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TECNOLOGIA E CULTURA:
UMA SOCIEDADE EM REDES
Semestral
1.
77. Arquivos de arte digital –
estratégias, metodologias
NATUREZA & CULTURA e paradigmas
Jorge La Ferla
17. Adeus às fronteiras entre
3.
natureza e cultura
Lucia Santaella
CRISE, RESISTÊNCIA
24. Programas de computador E REINVENÇÃO
e imprevisibilidade
Marcos Cuzziol 88. Cultura de redes e políticas
culturais no Brasil
2.
Ivana Bentes
A
cultura digital veio para embaralhar por genealogia como método de trabalho a
todas as cartas do jogo das lingua- busca por fatores que sejam capazes de ilu-
gens, tornando densas, intrincadas minar, do passado, as determinações do pre-
e hipercomplexas as tramas da cultura. Além sente. Não se trata de sair à caça de origens
de incessantes novidades que não param de ou causas explicativas de que o presente se-
surgir, o que mais espanta no mundo digital ria um efeito; portanto, não se trata de seguir
são os passos acelerados de suas transfor- uma linha cronológica para construir uma
mações e, sobretudo, a naturalidade com que totalidade histórica. Ao contrário, é preciso
elas são absorvidas pela sociedade em todas exercer uma atividade criadora de descober-
as faixas etárias, sobretudo pelos muito jo- tas de pontos luminosos, muitas vezes hete-
vens. Quanto mais jovem, tanto mais rápida rogêneos, que vão elaborando um tecido de
e espontaneamente se dá a adaptação às emer- analogias e contaminações entre passado e
gentes paisagens das interfaces interativas de presente com relativa força explicativa para
acesso à informação e à comunicação em te- aquilo que nos espanta no presente.
cidos híbridos de linguagem nos quais sons,
ruídos, imagens, diagramas, pistas, ícones e Linguagem e cultura como
escrita indissoluvelmente se misturam. Qual condições do humano
o segredo de tudo isso? Tudo isso para dizer que o universo di-
Para abrir algum caminho de resposta, gital ainda conserva as longínquas mas inde-
é preciso abandonar a tendência corrente de léveis marcas da constituição do ser humano
considerar o universo digital como um fenô- como um ser de linguagem. Desde que emer-
meno explicável no seu isolamento, sem se giu na evolução, a linguagem impregnou o hu-
preocupar com sua genealogia. Entende-se mano com a consciência do tempo, da vida e
18 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
se uma era fosse desaparecendo com o surgi- aparecimento de uma cultura do disponível e
mento da próxima. Ao contrário, há sempre do transitório: fotocopiadoras, videocassetes
um processo cumulativo de complexificação. e aparelhos para a gravação de vídeos, equi-
Um novo ambiente vai se integrando ao(s) an- pamentos como walkman e w alkie-talkie,
terior(es), provocando reajustamentos e re- acompanhados de uma remarcável indús-
funcionalizações, em uma verdadeira guerra tria de videoclipes e videogames, além da
e paz em busca de sobrevivência. Mas é certo expansiva indústria de filmes em vídeo para
que, em cada período histórico, a cultura fica ser alugados nas videolocadoras – tudo isso
sob o domínio da técnica ou da tecnologia de se somando ao surgimento da TV a cabo, para
comunicação mais recente. Contudo, esse do- atualmente culminar, entre outros exemplos,
mínio não é suficiente para asfixiar as forma- no fenômeno da Netflix. Essas tecnologias
ções culturais preexistentes. Afinal, a cultura têm como principal característica propiciar
comporta-se sempre como um organismo vivo escolhas e consumos individualizados, em
e, sobretudo, inteligente, com poderes de adap- oposição ao consumo massivo. Foram esses
tação imprevisíveis e surpreendentes. processos que arrancaram o ser humano da
Levar as eras em consideração permite inércia da recepção de mensagens impostas
perceber especificidades importantes e re- de fora, passando a buscar a informação e o
veladoras. Por exemplo: a cultura impressa entretenimento desejados, o que preparou
não nasceu diretamente da oral, mas foi an- sua sensibilidade para a chegada dos meios
tecedida por uma rica cultura da escrita não digitais cuja marca principal está na busca
alfabética, pictográfica. A memória dessas dispersa, alinear e fragmentada, mas certa-
escritas traz grandes contribuições para a mente uma busca individualizada da men-
visualidade contemporânea. Da mesma for- sagem e da informação.
ma, embora haja uma tendência de ver a cul-
tura digital como continuidade da de massas, A hipercomplexidade
houve uma fase transitória entre elas, que da cultura contemporânea
caracterizo como cultura das mídias. Para Hoje, todas as formas de cultura – desde
isso, basta rememorar que, por volta do iní- a oralidade até a cultura escrita, a impressa,
cio dos anos 1980, se intensificaram cada a de massas, a das mídias e a cibercultura –
vez mais os casamentos e as misturas entre coexistem, convivem e sincronizam-se na
linguagens e meios, misturas essas que fun- constituição de uma mescla cultural hiper-
cionam como um multiplicador de mídias. complexa e híbrida. Tudo isso incrementado
Elas produzem mensagens híbridas como pela potência do computador, uma verdadei-
as que se podem encontrar nos suplemen- ra metamídia, capaz de absorver, misturar
tos literários ou culturais especializados de e devolver transmutadas todas as formas
jornais e revistas, nas revistas de cultura, no culturais que lhe precederam e que fora dele
radiojornal, no telejornal etc. continuam coexistindo para a exacerbação
Ao mesmo tempo, surgiram equipa- da densa rede de produção e circulação de
mentos e dispositivos que possibilitaram o bens simbólicos dos nossos dias.
20 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Como se tudo isso não bastasse, na resorts ou, então, de spots mais modestos
sequência ininterrupta de suas transfor- para o turismo consumista. Alguns buscam
mações a cultura digital trouxe ao nosso no capitalismo as causas para todas essas
convívio uma invenção notável: os dispo- avalanches de produções humanas, tidas
sitivos móveis (SANTAELLA, 2007). Eles, como desvirtuadoras da essência de uma
em muito pouco tempo, reduziram a docu- vida natural. Sem dúvida, sem o incremen-
mento histórico obsoleto a tríade dos filmes to produtivo do capital, seus rebentos não
Matrix, que encena a separação exacerba- seriam possíveis. Todavia, sem negar suas
da entre o mundo virtual e o mundo físico. evidentes contradições e mazelas, o capi-
Com os equipamentos móveis, portáteis, talismo não contém a chave da explicação
os usuários passaram a abrigar, na palma para tudo. Não explica, por exemplo, que
das mãos, computadores poderosos que os uma pretensa essência humana só exis-
têm transportado para novas dimensões de tiu para Adão no Paraíso, já que o mundo
espaço e tempo nas misturas inextricáveis pós-adâmico traz a insígnia da linguagem
entre o virtual (o ciberespaço) e os ambien- cujo destino é crescer, tanto quanto está no
tes físicos em que o corpo biológico circula crescimento o destino da própria vida. Não
(ver SOUZA E SILVA, 2006). por coincidência, é no cerne da vida que as
A emergência de tecnologias portáteis tecnologias de linguagem, miniaturizadas
contribuiu para a possibilidade de estar cons- em chips, estão cada vez mais se infiltrando.
tantemente conectado a espaços digitais e de,
literalmente, levar a internet para todos os O atual estado da arte
cantos, esquinas e recintos do cotidiano. Com Nos últimos anos, a aceleração na ten-
isso, modificam-se relações afetivas, sociais e dência multiplicadora das mídias atinge
de trabalho, impulsionadas não apenas pela níveis desconcertantes e perturbadores.
mobilidade, mas também pela incorporação Sob o nome de internet das coisas, big data,
ao computador de plataformas e aplicativos realidade aumentada e tecnologias portáteis,
que, nas trocas incessantes de mensagens, vestíveis e implantáveis, as tendências tec-
imagens e vídeos pelas redes, estão levando as nológicas, que se avizinham, levam a prever
relações sociais ao limite do paroxismo. ambientes de computação em rede globais,
Junto com isso surgem programas de imersivos, invisíveis, construídos “por meio
computação como realidade aumentada, da proliferação contínua de sensores inteli-
mista, computação ubíqua, pervasiva e gentes, câmeras, softwares, bases de dados e
vestível. Os nomes dados a esses programas centros de dados massivos em um tecido de
são sintomáticos do apagamento a que os informação de abrangência mundial.” (FA-
construtos humanos sobre a Terra levaram NAYA, 2014, p. 112-113) O panorama elabora-
a pretensa naturalidade da natureza. Desde do por Fanaya (ibid.) é ainda mais eloquente
o século passado já se sabia que a natureza no que se segue.
havia se tornado cartão-postal, atualmen- Quando as redes da internet envolve-
te incrementado por fôlderes e sites de rem também as coisas, como já começa a
22 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
acontecer, as pessoas estarão usando dispo- comportamento humano. Todas essas ten-
sitivos de conexão que lhes darão feedback dências que se avizinham transformarão o
sobre suas atividades, sua saúde e fitness. gigantesco organismo comunicativo que já é
Esses dispositivos serão capazes de moni- hoje a web em um superorganismo planetário
torar outras pessoas, como filhos e empre- estendido por todas as peças dos ambientes.
