerce (n. 20).
Cambridge: Harvard University Press, 2000.

COBB, N. K. Looking ahead: private sector giving to the arts and the humanities. In: The
Journal of Arts Management, Law, and Society, 26 (2), 1996. p. 125-160.

DE FILIPPI, P. Bitcoin: a regulatory nightmare to a libertarian dream. In: Internet Policy


Review, 3 (2), 2014.

DE FILIPPI, P.; MAURO, R. Ethereum: the decentralised platform that might disrupt
today’s institutions. In: Internet Policy Review, 2014.

DIETZ, J. et al. Distributed collaborative organisations, 2014. Disponível em:


<https://www.scribd.com/embeds/255347578/content?start_page=1&view_
mode=scroll&show_recommendations=true>. Acesso em: 25 ago. 2015.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Primavera De Filippi 61

ELKIN-KOREN, N. Creative Commons: a skeptical view of a worthy pursuit, 2006.


Disponível em: <http://www.researchgate.net/publication/228162788_Creative_
Commons_A_Skeptical_View_of_a_Worthy_Pursuit>. Acesso em: 25 ago. 2015.

FAIRFIELD, J. BitProperty. In: Southern California Law Review, 88, 2014-17, 2015.

FITZGERALD, B. F.; OI, I. Free culture: cultivating the Creative Commons. In: Media &
Arts Law Review, 9 (2), 2004.

GEITH, C. Unleashed with web 2.0 and open educational resources. In: The Tower and
the Cloud, 219, 2008.

GELLMAN, R. Disintermediation and the internet. In: Government Information


Quarterly, 13 (1), 1-8, 1996.

GRACZ, K.; DE FILIPPI, P. Regulatory failure of copyright law through the lenses of
autopoietic systems theory. In: International Journal of Law and Information
Technology, 2014.

KEMPERS, B. Painting, power and patronage: the rise of the professional artist in the
Italian renaissance. London: Penguin Books, 1994.

KLAMER, A.; MIGNOSA, A.; PETROVA, L. The relationship between public and private
financing of culture in the EU. In: 14th International Conference of ACEI, the
Association for Cultural Economics International, Copenhague, Jun. 2010.

LESSIG, L. Free culture: how big media uses technology and the law to lock down
culture and control creativity. New York: Penguin Books, 2004a.

______. The Creative Commons. In: Mont. L. Rev., 65, 1, 2004b.

MANOVICH, L. The practice of everyday (media) life: from mass consumption to mass
cultural production? In: Critical Inquiry, 35 (2), 2009. p. 319-331.

ROSE, M. Authors and owners: the invention of copyright. Cambridge: Harvard


University Press, 1995.

SCOTT, J. Emerging patterns from the dynamic capabilities of internet intermediaries.


In: Journal of Computer-Mediated Communication, 5 (3), 2000.

SHAPIRO, C.; VARIAN, H. R. Information rules: a strategic guide to the network


economy. Cambridge: Harvard Business Press, 2013.

SWAN, M. Blockchain: blueprint for a new economy. Sebastopol: O’Reilly Media, Inc., 2015.
62 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

WU, C. T. Privatising culture: corporate art intervention since the 1980s. New York:
Verso, 2003.

ZIMMERMAN, D. L. Finding new paths through the internet: content and copyright. In:
Tul. J. Tech. & Intell. Prop., 12, 145, 2009.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Primavera De Filippi 63

Notas

1 Disponível em: <http://www.theguardian.com/technology/2015/apr/03/how-


much-musicians-make-spotify-itunes-youtube>. Acesso em: 31 ago. 2015.

2 Creative Commons é uma organização sem fins lucrativos que produz licenças
destinadas a reduzir as restrições-padrão previstas pela lei de direitos autorais.
Essas licenças visam abandonar o conceito de “todos os direitos reservados”
do regime de direitos autorais para adotar um regime mais permissivo, em que
só “alguns direitos são reservados”. Ver mais detalhes em:
<http://creativecommons.org>. Acesso em: 31 ago. 2015.

3 É claro que já era possível efetuar microtransações antes do advento das


tecnologias blockchain, mas isso não era tão fácil de implementar por causa dos
custos fixos por transação. A Apple, por exemplo, relutou em lidar com os 30
centavos de dólares americanos somados a 3% para cada transação com cartão
de crédito na loja iTunes. A solução foi reunir várias compras de forma a distribuir
os custos de transação a um lote maior. Ver em: SCHLENDER, B.; TETZELI, R.
Becoming Steve Jobs. Crown Business, 2015.

4 Por exemplo, nem a Swarm nem a Koinify vendiam capital diretamente. Vendiam,
antes, tokens para uso de sua plataforma enquanto ela ainda estava sendo
construída. De certa forma, esse modelo pode simplesmente ser encarado como
uma forma particular de pré-venda, na qual as pessoas investem em determinada
quantidade de tokens que mais tarde lhes permitirão usar a plataforma. Para
mais detalhes sobre as várias maneiras de lidar com tokens criptográficos no
regime regulatório dos Estados Unidos, ver: DIETZ et al, 2014.

5 Ver, por exemplo, nos Estados Unidos, onde a nova isenção determinada no
Título IV da Lei Jumpstart Our Business Startups (Jobs) permite que pequenas
empresas ofereçam e vendam até 50 milhões de dólares em títulos em um
período de 12 meses sem ser submetidas a registro e qualificação decorrentes
da Lei de Títulos.

6 Veja, contudo, que – ao contrário da Lighthouse, que opera como aplicação


descentralizada no blockchain, sem nenhuma organização por trás – tanto a
Swarm quanto a Koinify são dirigidas por duas empresas com fins lucrativos que
cobram dos usuários uma comissão para operar seus negócios.

7 Após mandado de injunção impetrado por cinco membros da Motion Picture


Association of America, um tribunal britânico determinou que diversos websites
que forneciam a aplicação Popcorn Time fossem bloqueados, embora eles
mesmos não estivessem comunicando ao público trabalhos submetidos a
direitos autorais. No entanto, os desenvolvedores do Popcorn Time não foram
responsabilizados pelos usos da aplicação.
64 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

UM SER DE SENSAÇÃO
Edilamar Galvão

Este artigo é uma versão reduzida, com as adaptações necessárias, do segundo capítulo
da tese de doutorado A Insuficiência da Linguagem – Fundamentos para uma Estética da
Arte Tecnológico-Digital (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006),
ainda inédita. O artigo centra-se na reflexão do “ser” da obra de arte tecnológico-digital in-
serida no desenvolvimento da categoria que funda e define a arte: a experiência. A aisthesis,
o ser de sensação que se origina na experiência ritualística e mítica antes de ser “arte”, como
imitação de uma experiência.

P
aradoxalmente, a arte é, ao mesmo Nós somos os propositores: nós somos
tempo, filiação e rompimento da o molde, cabe a vocês soprar dentro dele o
­experiência forte e original do rito. sentido de nossa existência.
Experiência que dessacraliza o mito fun- Nós somos os propositores: nossa
dador, talvez para investigar a experiência proposição é o diálogo. Sós, não existimos.
mesma em todas as suas faces. Por isso, a Estamos à sua mercê.
pergunta mais adequada para a obra de arte Nós somos os propositores: enterra-
em geral talvez seja: “Que tipo de experiên- mos a obra de arte como tal e chamamos
cia você instaura?”. Inserir-se na experiência você para que o pensamento viva dentro
proposta também parece ser a forma corre- de sua ação.
ta de compreender a arte para, na verda- Nós somos os propositores: não lhe
de, sentir a experiência que ela instaura. propomos nem o passado nem o futuro,
Como nos pede Lygia Clark em seu famoso mas o agora.
Livro-Obra, de 1968:
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Edilamar Galvão 65

Artista como propositor. Arte como fazendo-o conceber entradas, senhas, pala-
molde. A relação entre artista-obra e seu vras, escolhas que serão a própria condição
­leitor-receptor como diálogo. Como ­diálogo, de existência da obra.
a  forma primeira da filosofia. O diálo- Tal condição pode nos fazer pensar que
go como forma de ação e de existência do um livro fechado também é um dispositivo
­leitor-receptor na obra. desligado. A ampliação da exigência de au-
A palavra “recepção” sofreu uma es- tonomia e ação por grande parte das obras
pécie de preconceito semântico diante das de arte tecnológico-digitais nos leva a pensar
novas experiências estéticas. Com o com- não somente na condição de recepção a elas,
preensível desejo de reforçar mas também que a recepção
a necessidade de ação do re- Artista como propositor. ideal de toda obra de arte é
ceptor, à palavra foi atribuída Arte como molde. a completa entrega ao uni-
uma passividade. Devemos, A relação entre artista-obra verso proposto por ela. Re-
e seu leitor-receptor como
porém, nos lembrar de Jorge visitemos Dom Quixote hoje
diálogo. Como diálogo, a
Luis Borges no conto “Pierre forma primeira da filosofia. e verifiquemos se não é isso
Menard: Autor de Dom Qui- O diálogo como forma de que o livro pede de nós. Pois,
xote”: “O autor é autor da sua ação e de existência do quando há o apagamento ou
obra, o leitor é autor da sua leitor-receptor na obra. a transformação das condi-
leitura”. É bastante com- ções materiais de produção
preensível que o tipo de recepção instaurado e existência das obras, elas entram em uma
desde a arte moderna tenha feito crescer o nova opacidade e é preciso reconstituí-las
estranhamento e que, justamente aí, exista a de alguma forma para redescobrir sua
necessidade de um deslocamento e de uma linguagem, seu frescor, sua atualidade. A
autonomia cada vez maiores por parte dos recepção é sempre também uma ação, e re-
receptores. Sem isso, a obra fica cada vez ceber aqui é aceitar a proposição de soprar
mais opaca. Eis o motivo de a palavra “inte- a existência na obra.
rator” ganhar a preferência de pesquisadores Será possível existir a obra, como arte,
e críticos das novas formas de manifestação fora da experiência? Não se define a aisthesis
artística: ela torna mais precisa e enfática a como a experiência por meio dos sentidos?
ampliação da exigência aos receptores con- Fernando Pessoa já não nos ensinou que, no
temporâneos, além de a recepção das obras poeta, o que pensa está sentindo? Qual é o
de arte tecnológico-digitais muitas vezes lugar da experiência senão o agora? O pen-
mover o processo de leitura para todo o cor- samento e as obras podem ser eternos, mas
po, fazendo-o agir na experiência corpórea só acordam da sua eternidade pela expe-
mesma pela interação com as obras ou, então, riência, quando vêm à existência num agora.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Edilamar Galvão 67

Artistas são… gente que cria algo


completamente original e novo,
algo além da fronteira conhecida da
base de informação. Ao usar ou inventar
novas ferramentas, mostram novos usos
e aplicações que sinergizam e sintetizam
campos. Os artistas expandem os limites
de tecnologias, levando-as para metas não
obtidas anteriormente. Artistas, assim
como cientistas, trabalham com símbolos
abstratos, representações de várias
realidades de ferramentas de trabalho.
Até a linguagem usada pelos dois grupos é
semelhante. Cientistas que trabalham com
matemática frequentemente descrevem
uma explicação ou solução particularmente
boa como ‘elegante’ [...] A ponte intelectual
da abstração e da consideração estética é
fundamental para ambos os grupos.”

Vibeke Sorensen, The Contribution of the Artist


to Scientific Visualization
68 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Se assumirmos essa exploração das formas da A navegação interativa entre nós e ne-
experiência como aspecto ontológico da arte, xos pelos roteiros alineares do ciberespaço
não veremos ruptura em seu desenvolvimento, envolve transformações sensórias, percep-
tampouco avanços. Será a arte o que deve ser tivas e cognitivas que trazem consequências
como experiência em cada agora, que respon- também para a formação de um novo tipo de
de a uma necessidade interior do artista, de sensibilidade corporal, física e mental. Essas
sua época e da própria arte – como já definiu transformações devem muito provavelmen-
Wassily Kandinsky –, que busca, por meio de te estar baseadas em: a – tipos especiais de
todos os meios de manipulação por ela inven- ações e controles perceptivos que resultam
tados ou à sua disposição, mostrar uma rea- da decodificação ágil de sinais e rotas se-
lidade fora de qualquer manipulação, como mióticas, b – de comportamentos e decisões
nos disse Walter Benjamin? Assim também cognitivas alicerçados em operações indife-
Gilles Deleuze poderia responder à pergunta renciais, métodos de busca e de solução de
proposta por ele mesmo sobre o que seja uma problemas. Embora essas funções percepti-
obra de arte com o conceito de arte “como um vo-cognitivas só sejam visíveis no toque do
ser de sensação e nada mais, ela existe em si” mouse, elas devem estar ligadas à polissenso-
(DELEUZE, 1992, p. 213). rialidade e à s­ enso-motricidade, no envolvi-
Toda a teoria que está aí envolvida será mento extensivo do corpo na sua globalidade
importante para tentar estabelecer um diá- psicossensorial, isto é, na sua ­capacidade
logo com os objetos produzidos a partir da sensorial sinestésica e sensório-motora.
tecnologia atual com a arte digital, uma vez (SANTAELLA, 2004, p. 34-35)
que as diversas manifestações artísticas di-
gitais tendem a pressupor o sensório no seu Santaella coloca a modificação da sen-
aspecto interativo. A sensorialidade envolvi- sorialidade na raiz da comunicação digital;
da nos processos de interação digital foi bri- assim, quando ampliamos o uso dos recursos
lhantemente trabalhada por Lucia Santaella da tecnologia digital, o que se amplia é essa
em seu Navegar no Ciberespaço. Nesse livro, característica constituinte. Uma vez que a
ao apresentar três tipos de leitor – o contem- realidade virtual propicia a experiência sen-
plativo (característico da cultura impressa), sória por meio da utilização de interfaces
o movente (característico da era industrial múltiplas, ela pode realizar em grau máxi-
na cultura de massas e das mídias) e o imer- mo a extensão dessa polissensorialidade por
sivo (característico da cultura digital) –, a meio da tecnologia digital.
autora expõe de modo esclarecedor os as- A discussão apresentada por Deleuze
pectos sensoriais envolvidos nesse último torna-se também operativa quando pensa-
perfil cognitivo, que terá seu grau máximo mos nas condições de produção e recepção
de realização na realidade virtual. Ou seja, a da arte tecnológico-digital, pois aqui a tec-
imersão implica o sensório e, mais que isso, nologia digital – o material que constitui
uma transformação na própria sensibilidade a obra de arte – é tratada como fator dife-
corporal, física e mental, segundo Santaella: rencial na produção de uma nova forma
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Edilamar Galvão 69

artística que altera o próprio modo como a O meio aqui é uma necessidade. De ma-
arte é pensada, assim como os materiais e os neira análoga, em carta a Oliver Grau, Char-
procedimentos artísticos modificaram, cada lotte Davies reflete sobre a acessibilidade e a
um a seu tempo, o próprio conceito de arte. necessidade do uso da tecnologia:
Walter Benjamin deixou isso claro ao refletir
sobre a mudança provocada pelo advento da Uma das coisas que estamos fazendo
reprodutibilidade técnica: com Osmose é apontá-la para novas tecno-
logias à medida que a tecnologia aparece,
Já se haviam gasto vãs sutilezas em talvez no final das contas cheguemos com
decidir se a fotografia era ou não arte, mas, ela a algo relativamente pequeno. E espe-
preliminarmente, ainda não se perguntara ramos fazer isso também com o novo tra-
se essa descoberta não transformava a na- balho, Ephemere. É a minha insistência em
tureza geral da arte; os teóricos do cinema transparência (em tempo real) que nos faz
sucumbiriam ao mesmo erro. (BENJAMIN, necessitar desse equipamento tão de ponta.
1989, p. 233) Se pudesse fazê-lo apenas com um pincel de
madeira e pigmento eu o faria – mas então
Aliás, não seria interessante perguntar você não poderia ser envolvido no espaço
se o erro não vem sendo cometido suces­ criado, que foi o que me levou a esse meio
sivamente? em primeiro lugar e pode me manter aqui,
Uma reflexão que parta do objeto artís- apesar de todas as complexidades técnicas.
tico foi também a preocupação apresentada (DAVIES apud GRAU, 2003, p. 210)
por Herbert Read no clássico A Arte de Agora
Agora. No primeiro capítulo, o autor critica Podemos usar algumas obras de arte
toda a tradição estético-filosófica pelo seu tecnológico-digital como exemplo, dando
idealismo, pelo seu descolamento da arte, a ênfase à sua materialidade e às sensações
fim de, por outro lado, defender uma meto- delas resultantes. As aqui citadas são todas
dologia empírica para construir o discurso anteriores a 2004, mas mantêm sua atualida-
estético. Poderíamos dizer que Read defen- de e sua força em relação aos princípios teó-
de que a estética parta da materialidade da ricos propostos em minha tese de doutorado,
obra de arte, dos seus aspectos constituti- estes ainda adequados a obras mais recentes,
vos, da escuta do próprio discurso no mo- tais como as apresentadas nas cinco edições
mento de sua mudança, e que não parta das do Emoção Art.ficial, do Itaú Cultural, e no
regras de uma arte anterior para construir Festival Internacional de Artes Eletrônicas
uma verdadeira ciência da arte: “O artista (File), ambos realizados em São Paulo (SP).
fala em pedra, em madeira, em bronze, em Em The Legible City (1988-1991), do
cor, exatamente como o poeta fala em pa- artista e teórico Jeffrey Shaw1, o interator
lavras: o artista torna o pensamento visível, precisa pedalar numa bicicleta ergométrica
sem o intermediário dos conceitos verbais”, conectada a um computador que simula o es-
diz Read (1981, p. 25, grifo nosso). paço físico de uma cidade baseada nos seus
70 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