gados, também munidos de sensores ou ao Além disso, grupos de cientistas e
entrar e sair de lugares sensorializados. As engenheiros que trabalham com robótica
pessoas poderão controlar, remotamente, evolutiva (developmental robotics) estão
um grande número de tarefas em suas resi- engajados no desenvolvimento de robôs
dências – nelas, os sensores avisarão tudo, capazes tanto de identificar, analisar e in-
indicando desde objetos que precisam de terpretar o ambiente de maneira dinâmica
reparo até se o jardim já foi regado. quanto de aprender com essas experiências,
Dispositivos embarcados e aplicativos à maneira de um organismo vivo dotado de
para smartphones (ou quaisquer outros inteligência. Trata-se da busca de desen-
dispositivos que venham a substituí-los) volvimento de uma computação subjetiva
permitirão o transporte mais eficiente de que vise à emulação de alguns traços da
cargas e mercadorias. Os sistemas inteli- subjetividade humana – como a adaptação
gentes poderão fornecer eletricidade e água e a flexibilidade em ambientes desconhe-
de forma mais eficaz e alertar sobre proble- cidos –, da reflexibilidade, da percepção e
mas de infraestrutura. Indústrias e cadeias das relações entre humanos por meio de
de abastecimento terão sensores e leitores algoritmos capazes de desenvolvimento
que acompanharão de modo mais preciso a mental autônomo [autonomous mental
fabricação e a distribuição de mercadorias, development (AMD)]. Isso significa dotar
de modo a acelerar e suavizar os processos. o agente tecnológico de uma concepção
Haverá leitura em tempo real dos níveis de individual a respeito do ambiente, em um
poluição, umidade do solo e extração de re- impulso normativo de arbítrio e de abertura
cursos nos campos, nas florestas, nos oceanos às experiências no mundo.
e nas cidades, o que permitirá um acompa- Sem entrarmos aqui nas acaloradas
nhamento mais detalhado dos problemas. discussões sobre os perigos iminentes da
Dizem os especialistas que tudo isso se tor- crise ecológica, as inestimáveis perdas ou
nará realidade rotineira até 2025, mas muitas os possíveis ganhos para a humanidade, é
dessas previsões já estão começando a povoar preciso constatar que o ser humano, desde
as paisagens do mundo e a se insinuar no psi- a sua gênese, foi e continua sendo um ser
quismo e nos comportamentos sociais. inacabado que se metaboliza transforman-
A realidade atual de conexão e comu- do em cultura a natureza de onde emergiu,
nicação entre pessoas irá se expandir até até o ponto de levar à completa dissipação
os objetos (máquinas e/ou artefatos) que as fronteiras entre natureza e cultura que
as cercam. Eles irão interagir de maneira o pensamento ocidental tão ilusoriamente
inteligente, gerando ações responsivas ao costumava resguardar.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lucia Santaella 23
Lucia Santaella
É professora titular nos programas de pós-graduação em tecnologias da inteligên-
cia e design digital e em comunicação e semiótica na Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC/SP), com doutoramento em teoria literária na PUC/SP, em 1973, e
livre-docência em ciências da comunicação na Escola de Comunicações e Artes da Uni-
versidade de São Paulo (ECA/USP), em 1993. É diretora do Centro de Investigação em
Mídias Digitais (Cimid) e coordenadora do Centro de Estudos Peirceanos e do Grupo de
Estudos Sociotramas, na PUC/SP. É presidente honorária da Federação Latino-Americana
de Semiótica e correspondente brasileira da Academia Argentina de Belas Artes, eleita
em 2002, além de vice-presidente (1989-1999) da Associação Internacional de Semiótica
e presidente (2007) da Charles S. Peirce Society, nos Estados Unidos. Recebeu os prêmios
Jabuti (2002, 2009, 2011 e 2014), Sérgio Motta (2005) e Luiz Beltrão (2010). Organizou
13 livros e, de sua autoria, publicou 41 livros e cerca de 300 artigos em livros e revistas
especializadas no Brasil e no exterior.
Referências bibliográficas
DONALD, Merlin. Origins of the modern mind. Three stages in the evolution of culture
and cognition. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1991.
MORIN, Edgar. O enigma do homem: para uma nova antropologia. Rio de Janeiro:
Zahar, 1975.
PROGRAMAS DE COMPUTADOR
E IMPREVISIBILIDADE
Marcos Cuzziol
Apesar de não passarem de conjuntos predeterminados de instruções que, por mais com-
plexos que sejam, executam unicamente aquilo que lhes foi instruído por programadores hu-
manos, programas não são necessariamente previsíveis nem incapazes de gerar resultados
surpreendentes. Este artigo aborda a imprevisibilidade e a surpresa que se originam dessas
sequências de instruções.
D
ções executadas por esse computador era
e um lado, Deep Blue, supercom- simples: avaliar o maior número possível
putador criado pela IBM nos anos de jogadas com base nos dados disponíveis
1990, com um programa desen- e escolher a que tivesse maior p robabilidade
volvido especificamente para jogar xadrez. de sucesso. Mas, quando instruções simples
De outro, Garry Kasparov, então campeão como essas são repetidas muitas vezes por
mundial absoluto de xadrez. Entre 1996 e segundo, algo interessante acontece: o pro-
1997, Deep Blue enfrentou Kasparov em 12 grama passa a exibir capacidades estraté-
partidas de xadrez jogadas segundo regras gicas. Não se tratava apenas de avaliar o
internacionais. Apesar da polêmica levan- próximo lance; Deep Blue podia avaliar
tada por Kasparov sobre o resultado final longas sequências de jogadas e escolher a
das partidas de 1997, o fato é que Deep Blue melhor delas. Esse volume de processamen-
perdeu a sequência de seis partidas jogadas to foi fundamental para que o programa pu-
em 1996 (uma vitória, dois empates e três desse vencer o campeão humano de xadrez.
derrotas), mas venceu a revanche de 1997 De fato, o sucesso de Deep Blue deveu-se
(duas vitórias, três empates e uma derrota). à estratégia de “força bruta”, com seu progra-
Para a época, Deep Blue era um compu- ma tentando avaliar todas as jogadas possí-
tador avançadíssimo, com 256 processado- veis entre os dados disponíveis para só então
res especializados, capazes de analisar mais decidir qual movimento fazer. Mas da mera
de 100 milhões de posições por segundo. repetição de instruções em altíssima velo-
Além disso, possuía armazenadas em sua cidade emergiu algo novo, pois o programa
memória milhares de partidas de mestres foi capaz de fazer o que seus criadores jamais
enxadristas e as usava para computar as conseguiriam: vencer o campeão mundial de
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Marcos Cuzziol 25
xadrez. Se o programa fosse previsível, como não têm nenhum raciocínio aparente para
leva a crer o fato de ter sido escrito como se- sustentá-las, e os programas não conse-
quência fixa de instruções, Kasparov dificil- guem explicar as jogadas além de observar
mente perderia uma única partida. que as melhores produzem um xeque-mate
Mas a previsibilidade tem limites, pelo em 42 lances, enquanto as alternativas le-
menos para os seres humanos. Podemos vam mais tempo. (CAMPBELL, 2010, p. 64)
entender perfeitamente como funciona um
neurônio, por exemplo, e até prever com pre- Mas a repetição de instruções progra-
cisão o que a célula fará em decorrência dos madas não está limitada à estratégia da força
sinais que recebe de outras. Mas como prever bruta. Um programa pode também ser instruí-
o resultado do conjunto interconectado dos do a encontrar soluções de forma evolutiva.
100 bilhões de neurônios que formam um cé-
rebro humano? De modo similar, como prever Adaptação evolutiva
um programa absolutamente determinista, Difundidos pela pesquisa do cientista
mas capaz de analisar mais de 100 milhões americano John Holland nas décadas de
de posições de peças de xadrez por segundo 1960 e 1970, os algoritmos genéticos são
e que tenha os dados de milhares de parti- especialmente aptos a esse tipo de solução.
das armazenados em sua memória? Murray A pesquisa de Holland tinha dois objetivos
Campbell, um dos principais programadores principais: contribuir para a compreensão
de Deep Blue, ilustra o estranho efeito causa- dos processos de adaptação natural e proje-
do por esse estilo força bruta de programação: tar sistemas artificiais que apresentassem
propriedades similares a sistemas naturais.
A capacidade da máquina de ignorar No lugar de planejarmos e escrevermos
ideias humanas preconcebidas permite um programa, imagine que simplesmente
que ela encontre lacunas no conhecimen- sorteássemos instruções ao acaso para for-
to humano que muitas vezes são difíceis de má-lo. Cada número sorteado definiria uma
entender sem estudo e esforço. Há situa- instrução específica (o que é muito conve-
ções específicas no jogo de xadrez, consi- niente, pois as instruções de um programa
deradas uma parte dos finais de jogo, em não passam de valores numéricos interpre-
que é possível para os programas jogar com tados por um processador). Definimos dessa
perfeição. A experiência de jogar contra ou maneira um “genoma” muito simples para o
observar esses programas de jogo perfeito programa: uma sequência de variáveis que,
é quase fantasmagórica: as jogadas ótimas ao assumir valores específicos (por exemplo,
26 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
mais alguns anos para alcançá-lo – e o gráfico tem potencial matemático para avaliar 10500
considera o poder de processamento por mil possibilidades diferentes simultaneamente.
dólares. Supercomputadores atuais já bei- Falamos do número 1 seguido de 500 zeros
ram a marca de 1016 instruções por segundo. numa única instrução. É virtualmente im-
Simular integralmente um cérebro humano, possível imaginar um número tão grande.
pelo menos em termos de poder de proces- Ele não é sequer comparável ao número
samento, talvez já seja possível. estimado de átomos em todo o universo
Mesmo no caso de programas que se conhecido, que é de “apenas” 1 seguido de
utilizem unicamente de “força bruta”, com 80 zeros. Para executar tarefa semelhante
as velocidades de execução projetadas, po- à de uma instrução do algoritmo de Shor, o
demos esperar feitos notáveis já nos próxi- supercomputador mais rápido de 2015 leva-
mos anos. O que dizer então de programas ria muito mais tempo que os 13,7 bilhões de
que evoluam e aprendam? Ainda que tais anos da idade estimada do universo.
programas jamais atinjam uma verdadeira Protótipos de computadores quânticos
inteligência ou consciência, algo que pode já existem. Mesmo que ainda com um núme-
ser questionado, não deve existir dúvida de ro de qubits reduzido (entre 4 e 7, portanto
que eles venham a ter impacto significativo muito longe do potencial previsto matema-
sobre nossa sociedade e nossa cultura, mui- ticamente), esses protótipos demonstraram
to mais do que o demonstrado até aqui por que o algoritmo de Shor funciona e que a ava-
seus antecessores. É importante notar que as liação simultânea de possibilidades é real. O
possibilidades aqui descritas se desenvolvem que será então de programas que hoje pre-
sob a ótica “bem-comportada” da chamada cisam avaliar diversas soluções diferentes
computação clássica, de programas que são de forma sequencial? Como um programa
executados linearmente, com uma instru- quântico avaliará diferentes posições de pe-
ção após a outra. Mas há algo surpreenden- ças num tabuleiro de xadrez? Ou soluções de
temente mais poderoso em plena gestação: uma população num algoritmo genético? Ou,
a computação quântica. ainda, estados diferentes de neurônios numa
Um computador quântico trabalha rede neural artificial?
com qubits, que podem assumir diversas Independentemente das eventuais res-
superposições dos valores zero e 1 (em opo- postas a essas perguntas, é sensato ter em
sição ao zero ou 1 dos bits clássicos). Devido mente uma possibilidade intrigante: a de
à característica do paralelismo quântico, termos de nos relacionar – de competir até
um programa escrito para esse novo tipo – com entidades artificiais muito diferentes
de computador pode avaliar um número de nós mesmos. Com programas de compu-
inimaginável de possibilidades diferentes tador. Entidades que, pelo menos em alguns
numa única instrução. O adjetivo “inimagi- campos, já são mais competentes que nós. E
nável” não é um exagero: o algoritmo quânti- que evoluem em velocidade incomparável.
co proposto por Peter Shor, em 1994, para a Um cenário como esse já pode estar
fatoração de números inteiros, por exemplo, acontecendo.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Marcos Cuzziol 31
Marcos Cuzziol
É engenheiro mecânico pelo Instituto de Ensino de Engenharia Paulista (IEEP), com
mestrado e doutorado em artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo (ECA/USP). É desenvolvedor de games e sócio-fundador da Perceptum
Software Ltda., além de gerente do Núcleo de Inovação/Observatório Itaú Cultural. Atua
principalmente nos seguintes temas: games, realidade virtual, comportamento artificial
e arte e tecnologia.
Referências bibliográficas
BROWN, Julian. The quest for the quantum computer. New York: Touchstone, 2001. 400 p.
HOLLAND, J. H. Adaptation in natural and artificial system. Ann Arbor: The University
of Michigan Press, 1975. 228 p.
JOHNSON, Steven. Emergence: the connected lives of ants, brains, cities, and software.
New York: Scribner, 2001. 288 p.
KURZWEIL, Ray. The singularity is near. New York: Penguin Books, 2006. 672 p.
MCCORMACK, Jon. Arte evolucionista: pirâmides cósmicas de baixo para cima. In:
ITAULAB (Org.). Emoção Art.ficial 5.0: autonomia cibernética. São Paulo: Itaú
Cultural, 2010. p. 47-59.
SIMS, Karl. Evolved virtual creatures. In: ITAULAB (Org.). Emoção Art.ficial 5.0:
autonomia cibernética. São Paulo: Itaú Cultural, 2010. p. 71-97.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES 33
2. SISTEMAS DE
PRODUÇÃO EM REDE
Uso as redes complexas como meio criativo e crítico no meu trabalho há muitos anos.
Começo este artigo explicando por que a rede lógica hoje é significativa em relação ao que é
chamado de big data; em seguida, examino estratégias criativas por meio de meus trabalhos
recentes MyPocket (2007), Artist Collector Network (2011-) e Monovacation (2013); por fim,
percorro a Graph Commons, plataforma colaborativa de mapeamento em rede.
Para entender as redes complexas sistemas que podem diferir em sua nature-
A
za, em sua aparência ou em seu escopo. Por
s redes complexas são uma área de exemplo: três sistemas bem diferentes – al-
estudo dos sistemas complexos, guns atores que atuaram nos mesmos filmes,
geralmente descritas como com- organizações conectadas por meio de parce-
posições de muitas partes autônomas inte- ria e dispositivos que enviam mensagens uns
ragindo umas com as outras. Sinalização no aos outros – poderiam, em tese, ter estrutu-
nosso sistema neural, transmissão de dados ras de rede similares. A natureza dos nós e
entre os dispositivos de sistemas de teleco- das conexões difere muitíssimo, ao passo que
municação, atividades comerciais em merca- cada rede pode ter a mesma representação de
dos, formações sociais em comunidades são rede. Podemos usar esse método simples de
alguns exemplos genéricos dessas interações mapeamento de rede para começar a estudar
de massa. Para entender um sistema comple- toda uma série de sistemas complexos.
xo, primeiro precisamos de um mapa de seu
diagrama de relações, que é composto de nós Por que a lógica de rede hoje
e conexões, ou pontos e linhas. é significativa?
O diagrama de rede oferece uma lin- Vamos ver por que as redes hoje têm
guagem comum que é tanto visual como importância, embora tenham existido em
matemática. A partir de um mapa de rede, todas as sociedades da história. Sabe-se
podemos inferir informações qualitativas que, 3 mil anos atrás, as colônias de fení-
lendo seus atores e suas relações, bem como cios e gregos criaram suas rotas comerciais
fazer análises quantitativas calculando sua e construíram redes de portos no Mediter-
estrutura de conexão. Na verdade, podemos râneo1. Hoje, contudo, na mesma geografia,
usar essa linguagem comum para estudar cabos submarinos conduzem mensagens e
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Burak Arikan 35
possibilitam um sistema global de comuni- é um bem global; outras vezes somos pessi-
cação2. O que temos atualmente não são ape- mistas, sabendo que estamos sob vigilância
nas redes analógicas ou eventos cotidianos, contínua. Neste mundo contraditório, que ao
mas redes digitalizadas, assim como muitos mesmo tempo é plano, caótico, livre e confina-
aspectos da vida são digitalizados. do, mais uma vez se coloca a pergunta: onde
Hoje as redes são importantes porque os está e por onde circula o poder?.
sistemas de comunicação eletrônicos basea- Uma das respostas à questão do poder
dos em software tornaram as redes mensurá- nas redes reside na prática da mensuração.
veis. Só em nosso tempo as redes são capazes Mais particularmente, na “concordância vo-
de atingir uma escala global e infiltrar-se luntária” em ser o sujeito da mensuração
em todos os aspectos de nossa vida. Com as em vez de o observador que mede. Se você
atuais tecnologias avançadas de informação, fizer uma pesquisa em um campus univer-
as métricas do efeito de rede tornaram-se sitário pedindo aos estudantes que listem
rastreáveis e mensuráveis inclusive em nossa seus melhores amigos e depois r eunir essas
vida diária, estruturando, ao mesmo tempo, listas e cruzar os nomes, poderá simples-
o mundo social como tal. mente construir um mapa de uma rede so-
Na verdade, todos nós experimentamos cial no campus. Isso não é novidade depois
o efeito de rede – do e-mail ao e-commerce, do Facebook e tudo mais. Contudo, menos
das redes sociais ao banco pela internet, das conhecido é o fato de que, uma vez tendo o
telecomunicações ao transporte. Todos nós mapa de uma rede social, você pode come-
reconhecemos o fato de que o mundo está çar a explorar atores centrais, atores perifé-
mais complexo do que nunca. Parece-nos ricos, conexões indiretas e grupos orgânicos
tanto plano – podemos alcançar qualquer – um tecido social que de outra maneira lhe
pessoa em qualquer momento – quanto caó- seria invisível. Além disso, podem-se fazer
tico – nossa caixa de entrada de e-mails é cálculos baseados no diagrama da rede e
inundada por informações vindas de todas predizer futuras conexões possíveis entre
as direções. Desde sua infância, a internet os incluídos no mapa.