próprios mapas. No lugar de prédios, textos cidade surge na conjunção de sentidos que es-
edificados nas mesmas proporções dos edi- sas palavras geram enquanto surgem ao lon-
fícios da cidade. O “ciclista” imerge na cidade go do trajeto da bicicleta. (SHAW e STILES
por meio de um avatar e “lê” esses textos con- in SELZ, 1996, p. 487)
forme passeia pelas ruas dessa cidade legível.
Nas versões Amsterdam (1990) e Karlsruhe No trabalho de Sommerer e ­Mignonneau,
(1991), os textos são reunidos com base em a mesma tensão é percebida. Em sua primeira
arquivos de documentos que descrevem a instalação interativa por computador, Interac-
realidade histórica de cada lugar. Na versão tive Plant Growing (1993), os autores integram
Manhattan (1989), computadores ligados em a bioarte à plataforma computacional inte-
diferentes lugares permitem, ainda, que os in- rativa. Ao tocarem plantas reais, os usuários
teratores se encontrem em tempo real no espa- podem controlar o crescimento de plantas
ço simulado. Aqui os textos produzidos partem virtuais geradas por computador.
de monólogos ficcionais de oito moradores de
Manhattan, entre eles um motorista de táxi e As tensões do corpo dos usuários são
o magnata Donald Trump, que se distinguem captadas pelas plantas vivas e usadas para
em palavras construídas em oito diferentes controlar o crescimento de vários algorit-
cores. Ou seja, cada interator-ciclista define mos de plantas artificiais. Ao tocarem ou
sua rota e sua velocidade pela cidade virtual, simplesmente se aproximarem das plantas
construída a partir de seu espaço, de sua his- vivas, os usuários podem cultivar e criar
tória e de personagens reais. Essa experiência coletivamente plantas artificiais sempre
estética pode proporcionar uma redescoberta diferentes que são expressões diretas e inter-
do espaço citadino, mas ela é construída de um pretações de suas interações com as plantas
modo extremamente individual. O interator reais. (SOMMERER e MIGNONNEAU in
pode se sentir no espaço observado, trans- DOMINGUES, 1997, p. 200, grifos nossos)
formado em espaço verbal tridimensional. O
discurso mistura-se com estar no espaço físi- Os artistas declaram seu interesse numa
co, o espaço físico transforma-se em espaço arte orientada para o processo ante uma arte
verbal. A leitura, por sua vez, transforma-se orientada para o objeto. A reflexão sobre o
num caminhar à deriva, num construir rotas darwinismo e a vida artificial marcam o tra-
possíveis, alternativas, num ir ou voltar, atua- balho da dupla, bem como as mais variadas
lizando mesmo a concepção “peripatética” de intersecções com a tecnologia digital e o co-
construção discursiva de Aristóteles. nhecimento científico sobre a evolução das
espécies. No trabalho A-­Volve (1994), os ar-
Andar de bicicleta nesta cidade de pa- tistas permitem ao público criar de fato vidas
lavras é, consequentemente, uma viagem de artificiais. Numa tela de toque 2D, os usuá-
leitura. A escolha da direção, a escolha de rios desenham uma figura qualquer que será
onde fazer uma curva, é uma escolha de tex- traduzida como um código genético. Desse
tos e sua sobreposição, e a identidade dessa código nasce uma vida artificial que viverá
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Edilamar Galvão 71

numa piscina com água. Esses seres virtuais numa vidraça de vidro opaco. A solidão do
adquirem uma visualidade e uma plastici- interator é intencional, pois ela intensifica
dade parecidas com as de ­águas-vivas. Eles a experiência individual do lugar virtual. A
interagem entre si na água segundo uma lei estrutura da instalação, uma combinação de
darwinista. Caçam, se acasalam, se reprodu- sistema independente e de um auditório às
zem ou podem até mesmo evoluir de acordo escuras com uma tela, faz lembrar um estú-
com as mutações provocadas pelo ambiente dio de teatro ou de cinema.
no seu algoritmo genético. Os usuários podem Como um mergulhador solitário e sem
criar mais vidas e tocar nesses seres virtuais, peso, o interator primeiro desliza para fora de
produzindo, assim, alteração no ambiente uma grade de coordenadas cartesianas para
ou criando energia vital para sua subsistên- os cenários virtuais: um abismo oceânico
cia. Segundo Grau, o usuário brinca de Deus sem limites com nuvens tremeluzentes de
(GRAU in DOMINGUES, 2003, p. 291). insetos gerados por computador até a densa
vegetação rasteira de uma floresta escura.
Osmose é uma simulação tecnicamente A passagem de um cenário para o seguinte
avançada e visualmente impressionante de é suave e fluida. Enquanto os primeiros meios
uma série de espaços textuais e visuais que virtuais utilizavam portais que tornavam as
se dividem de muitas formas: uma esfera mi- transições abruptas, no mundo de imagens
neral/vegetal intangível. Nada faz lembrar de Osmose o observador vivencia transições
as imagens granuladas, sobressaltadas e po- osmóticas de uma esfera para outra, vendo-a
ligonais dos primeiros anos da arte virtual; desaparecer gradualmente antes de se amal-
no espaço de dados da canadense Charlotte gamar à seguinte. Naturalmente, isso signi-
Davies, pontos de luz fosforescentes brilham fica que dois espaços de imagens têm de ser
na escuridão com foco suave. Osmose é um gerados simultaneamente. O monitor estéreo
ambiente interativo imersivo, que envolve HMD em frente aos olhos permite ao intera-
um equipamento que é colocado na cabeça tor passar imediatamente ao interior do solo,
[head mounted display, ou HMD], grafismos onde ele encontra rochas e raízes vívidas, e,
em computadores 3D e som interativo, que finalmente, entrar no microcosmo cintilante
pode ser explorado sinesteticamente. No e opalescente de uma folha de árvore.
segundo nível, a instalação oferece aos vi- No centro desse espaço de dados encon-
sitantes a oportunidade de seguir a viagem tra-se uma árvore sem folhas numa clareira,
de imagens do interator individual através representativa e isolada. Seu tronco e seus
desse simulacro de natureza. Com ajuda galhos brilham como cristal, inteiramente
de lentes polarizadoras, eles assistem à sua transparentes e permeáveis até o seu centro.
perspectiva de mundos tridimensionais Osmose é uma esfera ao mesmo tempo feita
em constante mudança numa grande tela de mineral sólido e fluida e intangível, um
de projeção. As imagens são geradas exclu- espaço não cartesiano. […] Olhado de cima
sivamente pelo interator, cuja silhueta em para baixo do alto da árvore digital, na qual o
movimento pode ser vagamente distinguida processo biológico da osmose é mistificado,
72 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

aureolado e mesclado às imagens técnicas, O fato é que as obras de arte voltam a particu-
o emaranhado de raízes lembra uma galáxia larizar a experiência em si. Na diversidade de
distante; no entanto, à medida que o observa- sua experiência, os caminhos são inúmeros e
dor se aproxima, evoca um microcosmo. Dois a cada artista deverá ser dedicada a reflexão
mundos textuais servem como parênteses que lhe seja própria e particular. Isso ainda não
desse simulacro de natureza. As 20 mil linhas deixará de ser uma construção que se distin-
de códigos de programa da obra são visíveis gue da obra de arte como experiência, mas, ao
no ambiente virtual, organizadas em colunas mesmo tempo, constitui-se na experiência de
colossais; e um espaço cheio de fragmentos de viver e pensá-la sem distinção.
textos – conceitos de natureza, tecnologia e Não se pode, assim, determinar um ca-
corpos, todos escritos por pensadores, como minho ou uma direção comum para a diversi-
Bachelard, Heidegger e Rilke, cujas ideias dade das práticas artísticas. Possivelmente, o
não foram tocadas pelos pano de fundo “comum” em
desenvolvimentos revo- A experiência proporcionada que elas se projetam é a pro-
lucionários recentes em por Osmose parece colocar posição do debate contem-
relação à imagem. Que o o indivíduo em completa porâneo sobre o indivíduo,
programa de computador imersão no ambiente o corpo, o conhecimento, a
esteja visível não diminui simulado. Tal simulação tecnologia, a ética na forma
também parece conferir
substancialmente a expe- de uma experiência. A expe-
ao participante a sensação
riência imersiva; ele reve- riência por meio da interati-
de corporeidade no e do
la em parte as fundações
ambiente, além da própria vidade que exige do outro a
binárias dos espaços de experiência ultraindividual. ação na obra e uma conse-
imagem e, dessa maneira, quente alteração da obra e
torna o observador consciente das origens da do discurso nessa ação. Se pela obra como
ilusão. (GRAU, 2003, p. 195-196, grifo nosso) processo se constrói o compartilhamento
da autoria, os resultados temporários desse
A experiência proporcionada por Osmo- processo e o próprio processo em andamento
se parece colocar o indivíduo em completa são sempre alterados e alteráveis pela ação
imersão no ambiente simulado. Tal simula- individual e coletiva.
ção também parece conferir ao participante “Eu entendo interatividade, nesse con-
a sensação de corporeidade no e do ambiente, texto, como o potencial para poder influenciar
além da própria experiência ultraindividual. intencionalmente o desempenho de um arte-
Esteticamente, como quer Ortega y fato tecnológico”, diz Felix Stalder (­STALDER
­Gasset em A Desumanização da Arte, procu- apud CZEGLEDY in DOMINGUES, 2003,
ramos um pano de fundo comum no qual a p. 143). Na reflexão sobre seu trabalho como
diversidade das manifestações artísticas se artista e curadora, Nina Czegledy afirma
encontra ou, como quer Deleuze, tentamos que seus projetos têm a intenção de suscitar,
construir uma “gigantesca alusão” que evapora de modo estético, questões relativas à cul-
e se distingue da realidade do acontecimento. tura contemporânea: o corpo, a ciência, as
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Edilamar Galvão 73

telecomunicações, a interatividade. C ­ hoice Assim, interatividade aqui não é uma


foi o nome dado a um de seus projetos de simples característica do meio digital – tal-
curadoria, com o trabalho de três artistas ca- vez seja o modus operandi no qual se projeta o
nadenses que, segundo Czegledy, “abordavam verdadeiro pano de fundo da obra de arte con-
as contradições científicas e as possibilidades temporânea. Constituir a obra de arte como
pragmáticas da interatividade” (ibid., p. 141). uma experiência única, individual, intrans-
ferível, mas fazendo, ao mesmo tempo, essa
A palavra choice (escolha) implica op- experiência ser completamente dependente da
ções, alternativas, uma motivação para tomar ação e das escolhas do sujeito. É como se a obra
decisões. Escolha, um termo sedutor, sugeria de arte recuasse um passo antes da linguagem
liberdade, até mesmo democracia. Poderia ser para constituir-se como experiência e sensa-
interessante considerar quanta liberdade ver- ção em si antes da experiência da linguagem.
dadeira, quanto controle sobre nossa escolha Uma segunda natureza tecnológico-digital.
ainda resta dentro do domínio digital – abas- E, em muitos casos, uma experiência que
tecido com jogos de computador preconce- deseja ou tende a assemelhar-se – a ser – à
bidos, arte virtual programada e esculturas experiência fundante/fundamental do rito.
interativas incorporadas. (Ibid., p. 143) Que é a experiência mesma.
74 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Edilamar Galvão
É poeta, jornalista e professora. Graduada em comunicação social com habilitação
em jornalismo pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) em
1993, defendeu o mestrado Poesia (em) Tradução (1999) pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/SP), sob a orientação de Arthur Nestrovski, e o doutorado
pela mesma instituição com a tese A Insuficiência da Linguagem – Fundamentos para
uma Estética da Arte Tecnológico-Digital (2006), sob a orientação de Sérgio Bairon. Na
área da educação, concluiu o máster em tecnologia educacional pela Fundação Arman-
do Alvares Penteado (Faap) em 2004. É coordenadora do curso de pós-graduação em
jornalismo cultural na Faap, onde também é professora de estética nos cursos de gradua-
ção e pós-graduação das faculdades de comunicação e artes plásticas. Como jornalista,
foi repórter, apresentadora e diretora, em 1994 e 1995, na TV Cultura do Amazonas e
colaboradora do jornal Folha de S.Paulo entre 1997 e 1999. É autora do livro de poemas
DUVIDA DIVIDA DADIVA (2009). Entre 2009 e 2010, assinou uma coluna sobre cinema
e filosofia na revista Beta. Atuou também como crítica de artes visuais na revista Bravo!.

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 2000.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I, II e III: Charles Baudelaire. São Paulo:


Brasiliense, 1989.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.

CHIPP, H. B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

COSTA, Mário. O sublime tecnológico. São Paulo: Experimento, 1995.

COSTA, Rogério da. A cultura digital. São Paulo: Publifolha, 2002.

DANTO, Arthur C. After the end of art: contemporary art and the pale of history.
Princeton: Princeton University Press, 1997.

______. The abuse of beauty: aesthetics and the concept of art. Illinois: Open Court, 2003.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Edilamar Galvão 75

DOMINGUES, Diana (Org.). A arte no século XXI: a humanização das tecnologias.


São Paulo: Editora da Unesp, 1997.

______. A arte no século XXI: tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo: Editora da
Unesp, 2003.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Alpiarça: Vega, 2002.

GOMBRICH, E. H. A história da arte. São Paulo: LTC Editora, 1999.

GRAU, Oliver. Virtual art: from illusion to immersion. Cambridge: The MIT Press, 2003.

GREENE, Rachel. Internet art. New York: Thames & Hudson, 2004.

ORTEGA Y GASSET, José. A desumanização da arte. São Paulo: Cortez, 2001.

______. Adão no paraíso e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2002.

PAUL, Christiane. Digital art. New York: Thames & Hudson, 2004.

READ, Herbert. A arte de agora agora. São Paulo: Editora Perspectiva, 1981.

SANTAELLA, Lucia (1980). Produção de linguagem e ideologia. São Paulo: Cortez, 1996.

______. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura.


São Paulo: Paulus, 2003.

______. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo dos leitores imersivos. São Paulo:
Paulus, 2004.

______. Por que as comunicações e as artes estão convergindo? São Paulo: Paulus, 2005.

SELZ, Peter; STILES, Kristine (Ed.). Theories and documents of contemporary art: a
sourcebook of artists’ writings. California: University of California Press, 1996.

SHAW, Jeffrey; WEIBEL, Peter. Future cinema: the cinematic imaginary after film.
Cambridge: The MIT Press, 2002.

Nota

1 Descrição feita com base em Christiane Paul e Jeffrey Shaw (The Legible City) em
SELZ; STILES, 1996, p. 487.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Jorge La Ferla 77

ARQUIVOS DE ARTE DIGITAL –


estratégias, metodologias e paradigmas

Jorge La Ferla

Um percurso sobre a situação da obra de arte digital e sua conservação a partir de sua
especificidade, considerando a concepção de arquivos programados. Uma problemática que
abarca a ampla gama das artes tecnológicas, incluindo a simulação numérica dos suportes
analógicos. Desenvolve-se o conceito de arquivo como produto cultural e sua concepção a partir
da criação de algoritmos de compilador. As primeiras obras interativas na América Latina
são comparadas com produções recentes, considerando sua preservação e a constituição de
acervos inteligentes da história da arte digital no continente.