mostrou sua natureza contraditória ao Mas veja: o mapa da rede social do cam-
evoluir de redes para redes. Dependendo pus só poderia ser criado se os estudantes
de como a usa, você pode ser extremamen- concordassem em declarar suas relações,
te livre e anônimo ou controlar e vigiar as e de forma exata. Se algum estudante se re-
populações. Às vezes somos oportunistas cusasse a listar seus amigos ou se levasse a
em relação à internet, apregoando que ela pesquisa na brincadeira e declarasse sem
36 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
exatidão, ele bloquearia o que o mapa pode Moreno usa esse método para observar e
capturar e afetaria sua estrutura. É claro medir a atividade em escolas; demonstra
que, no mundo real, o controle “protocoló- que as crianças do jardim de infância for-
gico”, como diz Alexander Galloway (2004), mam grupos aleatórios, ao passo que as da
gera consentimento para seguir certas re- 3a série se reúnem entre meninos e meninas.
gras convencionadas, ou protocolos, que Bem, as próprias crianças, seus professores
regem o conjunto de padrões possíveis de e seus pais podem estar conscientes dessa
comportamento em um sistema heterogê- estrutura social; depois de mapeada, con-
neo. Assim, por exemplo, todos desejamos tudo, a informação passa a estar disponível
clicar o botão “Adicionar aos amigos”, o que e a ser útil para qualquer terceiro. Moreno
resulta na geração de um mapa de rede so- inventou na década de 1930 essas técnicas
cial. Você pode fazer download de toda a sua de mapeamento de relações, cujas versões
lista de contatos, mas não das informações digitalizadas e mais avançadas hoje estão
sobre as relações entre eles, que são de pro- nas mãos de corporações e agências go-
priedade do Facebook Inc. e seus parceiros. vernamentais. Assim, quando um setor de
Hoje sabemos que os dados de forma co- nossa vida é sensoriado e capturado como
nectada, como em gráficos, são informações dado, ele é ligado a outras pessoas, aconteci-
valiosíssimas. É por isso que toda atividade mentos e coisas e passa a fazer parte de um
humana está sendo continuamente captu- grande gráfico proprietário, “comoditizado”
rada como dado e mapeada sob a forma de como todo o resto, aberto a intermináveis
gráficos proprietários, também chamados inferências dos poderosos.
de gráficos sociais, gráficos de conhecimento A questão do direito à privacidade dos
ou gráficos de interesse, que contêm relações dados pessoais é amplamente discutida, mas
capturadas em escala e visíveis apenas para são igualmente importantes tópicos como a
quem as captura. geração de dados sob o ponto de vista do tra-
As técnicas usadas para capturar e balho, a economia política da coleta massi-
medir as relações como dados já foram va de dados e o uso dessas técnicas de forma
bem explicadas no livro publicado em 1934 crítica e criativa não só pelos que estão no
por Jacob Levy Moreno, fundador da so- poder, mas também pelas pessoas comuns.
ciometria, da psicoterapia de grupo e do Uma força motora clara para os negócios mo-
sociodrama3. O livro explica o uso de um vidos a dados é o fato de que, se você capturar
gráfico X-Y para capturar uma atividade uma atividade, medi-la e mapeá-la, poderá
social, colocando as pessoas como filei- formulá-la matematicamente e a modelar; se
ras e o tempo como colunas, fazendo uma puder modelá-la, poderá predizer seu futuro;
marca cada vez que uma pessoa fala com se puder predizer seu futuro, poderá contro-
outra. Se duas ou mais pessoas falarem em lá-lo. Quando a captura e o mapeamento de
determinada coluna de tempo, emerge um dados são aplicados apenas por um pequeno
padrão vertical. Ao cruzar fileiras e colunas, número de instituições às demais pessoas,
gera-se um mapa relacional. Por exemplo: começa a aumentar a desigualdade de poder.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Burak Arikan 37
As redes complexas como meio York, mas a obra foi considerada “inadequa-
criativo e crítico da” pelos gestores do museu e a exposição
Agora, vamos examinar exemplos do foi cancelada porque os gráficos continham
meu trabalho sobre o uso criativo e crítico o nome de um truste do Guggenheim4.
das redes complexas. A discussão será feita Esses artistas usaram diagramas e da-
de acordo com três estratégias: dos de maneira crítica e criativa em seu tem-
po. Minha obra é impelida por sua influência,
1. predição – gerada pela análise de da- mas utiliza técnicas contemporâneas de tra-
dos conectados, como nos trabalhos balho com software e dados e é focada nas
MyPocket e Artist Collector Network; condições sociais e políticas do nosso tempo.
não. Cada vez que eu usava meu cartão, os as informações únicas sobre eles, data com
dados da transação iam para a minha conta detalhes de segundos e identidade única, os
bancária e eram automaticamente incluídos recibos se tornaram o que chamo de objetos
na base de dados do MyPocket, então anali- preditos. A existência dessas evidências
sada e transformada em predições. Essa físicas de um evento único era predita por
pode ser considerada uma primeira crítica meio de análise e vivência deliberadas. Eles
ao fenômeno do eu quantificado. Vejamos são readymades, como os objetos ordinários
seu material. O trabalho é um sistema e tem apropriados por artistas contemporâneos.
três instâncias que manifestam as ideias: o No entanto, esses readymades são encon-
gráfico de transações, o feed de transações e trados no futuro, e não no passado, dife-
os objetos preditos, que são exibidos juntos. rentemente dos readymades que Duchamp
O gráfico de transações é o mecanismo inventou no início do século XX.
central de predição do modelo em rede, no
qual os nós são os eventos de transações in- Artist Collector Network (2011)
dividuais e as conexões são similaridades, Outro exemplo de estratégia de predi-
criadas se dois gastos pertencerem à mesma ção no uso de redes complexas é o projeto
categoria ou acontecerem no mesmo dia da Artist Collector Network [Rede Colecionador-
semana. As cores das bordas mudam com Artista], que iniciei em 20116.
base na intensidade da força: são mais cla- Em 2010, morando em Istambul, na
ras quando maiores, mais escuras quando Turquia, me envolvi com mais intensidade
mais fracas. Com o uso desse modelo de rede no ecossistema artístico, percebendo que o
e com a ajuda das regras personalizadas, o mercado de arte em expansão em Istambul
programa foi capaz de fazer predições corre- tem bastante influência sobre a produção
tas a respeito de meus gastos diários. artística. Senti a necessidade de examinar a
O feed de transações informa se mi- forma desse mercado, mais particularmente a
nhas compras haviam sido postadas publi- influência dos colecionadores no sistema. As-
camente na internet. Qualquer um podia sim, comecei a pesquisa que chamo de Artist
ver o que eu tinha comprado no passado e Collector Network, um mapa exploratório de
o que compraria no futuro. Aqui, os verme- colecionadores e artistas baseado na relação
lhos i ndicam predições atuais, os verdes que implica estar em uma coleção de arte.
compras corretamente preditas e os bran- É claro que o artista pode estar em
cos compras não preditas. Como resultado, várias coleções e que o colecionador pode
os dados relativos aos meus gastos deixaram ter muitos artistas em sua coleção. Alguns
de ser exclusividade de bancos e empre- colecionadores reúnem, em profundidade,
sas de marketing. muitas peças de poucos artistas, ao passo que
Por fim, os recibos coletados eram or- outros fazem coleções laterais, com poucas
denados em uma caixa; cada vez que eram peças de cada artista. Essa intensidade é re-
corretamente preditos, eu marcava sua pro- presentada como o peso das bordas, que guia
babilidade com um carimbo verde. Junto com a organização do layout desse gráfico.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Burak Arikan 39
Tailândia às da Turquia, aqui vem uma fan- Estados Unidos], entre outras situações,
tasia extraída de “férias”…7 também atraíram nossa atenção para uma
Esses comerciais oficiais comparti- ferramenta inacessível, porém bastante
lham temas mais ou menos comuns. Por mágica, usada para saber e predizer o que as
exemplo, nos Emirados Árabes Unidos e no pessoas querem. Isso foi possível ao entender
Egito as pessoas cavalgam como esporte; a estrutura inter-relacionada ou conectável
na Turquia, o cavalo é um objeto mitológico; da informação gerada por muitos, mas, como
em Portugal e na Espanha, pode-se treinar foi dito, aberta só a poucas instituições.
cavalos... Os países do Sudeste Asiático se Em outras palavras, a lógica de rede foi
anunciam como lugares místicos; a região do mistificada aos olhos do público. Apenas os
Mediterrâneo se concentra em gastronomia, especialistas em determinados campos têm
vinho e vida noturna; a Europa Meridional agregado grandes quantidades de dados e
quer ser a vizinha onde você descansa, e as- usado ferramentas científicas para visuali-
sim por diante. Cada sequência recortada é zá-los e analisá-los em base relacional. Nem
codificada com tags descritivas, reflexivas os dados relacionais nem as ferramentas de
e conceituais. Quando se unem as tags, as visualização e análise são acessíveis às pes-
tags compartilhadas nos clipes fazem um soas comuns. Contudo, é um mito dizer que
mapa de similaridade. Ao rodar o diagrama as pessoas comuns não têm acesso a dados.
de rede como simulação por software, foram Nós somos, no entanto, os dados para gover-
encontradas suas posições no layout da rede. nos e corporações, que fazem “sensoriamen-
Depois, começando de uma periferia, o nó to” contínuo de nossas atividades.