O
desafio da conservação da arte digital suas implicações – pode ser útil para fazer
faz parte de um tema transcendente: um balanço mais amplo.
a preservação de todas as artes au- A reflexão sobre a arte tecnológica ex-
diovisuais convertidas em processo de digi- pande a problemática do acervo para sua
talização, em que a constituição de arquivos materialidade original e, portanto, para
ocupa lugar central. A digitalização de mídias sua conservação, para os usos criativos e
e de comunicações modificou a concepção para uma interpretação crítica da constitui-
clássica de arquivo de obras em sua varia- ção de arquivos de artes digitais no âmbito da
da materialidade e dispositivos. A aparente cultura. É importante remeter-se à origem e
homogeneidade da conversão numérica é à história do arquivo ao longo do tempo e a
relativa para uma problemática que se ve- seu valor de memória cultural, cujo sentido
rifica em todo o campo da cultura e, parti- tem variado de acordo com a história dos
cularmente, no campo das artes, sendo um meios de comunicação, seu uso em massa e
disparate restringir o problema unicamente as práticas artísticas. É a documentação que
ao campo das artes tecnológicas programa- outorga o sentido de pertencimento, pois
das. O simulacro numérico do audiovisual vincula os indivíduos a uma cultura regida
analógico a partir da mídia digital é parte de pela economia de dados.
um debate que ainda não alcançou toda a sua A questão do arquivo de artes digitais
amplitude no que diz respeito à preservação. está relacionada ao colecionismo, ou seja,
Por isso, revisar algumas variáveis sobre o à aquisição, ao armazenamento, à conser-
conceito de arquivo como produto cultural – vação e à restauração de obras com base
em suas particularidades, sua ideologia e em critérios curatoriais que determinam
78 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

sua circulação e sua exibição – processos usam as mesmas máquinas baseadas no pro-
operacionais e conceituais que remetem a cessamento de informação de dados numé-
uma série de saberes que vão do tecnológi- ricos e na mídia digital.
co ao ideológico. A história da arte digital Podemos considerar alguns casos
é constituída de uma questão essencial, e emblemáticos de obras históricas da arte
específica, que implica considerar o próprio digital na América Latina que servem de
estatuto do processamento matemático de exemplo particular e de dificuldades no to-
dados e seus dispositivos, desde a máquina cante à sua preservação. Uma dessas obras
de calcular até o computador, no âmbito de é o antológico J. S. Bach2 (1988) – do artista
sua ontologia, sua história, sua materiali- chileno Juan Downey – laser disc tido como
dade e seus usos1. Tal problemática envolve referência por se tratar de um dos primei-
os variados campos da produção artística, a ros desse tipo, na história do audiovisual no
academia e o museu contemporâneo. continente, a ser interativo. Devido à nobreza
Estabelecer um panorama comparado do suporte, a obra pode ainda ser vista por
e abrangente da conservação da arte digi- aqueles que possuem o hardware necessário.
tal é uma tarefa ainda por realizar, devido à O ­Electronic Arts Intermix3, por sua vez, não
falta de critérios para a criação de coleções tem tal obra em seu catálogo, embora ofere-
completas, nacionais e regionais. Essa difi- ça a versão digital do vídeo linear de mesmo
culdade é um desafio que se coloca diante da nome4, também de Downey. Outras institui-
quantidade de centros, fundações, festivais, ções fazem-na figurar em seus arquivos, mas
museus, escolas e universidades dedicados apenas possibilitando sua visualização no lo-
à arte tecnológica, os quais, invariavelmen- cal, sem a opção de empréstimo5. Na maioria
te, evitam o assunto, considerando apenas a desses acervos, aparece o vídeo homônimo,
diversidade de máquinas e programas cujas mas são poucos os que registram e catalogam
principais características são sua difícil essa obra interativa de referência.
compatibilidade e sua rápida obsolescência. O vídeo, por sua vez, propõe um relato
A uniformidade computacional é aparente de- sobre a obra de Bach por meio de uma nar-
vido à impossível padronização de formatos de rativa baseada em uma estética imposta pela
hardware e de sistemas operacionais, evitada videoarte com a superposição de imagens em
pelas empresas que dominam o mercado. As quadro, configurando várias interpretações,
alternativas disponíveis, desde o software nas quais se destacam a voz e o pensamen-
livre até os programas de autor, oferecem as to de Downey. Já o laser disc se articula por
mesmas características, ou seja, são incompa- meio do projeto de uma interface que propõe
tíveis exceto por sua rápida obsolescência. A intervenções sobre a estrutura composicio-
produção, a exibição e a preservação de obras nal de “Fuga 24 em Si Menor”, de Bach, na
digitais encontram-se em uma conjuntura opção de diversas variáveis para sua execu-
paradoxal, considerando que um fotógrafo, ção. Lembremos que Downey, juntamente
um videoartista, um cineasta, um diretor com Woody Vasulka e Nam June Paik, fez
de TV ou um artista de “novas tecnologias” parte da saga de autores de vídeo que muito
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Jorge La Ferla 79

cedo realizaram experimentos com a ima- conservação e circulação de obras interati-


gem digital, continuando as experiências vas que marcam a história da arte digital na
já feitas no cinema por Larry Cuba e os ir- América Latina.
mãos Whitney, quando ainda não havia no Diversos centros e instituições possuem
mercado computadores que processassem acervos próprios de arte tecnológica, cons-
informação audiovisual. tituídos de acordo com várias estratégias
No entanto, diferentemente de todos de armazenamento e manutenção, sendo
esses autores, o chileno transcende a inter- que uma fração mínima é colocada em ex-
venção numérica sobre a imagem eletrônica posição e são poucas as entidades que têm
analógica, concebendo uma forma de pro- enfrentado as dificuldades advindas com
gramação operacional para o leitor do laser sua coleção de arte digital. Além de seus
disc, cujo dispositivo já oferecia variáveis habituais auditórios e salas de exposições,
de interação. Para aqueles que ainda têm o algumas instituições estabeleceram áreas
aparelho original, já fora do mercado, essa de documentação e pesquisa como parte de
obra de Downey funciona perfeitamente um projeto para aquisição, conservação e
(várias instituições e alguns colecionado- restauro de obras tecnológicas. No Brasil,
res individuais conservam uma cópia desse Videobrasil e Itaú Cultural vêm desenvol-
trabalho). A circunstância de um hardware vendo um trabalho de longa data para a ma-
já inacessível, no caso do referido trabalho nutenção de suas coleções, tarefa notável
de Downey, tornou invisíveis obras recen- perante a ausência de órgãos públicos que
tes, cuja recuperação é ainda incerta devido cuidem desse patrimônio.
à sua complexidade técnica. O Videobrasil vem refletindo especifi-
Outro caso notável é a obra multimídia camente sobre a conservação de um acervo
do mexicano Pedro Meyer Fotografo para formado ao longo de mais de três décadas
Recordar 6, que, com Mentiras y Verda- de existência, gerando vários processos que
des7, foi editada pela conhecida produtora fazem de seu arquivo de arte eletrônica o
Voyager no começo dos anos 1990. Esses mais completo e mais bem cuidado de todo o
softwares interativos, concebidos para com- continente (FARKAS; MARTINHO, 2015).
putadores Mac, em pouco tempo ficaram O Itaú Cultural tem, ao longo dos últimos
obsoletos pelas mudanças ocorridas nos sis- anos, promovido eventos e exposições9 que,
temas operacionais dessa marca de compu- apesar de sua proximidade temporal, já re-
tadores. Foi o próprio Meyer quem, após um presentam sérios desafios em matéria de
longo e custoso processo, converteu aquele conservação, documentação e circulação, os
primeiro CD-ROM em uma obra o ­ n-line, quais envolveram a aquisição, a exposição
agora disponível em sua página Zona Cero8. ou a produção das mesmas obras tecnológi-
A situação dessas primeiras obras intera- cas. Todo o universo dos meios tecnológicos
tivas de Downey e Meyer constitui um foi exposto e colocado em circulação, e vá-
eloquente testemunho da dificuldade em rias obras foram adquiridas ou produzidas
conceber ações institucionais, critérios de pela instituição.
80 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Da mesma forma como fazemos alusão que, de modo pioneiro, vincula trajetos a
às obras de Downey e Meyer, que nos reme- partir de um mapa imaginário cuja leitura
tem aos primórdios da arte digital no conti- da paisagem envolve a descoberta de luga-
nente, há exemplos recentes que servem de res e suas mitologias. Para recuperar a obra,
referência devido a seu processo de preser- cuja versão original de programação não
vação. Foi em 201410 que se voltou a expor funcionava mais, foi necessário reformular
Desertesejo (2000), de um artista-chave seu programa, o display e a interface ope-
como é Gilbertto Prado, pioneiro no campo racional para uma nova versão, que incluiu
das artes tecnológicas. Desertesejo, desen- novos trajetos em seu hipertexto cartográ-
volvido na época como integrante do pro- fico e conceitual – isso colocou novamente
grama Rumos Itaú Cultural Novas Mídias, em funcionamento uma obra cuja proposta
já não estava em operação. Essa instalação continua atual, mas que, sem o respectivo
interativa imersiva, multiusuária na época restauro11, teria desaparecido.
e construída na linguagem VRML, propõe Outro caso emblemático, sempre na
uma ação de navegação lúdica e inteligente complexa prática das instalações intera-
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Jorge La Ferla 81

tivas imersivas associadas a ações per- Sem dúvida, essa problemática excede
formativas, é OP_ERA, de Rejane Cantoni qualquer contexto nacional, sendo relevante
e Daniela Kutschat (2001-2010). Essa ver- em um âmbito mais amplo. Deparamo-nos
são da extensa série foi realizada na caver- com a questão central de como constituir ar-
na digital12 da Universidade de São Paulo quivos de obras de arte digital (HOFMAN;
(USP). Hoje sua recuperação é bastante ROZO, 2009), considerando a situação de seu
complexa, devido à dificuldade em dispor de estado computacional nas suas possibilida-
uma caverna virtual e dos programas e das des específicas de conservação, circulação e/
interfaces que foram projetados especial- ou exposição, mas que deveriam responder a
mente para esse projeto. Trata-se de uma uma tarefa prévia da constituição da docu-
das obras que marcam a história da arte mentação compilatória. Enquanto há vários
digital na América Latina, e dela restam órgãos e organizações dedicados à cataloga-
vestígios baseados em uma incisiva docu- ção de obras de arte digital – tendo em vista
mentação13 produzida por ambas as artistas sua conservação –, a imensa quantidade, a
como parte do processo. variedade e a hibridação de gêneros tornam
82 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

difícil estabelecer um sistema único de A realidade é que se está lidando com


classificação. Diante da impossibilidade de suportes efêmeros, cuja materialidade é de-
conservação e restauro de toda a produção, terminada pelos processos de informação
torna-se necessário conceber como parte da numérica gerados em máquinas provenien-
tarefa de preservação uma introdução sobre tes de textos científicos; máquinas essas
a conservação, começando por estabelecer que possuem espectro tecnológico e de
conjuntos de obras. Exceto as que perma- programação variável e imprevisível. O uso
necem vigentes, on-line e ­foram  pensadas em massa dessas tecnologias implica uma
para esse meio ou estão em e­ xposição, o perdurabilidade e uma circulação que depen-
resto fez parte de mostras ou exposições dem de um mercado cujo princípio é a mu-
temporárias, das quais, na melhor das hi- dança permanente que assegure o benefício
póteses, permanecem vestígios e, algumas econômico. É assim que o efeito de aparente
vezes, documentação relevante. homogeneidade e permanência do digital é
Na América Latina, vêm sendo realiza- funcional e requer suportes, ­hardware e
das várias experiências sobre essa temáti- ­software que não sejam uniformes nem du-
ca, considerando uma possível tipologia de radouros. A questão primordial seria expor
obras a partir da especificidade de suporte, grupos conceituais que estabeleçam conjun-
programa e pertencimento a possíveis gê- tos de documentação de obras para possíveis
neros, a classificação com base em possíveis preservações, que sempre serão efêmeras,
categorias de linguagem de acordo com as pelo caráter e pela imaterialidade daquilo
opções de exibição, consumo e navegação, que sustenta a existência do meio.
em um panorama no qual a grande maioria Os processos de restauração material
dessas obras é perdida devido à expiração dos e operacional de obras de arte digital re-
sistemas operacionais, dos dispositivos, das querem uma variedade de conhecimentos
interfaces. As obras de arte digital na América específicos, técnicos e conceituais que re-
Latina seguem o mesmo caminho dos filmes cuperem em versões novas as peças origi-
mudos do continente de um século atrás, que, nais, as quais, uma vez desmontadas e sem
à exceção de uma ínfima quantidade, estão de- espectadores, se revestem de um caráter
finitivamente perdidos. É por isso que várias de obra latente, pois é o usuário que lhes dá
instituições, entidades culturais e centros de existência ao operá-las. Por esse motivo, a
distribuição optaram por organizar seus acer- informação sobre as obras requer uma eco-
vos de mídia audiovisual e arte tecnológica, nomia precisa para avaliar a quantidade de
embora seguindo uma ordem discutível, como peças armazenadas que exigem interpreta-
o formato do catálogo biblioteconômico, ção e avaliação como parte de um conjunto.
oriundo da arte ou da enciclopédia e baseado Ou seja, é preciso conceber metadados que
em obras – ­adquiridas, expostas, produzidas – proponham uma leitura crítica e compara-
agrupadas segundo critérios cronológicos, tiva de dados, isto é, uma pesquisa interpre-
genéricos, temáticos e outros previsíveis de tativa de leitura do arquivo de obras com base
outras práticas culturais e artísticas. em seu caráter computacional específico.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Jorge La Ferla 83

Esse processo talvez seja o aspecto mais a obras e autores costuma ser desprovida
importante a levar em consideração antes de de uma leitura interpretativa do conjunto.
qualquer restauração, ou seja, estabelecer Uma programação algorítmica inte-
um conjunto comparativo de obras funda- ligente implicaria recriar a base de dados,
mentado em diversos critérios de classifi- mas traduzida de diferentes lugares de aná-
cação dados pela mesma condição digital lise comparativa. É a partir da linguagem
do arquivo e pela elaboração de um código de compilação, de acordo com o significado
de programação pertinente. Ante a impos- do termo computacional, que se poderiam
sibilidade de restaurar toda a história da gerar diferentes cotejos e assimilações dos
arte digital e a irreversível obsolescência de dados armazenados. Os próprios sites des-
sua própria conservação, torna-se impres- ses centros dedicados às artes e ao meio
cindível catalogar, classificar e pesquisar os digital se limitam a fornecer informações
conjuntos de obras, sua tipologia genérica lineares sobre esses arquivos, suportados
e sua possível simulação para, por fim, ava- por uma resolução gráfica que geralmente
liar uma decisão de preservação sob critérios tem a forma de banners 2D – um modelo
possíveis de restauração para uma exposição de implementação de página controverso,
operacional que sempre será efêmera. pois não realiza nenhuma comparação sob
A maioria das instituições dedicadas nenhum aspecto da coleta de patrimônio.
às tarefas de conservação e promoção vem Informações que, interpretadas a partir de
favorecendo os processos de arquivamento sua base de dados numérica, possam ser
de suas obras de arte digital com variados analisadas e explicadas, sofrer intervenção
critérios, que sempre partem de cada expo- e ser percorridas de maneiras diferentes.
sição, peça ou autor. A mesma categoria de Refletir sobre a formação de acervos de
arte digital é ainda uma enteléquia, mas, de obras digitais nos leva a recuperar conceitos
qualquer forma, falamos de obras de cine- transcendentes enunciados no último sécu-
ma, vídeo, instalações, multimídia digital lo, como o Atlas Mnemosyne (WARBURG,
(net.art, interativos fechados, instalações 2010), o museu imaginário (MALRAUX,
imersivas, videogames de autor, entre 1947), o “anarquivo”14 e o arquivo vivo15. São
muitos outros exemplos) que respondem propostas de interpretação sobre as artes
a determinado hardware que está longe de visuais baseadas em mapeamentos e siste-
ter sido padronizado e de cuja atualização mas de classificação comparados como um
se produzirá uma versão simulada. É uma passo essencial para a preservação de todo
escolha generalizada que os conjuntos acervo de arte digital.
desses acervos sejam apresentados como A posse de obras e acervos representa o
informação sob a forma do conhecido site desafio da conservação, começando por sua
corporativo. Esses catálogos geralmente catalogação como arquivo digital interativo
não aproveitam sua materialidade digital comparado, o primeiro passo para uma pos-
nem seu caráter programático hipertex- sível preservação como forma de pensamento
tual. A ordem clássica estabelecida quanto baseada em sua compilação programada.
84 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Jorge La Ferla
É pesquisador, curador e programador em artes audiovisuais. Professor da Fun-
dação Universidade do Cinema (FUC) e da Universidade de Buenos Aires (UBA), onde
é chefe de cátedra. Foi curador de mostras de cinema, vídeo, multimídia e instalações
nos Estados Unidos, na América Latina, na Europa e no Oriente Médio. Organizou mais
de 40 publicações de arte e mídia na Argentina, no Brasil e na Colômbia. Seu último
livro é Cine (y) Digital.

Referências bibliográficas

FARKAS, Solange; MARTINHO, Teté (Org.). Videobrasil: três décadas de vídeo, arte,
encontros e transformações. São Paulo: Edições Sesc: Associação Cultural
Videobrasil, 2015. Disponível em: <http://site.videobrasil.org.br/acervo>. Acesso
em: 22 ago. 2015.

FERLA, Jorge La. El medio es el diseño audiovisual. Manizales: Universidad de Caldas,


2007. Disponível em: <www.academia.edu>. Acesso em: 22 ago. 2015.

HOFMAN, Vanina; ROZO, Consuelo (Org.). Conservación de arte electrónico: ¿qué


preservar y cómo preservarlo? Buenos Aires: Centro Cultural de España en
Buenos Aires, 2009. Disponível em: <http://taxonomedia.net/wp-content/
uploads/2013/07/Hofman-Rozo_Apuntes.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2015.

MALRAUX, André. Le musée imaginaire. Paris: Skira, 1947.

WARBURG, Aby. Atlas Mnemosyne. Madrid: Ediciones Cedeac, 2010.

Notas

1 CANTONI, Rejane. Máquinas de pensamiento. In: FERLA, Jorge La. El medio es


el diseño audiovisual. Manizales: Universidad de Caldas, 2007. Disponível em:
<www.academia.edu>. Acesso em: 22 ago. 2015.