“barco a remo” na parte inferior, roda-se Na verdade, a interconexão de pontos
um algoritmo transversal, pulando de um nó de dados ao nosso redor e o mapeamento co-
para o mais próximo, seguindo o caminho letivo de relações que podemos observar de
dos nós mais centrais. O que vemos como re- fato tornariam estruturas complexas visíveis
sultado desse gráfico transversal é um novo e, assim sendo, discutíveis. Juntos podemos
tipo de montagem cinematográfica, que se mapear relações e desdobrar as questões que
move por meio de morfos de conceitos, e não têm impacto sobre nós e sobre nossas comu-
de morfos de imagens. nidades. Todos nós deveríamos ser capazes
de mapear conscientemente as redes que nos
Graph Commons e uso coletivo de interessam e nossas relações, entender sua
redes complexas complexidade, apropriar-nos de nossos big
Agora, como estratégia final, vamos data pessoais ou coletivos, controlar seu uso
examinar o mapeamento coletivo. A tática e agir sobre eles para compreender e adminis-
do Estado, em parceria com certas corpora- trar futuros possíveis (CASTELLS, 2004).
ções, para monitorar os próprios cidadãos Para usar a inteligência de rede e ir além
por meio do que foi chamado de big data e das metas que ela pretende alcançar, preci-
os vazamentos da National Security Agency samos de ferramentas acessíveis e fáceis de
(NSA) [Agência de Segurança Nacional, nos utilizar, com muitos exemplos, e de meios
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Burak Arikan 41
para colaborar em mapas. Por meio de uma Commons International 4.0. Se nossas re-
espécie de alfabetização em redes, os não es- lações e nossa conectividade criarem uma
pecialistas poderiam penetrar na mais fina espécie de bem imaterial, um gráfico forma-
complexidade e desfrutar de seus méritos. A do por essas conexões constituirá uma pro-
ideia da plataforma Graph Commons nasceu priedade imaterial, que pode ser criada por
dessas intenções em 2011. meio do fazer coletivo, da propriedade cole-
Graph Commons é uma plataforma co- tiva e do controle coletivo. Assim sendo, os
laborativa de mapeamento de rede baseada gráficos tornam-se bens comuns como parte
na web e que também atua como base de do conhecimento em comum da era da rede.
conhecimento diagramático de relações8. Ao se envolver no processo de mapea-
Na Graph Commons, você entende redes mento de rede e visualizar muitos exemplos
complexas ao transformar os seus dados em de gráficos, você começa a se conectar com
mapas de redes interativas, descobrir novas um pensamento racional contra o que era mí-
relações e compreender questões complexas tico, pode entender quanto valor gera quan-
a partir de uma interface simples. Pode-se do o seu gráfico é capturado e ver o quanto é
compilar coletivamente dados sobre os tó- visto sobre você. Não se assume mais uma
picos que o interessam, definir e categorizar posição submissa – você não é mais o objeto:
relações e mapear as questões que têm im- agora é o próprio sujeito da ação.
pacto sobre você e sua comunidade e, assim,
experimentar coletivamente o ato de mapear
como prática em andamento. Faça um power
search em diversos gráficos, convide pessoas
para colaborar no seu trabalho e peça para
contribuir no delas, envolva-se em profun-
da colaboração.
Ao usar a interface baseada na web,
qualquer indivíduo pode começar a mapear
redes, a aprender o vocabulário de análise
de rede e a utilizar a inteligência de rede.
Os membros da Graph Commons têm usa-
do a plataforma para investigar questões de
áreas como jornalismo, pesquisa de dados,
ativismo cívico, estratégias, análise organi-
zacional, design de sistemas, exploração de
arquivos e curadoria de arte.
Todos os pontos de dados – nós e bor-
das – da Graph Commons são de propriedade
dos membros que os criaram e licenciados
para seus autores com a licença Creative
42 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Burak Arikan
É um artista que divide seu tempo entre Nova York (Estados Unidos) e Istambul
(Turquia) e trabalha com redes complexas. Usa as questões sociais, econômicas e políticas
óbvias, como o input, e passa por um maquinário abstrato que gera mapas de rede e
interfaces algorítmicas, resultando em performances e procriando predições para tornar
visíveis – e, assim, discutíveis – relações inerentes de poder. Seus softwares, suas gravuras,
instalações e performances já foram apresentados em várias exposições internacionais.
É fundador da Graph Commons, plataforma colaborativa de mapeamento de rede. Já
expôs em instituições como o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) e as bie-
nais de arquitetura de Veneza (Itália), São Paulo, Istambul, Berlim (Alemanha), Sharjah
(Emirados Árabes Unidos) e Marrakesh (Marrocos), além de Ashkal Alwan (Líbano), Ars
Electronica (Áustria), Sonar (Espanha), Demf, Museu de Arte de Neuberger (EUA), Ins-
tituto KW de Arte Contemporânea (Alemanha), Borusan Contemporary, Depo, Arter e
Salt (Turquia). Também expôs em locais independentes, como Art Interactive (EUA),
Künstlerhaus Bethanien (Alemanha), Hafriyat (Turquia) e Turbulence (on-line). Ministrou
e realizou workshops em instituições como o Instituto de Tecnologia de Massachusetts
(MIT, na sigla em inglês), a Escola de Design de Rhode Island, o Programa de Telecomu-
nicações Interativas da Universidade de Nova York, The New School (todos nos EUA), a
Universidade Técnica de Istambul, a Universidade Bogazici, a Universidade Sabanci e a
Universidade Istambul Bilgi (as quatro na Turquia). Concluiu mestrado no Laboratório de
Mídia do MIT, no Workshop de Linguagem Física (PLW, na sigla em inglês), sob a direção de
John Maeda. No MIT, também realizou pesquisas explorando sistemas em rede que tratam
da transição da conectividade para a coletividade no contexto da expressão criativa. É
mestre em comunicação visual pela Universidade Istambul Bilgi (2004) e bacharel em
engenharia civil na Universidade Técnica Yildiz (2001), também na Turquia.
Referências bibliográficas
CASTELLS, Manuel. Posfácio: why networks matter. In: MCCARTHY, H.; MILLER, P.;
SKIDMORE, P. (Ed.). Network logic. London: Demos, 2004. p. 221-225.
Notas
3 MORENO, Jacob Levy. Who shall survive? 2nd ed. 1953. Disponível em:
<http://www.asgpp.org/docs/wss/wss.html>. Acesso em: 31 ago. 2015.
GAMES:
uma linguagem em descoberta
Arthur Protasio
J
ogo eletrônico. Experiência intera- três dias após seu lançamento –, também foi
tiva digital. Ou simplesmente game. intensamente acusada de estimular os joga-
Não importa a denominação usada; dores a cometer crimes na vida real. Contu-
falar sobre videogames é sempre um desa- do, pouco se conhece ou se discute a respeito
fio. Felizmente, significa que a pauta deverá dos desdobramentos culturais e narrativos
abordar pelo menos um destes três itens: tec- dos games e, consequentemente, dessa série
nologia, cultura, engajamento. A questão, no que tem como base a sátira da história cultu-
entanto, é que, apesar da presença desses três ral da América do Norte.
elementos, a mídia do jogo ainda enfrenta obs- Isso nos leva à curiosa constatação
táculos para conseguir ser aceita como uma de que o contexto global em que os jogos
das uniões dessa trindade. eletrônicos se encontram é peculiar. Em-
A começar pelo fato de que, se reparar- bora sua origem remeta ao fim da déca-
mos na repercussão dos jogos eletrônicos na da de 1950, e desde a década de 1970 eles
atualidade, aparentemente nenhuma outra existam como produtos comercializados,
mídia é tão comentada quando se fala em esses jogos ainda representam uma mídia
sucesso comercial e deturpação de valores. relativamente jovem. Afinal, jogos digitais
Um dos jogos que melhor exemplificam essa são produtos tecnológicos que se valem de
polêmica é a série Grand Theft Auto (GTA), uma plataforma para transformar coman-
criada em 1997 e com o lançamento mais re- dos de programação em uma experiência
cente em 2013. Embora seja conhecida por interativa. No entanto, qualquer que seja a
ter quebrado diversos recordes da indústria atividade criada em um game, ela será um
do entretenimento, conforme os registros reflexo do intelecto de seu criador e deverá
mundiais do Guinness World Records – afi- prender a atenção do público se quiser ser
nal, arrecadou 1 bilhão de dólares em apenas bem-sucedida.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Arthur Protasio 45
Foi assim que os jogos eletrônicos Provando que os games são uma mídia em
nasceram como experimento em um am- ascensão, o Guinness registra os seguintes
biente universitário. Em 1958, William recordes mundiais: Grand Theft Auto IV
Higinbotham criou, com o intuito de entre- (Rockstar Games), em 2008; Call of Duty
ter os visitantes do Laboratório Nacional Modern Warfare 2 (Activision), em 2009;
Brookhaven (Nova York, Estados Unidos), o Call of Duty: Black Ops (Activision), em 2010
jogo Tennis for Two, utilizando um oscilos- (CTS GAME STUDIES, s.d.); Call of Duty
cópio e um computador analógico. Embora Modern Warfare 3 (Activision), em 2011
não seja um ponto pacífico de discussão, (FIGUEIREDO, 2011); Call of Duty: Black
Kent (2001) afirma que diversos historia- Ops 2 (Activision), em 2012 (MONTEI-
dores identificam esse momento como a RO, 2013); e Grand Theft Auto V (Rockstar
criação do primeiro jogo eletrônico. Na se- Games), em 2013 (PITCHER, 2013).
quência, o primeiro game a ser considerado Ainda assim, se o jogo é visto apenas
comercialmente viável foi Computer Space, no âmbito comercial, seu potencial como
uma adaptação do jogo Spacewar! lançada obra cultural é desperdiçado, o que nos
em 1971, fixando os alicerces para o apare- leva ao questionamento sobre o que de-
cimento de uma nova indústria no setor do fine um game. Com base nos estudos de
entretenimento. Pac-Man, Pong e Asteroids Huizinga (2008), Parlett (1999), Caillois
são outros nomes que se tornaram popula- (1962 apud SALEN; ZIMMERMAN, 2003)
res nessa fase. e Juul e C rawford (2002 apud SALEN;
Desde então, o sucesso comercial dos ZIMMERMAN, 2003), Salen e Z immerman
jogos eletrônicos permitiu uma gradual acei- (2003) acreditam que um jogo pode ser mais
tação tanto no âmbito de políticas públicas bem definido considerando-se alguns ele-
quanto na forma como são percebidos pelos mentos norteadores. Ambos promoveram
meios acadêmicos e de comunicação. Mais uma definição a partir da síntese das carac-
de 40 anos depois, em 2015, esse mercado terísticas mais comuns identificadas em di-
continuamente fatura bilhões de dólares, versas definições de jogos (eletrônicos ou
superando, inclusive, os números da indús- não). Para eles, jogos são (1) uma atividade,
tria cinematográfica e conferindo destaque um processo ou um evento que (2) possuem
econômico ao segmento. Não coincidente- regras que limitam os jogadores; (3) pos-
mente, desde 2008 o recorde anual de maior suem objetivos; (4) estabelecem conflitos ou
lançamento da indústria do entretenimento competições; (5) envolvem tomada de deci-
tem sido conquistado por jogos eletrônicos. sões; (6) são artificiais e (7) e voluntários.
46 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Portanto, é impossível falar sobre jogos o pensamento crítico por parte do jogador e
digitais sem perceber que sua formação se caracterizar o jogo como uma mídia ideal para
inspirou em tantas outras formas de arte e discutir e explorar questões pessoais e sociais.
comunicação para se consolidar, bem como Reiterando esse entendimento, é pos-
é indiscutível reconhecer que em todas as sível observar uma relação entre os jogos e o
experiências criadas pelos jogos há discursos ato de contar histórias que acompanha essa
sendo proferidos e histórias sendo contadas. mídia desde sua origem. Como todo processo
Dessa maneira, cria-se uma conexão direta criativo que se fundamenta em alguma ins-
com os jogos e a narrativa. piração, é natural que os jogos eletrônicos
Enquanto uma história é compreendi- sempre tenham sido influenciados por ou-
da como uma sequência específica de even- tras linguagens, como a literatura, o cinema
tos com personagens, a narrativa, por sua e os role-playing games (RPGs). Exemplos
vez, se revela como o gênero, ou seja, a forma desse cenário e sua evolução são percebidos
pela qual essa sequência de eventos é narra- desde o surgimento dos jogos Colossal Cave
da de acordo com a perspectiva subjetiva do Adventure, lançado em 1976, e The Bard’s
narrador. Essa distinção nos permite perce- Tale, de 1985. Embora haja um espaço de
ber que cada linguagem, e especificamente nove anos entre a data de lançamento de um
cada jogo, adota uma forma particular de e a de outro, ambos os jogos fazem parte de
contar sua história. A seleção dos elementos um mesmo paradigma tecnológico, promo-
(que sempre ocorre no momento da estru- vendo uma relação textual com seu usuário
turação das regras) determina a quantidade de forma que toda a atuação do jogador seja
e a qualidade de eventos a ser narrados e, dependente de frequentes – e muitas vezes
portanto, afeta o todo. extensas – leituras.
Sob essa ótica, Frasca (1999) enxerga os Ainda que os jogos sejam distintos, pois
jogos como detentores de elementos narrati- o primeiro se assemelha a um livro-jogo, en-
vos e encoraja a experimentação. O pesqui- quanto The Bard’s Tale é parte integrante do
sador afirma que as regras do jogo devem ser gênero RPG e contém ilustrações, o funcio-
abertas o suficiente para que diferentes abor- namento e a representação do conteúdo são
dagens sejam permitidas ao jogador, diferen- muito parecidos: longas leituras descritivas
temente de uma narrativa tradicional, em que sobre ambientes ficcionais e ênfase na in-
a intriga é fechada e imutável. Assim, os jogos teração com um espaço imaginário criado
têm potencial para deixar que o jogador deter- por meio de textos, e não de imagens. A in-
mine a forma como quer participar da expe- fluência do texto e da literatura na produção
riência – e, apesar de ele não se tornar autor dessas obras digitais é evidente.
da estrutura, a liberdade oferecida lhe confere Nas décadas seguintes, em razão da
a autoria das ações realizadas. Para Frasca, a evolução técnica, os recursos gráficos pas-
narrativa complementa o jogo na medida em saram a ser mais abundantes. Muitos jogos
que, ao apresentar elementos críveis e identi- exploraram diferentes possibilidades vi-
ficáveis em suas histórias, permite estimular suais, tornando-se visível uma transição da
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Arthur Protasio 49
Arthur Protasio
É sócio-fundador e diretor criativo da Fableware, produtora especialista em criar
histórias para diferentes plataformas e projetos transmídia. É mestre em design, autor
dos livros Negra Cicatriz e Jogador de Mil Fases e roteirista da atração Xpirado, no Hot
Park (Rio Quente/GO), e dos jogos Sword Legacy: Omen, Cavaleiros do Zodíaco: Cards,
Ballistic e Spy of Us. É conhecido por ter criado o canal on-line de crítica de jogos Ludo-
Bardo e foi consultor da TV Globo na novela Geração Brasil, indicada ao Emmy Digital.
Referências bibliográficas
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
FIGUEIREDO, Arthur. Call of Duty: Modern Warfare 3 gerou US$ 1 bilhão mais rápido
que filme Avatar. TechTudo, 13 dez. 2011. Disponível em: <http://www.techtudo.
com.br/jogos/noticia/2011/12/call-of-duty-modern-warfare-3-gerou-us1-bilhao-
mais-rapido-que-filme-avatar.html>. Acesso em: 6 ago. 2015.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. Tradução João
Paulo Monteiro. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
KENT, Steven L. The ultimate history of video games: from Pong to Pokémon and
beyond – the story behind the craze that touched our lives and changed the
world. New York: Three Rivers Press, 2001.
KOSTER, Raph. A theory of fun for game design. Scottsdale: Paraglyph Press, 2005.
MONTEIRO, Rafael. GTA 5 entra para o Guinness após quebrar sete recordes mundiais.
Techtudo, 10 out. 2013. Disponível em: <http://www.techtudo.com.br/noticias/
noticia/2013/10/gta-5-entra-para-o-guinness-apos-quebrar-sete-recordes-
mundiais.html>. Acesso em: 6 ago. 2015.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Arthur Protasio 51
PARLETT, David. The Oxford history of board games. Oxford: Oxford University
Press, 1999.
PITCHER, Jenna. Grand Theft Auto 5 smashes 7 Guinness World Records. Polygon, 9
out. 2013. Disponível em: <http://www.polygon.com/2013/10/9/4819272/grand-
theft-auto-5-smashes-7-guinness-world-records>. Acesso em: 6 ago. 2015.
CROWDFUNDING BASEADO
EM BLOCKCHAIN:
qual seu impacto sobre a produção artística e o consumo
de arte?