2 DOWNEY, Juan. J. S. Bach: Fugue #24 in B Minor, laser disc, Estados Unidos, 1988.

3 Disponível em: <http://www.eai.org/title.htm?id=1501>. Acesso em: 22 ago. 2015.


TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Jorge La Ferla 85

4 DOWNEY, Juan. J. S. Bach, 25’, 1986.

5 Disponível em: <http://www.sfsu.edu/~avitv/avcatalog>. Acesso em: 8 set. 2015.

6 MEYER, Pedro. I photograph to remember. Mac System 6.0.7, Nova York,


Voyager, 1991.

7 MEYER, Pedro. Truths & fictions. CD-ROM, Mac System 7, Nova York, Voyager, 1995.

8 MEYER, Pedro. I photograph to remember. Disponível em:


<http://www.pedromeyer.com/galleries/i-photograph/>. Acesso em: 22 ago. 2015.

9 Mediações (1997); Máquinas de Arte (1999); Imateriais (1999); Emoção


Art.ficial (2002, 2004, 2006, 2008, 2010); Pioneiro Palatnik: Máquinas de Pintar
e Máquinas de Desacelerar (2002); Rumos Itaú Cultural Transmídia (2003);
Game o quê? (2003); Made in Brasil – Três Décadas do Vídeo Brasileiro (2003);
Cinético_Digital (2005); Memória do Futuro – Dez Anos de Arte e Tecnologia no
Itaú Cultural (2007); Cinema Sim (2008); Visionários – Audiovisual na América
Latina (2008); Gameplay (2009); Arte Cibernética – Acervo Itaú Cultural (2009);
Ocupação Regina Silveira (2010); Rumos Arte Cibernética (2011).

10 Singularidades/Anotações, Rumos Artes Visuais (2014). Curadoria de Regina


Silveira, Aracy Amaral e Paulo Miyada.

11 Caso exposto por Marcos Cuzziol em: Arte, preservação e banco de dados.
In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DIÁLOGOS TRANSDISCIPLINARES: ARTE
E PESQUISA. São Paulo: Paço das Artes, 2015.

12 Caverna digital é um complexo para realidade virtual de alta resolução,


utilizando-se de um sistema de múltiplas projeções em 3D estéreo que propicia
um ambiente virtual totalmente imersivo e interativo.

13 Também foi produzido um DVD documentando todo o processo dessa versão da


obra em particular. Disponível em: <www.op-era.com>. Acesso em: 8 set. 2015.

14 Para saber mais, acesse: <www.anarchives.net>.

15 ARANTES, Priscila. Arquivo Vivo, exposição realizada no Paço das Artes, São
Paulo, 2014. Disponível em: <http://www.pacodasartes.org.br/exposicao/
arquivo_vivo.aspx>. Acesso em: 8 ago. 2015.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES  87

3. CRISE, RESISTÊNCIA
E REINVENÇÃO

88. CULTURA DE REDES E POLÍTICAS


CULTURAIS NO BRASIL
Ivana Bentes

96. A ESTÉTICA DO NOVO ATIVISMO


Ronaldo Lemos entrevista Gabriella Coleman

111. POLÍTICA DE EXPERIMENTAÇÃO:


NAS REDES E NAS RUAS
Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira
88 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

CULTURA DE REDES E POLÍTICAS


CULTURAIS NO BRASIL
Ivana Bentes

A cultura não pode mais ser pensada como um “setor”, e sim como um processo transversal
e decisivo em um capitalismo que é cultural e cognitivo. Partindo da cultura também se criam
formas de resistência e invenção, processos e linguagens, cosmovisões que apontam para outro
modelo de desenvolvimento, baseado não na escassez, mas na abundância. No capitalismo
cognitivo – que tem como valor a informação, a comunicação, os afetos –, o modo da produção
cultural (que engloba a precariedade, a informalidade, a autonomia) é a própria forma do
trabalho contemporâneo, a forma geral de trabalho, e não mais uma “exceção”. Essas novas
dinâmicas são um desafio e uma oportunidade para as políticas culturais.

A
cultura está no centro de um em- Em um mundo em crise de postos e
bate em torno de outro modelo de empregos, em crise narrativa, a cultura in-
desenvolvimento e radicalização venta novas formas de atuação, fabulação e
da democracia, como um campo expandi- sustentabilidade. A cultura emerge não como
do, que é a porta de entrada para os direitos luxo nem como exceção, mas como modelo
sociais. Hoje, trata-se de entender a cultura de mutação do trabalho precário em potência
como estruturante de mudanças decisivas e vida, o que impacta as formas de produção
já em curso. É que a cultura não é mais um de valor em todos os campos.
setor – ela é um processo transversal e de- Colocar a cultura no centro de um novo
cisivo. O capitalismo é cultural e as formas modelo econômico significa que podemos, par-
de resistência e invenção são processos e tindo da cultura, repensar questões decisivas
linguagens, cosmovisões que apontam para, no campo social, articulando o campo das ar-
inclusive, outra cultura política. A cultura tes e das linguagens ao campo sociocultural.
é decisiva porque no “semiocapitalismo”, o Estamos falando de políticas de valorização,
capitalismo cognitivo – que tem como valor apoio, sustentabilidade e ampliação dos Pon-
a informação, a comunicação, os afetos –, o tos de Cultura, como o reconhecimento da
modo da produção cultural (que engloba a cosmovisão indígena, as ações voltadas para os
precariedade, a informalidade, a autono- movimentos urbanos, as novas redes de  produ-
mia) é a própria forma do trabalho contem- ção cultural, audiovisual e de mídia dos p ­ ovos
porâneo, a forma geral do trabalho, e não tradicionais, remixando a cultura digital com
mais uma exceção. a tradição oral, as linguagens urbanas e as artes.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Ivana Bentes 89

Nem folclore engessado (o típico, o tu- possibilidade de uma renovação radical


rístico e o exótico) nem indústria cultural, das políticas públicas. Não é só uma mu-
simplesmente. O entendimento ampliado da dança da política para a cultura, mas uma
cultura traz a possibilidade de reconectar o mudança da própria cultura política. São
Ministério da Cultura (MinC) à educação, à muitas as iniciativas com potencial para ser
comunicação, aos direitos humanos, aos mo- instituídas, e o Brasil surge como laboratório
vimentos urbanos, aos novos processos das re- desses projetos culturais.
des e das ruas, em que as cidades são os novos Dessa forma, podemos destacar a eco-
laboratórios de políticas públicas. nomia e a cultura do funk e do hip-hop, mo-
São movimentos que surgem com a vimentos que produzem novas identidades
pós-redistribuição de renda, que não de- e sentimento de pertencimento, de comu-
mandam simplesmente recursos, mas polí- nidade (“rolezinho”, “bonezaço”, “midiali-
ticas de sustentação e ativação de narrativas, vristas”, ambientalistas etc.), grupos e redes
commons e bens simbólicos, entendendo que criam mundos e atividades produtivas:
que a transferência de renda, apenas, não DJs, donos de equipamentos de som, donos
acaba com as desigualdades. O desafio é dar de vans, organizadores de bailes, seguran-
suporte e criar políticas para essas redes so- ças, rappers, funkeiros, produtores de con-
cioculturais que se reinventaram após uma teúdos e mídias, pontos de cultura rurais
conquista mínima de direitos. (violeiros, jongueiros, artesãos), produtores
Vivemos em uma reestruturação pro- e agentes culturais das mais diferentes lin-
dutiva, e isso se torna claro na cultura, já que guagens, urbanas e comunitaristas, vindas
ela é hoje o lugar do trabalho informal (não das artes, mas também dos povos de terrei-
assalariado), com o primado do trabalho ima- ro, grupos indígenas, de matriz africana, da
terial. São grupos, redes e movimentos que tra- tradição oral etc.
balham com informação, comunicação, arte
e conhecimento e que não estão nas grandes Da cultura aos commons
corporações. Esse contexto exige novas agen- É cada vez mais central o primado da
das estratégicas, sem as forças imediatistas do cultura na constituição da economia cogni-
mercado nem as decisões centralizadas demais tiva e da economia narrativa no capitalismo
do Estado – uma radicalização da ­democracia contemporâneo. Para além do simbólico,
estimulando a produtividade social. vemos emergir outra economia, capilari-
Essa experiência da cultura por meio zada e de cauda longa. Uma economia da
dos movimentos socioculturais surge como cultura emergente que tem de ser pensada
90 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

de forma bem mais ampla, reconhecen- que se dá em redes colaborativas, as quais


do-se os arranjos produtivos culturais em operam produzindo transferência de capi-
todos os níveis – ou seja, de um terreiro de tal simbólico e real, fortalecendo os movi-
candomblé a um desenvolvedor de games, mentos socioculturais sem os tradicionais
colocando esses agentes para cogestar essas mediadores culturais, mas que dependem de
políticas e demandas. Economia da cultura políticas públicas novas e ampliadas. Esses
que não é um nicho (a economia criativa) movimentos sociais se tornam habilitados a
no MinC, mas um campo que dialoga com administrar a própria cultura que produzem
o restante de todas as políticas. É um setor e, ao mesmo tempo, podem ser parceiros sig-
estruturante e transversal. Essas redes cul- nificativos do Estado ou de quem detém os
turais locais contrastam com as políticas meios de produção e de difusão, por exem-
públicas organizadas no centro, super-hie- plo. Os movimentos socioculturais podem
rarquizadas, centralizadas e que não resol- atuar em todas as pontas: como produtores
veram ou reduziram a um nível desejável as de cultura, administradores e beneficiários
desigualdades sociais. do resultado de sua produção, formadores e
Hoje nós temos uma oportunidade cogestores do Estado.
histórica de experimentar outros modelos Se os atores culturais e sociais dispõem
de políticas públicas, ainda embrionários, de recursos intelectuais e materiais para as-
redes socioculturais que funcionam justa- sumir esse protagonismo, qual é o papel das
mente de forma horizontal, acentrada, rizo- políticas públicas? Apoiar, estimular e promo-
mática, organizando a própria produção. Os ver, formar lideranças, agentes de cultura, ges-
movimentos socioculturais trabalham com tores, administradores de cultura e de eventos
uma ideia de educação não formal como culturais, oferecendo condições mínimas para
porta de entrada para a educação formal e esse desenvolvimento. Essa foi a grande virada
para o trabalho vivo. A explosão de escolas do MinC antropológico que emergiu na gestão
livres e as metodologias de formação no de Gilberto Gil e de Juca Ferreira e que hoje
Brasil são sintomáticas desses processos retorna com uma segunda capa de desafios:
autonomistas, mas precisam da produção de constituir uma cultura de redes para além da
commons feita pelo Estado, bens comuns e hiperfragmentação identitária.
direitos para sustentar essa produção. Pre- Sabemos que, hoje, financiar cultura
cisam de políticas que sejam interfaces en- é financiar processos e vidas e disputar
tre a cultura e a educação, apontando para visões de mundo, cosmopolíticas. É em
um reconhecimento, por parte do Estado e torno da cultura que se pode formar uma
do Ministério da Educação (MEC), dessa rede crítica que coloque os governantes
cultura formadora e educadora. em urgente diálogo com a pauta trazida por
Estamos falando de ações e processos jovens das periferias, do hip-hop, do funk,
que extrapolam a ideia fordista de educação com projetos sociais e culturais vindos das
ou de indústria cultural, processo que não é favelas e do campo das artes. Essa mesma
formal, mas sim precário, informal, veloz, e rede recolocou em cena o debate em torno
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Ivana Bentes 91

dos Pontos de Cultura, da banda larga, da expressa em ações culturais capilarizadas


cultura digital, da criminalização da cul- com as mais diferentes linguagens e atores
tura das periferias e dos jovens negros e e com potencial de escala. São cerca de 4 mil
mesmo a demanda de mudança da cultura Pontos de Cultura presentes em todos os
política, engessada e pouco participativa. estados brasileiros e em mil municípios –
Nesse sentido, não podemos esperar a con- a meta é atingir 15 mil pontos em 2020,
figuração conservadora crescer; existe um conforme o proposto no Plano Nacional de
sentimento de urgência em todos os movi- Cultura (PNC).
mentos de juventude e urbanos, nas perife- Os Pontos de Cultura, um reconheci-
rias, no campo. A juventude está inquieta e mento do Estado brasileiro diante da potên-
disposta, demanda participação, cogestão e cia da cultura de muitos, trazem, por fora e
incidência nas políticas públicas. por dentro do Estado, novos e tradicionais
Trata-se de uma mudança de cultura sujeitos do discurso, como os povos de ter-
política, em que temos de nos perguntar reiro, os movimentos sem-terra e sem-teto
quem são esses novos trabalhadores urba- (com ações culturais nos assentamentos
nos que não estão nas instituições ou nos rurais e nas ocupações urbanas), a cosmo-
partidos. Em parte é o “precariado” e “cog- visão e as estéticas dos povos indígenas e
nitariado” urbano que congrega jovens das quilombolas, o movimento estudantil e a
periferias em trabalhos informais de todo percepção das vidas-linguagens que nas-
tipo, mas também, e muito fortemente, os cem dos territórios (funk, hip-hop, jongo e
produtores de cultura das bordas, do interior, “tecnobrega”, por exemplo).
os jovens estudantes saídos das universida- Trata-se de uma política pública ri-
des, os ativistas, os midialivristas etc. zomática que cria programas específicos
Esses jovens não demandam postos de para cada um desses movimentos a partir
trabalho ou uma relação patrão-empregado, de suas particularidades, mas que pode, na
como na fábrica fordista e na reivindicação de sua nova etapa, induzir, apoiar e fomentar
uma juventude mais conservadora. Precisam, a constituição de uma cultura de redes, um
para se constituir como movimento e campo, passo inovador e ousado para a articulação
de acesso a direitos e a benefícios sociais. Pre- e a mobilização de um novo tipo de movi-
cisam acessar os commons, bens comuns: in- mento cultural.
ternet, repertórios, moradia, sede, sistema de Entendemos a cultura de rede como
saúde e seguridade. um processo de construção conjunta de re-
des de cultura (redes de povos de terreiro,
Cultura de redes redes de mídia livre, redes do funk, redes de
Aqui destacamos a Política Nacio- produtores e agentes culturais etc.) – arran-
nal de Cultura Viva, do MinC, como um jos e articulação em redes que são uma nova
laboratório desse novo ciclo das políticas capa de construção do campo expandido
culturais. Trata-se do programa que gere da  cultura, capaz de rivalizar com a indústria
os Pontos de Cultura, um arranjo que se cultural e fazer disputas narrativas.
92 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Economia cognitiva e narrativa mídias, pensada em um contexto pós-mídias


Entendemos que o campo da cultura de massa. É a lógica das redes e das novas
hoje elabora uma disputa social e de nar- mídias, a lógica das plataformas de produ-
rativas. Daí a necessidade de uma políti- ção colaborativas, como a Mídia Ninja e
ca de comunicação e mídia para o campo tantos outros coletivos que fazem disputas
cultural que articule produtores de cultu- narrativas. Trata-se de uma política de ponta
ra a uma rede de comunicação inovadora para os que não vão esperar a regulamenta-
e fluida, ­independente e regionalizada em ção dos meios de comunicação e que aglutina
todo o país: circuitos, sites, blogs, web TVs, e mobiliza um campo enorme e decisivo de
­w eb-rádios, rádios, TVs comunitárias, aliança entre cultura e mídia, mídias e di-
TVs públicas, pequenos jornais, revistas, versidade e inclusão subjetiva.
perfis em redes sociais etc.  Outro desafio nas políticas culturais
Temos a oportunidade de fazer uma é aproximar as artes do campo de disputa
ação transversal do MinC com o Ministério política e do campo sociocultural, momen-
das Comunicações que responda de forma to em que as linguagens artísticas passam a
pontual a uma demanda histórica de demo- transitar para além de centros culturais, mu-
cratização do campo da comunicação e das seus e instituições. Cinema, música, teatro,
94 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

literatura, artes visuais e performáticas – to- desejos de uma democracia em tempo real
das essas áreas sinergizadas com o campo e on-line, conectada, em que as posições e
comunitarista e sociocultural, com os Pontos as decisões políticas são monitoradas, co-
de Cultura, com as linguagens indígenas, de mentadas e criticadas ao vivo. Vemos ain-
matriz africana, de tradição oral. Emergência da o descrédito e o não funcionamento de
das vidas-linguagens em que a estética nasce sistemas tradicionais de governança: con-
dos territórios e das lutas. ferências, conselhos de cultura estaduais e
Aqui temos uma oportunidade histórica municipais, conselhos que não funcionam
de juntar os artistas do circuito tradicional ou que não têm incidência real; planos na-
das artes – das galerias e dos museus – com a cionais, estaduais e municipais de cultura
experiência, a estética e as linguagens vindas que não saíram do papel.
das bordas, das periferias, das tribos. Essa é O pânico da participação social vocali-
inclusive uma tendência internacional, a de zado em muitos setores (mídia, corporações,
uma conexão territorial-global, de um encon- Estado) nos seus diferentes níveis impede a
tro de gerações de grandes artistas de todas construção de um Estado-rede, poroso e aber-
as linguagens com esse campo alargado da to à cogestão com a sociedade civil e com os
cultura no sentido antropológico. agentes culturais. Trata-se de superar o fosso
entre o Estado e a sociedade civil, em um novo
Participação e governança arranjo de governança.
A democracia brasileira vive, entre tan- Mais uma vez o desafio é fazer emergir
tas crises, uma crise de representação, com uma cultura de redes que apoie e reforce a
experiências cotidianas de participação e criação de novas institucionalidades – e in-
expressão de milhares de cidadãos nas re- duza a isso – com redes específicas de cogestão
des sociais, o que faz emergir uma cultura com o sistema MinC em todos os níveis. O sis-
plebiscitária de sociabilidade em tempo real. tema de participação vai desde a ativação de
Essa erótica da comunicação recém-ex- Pontos de Cultura, agentes territoriais locais,
perimentada produz, por parte do Estado e de redes e arranjos nacionais, conferências,
parlamentares tradicionais, um “pânico da teias, fóruns e encontros até plataformas,
participação”, sintoma da crise dos interme- gabinetes digitais, consultas públicas e fer-
diários, quando milhares de pessoas passam ramentas de participação virtuais, em escala
a exercitar a governança e a “ruidocracia” nas e modulação distintas mas complementares.
redes sociais e nas ruas, da mesma forma Nessa arquitetura, a política de partici-
como buscam processos sem intermediação pação social – polifônica, digital, nas redes
na produção cultural (provocando a crise de e nas ruas – torna-se a base do que estamos
gravadoras e editoras, por exemplo) com a chamando de movimento social das cultu-
ascensão da cultura do faça você mesmo. ras, que se constituiu nas conferências, nos
Trata-se também de uma crise de ve- fóruns e nos debates a partir da era Lula, mas
locidade: governos, Congresso, parlamen- cujo sistema de participação se tornou insu-
tares são lentos demais para responder aos ficiente e está em disputa.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Ivana Bentes 95

Ivana Bentes
É pesquisadora de comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
e secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura (MinC). Dou-
tora em comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da
UFRJ e ensaísta do campo da comunicação, da cultura e de novas mídias. Desenvolve a
pesquisa Estéticas da Comunicação: Novos Modelos Teóricos no Capitalismo Cognitivo
e Periferia Global, sobre o imaginário e as ações vindas das favelas e das periferias na
cultura brasileira e no cenário global, bem como suas redes de articulação.