Primavera De Filippi
D
esde o início da civilização, a produ- do manuscrito pelos escribas – que, à época,
ção artística foi financiada e, por- eram quase sempre contratados pela Igreja
tanto, também gerida por alguns ou por órgãos do governo. Da mesma forma,
intermediários: de universidades públicas no âmbito das belas-artes, a produção ar-
e instituições religiosas na Idade Média aos tística era majoritariamente constituída de
patronos públicos e corporativos dos pri- peças únicas, tais como obras de escultura
meiros anos do Renascimento (KEMPERS, e pintura, destinadas, sobretudo, a decorar
1994); das primeiras guildas de editores no edifícios públicos, igrejas e residências
Reino Unido a seus modernos representan- particulares, sem nenhuma expectativa de
tes, como grandes editoras, gravadoras e pro- retorno financeiro.
dutoras cinematográficas, que se tornaram Foi só com o advento da imprensa – e
poderosos guardiões das indústrias criativas de outros dispositivos mecânicos para a
(LESSIG, 2004a). produção em massa de informação – que
É claro que as mudanças na produção a produção artística adquiriu valor mais
e no financiamento das obras criativas es- comercial e o resultado dessas práticas
tão intrinsecamente ligadas ao desenvolvi- criativas acabou sendo considerado ver-
mento tecnológico (ROSE, 1995). Antes do dadeiro objeto de comércio (BENJAMIN,
advento da imprensa, a produção (e a repro- 2008). Essa mudança na percepção se re-
dução) de obras literárias era um esforço ár- fletiu imediatamente em modificações na
duo que exigia muitas horas de preparação lei (GRACZ; DE FILIPPI, 2014). Embora
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Primavera De Filippi 53
digitalizado, como também permitiram que que recordam os primeiros tempos da in-
qualquer pessoa divulgue esse conteúdo em ternet (DE FILIPPI; MAURO, 2014). Como
escala global – em tempo praticamente zero livro-razão público descentralizado colo-
e a custos muito baixos –, por meio da inter- cado sobre uma rede de pares, o blockchain
net. Portanto, com o advento das modernas pode ser usado para armazenar informa-
tecnologias de telecomunicação, o processo ções sem recorrer a nenhum servidor ou
de desintermediação começou tanto na pro- intermediário centralizado, baseando-se
dução quanto na distribuição de conteúdo apenas na contribuição de cada partici-
(GELLMAN, 1996). pante da rede para desenvolver um banco
No entanto, mesmo que hoje seja mui- de dados totalmente descentralizado cuja
to mais fácil (e barato) para os indivíduos segurança e integridade são garantidas por
produzirem o próprio conteúdo e torná-lo algoritmos criptográficos.
disponível para o público pelos próprios Paradoxalmente, a confiança e a trans-
meios, as pessoas ainda recorrem a um pe- parência aumentam ao eliminar-se a ne-
queno número de intermediários (ou “in- cessidade de terceiros e de intermediários
fomediários”) para acessar a maior parte confiáveis. Modernos desenvolvimentos nas
do conteúdo on-line: de redes sociais, como tecnologias blockchain também implemen-
Google+, Facebook e Twitter, a lojas de mú- tam características adicionais que possibili-
sica on-line do estilo do iTunes, plataformas tam a execução de código computadorizado
de streaming, como Spotify, SoundCloud e sobre esse repositório de dados distribuído,
Pandora, no caso da música, e YouTube, assim permitindo o desenvolvimento das
Netflix e Hulu, para vídeos. Apesar das no- chamadas aplicações descentralizadas, que
vas oportunidades de desintermediação e não estão em determinado servidor, mas são
emancipação individual que a internet e as rodadas, de maneira descentralizada, por
tecnologias digitais oferecem, a maior parte cada participante da rede.
do conteúdo hoje produzido – tanto por ar- Portanto, assim como a internet incen-
tistas amadores quanto por profissionais – tiva o desenvolvimento de comunicações
é armazenada, gerenciada e comunicada entre pares – marcando uma virada que os
ao público por alguns poucos operadores afastava do modelo tradicional de radiodifu-
centralizados, que se apresentam como os são da mídia de massas (de um para muitos)
novos intermediários da sociedade da in- e os levava a canais de comunicação mais
formação (SCOTT, 2000). interativos e distribuídos (de muitos para
Foi só em 2009, com o advento do muitos) –, o blockchain permite o desenvol-
B itcoin e a subsequente emergência de vimento de uma série de transações (finan-
novas aplicações descentralizadas basea- ceiras e de outros tipos) entre pares que não
das na mesma tecnologia subjacente – o são reguladas nem regidas por nenhuma au-
blockchain –, que começou uma nova onda toridade centralizada e confiável, como um
de descentralização, revitalizando promes- banco central ou qualquer outro operador
sas de liberdade individual e emancipação centralizado (DE FILIPPI, 2014).
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Primavera De Filippi 55
De fato, uma das características mais nem cobre os custos da produção artística
importantes do blockchain é oferecer às (o Spotify, por exemplo, paga aos artistas
pessoas a possibilidade de fazer transa- uma média de 0,0007 dólares; e o YouTube,
ções diretas umas com as outras sem pas- 0,0018 dólares)1.
sar por intermediário algum. Isso significa Como reação ao sentimento generali-
que escritores e artistas podem não só se zado de exploração por grandes gravadoras
comunicar com as pessoas de maneira di- e operadores on-line, um número crescente
reta para criar uma relação de artistas tem experimenta-
mais forte com seu público, Uma das características do meios alternativos de dis-
mas também fazer transa- mais importantes do tribuir seu trabalho e financiar
blockchain é permitir
ções diretamente com elas, sua criação de forma mais in-
que as pessoas façam
sendo recompensados por dependente (LESSIG, 2004b;
transações diretas umas
seu trabalho com base em com as outras sem passar GEITH, 2008; ZIMMERMAN,
uma relação entre pares – e por intermediário algum. 2009). Em vez de se basearem
não por meio de um opera- na exclusividade que a lei de
dor intermediário encarregado de receber direitos autorais proporciona no intuito de ob-
o dinheiro e redistribuí-lo aos artistas per- ter remuneração com o mero consumo de seu
tinentes. Esses novos avanços tecnológi- trabalho, alguns artistas (inclusive bandas e
cos podem ter impacto considerável tanto músicos famosos, como Radiohead, Nine Inch
sobre a produção artística quanto sobre o Nails e David Bowie) experimentaram usar
consumo de arte. esquemas alternativos de licenciamento – tais
Hoje há dois modelos predominan- como o proposto pela Creative Commons2 –
tes para a distribuição de conteúdo digital destinados a promover e a facilitar a livre
on-line. Um é o de assinatura (como Spotify reprodução e difusão de trabalhos criativos
e Netflix), no qual o usuário paga ao ope- (FITZGERALD, 2004; ELKIN-KOREN,
rador da plataforma uma taxa fixa ou um 2006). Ao eliminar o intermediário, esses ar-
montante do tipo pay-per-view para poder tistas conseguiram criar uma relação muito
acessar obras criativas. O outro é o modelo mais direta e pessoal com seu público, que os
baseado em publicidade, no qual o conteúdo recompensa – por livre e espontânea vonta-
é grátis para o usuário, mas os anunciantes de – com doações.
pagam uma taxa ao operador da plataforma Hoje, contudo, a maior parte dessas doa-
cada vez que seu anúncio é divulgado nela. ções passa pela mediação de uma autoridade
Assim, os operadores da plataforma rece- central (por exemplo, o PayPal), que recebe
bem todo o dinheiro e depois o redistribuem uma comissão por cada transação (CAR-
(normalmente uma parte muito pequena) ROLL, 2006). Incentivados pelas baixas taxas
aos artistas pertinentes. Ambos os modelos cobradas por transação pelos sistemas des-
de negócios são altamente lucrativos para centralizados de pagamento, como Bitcoin e
os operadores das plataformas on-line, mas outras aplicações baseadas em blockchain, os
a remuneração dos artistas muitas vezes artistas agora podem ser pagos diretamente
56 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
por seu público, sem ter de recorrer aos ser- financiamento corporativo, proveniente de
viços de nenhuma instituição intermediária. grandes editoras, gravadoras e produtoras de
Novos modelos de negócios podem acabar cinema (COBB, 1996; WU, 2003; KLAMER;
surgindo com base na execução de um gran- MIGNOSA; PETROVA, 2010).
de número de micropagamentos efetuados Recentemente surgiu um novo meca-
por uma elevadíssima quantidade de pessoas nismo para a produção artística, denomi-
(SWAN, 2015)3. De fato, dado o baixo custo da nado crowdfunding (como as plataformas
transação nesses sistemas descentralizados, Kickstarter e Indiegogo) e que consiste em
as pessoas podem ter contato mais direto com reunir um grande número de contribuições
seus artistas favoritos enviando-lhes micro- financeiras de uma quantidade significativa
gorjetas ou microdoações. O que talvez seja de pessoas que muitas vezes não se conhecem
mais importante – já que as (BRABHAM, 2008). Os que
modernas tecnologias block- Crowdfunding consiste contribuem financeiramente
chain permitem a incorpora- em reunir um grande para um projeto – os apoiado-
número de contribuições
ção de fragmento de código res – costumam ser recom-
financeiras de uma
em qualquer transação (os pensados com um benefício
quantidade significativa
“contratos inteligentes”) – é de pessoas que muitas (perk), cujo valor depende do
a possibilidade de incorporar vezes não se conhecem. valor global de sua contribui-
termos e condições específicas ção (por exemplo, podem obter
diretamente na “instanciação” blockchain de acesso ao pré-lançamento da obra em condi-
um ativo digital (FAIRFIELD, 2015). Assim, ções preferenciais ou receber uma camiseta
os artistas podem disponibilizar seu trabalho ou outro tipo de merchandising).