Referências bibliográficas

BAUWENS, Michel. A economia política da produção entre pares. Disponível


em: <http://www.p2pfoundation.net/>.

BENTES, Ivana. Redes colaborativas e precariado produtivo. In: Caminhos para uma
comunicação democrática. São Paulo: Le Monde Diplomatique: Instituto Paulo
Freire, 2007.

______. Deslocamentos subjetivos e reservas de mundo. In: MIGLIORIN, Cezar


(Org.). Ensaios no real: o documentário brasileiro hoje. Rio de Janeiro: Azougue
Editorial, 2010.

HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão: guerra e democracia na era do império. Rio de Janeiro:
Record, 2005.

LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador:


Edufba, 2012.

LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Record, 2008.

LAZZARATO, M.; NEGRI, A. Trabalho imaterial. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

RANCIÈRE, Jacques. Política da arte. In: SEMINÁRIO SÃO PAULO S.A., PRÁTICAS
ESTÉTICAS, SOCIAIS E POLÍTICAS EM DEBATE. São Paulo: Sesc Belenzinho, 2005.
96 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A estética do novo ativismo


Ronaldo Lemos entrevista Gabriella Coleman

G
abriella Coleman é antropóloga e uma das maiores especialistas do
planeta nas novas formas de ativismo, em cultura hacker e grupos de
ativistas digitais, como o Anonymous1. Mas como alguém se torna es-
pecialista em temas tão fugidios e de acesso tão restrito? Gabriella mergulhou
por anos nesse universo, ganhando a confiança de muitos de seus integrantes,
participando de seus canais de discussão (todos criptografados, aliás) e fazendo
um mapeamento amplo das formas como esses grupos se organizam e atuam.
Seu trabalho é uma aula de etnografia no mundo digital, que revela o ethos de
um dos protagonistas mais importantes dos nossos tempos: o hacker-ativista.
Biella (como é chamada pelos amigos) nasceu em Porto Rico, g­ raduou-se
na Universidade Columbia e obteve mestrado em antropologia sociocultu-
ral na Universidade de Chicago, ambas as instituições nos Estados Unidos.
É hoje professora da Universidade McGill, com sede em Montreal (Canadá),
cidade onde vive desde 2011. Em seu trabalho, Gabriella já explorou temas
como a estética da programação e dos códigos de computador, as dinâmicas
do movimento do software livre e das licenças Creative Commons e a questão
da ética entre os hackers. Nos últimos anos, vem se dedicando à compreensão
das novas formas de ativismo digital, o que a levou a conviver de perto com
grupos como o Anonymous.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lemos entrevista Coleman 97

COMO VOCÊ ACHA QUE OS AVANÇOS DAS ÚL- de dentro, não é preciso trabalhar na empresa,
TIMAS DUAS DÉCADAS DA TECNOLOGIA NA não é preciso ser um informante interno. Isso
MÍDIA MUDARAM O PAPEL DO ATIVISTA E O significa realmente uma mudança profunda e
PAPEL DO ARTISTA? importante e só está começando agora.
Acho que grandes movimentos sociais e Por último, os movimentos de protesto
políticos não precisam da internet para se es- sempre contaram, em grande medida, com a
palhar rapidamente e mundo afora. Sabemos arte e o imaginário, com cartazes, zines e coisas
disso [pela experiência] da década de 1960, dessa natureza. Contudo, o tipo de rico vocabu-
quando houve movimentos de protesto que lário visual que é possível por causa de mídias
eram realmente robustos. A internet, porém, on-line, como vídeos, imagens e “memes”, não
certamente reduz o tempo que os movimentos traz necessariamente uma mudança que seja
sociais podem levar para se espalhar. Outro radicalmente nova. É mais como um aprofun-
elemento está muito relacionado às novas damento das formas de participação artística
formas de ação direta que são possíveis com que podem acontecer devido à existência de
o hacking. Por um lado, há melhores condi- muitos outros canais para a expressão artística.
ções para nos vigiar com as novas tecnolo-
gias, mas, por outro, também há melhores
condições para invadir as empresas e roubar
dados. Creio que estamos apenas no início
disso. Acho que os ativistas estão somente
aprendendo agora o que significa participar de
ações digitais diretas, quebrando a segurança
de governos e empresas para pegar dados em
situações nas quais não é preciso ser alguém
98 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

VOCÊ ACHA QUE, DE CERTA FORMA, HÁ UMA VOCÊ ESTUDOU O TRABALHO DO ANONYMOUS
FUSÃO DE ATIVISMO E PERFORMANCE-ARTE? POR BASTANTE TEMPO. COMO ACHA QUE
Bem, repetindo, acho que a performance ELES FIZERAM OS DEBATES POLÍTICOS AVAN-
sempre teve um papel no ativismo. Há vários ÇAR? E TAMBÉM NOÇÕES COMO AUTORIA?
exemplos da década de 1960 até o presente, Essa é uma ótima pergunta. Acho que
como os hippies, que eram bastante performa- uma das mais fascinantes e importantes
tivos. Creio, porém, que a diferença – e isto é intervenções relacionadas ao Anonymous
o que importa – é que esses esforços tendiam diz respeito à autoria coletiva. A ideia não é
a ser de pequenos grupos de pessoas muito ganhar prestígio nem fama pelo que se faz.
fechados que realmente tinham os recursos, É verdadeiramente por uma causa coletiva.
os quais verdadeiramente [os] identificavam Isso é tão importante, porque há uma manei-
como artistas e ativistas. O Anonymous é o ra pela qual as intervenções ativistas formam
exemplo perfeito dessa diferença. Trata-se uma corrente por meio da mídia dominante,
apenas de indivíduos que não necessariamen- e é apenas um punhado de pessoas. Os líde-
te se identificam como artistas, no entanto res que se transformaram em ícones para o
usam os meios artísticos para o seu ativismo. movimento. Isso é um verdadeiro problema
Admitindo isso, algumas das pessoas que são para um movimento envolvendo muitas pes-
os melhores media makers do Anonymous, soas. O Anonymous é um entre alguns grupos
em algum momento, terão de se considerar que realmente afirmaram com êxito: “Olha, o
artistas. Eles são um tanto geeks. Esse é o su- nosso negócio é o coletivo, não o individual”,
porte deles, isso é o que eles fazem. Esse tipo e eles conseguiram efetivamente fazer isso.
de acesso está realmente disponível a uma É uma ética viva. Pede-se que uma pes-
parcela muito maior da população. soa leve a vida de acordo com essa ética e, se
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lemos entrevista Coleman 99

ela a violar, será punida dentro do coletivo. VOCÊ ACHA QUE, APESAR DE TUDO ISSO,
É importante ter espaços onde se faz algo EXISTE UM SISTEMA DE REPUTAÇÃO ENTRE
para o bem do coletivo, não para reconhe- OS MEMBROS DO ANONYMOUS NESSE SEN-
cimento individual, e é muito difícil criar TIDO? VOCÊ ACHA QUE ELES AINDA BUSCAM,
tal espaço onde essa coletividade aconteça. DE CERTA FORMA, O RECONHECIMENTO
O ­Anonymous conseguiu fazer isso. Ago- DOS SEUS PARES OU DE ESTRANHOS PARA
ra, uma das razões pelas quais eles ainda O TRABALHO DELES?
atuam na esfera pública é o fato de serem Definitivamente, dentro do coletivo há
realmente bons em gestão de marca e em uma reputação que é acumulada, e alguns
criar uma história rica, que não é meramen- membros têm mais autoridade porque as pes-
te o ato de fazer ataques de denial of service2 soas confiam mais neles do que em outros. Dito
ou hacking. Eles têm os seus vídeos, os seus isso, se alguém conta vantagem e fica se mos-
suportes. Eles são muito performativos. trando, a reação será apenas: “Nós vamos eli-
Isso só vem mostrar a importância de miná-lo”. Isso não se faz – existe, mas também
ter certo elemento que seja forte, perfor- é ajustado. Essa é uma das grandes tensões na
mativo, narrativo, artístico para qualquer história do Anonymous. Existem certas contas
mensagem que se queira transmitir lá fora, de Twitter com pseudonomes, como Topiary
porque se atrai mais atenção assim. Eles são ou Sadu, que se tornaram famosas. Por um lado,
simplesmente fantásticos em gerar o tipo de ter essas personalidades foi útil, porque as pes-
espetáculo que chama atenção. soas podem se relacionar com elas, querem se-
gui-las; por outro, isso se tornou um ponto fraco
do movimento, na medida em que, uma vez que
se é persistente, é possível ser apanhado.
100 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Uma das coisas interessantes, acho eu, UMA PERGUNTA SOBRE O MOVIMENTO OCU-
que têm acontecido no último ano não é algo PAR WALL STREET. É INTERESSANTE OBSER-
[feito] por um Anonymous com “A” maiús- VAR QUE ELE FOI INICIADO PELA REVISTA
culo, mas sim por um anonymous com “a” CANADENSE ADBUSTERS, QUE FAZ PARTE
minúsculo – Phineas Fisher3, que invadiu o DO MUNDO DA PUBLICIDADE, FAZ PARTE DO
sistema de duas empresas, Gamma e H ­ acking SISTEMA. COMO VOCÊ VÊ ESSA CONFUSÃO
Team4. Quando invadiu a Gamma, ele divul- DE PAPÉIS?
gou o acontecimento no Twitter, ficou ron- Sim, são muito confusos esses papéis,
dando e depois desapareceu. Agora, ele está porque não há um que seja puramente ati-
mais uma vez de volta para atacar a Hacking vista. É muito difícil ver alguns formatos
Team e desapareceu novamente. Para mim, puros de ativismo em atividade. Está tudo
isso não é sob o nome do ­Anonymous, mas ligado. Acho que foi apenas um erro imagi-
este foi um dos primeiros grupos a invadir as nar que alguma vez poderia haver uma po-
empresas de segurança e, assim, eles defini- lítica pura. É fato que alguns dos ativistas
tivamente deram vida a essa forma de ação. tecnológicos mais radicais que conheço são
Então essa pessoa está adotando os princí- de esquerda, vistos como anticapitalistas,
pios do Anonymous e executando-os de uma mas, mesmo assim, trabalham no Google.
forma mais cirúrgica e limpa, o que, a meu Eles não necessariamente gostam do Goo-
ver, é realmente interessante. gle, mas é lá que ganham o dinheiro de que
precisam para conseguir praticar o seu ati-
vismo. Acho que parte do problema é uma
expectativa de pureza, que, para começar, é
falsa. Nunca deveríamos buscar essa pure-
za. Dito isso, penso realmente que existem
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lemos entrevista Coleman 101

formas mais ou menos radicais de ativismo. encontrar pureza, na verdade o que se estaria
No fim da década de 1990, o Indymedia era fazendo seria prejudicar o impacto do projeto.
o lugar onde todos esses ativistas desenvol- Por outro lado, movimentos políticos
viam o que se transformou nas tecnologias podem ser identificados por alguns atores –
da web 2.0. Muitos dos que faziam parte do atores empresariais – como sendo “legais” e
Indymedia foram contratados no Vale do podendo ser cooptados. O melhor aspecto do
Silício, em 2000, 2001, por empresas como Anonymous é que isso não acontece, por dois
Flickr e Yahoo!. A tecnologia ativista foi a motivos. O primeiro é que eles são anônimos
base para o surgimento da web 2.0. Isso é e o segundo é que são impiedosos ao atacar
surpreendente. Pense a respeito – é exata- as empresas diretamente. Eles só fazem as-
mente o que você está falando. sim: “Ah, nós os odiamos. Não queremos ter
Acho que [o software] Tor5 é um ótimo nenhuma espécie de ligação com eles”. Eles
exemplo disso. O Tor ganha bastante dinheiro estão relativamente protegidos. Acho que
do governo norte-americano e isso incomoda ativistas têm de ser inteligentes e saber que
muita gente. Não tenho tanta certeza se o fato não deveriam estar necessariamente bus-
de aceitar esse dinheiro está diluindo o projeto cando a pureza o tempo todo, mas também
ou tornando-o algo politicamente suspeito. têm de ser realmente táticos para saber de
O que ele permite, na verdade, é ter pessoas quem vão pegar dinheiro e com quem se rela-
radicais que se comprometeram com a pri- cionam. Acho que o Tor tem feito, na verdade,
vacidade para trabalhar em tempo integral um grande trabalho em não ter a abordagem
porque têm bons salários. Se elas estivessem na linha de “Nós não vamos pegar nenhum
conseguindo sobreviver sem dinheiro, então dinheiro público”. Eles levam toneladas
o projeto estaria avançando com dificuldade. de dinheiro do governo e, consequentemente,
Isso é um caso perfeito. Se a tentativa fosse de constituem um projeto muito forte.
102 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

COLETIVOS COMO O ANONYMOUS USAM o ativismo por meio da arte, no mesmo nível
MUITO HUMOR, COMO MEMES E PIADAS. OS de importância, sempre poderá ser cooptá-
POLÍTICOS ESTÃO, CURIOSAMENTE, APRO- vel. Se é arte e ao mesmo tempo também se
PRIANDO-SE DESSA LINGUAGEM – BARACK atua no vazamento, na delação e no hacking,
OBAMA, POR EXEMPLO. CONVERSEI RECEN- o governo não pode se apropriar disso. Na
TEMENTE COM IVAN KRASTEV, UM ESPECIA- verdade, e isto é uma coisa completamente
LISTA EM DEMOCRACIA BEM CONHECIDO. diferente, o que é preciso é tomar cuidado
ELE ME DISSE: “ISSO É MUITO PERIGOSO”. NA para o governo não marcar a pessoa como
OPINIÃO DELE, SEMPRE QUE O PODER USA O terrorista. Recentemente, o Anonymous
HUMOR DESSE JEITO, TORNA-SE PERIGOSO. escapou do rótulo de terrorismo, mas por
O QUE ACHA DE HUMOR E POLÍTICA? muito, muito pouco.
Acho que isso mostra como se pode fa- Isso ocorreu, em parte, por causa da
cilmente cooptar algo que, em um momento, arte e do humor. Isso é realmente impor-
era muito contracultural ou independente das tante para garantir que eles não sejam vis-
formas dominantes de poder. Só acho que isso tos como loucos extremistas ou algo assim,
não vai sumir. Trata-se de um processo que o que é um perigo enorme para qualquer
vai acontecer invariavelmente, e os ativistas movimento radical. Penso justamente que,
precisam assegurar-se de estar constante- uma vez que aqueles no poder passam a
mente diferenciando a sua posição, se fizer apropriar-se do imaginário e do humor, de
sentido, daquela do poder dominante. É nes- material visual, é preciso continuar a garan-
se ponto que acho que a ação direta faz com tir que se está agindo, e não simplesmente
que certos tipos de política sejam incooptá- divulgando uma causa, porque depois será
veis. Se é somente uma questão de expressar muito mais difícil diluí-la ou cooptá-la.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lemos entrevista Coleman 103

A MAIORIA DOS COLETIVOS DO ANONYMOUS QUAIS SÃO OS LIMITES DA “TROLLAGEM”,


NO BRASIL É MUITO CONSERVADORA E DE DI- QUE É A ESSÊNCIA DE GRUPOS COMO O
REITA. VOCÊ VÊ ESSE PADRÃO POLÍTICO EM ANONYMOUS? QUANDO VOCÊ ACHA QUE
OUTRO LUGAR? ELA COMEÇA A ATRAPALHAR A LIBERDADE
Sim. Há um pouco disso na Alema- DE ­EXPRESSÃO NA ESFERA PÚBLICA?
nha também. Uma das maiores páginas do Bem, acho que a trollagem, muitas ve-
Anonymous no Facebook é uma espécie de zes, perturba bastante. Eu contestaria que o
grupo conservador direitista do coletivo. Anonymous seja fundamentalmente trolla-
No entanto, a maior parte dos seus grupos gem, porque de forma nenhuma enquadro
é liberal e de esquerda. Em alguns aspec- os ataques e as invasões de denial of service
tos, o software livre teve a mesma história nessa definição. De vez em quando eles real-
também, quando passou a ter código aber- mente levantam a espada da trollagem, e isso
to e poderia ser adotado pelas empresas é tanto uma arma tática como um lembrete
para uma mensagem neoliberal. Acho que de que não são um grupo político que pode ser
o Anonymous é parecido, embora eu ainda facilmente domado. A maneira como é usada
diga que a maioria dos grupos tende para o no Anonymous pode ser bastante sincera, a
liberal e para a ala da esquerda. meu ver, porque é contida, está controlada.
No contexto em que está superfora de con-
trole – como quando os trolls só estão atacan-
do feministas por todos os lados e em todos
os lugares –, é definitivamente, nesses casos
em particular, apenas puro assédio.
104 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Sim, acho que a trollagem pode real- QUAL É O FUTURO DO ANONYMOUS E DA SUA
mente atrapalhar a liberdade de expressão. TÁTICA? VÃO SOBREVIVER À FREQUENTE
Contudo, também acho que seja um grande REAÇÃO VIOLENTA CONTRA ELES?
teste. Por exemplo, a Nova Zelândia acaba de A reação é muito grande. Há repressão
bani-la. É melhor procurar pessoas específi- de governos na Europa e nos Estados Uni-
cas que estejam assediando, digamos, um in- dos, e em menor grau na América Latina,
divíduo com muita persistência. Não se pode mesmo que algumas pessoas tenham sido
simplesmente dizer “Ah, nada é possível”, certamente pegas. Acho que há alguns as-
mas proibir toda a vontade de fazer t­ rollagens pectos a considerar. Na verdade, acho que
repentinamente... O que o A ­ nonymous faz – e havia um inacreditável volume de atividade
que talvez não seja trollagem –  ­poderia em 2011 e 2012, e nós nunca vamos voltar
ser categorizado como ­trollagem e, depois, a ver esse nível de atuação. A atividade que
subitamente, considerado ilegal. Acho estamos vendo hoje é executada de uma for-
que  isso é um precedente muito assustador ma mais precisa, menos desleixada e com
em alguns aspectos. Grandes ataques de maior segurança. Para dar um bom exem-
­trollagem ­podem ser muito, muito difíceis plo, houve na verdade um grande ataque de
de controlar na  internet. ­denial of service no Canadá contra um proje-
to de lei sobre vigilância ou antiterrorismo.
Atingiram os sites do governo e derrubaram
a maioria deles, também deixando inaces-
sível o e-mail do governo. Eles na verdade
arquitetaram durante meses essa operação,
que foi realmente bem executada. A re-
gra número 1 deles: sem danos colaterais.
­Ninguém será preso por isso.
Isso foi muito diferente de seus ata-
ques distribuídos de negação de serviços
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lemos entrevista Coleman 105

anteriores, quando diziam: “Vamos fazer um Vamos ver mais disso. Se as pessoas
ataque de DDoS [sigla em inglês para esse se autodenominam Anonymous ou não, o
tipo de ataque]. Venha a bordo”. É apenas Anonymous as ajudou a ter uma existência,
caótico e confuso. Trata-se de uma mudança aquele tipo de desejo de usar o hacking para
completa por causa das prisões. De fato, nin- vazar informações, principalmente contra
guém foi preso. Na Itália, eles foram detidos. empresas de segurança e coisas assim. A
Contudo, nos Estados Unidos e no Canadá, invasão da Hacking Team é enorme. Pro-
por exemplo, ninguém foi preso e, em parte, vavelmente foi uma operação política muito
acho que também porque a questão ilegal irá bem articulada. Pelo que entendo, Phineas
acontecer em lugares como a América La- Fisher vai explicar como fez isso, mas os da-
tina e o Oriente Médio, onde é mais difícil dos, creio eu, foram retirados muito lenta-
pegar as pessoas. De fato, acho realmente que mente durante um longo período de tempo,
continuaremos a ver ação. Talvez não tanto para que não se percebesse que estava tudo
quanto antes, mas isso também será devido a indo embora. Outras pessoas vão imitar essa
um planejamento mais cuidadoso. O segundo invasão, e ela deve a sua concretização ao
ponto é que – já vimos isso antes – os hackers que o Anonymous fez antes. É um novo am-
estão indo direto para as empresas em busca biente que foi criado. Também acho que, se
de informações, o que não é o mesmo que fez virmos o suficiente disso, as empresas final-
Bradley/Chelsea ­Manning6. Ela trabalhava mente levarão sua segurança muito mais a
para o Exército, era uma pessoa de dentro. sério. Haverá, porém, uma janela de tempo
Edward ­Snowden era um funcionário da durante a qual elas não poderão melhorar
empresa. Jeremy ­Hammond7 não era uma a sua segurança a fim de atingir os padrões
pessoa da casa. A­ ntiSec8 não era alguém da necessários para evitar acontecimentos
casa. Phineas Fisher, que organizou as ações dessa natureza. Acredito, portanto, que ve-
contra a Gamma e a Hacking Team, provavel- remos várias situações assim nos próximos
mente não era de dentro e, se for, o que ele fez dois a quatro anos.
foi muito inteligente.
106 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

VOCÊ ACHA QUE A ESTÉTICA DO ANONYMOUS a revolucionário, acho que é possível esse
VAI DESAPARECER? MINHA OPINIÃO É QUE JÁ movimento de vai e vem.
ESTÁ DESAPARECENDO. HÁ ALGUMA OUTRA Quero dizer, acredito que existe a fadiga
ESTÉTICA PARA OS MOVIMENTOS SOCIAIS da marca e há uma maneira pela qual o po-
NO HORIZONTE? der tanto do DDoS quanto do ícone deveria
É interessante, porque Guy Fawkes9 recuar e depois aparecer inesperadamente.
está aí há bastante tempo, desde o século Uma presença demasiadamente persistente
XVII. Isso vai e vem. É interessante tam- vem acompanhada de uma espécie de fadiga
bém porque antigamente a associação que da marca. Agora, o que fica claro em relação
se fazia era somente negativa. Foi no início à invasão do Phineas Fisher é que não exis-
do século XX que começou a haver uma as- te gestão de marca nem um movimento. É
sociação positiva. Ele começou a ser retra- a ação de um indivíduo. Repetindo, isso vai
tado como um herói em livros infantis e isso inspirar outros, mas também é possível ver
não acontecia antes, até [aparecer] nosso os seus limites. Quando se tem todo um uni-
romance mais litográfico, o que realmen- verso simbólico, pode-se realmente abri-lo
te o tornou um verdadeiro tipo de herói. a uma participação ampla, e isso não vai ne-
Mais tarde, com o filme de Hollywood [V cessariamente acontecer com as pequenas
de Vingança], as massas falavam “Ah, Guy invasões isoladas. A arte é um meio pelo qual
Fawkes é um cara legal”, em vez de “Nossa, se pode realmente inscrever porções maiores
ele é um terrorista horrível” ou qualquer da população. Mas não estou certa de qual
outra coisa. Eu o considero um personagem será o tipo de imaginário ou iconografia do
muito interessante porque, diferentemente futuro em alguns aspectos. Eu diria, contudo,
do símbolo de paz, qual é a causa de Guy que o anonimato ideal não desaparecerá, e isso
Fawkes? Se ele pode passar de terrorista também é um aspecto poderoso.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lemos entrevista Coleman 107

VOCÊ ACHA QUE AS PESSOAS FICAM MENOS


CRIATIVAS SOB VIGILÂNCIA?
Sim, elas estão menos dispostas a cor-
rer riscos. Quando não se está sendo vigia-
do, existe a liberdade para experimentar.
Se a pessoa está sendo vigiada, ela tende a
se conformar. Sabemos disso por meio de
experimentos psicológicos. Dito isso, há
sempre, sob as formas mais extremas de
vigilância, pessoas que conseguem criar
focos de resistência e assim por diante. No
entanto, o que é um tanto assustador é que
existem vários vetores de vigilância sob os
quais as pessoas podem estar vivendo, desde
o nível empresarial até o governamental, da
microvigilância para a macrovigilância, e
esse acontecimento é inédito. Como isso vai
mudar o comportamento? Creio que temos
uma ideia de que, precisamente, haverá uma
espécie de roubo de inovação, uma intenção
de levar as pessoas ao conformismo. Isso
provavelmente acontecerá, mas sob regi-
me extremo. Acho que pode haver alguns
elementos inesperados.
108 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Ronaldo Lemos
É professor e pesquisador brasileiro respeitado internacionalmente. É diretor do
Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITSrio.org) e professor da Uni-
versidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). É pesquisador e representante para o Brasil
do MIT Media Lab. Fez mestrado na Universidade Harvard (Estados Unidos) e doutorado
na Universidade de São Paulo (USP). É especialista em temas como mídia, inovação e
tecnologia. Foi professor visitante nas universidades de Princeton (EUA) e Oxford (Rei-
no Unido). É membro do conselho de administração de várias empresas de tecnologia,
incluindo a Mozilla, que faz o browser Firefox. Foi curador de vários festivais de música,
arte e tecnologia, entre eles o Tim Festival e o Festival Hipersônica. Foi responsável pela
concepção e pela curadoria do Laboratório de Atividades do Amanhã, do Museu do
Amanhã, no Rio de Janeiro. Foi eleito pelo Fórum Econômico Mundial, em 2015, um dos
jovens líderes globais.

Gabriella Coleman
Ocupa a cátedra Wolfe em Alfabetização Científica e Tecnológica na Universidade
McGill (Canadá). É formada em antropologia cultural e seu trabalho de pesquisa, redação
de artigos e ensino versa sobre os hackers de computador e o ativismo digital. Seu pri-
meiro livro sobre software livre, Coding Freedom: the Ethics and Aesthetics of Hacking, foi
publicado pela Princeton University Press. Seu novo livro, Hacker, Hoaxer, Whistleblower,
Spy: the Many Faces of Anonymous, publicado pela Verso, foi indicado na categoria de
Melhor Livro de 2014 do Kirkus Reviews.

Notas

1 Grupo de ativistas-hackers que surgiu na internet e em fóruns anônimos da rede.


O grupo caracteriza-se por sua ausência de liderança formal e pelo anonimato
dos integrantes, até mesmo uns com os outros. Organiza-se em diversos países
e de forma independente. Nesse sentido, vários grupos já se denominam
Anonymous sem que haja necessariamente uma unidade entre eles. Seu
símbolo é a máscara com o rosto estilizado de Guy Fawkes, popularizada pelos
quadrinhos V de Vingança, de Alan Moore, também transformados em filme.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lemos entrevista Coleman 109

2 Distributed denial-of-service (DDoS) attack, ou ataque distribuído de negação


de serviços, é uma tática utilizada por hackers que faz com que um site seja
bombardeado com inúmeros pedidos de acesso simultâneo, sobrecarregando
o servidor no qual ele está hospedado e, assim, fazendo com que o site se torne
indisponível. É uma ação usada para “derrubar” um site da internet.

3 Identidade de uma conta no Twitter e nome de um usuário do site de discussões


Reddit que assumiu a autoria do hackeamento das empresas Gamma Group e
Hacking Team. Não se sabe se a identidade se refere a um único indivíduo ou a
um grupo de pessoas.

4 Empresas que fornecem tecnologia de vigilância e hackeamento (se


autodenominando “empresas de segurança”) a governos e clientes em vários
lugares do mundo, em especial países autoritários. Foram incluídas pela
organização Repórteres sem Fronteiras na lista de “inimigos da internet”.

5 Software que permite o anonimato das comunicações na internet e pode ser


instalado em qualquer computador. É hoje mantido pela Electronic Frontier
Foundation, respeitada entidade criada nos anos 1990 para proteger direitos na
internet. O uso do Tor torna muito mais difícil o rastreamento das comunicações
na internet, razão pela qual ele é utilizado em muitos países autoritários em que
há censura da rede.

6 Soldado norte-americano que vazou milhões de documentos para o site


Wikileaks e foi condenado por suas ações nos Estados Unidos. Como uma
mulher transexual, assumiu a identidade de Chelsea, abandonando o nome
anterior, Bradley.

7 Ativista e hacker de Chicago, condenado a dez anos de prisão por hackear a


empresa de segurança Stratfor, vazando documentos para o Wikileaks.

8 Movimento de hackers que se formou contra a indústria de empresas de segurança.


Ganhou visibilidade mundial por algumas de suas ações, nas quais expõe falhas,
vulnerabilidades e questões éticas com relação à atuação dessas empresas.

9 Membro de um grupo de católicos ingleses que planejou um atentado na


Inglaterra em 1605 para explodir o Parlamento inglês usando pólvora. A tentativa
foi malsucedida, tendo sido denunciada por uma carta anônima, o que levou as
autoridades a descobrir o plano e prender Guy Fawkes. A data do atentado, 5 de
novembro de 1605, é usualmente comemorada na Inglaterra, onde sua efígie é
queimada em uma fogueira junto com espetáculos de fogos de artifício.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira 111

POLÍTICA DE EXPERIMENTAÇÃO:
nas redes e nas ruas

Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira

A disjunção entre a sociedade civil e o Estado tem evidenciado o esgotamento de institui-


ções tradicionais das democracias representativas, que não conseguem dar respostas satisfató-
rias à sociedade nem dar vazão à multiplicidade de desejos e de voz pública, não mais passíveis
de contenção nos espaços delimitados pelas instituições tradicionais. As novas dinâmicas nas
práticas culturais e artísticas não podem ser apartadas do processo político-social de forma
mais ampla. Tal processo gera desafios para a política e a gestão cultural.

T
homas Mann, escritor alemão, em- mundo como uma espécie de tábua de salva-
preende uma viagem de navio, em ção. Na perspectiva do uno, o futuro só pode
1934, da Holanda aos Estados Uni- ser concebido como uma cruel repetição do
dos. Na travessia vai acompanhado de Dom presente. Avançamos num mar de surpresas
Quixote – escrito por Miguel de Cervantes –, e incertezas, lembra Favaretto (2012), o que
que, segundo o alemão, é o livro justo para uma nos coloca diante da indeterminação, de uma
viagem pelo mundo: “[...] escrevê-lo foi uma paisagem desconhecida que é preciso confi-
aventura ousada, e a aventura receptiva que se gurar e decifrar. Ante tal desafio, e na impos-
cumpre ao lê-lo está à altura das circunstân- sibilidade de dar respostas seguras, cabe-nos
cias”, anota Mann. A experiência da viagem, a tarefa de problematizar a respeito do novo
tramada com a leitura, é registrada em diário. contexto em que estamos inseridos.
Em um dos seus apontamentos lê-se que Um eixo fundamental dessa problema-
tização diz respeito ao fato de que, nas socie-
é preciso acolher o presente em toda a dades em que a democracia está instalada, há
sua complexidade, em todas as suas contra- uma disjunção crescente entre o Estado e a
dições, pois o futuro nasce do que é múltiplo, sociedade civil que tem se tornado visível em
não do que é único. (MANN, 2014, p. 117) várias esferas, sobretudo nas políticas públi-
cas, que parecem andar a reboque da dinâmica
O preceito de Mann parece encontrar social, dia a dia mais complexa em decorrên-
resistência ainda hoje, quando o acolhimen- cia do próprio processo democrático. A socie-
to ao múltiplo, ao desconhecido e ao incerto dade civil é ator-chave da dinâmica atual.
desconcerta e muitos ainda anseiam por um O filósofo Jacques Rancière, em seu li-
amplo relato que organize a diversidade do vro Ódio à Democracia, busca compreender
112 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

de que forma, no interior das supostas so- esse processo de ampliação pelos desejos, essa
ciedades democráticas, uma intelligentsia permanente condição de desejo. A multiplici-
dominante, que não deseja viver sob outro dade de vozes que buscam espaço na arena
regime, acusa diariamente os males causados pública é inerente ao exercício democrático.
pela democracia, “a catástrofe da civilização A continuidade e o alargamento do processo
democrática”. Em outras palavras, a expan- de democratização levam a sociedade a exigir
são da democracia incomoda, sobretudo pelo uma participação cada vez maior e mais ativa
princípio segundo o qual seu cerne é o poder na esfera pública e na tomada de decisões.
de qualquer um para governar, para adentrar A disjunção entre a sociedade civil e o
em esferas antes reservadas a poucos. A in- Estado tem evidenciado o esgotamento de
tensidade da vida democrática, sua ingover- instituições tradicionais das democracias
nabilidade advinda da constante e conflituosa representativas, que não conseguem dar res-
expansão que opera em seu interior, funda- postas satisfatórias à sociedade nem dar vazão
menta seu governo. Nas palavras do autor, à multiplicidade de desejos e de voz pública,
não mais passíveis de contenção nos espaços
o processo democrático é o processo delimitados pelas instituições tradicionais. A
desse perpétuo pôr em jogo, dessa invenção legitimidade do Estado tem sido abalada pela
de formas de subjetivação e de casos de verifi- dificuldade em acompanhar as transforma-
cação que contrariam a perpétua privatização ções da sociedade, o que se traduz na tensão
da vida pública. (RANCIÈRE, 2014, p. 81) constante entre as suas instituições e as novas
dinâmicas sociais, trazendo reflexos diretos
A razão de ser da democracia é o reco- nas políticas públicas. Estas parecem se guiar
nhecimento do outro, o permanente exercí- por modelos e sistemas antes legitimados, mas
cio de reconhecimento, e tem como princípio que não fazem face à indeterminação contem-
fundamental a ampliação dos direitos, cuja porânea, às múltiplas dinâmicas que consti-
matéria-prima é o desejo, na bela formulação tuem sua paisagem. As lentes parecem apontar
de Renato Janine. É o desejo dos sujeitos, com para a criação de relatos parciais de sujeitos
novas lógicas e novas sensibilidades na are- e grupos que buscam construir espaços no
na pública, que lutam por reconhecimento. mundo, abrir fendas, mesmo que temporárias.
Vivemos, portanto, um fenômeno próprio do A política toma a forma de uma batalha entre
desenvolvimento democrático, que é a cons- diferentes âmbitos de visibilidade. Os corpos
tante busca pela ampliação do espaço na arena estão saindo às ruas. A perspectiva empreendi-
pública, a qual advém da multiplicidade de de- da por Paul B. Preciado para a compreensão de
sejos. A administração dessa diversidade é algo movimentos como os Indignados na Espanha
próprio da dinâmica da democracia e um dos e a vitória de Ada Colau em Barcelona foca a
grandes desafios da gestão democrática. Tra- passagem de uma política de representação para
ta-se da compreensão de que a democracia não uma política de experimentação, em que a ação
chegará a um momento em que estará consoli- e a narração remetem à construção de múltiplos
dada, na medida em que ela tem, por princípio, significados por corpos indisciplinados.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira 113

O modo de vida atual é crescentemente da cultura essas tensões parecem ganhar


participativo; a sociedade sente-se excluída contornos fortes em decorrência dos novos
da arena pública e quer nela ser reconhecida desejos e das novas necessidades da mul-
e dela participar. Há um sentimento de des- tiplicidade de sujeitos e grupos que com-
conforto e descontentamento que gera tensão põem a sociedade. A cultura é entendida
de forças múltiplas e heterogêneas em ação. como processo de elaboração contínua em
Enquanto a política permanece como que um mundo em que as interdependências e
acorrentada a um tempo pretérito, a socie- os confrontos se intensificam a cada dia. Ela
dade avança pelas ondas líquidas e digitais deve ser diálogo, o que significa troca per-
da vida hipermoderna, defende o cientista manente, performativa e interativa e, como
político Marco Aurélio Nogueira (2013). consequência, imprevisibilidade, abertura
A compreensão da dinâmica política para o devir, e isso exige a gestão de contex-
atual, que tem ganhado novos contornos com tos de interculturalidade.
o desenvolvimento de novas tecnologias de É em torno da participação que flutuam
informação e comunicação, é elemento fun- as maiores esperanças de recomposição so-
damental para o entendimento das práticas cial e recuperação da política, lembra Marco
culturais e artísticas na atualidade. Em outras Aurélio Nogueira (2013). A política é antes
palavras, as novas dinâmicas nas práticas cul- de tudo a capacidade de quaisquer corpos
turais e artísticas não podem ser apartadas do se apoderarem de seus destinos. Trata-se
processo político-social de forma mais ampla. de emancipação e, segundo Jacques Ran-
As práticas culturais e artísticas, em sua rela- cière (2010), emancipação significa borrar a
ção com as novas tecnologias de informação e fronteira entre os que atuam e os que olham,
comunicação, evidenciam a proatividade dos entre indivíduos e membros de um corpo
novos atores e a localização incerta de muitos coletivo. Uma comunidade emancipada é
processos culturais na produção, na circula- uma comunidade de narradores e de tradu-
ção – o que reduziu a sacralização de lugares tores: fronteiras cruzadas, papéis borrados,
de exibição – e na criação de novos espaços de situar-se nas interações e nos desacordos.
experiências culturais e artísticas. As novas tecnologias de informação e
Nas redes circulam produções e se de- comunicação têm modificado as práticas cul-
senvolvem discussões que reforçam tal ideia. turais e artísticas, suas estratégias, a forma
O modelo de comunicabilidade em rede – in- como os sujeitos se relacionam com o mundo,
terativo e conectivo (MARTÍN-BARBERO, a maneira como aprendem, criam, comparti-
2014) – abre potencialidades e novas pro- lham, se agrupam, colaboram, fazem circular
blemáticas para as trocas, os intercâmbios, a sua criação, se apropriam. Vivemos hoje a
afirmação de identidades e de coletividades, emergência de processos criativos em es-
as novas elaborações simbólicas e os enfren- paços distribuídos na cidade, muitos deles
tamentos conflituosos. improváveis, fortalecendo as microlocalida-
Portanto, se a dinâmica democrática des e a multiplicidade de vozes, imbricações
gera tensões permanentes, no universo e interações, estabelecendo redes de tensão e
114 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

potencializando o desejo de criação de outros trabalham tomando fragmentos do mundo,


tempos e espaços, a geração de experiências, dando certa visibilidade ao que é iminente e
os novos afetos e sinergias. mostrando como se pode atuar mesmo a par-
Muitos sujeitos têm repensado sua tir de visões incompletas em zonas de inter-
forma de estar no mundo, abrindo fendas seção que sugerem e insinuam mais do que
para viver uma descontinuidade particular, representam literalmente. Ao narrar, contar
subjetiva, mas que reverbera no coletivo – suas experiências aos outros, os indivíduos
retomando a experiência como parte fun- e os grupos constituem-se como sujeitos da
damental da existência, interpelando seu linguagem, sujeitos da vida pública, e
tempo para estar à altura de transformá-lo.
Eis um grande desafio para pensar práticas instaura-se a relação entre o reconheci-
culturais e artísticas na atualidade. mento e a participação cidadã, a capacidade
Talvez estejamos nos aproximando da- de participação e intervenção dos indivíduos
quilo que o historiador Michel de Certeau e as coletividades em tudo aquilo que os con-
(1997) defendeu como tônica da ação humana: cerne. (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 22)
a invenção da própria liberdade, da criação de
brechas e espaços de movimentação. Em sua No que se refere especificamente às
concepção, a cultura “é uma proliferação de políticas públicas de cultura, o descompas-
invenções em espaços circunscritos” (p. 19); so entre suas proposições e suas ações e a
ou, ainda, “a cultura é o flexível” (p. 233), osci- multiplicidade social ganha contornos mais
lando entre a permanência e a invenção, sen- nítidos, sobretudo porque sua organização
do necessário que as práticas sociais tenham formal, a questão do patrimônio (nem sempre
significado para quem as realiza. De Certeau coletivamente compartilhado) e no que este
questiona: “[...] que grupo tem o direito de de- está instituído são eixos de tensão permanen-
finir, em lugar dos outros, aquilo que deve ser te com a dinâmica cultural, a cada dia mais
significativo para eles?” (p. 142). complexa. Para adensar ainda mais a trama,
Como se produz e se constrói o espaço o desenvolvimento e a disseminação das novas
público? Como se toma a palavra nele? Os tecnologias de informação e comunicação têm
corpos saíram às ruas e anseiam pela vida permitido que o sistema de produção cultural
sem mediações. A disseminação e o baratea- ganhe novos contornos, habilitando canais
mento das novas tecnologias de informação para que a arte e a cultura floresçam em di-
e comunicação têm possibilitado que sua nâmicas fora dos espaços consagrados e dos
apropriação aconteça de maneira cada vez circuitos tradicionais, que não têm mais o
mais ampla, permitindo que sujeitos e gru- privilégio de estabelecer balizas e critérios
pos produzam obras e as façam circular, o para inclusão ou exclusão no sistema ar-
que potencializa sua apropriação e amplia tístico-cultural nem o de definir os valores
os circuitos e a produção de uma multipli- culturais. Como estar à altura do presente no
cidade de relatos. Segundo Canclini (2010), que se refere às políticas públicas de cultu-
movimentos artísticos, políticos e culturais ra? No século XXI, de que forma as políticas
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira 115

culturais respondem às inquietações, aos elas devem criar condições e facilidades, ha-
desejos e às necessidades do emergente que, bilitar canais, negociar de maneira pactuada
segundo Raymond Williams, se transmu- para adquirir legitimidade. A cultura é o fle-
tarão em dominantes no futuro? Citando xível, falando novamente com De Certeau, e
­Martín-Barbero (ibid., grifos nossos): a política e a gestão cultural devem assumir
tal perspectiva, criando fendas para que seja
A convergência digital introduz nas po- possível respirar, abrindo possibilidades
líticas culturais uma profunda renovação do para interações e intercâmbios. A cultura
modelo de comunicabilidade, pois do unidire- sempre será um campo de incertezas.
cional, linear e autoritário paradigma da trans-
missão de informações, passamos ao modelo da
rede, isto é, ao da conectividade e da interação
que transforma o modo mecânico da comu-
nicação a distância pelo modo eletrônico da
interface de proximidade. Novo paradigma tra-
duzido em uma política que privilegia a siner-
gia entre muitos projetos pequenos acima da
complicada estrutura dos grandes e pesados
aparatos tanto na tecnologia como na gestão.

Portanto, se a dinâmica democrática


gera tensões permanentes, no universo
da cultura essas tensões parecem ganhar
contornos fortes, o que se reflete no per-
manente conflito, próprio da política cul-
tural, entre a manutenção das tradições,
da memória, do patrimônio, dos cânones,
das instituições, do consagrado – mesmo
das culturas popular e periférica vistas sob
uma ótica cristalizada – e os novos desejos
e necessidades da multiplicidade de sujei-
tos e grupos que compõem a sociedade, das
suas experimentações, dos seus espaços de
visibilidade. Como a cultura é inerente ao
ser humano, desenvolve-se a despeito das
políticas culturais. A política e a gestão cul-
tural estão desafiadas a estar à altura da di-
nâmica atual. Diante da multiplicidade de
desejos que busca espaço na arena pública,
116 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira


É docente e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Infor-
mação (PPGCI) e no Departamento de Biblioteconomia e Documentação da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Tem doutorado em
ciência da informação (PPGCI), mestrado em ciências da comunicação [Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM)], bacharelado em história [Fa-
culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)] e licenciatura em história
[Faculdade de Educação (FE)], todos pela USP. É autora, entre outras publicações, de
Corpos Indisciplinados: Ação Cultural em Tempos de Biolítica; Nossos Comerciais, por
Favor!; e Biblioteca Escolar e Circuitos Culturais.

Referências bibliográficas

CANCLINI, Néstor García. La sociedad sin relato: antropología y estética de la


inminencia. Buenos Aires: Katz, 2010.

DE CERTEAU, Michel. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1997.

FAVARETTO, Celso. Transformação em processo. In: Educação integral: experiências


que transformam. São Paulo: Fundação Itaú Social: Unicef: Cenpec, 2012.

MANN, Thomas. Travessia marítima com Dom Quixote. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

MARTÍN-BARBERO, Jesus. Diversidade em convergência. In: Matrizes, São Paulo, v. 8,


n. 2, p. 15-33, 2014.

NOGUEIRA, Marco Aurélio. As ruas e a democracia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

RANCIÈRE, Jacques. El espectador emancipado. Buenos Aires: Manantial, 2010.

______. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.

RIBEIRO, Renato Janine. A democracia. São Paulo: Publifolha, 2002.

WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.


118 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

COLEÇÃO OS LIVROS
DO OBSERVATÓRIO
Identidade e Violência: a Ilusão do Destino
Amartya Sen
Nesta obra, Amartya Sen trata da violência relacionada à ilusão iden-
titária e às confusões conceituais. Ele problematiza a identidade apon-
tando que, ao mesmo tempo que ela pode trazer conforto ao indivíduo
que se sente representado em uma cultura, pode impedir a identificação
das pessoas com a humanidade, abordando para isso as questões rela-
cionadas à divisão dos indivíduos por raça, classe, religião ou partido
a que pertencem.

As Metrópoles Regionais e a Cultura:


o Caso Francês, 1945-2000
Françoise Taliano-des Garets
Esta obra traça pela primeira vez a história das políticas culturais de
grandes cidades francesas na segunda metade do século XX. Seis delas,
Bordeaux, Lille, Lyon, Marselha, Estrasburgo e Toulouse, são objeto
de uma história comparada que examina a articulação entre políticas
culturais nacionais e locais na França desde o fim da Segunda Guerra
Mundial. É um estudo que contribui para a revisão de certas ideias co-
muns sobre política cultural para as cidades e sobre as articulações entre
as diretivas e os discursos do poder central nacional e a realidade local.
Além disso, mostra como a cultura se impôs em lugares distintos, em
ritmos diferentes, como um campo legítimo da ação pública e fator de
fortalecimento da imagem e de desenvolvimento de cidades que buscam
um lugar de destaque nacional e internacionalmente. Abordando uma
realidade francesa, este livro serve de poderoso instrumento de reflexão
sobre a política cultural para as cidades, onde quer que se situem.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES  119

Afirmar os Direitos Culturais – Comentário à Declaração


de Friburgo
Patrice Meyer-Bisch e Mylène Bidault
A publicação organizada por Patrice Meyer-Bisch e Mylène Bidault
aborda a Declaração de Friburgo, que reúne e explicita os direitos cul-
turais reconhecidos de maneira dispersa em muitos instrumentos.
Levando o subtítulo Comentário à Declaração de Friburgo, o livro analisa
detalhadamente e comenta os considerandos e os artigos da declaração,
tendo como objetivo contribuir para a discussão e o desenvolvimento do
tema. Percebendo que a universalidade e a indivisibilidade dos direitos
humanos padecem sempre com a marginalização dos direitos culturais,
o Grupo de Friburgo – um grupo de trabalho internacional organizado
a partir do Instituto Interdisciplinar de Ética e Direitos Humanos da
Universidade de Friburgo, na Suíça – preparou um guia para a reflexão e
a implementação dos direitos relacionados à cultura previstos no Acor-
do Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Arte e Mercado
Xavier Greffe
Este título discute as relações da arte com a economia de mercado e
a atual tendência de levar a arte a ocupar-se mais de efeitos sociais e
econômicos – inclusão social, o atendimento das exigências do turismo
e as necessidades do desenvolvimento econômico em geral – do que de
suas questões intrínsecas. Conhecer o sistema econômico é o primeiro
passo para colocar a arte em condições de atender realmente aos direi-
tos culturais, que hoje se reconhecem, como seus.

Cultura e Estado. A Política Cultural na França, 1955-2005


Teixeira Coelho
Neste livro, Teixeira Coelho faz uma seleção dos textos presentes na
coletânea La Politique Culturelle en Débat: Anthologie, 1955-2005, da
Documentation Française, que reflete sobre a relação entre Estado e
cultura na França. A cultura francesa se associa intimamente à iden-
tidade da nação e do Estado, e os autores desta obra, de diversas áreas,
analisam os aspectos dessa proximidade.
120 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Cultura e Educação
Teixeira Coelho (Org.)
Esta publicação remete ao Seminário Internacional da Educação e Cul-
tura realizado no Itaú Cultural em setembro de 2009. Os participantes
latino-americanos (inclusive brasileiros) e espanhóis comparam e re-
fletem práticas capazes de culturalizar o ensino, por meio de iniciativas
administrativas e curriculares e de ações cotidianas em sala de aula.

Saturação
Michel Maffesoli
O título reúne os textos “Matrimonium” e “Apocalipse”, de Michel Maf-
fesoli. Neles o autor estende a discussão sobre a pós-modernidade para
além do domínio das artes e analisa os fatos e os efeitos pós-modernos
na vida social. A partir desse debate, Maffesoli questiona valores como
indivíduo, razão, economia e progresso – pedras fundamentais da so-
ciedade ocidental moderna, que está em crise, saturada.

O Medo ao Pequeno Número


Arjun Appadurai
“Arjun Appadurai é conhecido como autor de novas formulações notáveis
que esclareceram os desenvolvimentos globais contemporâneos, especial-
mente em Modernity at Large. Neste novo livro, ele aborda os problemas
mais cruciais e intrigantes da violência coletiva que hoje nos cerca. Um
livro repleto de ideias novas e originais, alimento essencial para o espírito
dos especialistas e de todos os que se preocupam com essas questões”, diz
Charles Taylor, autor de Modern Social Imaginaries. As transformações
na economia mundial desde a década de 1970 produziram efeitos con-
sideráveis nas relações entre as nações e as pessoas. Multiplicaram-se
as disputas e as preocupações sobre soberania nacional, indigenismo,
imigração, liberdade, mercado, democracia e direitos humanos. Algumas
ditaduras sumiram, outras permaneceram ativas e uma ou outra mais
insiste em afirmar-se no palco mundial, como se as mudanças no mundo
ao longo do último meio século não tivessem existido.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES  121

A Cultura e Seu Contrário


Teixeira Coelho
As duas últimas décadas do século XX viram a ascensão da ideia de cul-
tura a um duplo primeiro plano: o das políticas públicas e o do mercado,
neste caso de um modo ainda mais intenso que antes. O papel de cimento
social antes exercido pela ideologia e pela religião, corroídas em particu-
lar na chamada civilização ocidental, embora não neutralizadas, foi sendo
gradualmente assumido pela cultura, tanto nos Estados pós-coloniais
como, em seguida, nas nações subdesenvolvidas às voltas com os desafios
da globalização e decididas ou resignadas a encontrar, na identidade
cultural, uma válvula de escape. Do lado do mercado, o vertiginoso cres-
cimento do audiovisual (cinema, vídeo, música) colocou a cultura numa
situação sem precedentes no elenco das fontes de riqueza nacional.

A Cultura pela Cidade


Teixeira Coelho (Org.)
Qual a relação entre a cultura e a cidade? Nesta publicação, 12 autores,
nacionais e estrangeiros, são convidados a refletir sobre o tema. Os
artigos abordam questões como: Agenda 21 da Cultura, espaço público
e cultura, política cultural urbana e imaginários culturais.

Leitores, Espectadores e Internautas


Néstor García Canclini
A publicação contém artigos dispostos em ordem alfabética, podendo
o leitor transitar livremente por eles sem interferir na compreensão do
texto. Seu tema são os novos hábitos culturais surgidos com o avanço
das tecnologias de comunicação e entretenimento, e nossas respostas a
eles como leitores, espectadores e internautas. Por meio de provocações,
o autor nos incentiva a pensar sobre nossos “novos hábitos culturais”,
colocando mais questões a ser respondidas do que conceitos estabeleci-
dos, como num fragmento de “Leitores” em que questiona as campanhas
de incentivo à leitura: “Por que as campanhas de incentivo à leitura são
feitas só com livros e tantas bibliotecas incluem somente impressos em
papel?” (p. 56), abrindo assim a discussão da necessidade de reformu-
lação das políticas culturais públicas, uma vez que, atualmente, somos
leitores de revistas, quadrinhos, jornais, legendas, cartazes, blogs.
122 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A República dos Bons Sentimentos


Michel Maffesoli
Como observou Chateaubriand, é comum chamar de conspiração po-
lítica aquilo que na verdade é “o mal-estar de todos ou a luta da antiga
sociedade contra a nova, o combate das velhas instituições decrépitas
contra a energia das jovens gerações”. O momento atual é um desses em
que jornalistas, universitários e políticos, em suma, a intelligentsia, se
mostram em total falta de sintonia com a vitalidade popular. Para en-
tender melhor em que isso consiste, é preciso pôr em evidência a lógica
do conformismo intelectual reinante. Só quando não mais imperar o
ronronar do “moralmente correto” é que será possível prestar atenção
à verdadeira “voz do mundo”.

Este é um Maffesoli diferente, polêmico e que não receia ser até mesmo
panfletário. Seu alvo é o pensamento conformado com as conquistas
teóricas dos séculos passados que não mais servem para entender a
época contemporânea. Discutindo com o pensamento oficial, Michel
Maffesoli investe contra o politicamente correto, o moralmente correto
e todas as formas do bem pensar, isto é, contra as ideias feitas que se
transmitem e se repetem acriticamente.

Cultura e Economia
Paul Tolila
Durante muito tempo os economistas negligenciaram a cultura e por
muito tempo o setor cultural também se desinteressou da reflexão eco-
nômica. Vivemos o fim dessa época. Para os atores do setor cultural, as
ferramentas econômicas podem se tornar uma base sólida de desenvol-
vimento; para os tomadores de decisões, a contribuição da cultura para
a economia do conhecimento abre oportunidades originais de ação; para
os cidadãos, trata-se de ter os meios para compreender e defender um
setor cujo valor simbólico e potencial de riqueza humana e econômica
não podem mais ser ignorados.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES  123

SÉRIE RUMOS PESQUISA


Os Cardeais da Cultura Nacional: o Conselho Federal
de Cultura na Ditadura Civil-Militar − 1967-1975
Tatyana de Amaral Maia
Neste livro, Tatyana de Amaral Maia discorre sobre a criação e a atua-
ção do Conselho Federal de Cultura, órgão vinculado ao antigo Minis-
tério da Educação e Cultura, no campo das políticas culturais. A autora
analisa a relação entre seus principais atores, relevantes intelectuais
brasileiros, e as questões políticas e sociais do período da ditadura, bem
como os conceitos relativos à cultura brasileira, tais como patrimônio
e identidade nacional.

Discursos, Políticas e Ações: Processos de Industrialização


do Campo Cinematográfico Brasileiro
Lia Bahia
O tema deste livro é a inter-relação entre a cultura e a indústria no
Brasil, por meio da análise das dinâmicas do campo cinematográfico
brasileiro. A obra enfoca a ligação do Estado com a industrialização do
cinema brasileiro nos anos 2000, discutindo as conexões e as desco-
nexões entre os discursos, as práticas e as políticas regulatórias para
o audiovisual nacional.

Por uma Cultura Pública: Organizações Sociais, Oscips


e a Gestão Pública Não Estatal na Área da Cultura
Elizabeth Ponte
A autora traz um panorama do modelo de gestão pública compartilhada
com o terceiro setor, por meio de organizações sociais (OS) e organi-
zações da sociedade civil de interesse público (Oscips), procurando
analisar seu impacto em programas, corpos estáveis e equipamentos
públicos na área cultural. O estudo é baseado nas experiências de São
Paulo, que emprega a gestão por meio de OS, e de Minas Gerais, que
possui parcerias com Oscips.
124 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A Proteção Jurídica de Expressões Culturais de Povos


Indígenas na Indústria Cultural
Victor Lúcio Pimenta de Faria
A proteção jurídica das expressões culturais indígenas, de suas formas
de expressão e de seus modos de criar, fazer e viver é analisada sob as
perspectivas do direito autoral e da diversidade das expressões cultu-
rais, a partir do conceito adotado pela Unesco.

AS REVISTAS DO
OBSERVATÓRIO

Revista Observatório Itaú Cultural


No 18 – Perspectivas sobre política e gestão cultural
na América Latina
Esta edição traz análises comparativas da política e da gestão cultural
da América Latina e aborda o seminário internacional sobre o tema re-
alizado em março de 2015. Autores do Brasil, da Argentina, do Chile, do
Paraguai, do Uruguai, da Colômbia e do México nos convidam a pensar
sobre nossos modelos políticos e a importância do papel da cultura na
integração dos povos latino-americanos.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 17 – Livro e Leitura: das Políticas Públicas
ao Mercado Editorial
Esta edição reflete sobre livro e leitura no século XXI, levando em conta
novos aspectos e dimensões que vão além das publicações em papel,
das bibliotecas e das livrarias físicas. A revista contempla abordagens
históricas, discussões contemporâneas, contribuições de pesquisadores
acadêmicos e de profissionais do mercado.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES  125

Revista Observatório Itaú Cultural


No 16 – Direito, Tecnologia e Sociedade:
uma Conversa Indisciplinar
Esta edição mistura autores provenientes de campos diversos do co-
nhecimento para tratar de temas que se tornam cada vez mais centrais
nos nossos agitados tempos, em que as ruas e as redes se misturam, em
que o real e o virtual se fundem. Privacidade, direitos autorais, liberdade
de expressão, limites e possibilidades do “faça você mesmo”, conflitos
envolvendo mídias sociais e tradicionais, os sucessos e as falhas da
promessa da aldeia global. São temas que estão hoje no centro do palco
e despertam ao mesmo tempo esperança e preocupação.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 15 – Cultura e Formação
Esta edição destaca o Seminário Internacional de Cultura e Formação,
realizado no Itaú Cultural em novembro de 2012. O seminário é fruto
de dois processos relacionados: primeiro, uma grande reflexão sobre
os destinos da instituição, que completara, nesse mesmo ano, 25 anos
de fundação; consecutivamente, o desejo de dialogar sobre como o ter-
ceiro setor pode contribuir para o desenvolvimento dos processos de
formação cultural, bem como qual lugar lhe cabe nesse cenário. Para a
revista, selecionamos contribuições de natureza diversificada derivadas
desse encontro: discussão de conceitos, debates de políticas, análise
de situações ou simplesmente narrativas de experiências, compondo,
assim, um pequeno retrato do seminário, bem como das relações entre
cultura e formação na contemporaneidade.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 14 – A Festa em Múltiplas Dimensões
Os muitos carnavais, aspectos socioeconômicos das festas, políticas
públicas e patrimônio cultural. Essas e outras questões acerca das fes-
tividades brasileiras são discutidas tendo as políticas culturais como
ponto de partida.
126 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Revista Observatório Itaú Cultural


No 13 – A Arte como Objeto de Políticas Públicas
Nesta edição, a Revista Observatório apresenta reflexões sobre alguns
setores artísticos no Brasil a partir de pesquisas, informações e percep-
ções de pesquisadores e instituições, vislumbrando contribuir para que
a arte seja pensada como objeto de políticas públicas.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 12 – Os Públicos da Cultura: Desafios Contemporâneos
Esta edição se debruça sobre as discussões da relação entre as práticas,
a produção e as políticas culturais. Refletindo sobre o consumo cultural
e o público da cultura com base na experiência francesa, a revista põe o
leitor em contato com a produção atual de pesquisadores que têm como
preocupação central as escolhas, os motivos, os gostos e as recusas dos
“públicos da cultura”.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 11 – Direitos Culturais: um Novo Papel
Este número é dedicado aos direitos culturais em diversos âmbitos:
relata o desenvolvimento do campo, sua relação com os direitos hu-
manos, a questão dos indicadores sociais e culturais e o tratamento
jurídico dado ao assunto.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 10 – Cinema e Audiovisual em Perspectiva: Pensando
Políticas Públicas e Mercado
Esta edição trata das políticas para o audiovisual no Brasil e passa por
temas como distribuição, mercado, políticas públicas, direitos autorais,
gestão cultural e novas tecnologias, além de trazer texto de Silvio Da-
-Rin, ex-secretário do Audiovisual. Parte dos artigos é de ganhadores
do Prêmio SAV e do programa Rumos Itaú Cultural Pesquisa: Gestão
Cultural 2007-2008.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES  127

Revista Observatório Itaú Cultural


No 9 – Novos Desafios da Cultura Digital
As novas tecnologias transformaram a indústria cultural em todas as
suas fases, da produção à distribuição, assim como o acesso aos produtos
culturais. Em 12 artigos, esta edição discute as questões que a era digital
impõe à indústria cultural, os desafios que permeiam políticas públicas
de inclusão digital, a necessidade de pensar os direitos autorais e como
trabalhar a cultura na era digital. Traz também uma entrevista com Ro-
salía Lloret, da Rádio e TV Espanhola, e Valério Cruz Brittos, professor e
pesquisador da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), sobre
convergência das mídias e televisão digital, respectivamente.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 8 – Diversidade Cultural: Contextos e Sentidos
Esta edição é dedicada à diversidade. Na primeira parte, são explorados
vários aspectos culturais do país – aspectos que estão à margem da
vivência e do consumo usual do brasileiro – e como as políticas de ges-
tão cultural trabalham para a assimilação e a preservação deles, de
modo que não causem fortes impactos na dinâmica social. A segunda
parte da revista é composta de artigos escritos por especialistas em
cultura e tem como fio condutor a discussão sobre a sobrevivência da
diversidade cultural em um mundo globalizado.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 7 – Lei Rouanet. Contribuições para um Debate sobre
o Incentivo Fiscal para a Cultura
A Lei Rouanet é o tema do sétimo número da Revista Observatório.
Aqui os autores discutem diversos aspectos e consequências des-
sa lei: a concentração de recursos no eixo Rio-São Paulo, o papel
das empresas estatais e privadas e o incentivo fiscal. O ministro da
Cultura, Juca Ferreira, comenta em entrevista a lei e as falhas do
atual modelo. O propósito desta edição é apresentar ao leitor as di-
versas opiniões sobre o assunto para que, ao final, a conclusão não
seja categórica. O setor cultural é tecido por nuances; há, portanto,
que pensá-lo como tal.
128 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Revista Observatório Itaú Cultural


No 6 – Os Profissionais da Cultura: Formação para
o Setor Cultural
O gestor cultural é um profissional que, no Brasil, ainda não atingiu seu
pleno reconhecimento. A sexta Revista Observatório é dedicada a expor
e a debater esse tema. Neste número, há uma extensa indicação biblio-
gráfica em português, além de artigos e entrevistas com professores
especializados no assunto. A carência profissional nesse meio é fruto
da deficiência das políticas culturais brasileiras, quadro que começa a
se transformar com a maior incidência de pesquisas e cursos voltados
para a formação do gestor.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 5 – Como a Cultura Pode Mudar a Cidade
A quinta Revista Observatório é resultado do seminário internacional A
Cultura pela Cidade – uma Nova Gestão Cultural da Cidade, organizado
pelo Observatório Itaú Cultural. Sua proposta foi promover a troca de
experiências entre pesquisadores e gestores do Brasil, da Espanha, do
México, do Canadá, da Alemanha e da Escócia que utilizaram a cultura
como principal elemento revitalizador de suas cidades. Nesta edição,
além dos textos especialmente escritos para o seminário, estão duas
entrevistas para a reflexão sobre o uso da cultura no desenvolvimento
social: uma com Alfons Martinell Sempere, professor da Universidade
de Girona (Espanha), e outra com a professora Maria Christina Barbosa
de Almeida, então diretora da biblioteca da Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e atual diretora da
Biblioteca Mário de Andrade. A revista número 5 inaugura a seção de
crítica literária, com um artigo sobre Henri L
­ efebvre e algumas indica-
ções bibliográficas. Encerrando a edição, um texto sobre a implantação
da Agenda 21 da Cultura.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES  129

Revista Observatório Itaú Cultural


No 4 – Reflexões sobre Indicadores Culturais
O que é um indicador, como definir os parâmetros de uma pesquisa,
como usar o indicador em pesquisas sobre cultura? A quarta Revista
Observatório trata desses assuntos por meio da exposição de vários
pesquisadores e do resumo dos seminários internacionais realizados
pelo Observatório no fim de 2007. No final da edição, um texto da Orga-
nização das Nações Unidas (ONU) sobre patrimônio cultural imaterial.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 3 – Valores para uma Política Cultural
A terceira edição da revista discute políticas para a cultura e relata a expe-
riência do programa Rumos Itaú Cultural Pesquisa: Gestão Cultural e dos
seminários realizados nas regiões Norte e Nordeste do país para a divulgação
do edital do programa. A segunda parte desta edição traz artigos que co-
mentam casos específicos de cidades onde a política cultural transformou a
realidade da população, fala sobre o Observatório de Indústrias Culturais de
Buenos Aires e apresenta uma breve discussão sobre economia da cultura.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 2 – Mapeamento de Pesquisas sobre o Setor Cultural
O segundo número da revista é dividido em duas partes: a primeira trata
das atividades desenvolvidas pelo Observatório, como as pesquisas
no campo cultural e o programa Rumos, e traz uma resenha do livro
Cultura e Economia – Problemas, Hipóteses, Pistas, de Paul Tolila. A
segunda é composta de diversos artigos sobre a área da cultura escritos
por especialistas brasileiros e estrangeiros.

Revista Observatório Itaú Cultural


No 1 – Indicadores e Políticas Públicas para a Cultura
Esta revista inaugura as publicações do Observatório Itaú Cultural. Criado
em 2006 para pensar e promover a cultura no Brasil, o Observatório reali-
zou diversos seminários com esse intuito. O primeiro número é resultado
desses encontros. Os artigos discutem o que é um observatório cultural,
qual sua função, como formular e usar dados para a cultura e as indústrias
culturais. A edição também comenta experiências de outros observatórios.
Esta revista utiliza as fontes Sentinel e
Gotham sobre o papel Pólen Bold 90g/m2.
Os pantones 2347 e Black foram os escolhidos
para esta edição. Duas mil unidades foram
impressas pela gráfica Aquarela em São Paulo,
no mês de novembro do ano 2015.
Realização

/itaucultural itaucultural.org.br fone 11 2168 1777 fax 11 2168 1775 atendimento@itaucultural.org.br


avenida paulista 149 são paulo sp 01311 000 [estação brigadeiro do metrô]

Você também pode gostar