publicamente com certas restrições, que só Apesar de darem a impressão de ser
serão removidas após o pagamento de uma mais descentralizadas (em comparação com
taxa – num esquema semelhante ao de sis- modelos de financiamento tradicionais),
temas de gerenciamento de direitos digitais, essas iniciativas, em sua maioria, são coor-
embora desenvolvido de forma totalmen- denadas e, portanto, reguladas por grandes
te descentralizada. intermediários, que atuam como terceiros
No entanto, todos esses mecanismos só confiáveis responsáveis por cobrar e redis-
são úteis para recuperar os custos de produ- tribuir o dinheiro. As tecnologias blockchain
ção depois de feito o trabalho. Alguns artis- eliminam a necessidade desses intermediá-
tas – especialmente os que se encontram rios, pois permitem a criação de plataformas
em situação econômica precária –, contudo, descentralizadas de crowdfunding que ope-
talvez só tenham condições de produzir um ram de maneira autônoma sobre uma rede de
trabalho se conseguirem uma fonte exter- pares. Embora a tecnologia ainda seja mui-
na de financiamento. Exceto por subsídios to experimental e não totalmente madura,
públicos e de patronos privados com base várias dessas plataformas já estão funcio-
em compromissos filantrópicos, a produção nando, como é o caso de Swarm, Koinify e
artística hoje depende essencialmente de Lighthouse, para citar apenas algumas.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Primavera De Filippi 57
Primavera De Filippi
É pesquisadora permanente do Centre d’Études et de Recherches de Science
Administrative/Centre National de la Recherche Scientifique (Cersa/CNRS), da Universi-
dade Paris II (França). É docente associada ao Berkman Center for Internet & Society, na
Harvard Law School (Estados Unidos), onde está pesquisando o conceito de governança
por projeto em suas relações com arquiteturas on-line distribuídas, tais como Bitcoin e
Ethereum. Obteve Ph.D. pelo European University Institute, de Florença (Itália). É membro
do Conselho da Agenda Global sobre o Futuro dos Serviços de Software & TI do Fórum
Econômico Mundial, além de fundadora da coalizão dinâmica do Fórum de Governança
da Internet sobre Neutralidade da Rede e Responsabilidade pela Plataforma. Além de
sua pesquisa acadêmica, atua como perita jurídica para o Creative Commons na França
e na Fundação P2P.
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62 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
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Tul. J. Tech. & Intell. Prop., 12, 145, 2009.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Primavera De Filippi 63
Notas
2 Creative Commons é uma organização sem fins lucrativos que produz licenças
destinadas a reduzir as restrições-padrão previstas pela lei de direitos autorais.
Essas licenças visam abandonar o conceito de “todos os direitos reservados”
do regime de direitos autorais para adotar um regime mais permissivo, em que
só “alguns direitos são reservados”. Ver mais detalhes em:
<http://creativecommons.org>. Acesso em: 31 ago. 2015.
4 Por exemplo, nem a Swarm nem a Koinify vendiam capital diretamente. Vendiam,
antes, tokens para uso de sua plataforma enquanto ela ainda estava sendo
construída. De certa forma, esse modelo pode simplesmente ser encarado como
uma forma particular de pré-venda, na qual as pessoas investem em determinada
quantidade de tokens que mais tarde lhes permitirão usar a plataforma. Para
mais detalhes sobre as várias maneiras de lidar com tokens criptográficos no
regime regulatório dos Estados Unidos, ver: DIETZ et al, 2014.
5 Ver, por exemplo, nos Estados Unidos, onde a nova isenção determinada no
Título IV da Lei Jumpstart Our Business Startups (Jobs) permite que pequenas
empresas ofereçam e vendam até 50 milhões de dólares em títulos em um
período de 12 meses sem ser submetidas a registro e qualificação decorrentes
da Lei de Títulos.
UM SER DE SENSAÇÃO
Edilamar Galvão
Este artigo é uma versão reduzida, com as adaptações necessárias, do segundo capítulo
da tese de doutorado A Insuficiência da Linguagem – Fundamentos para uma Estética da
Arte Tecnológico-Digital (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006),
ainda inédita. O artigo centra-se na reflexão do “ser” da obra de arte tecnológico-digital in-
serida no desenvolvimento da categoria que funda e define a arte: a experiência. A aisthesis,
o ser de sensação que se origina na experiência ritualística e mítica antes de ser “arte”, como
imitação de uma experiência.
P
aradoxalmente, a arte é, ao mesmo Nós somos os propositores: nós somos
tempo, filiação e rompimento da o molde, cabe a vocês soprar dentro dele o
experiência forte e original do rito. sentido de nossa existência.
Experiência que dessacraliza o mito fun- Nós somos os propositores: nossa
dador, talvez para investigar a experiência proposição é o diálogo. Sós, não existimos.
mesma em todas as suas faces. Por isso, a Estamos à sua mercê.
pergunta mais adequada para a obra de arte Nós somos os propositores: enterra-
em geral talvez seja: “Que tipo de experiên- mos a obra de arte como tal e chamamos
cia você instaura?”. Inserir-se na experiência você para que o pensamento viva dentro
proposta também parece ser a forma corre- de sua ação.
ta de compreender a arte para, na verda- Nós somos os propositores: não lhe
de, sentir a experiência que ela instaura. propomos nem o passado nem o futuro,
Como nos pede Lygia Clark em seu famoso mas o agora.
Livro-Obra, de 1968:
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Edilamar Galvão 65
Artista como propositor. Arte como fazendo-o conceber entradas, senhas, pala-
molde. A relação entre artista-obra e seu vras, escolhas que serão a própria condição
leitor-receptor como diálogo. Como diálogo, de existência da obra.
a forma primeira da filosofia. O diálo- Tal condição pode nos fazer pensar que
go como forma de ação e de existência do um livro fechado também é um dispositivo
leitor-receptor na obra. desligado. A ampliação da exigência de au-
A palavra “recepção” sofreu uma es- tonomia e ação por grande parte das obras
pécie de preconceito semântico diante das de arte tecnológico-digitais nos leva a pensar
novas experiências estéticas. Com o com- não somente na condição de recepção a elas,
preensível desejo de reforçar mas também que a recepção
a necessidade de ação do re- Artista como propositor. ideal de toda obra de arte é
ceptor, à palavra foi atribuída Arte como molde. a completa entrega ao uni-
uma passividade. Devemos, A relação entre artista-obra verso proposto por ela. Re-
e seu leitor-receptor como
porém, nos lembrar de Jorge visitemos Dom Quixote hoje
diálogo. Como diálogo, a
Luis Borges no conto “Pierre forma primeira da filosofia. e verifiquemos se não é isso
Menard: Autor de Dom Qui- O diálogo como forma de que o livro pede de nós. Pois,
xote”: “O autor é autor da sua ação e de existência do quando há o apagamento ou
obra, o leitor é autor da sua leitor-receptor na obra. a transformação das condi-
leitura”. É bastante com- ções materiais de produção
preensível que o tipo de recepção instaurado e existência das obras, elas entram em uma
desde a arte moderna tenha feito crescer o nova opacidade e é preciso reconstituí-las
estranhamento e que, justamente aí, exista a de alguma forma para redescobrir sua
necessidade de um deslocamento e de uma linguagem, seu frescor, sua atualidade. A
autonomia cada vez maiores por parte dos recepção é sempre também uma ação, e re-
receptores. Sem isso, a obra fica cada vez ceber aqui é aceitar a proposição de soprar
mais opaca. Eis o motivo de a palavra “inte- a existência na obra.
rator” ganhar a preferência de pesquisadores Será possível existir a obra, como arte,
e críticos das novas formas de manifestação fora da experiência? Não se define a aisthesis
artística: ela torna mais precisa e enfática a como a experiência por meio dos sentidos?
ampliação da exigência aos receptores con- Fernando Pessoa já não nos ensinou que, no
temporâneos, além de a recepção das obras poeta, o que pensa está sentindo? Qual é o
de arte tecnológico-digitais muitas vezes lugar da experiência senão o agora? O pen-
mover o processo de leitura para todo o cor- samento e as obras podem ser eternos, mas
po, fazendo-o agir na experiência corpórea só acordam da sua eternidade pela expe-
mesma pela interação com as obras ou, então, riência, quando vêm à existência num agora.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Edilamar Galvão 67
Se assumirmos essa exploração das formas da A navegação interativa entre nós e ne-
experiência como aspecto ontológico da arte, xos pelos roteiros alineares do ciberespaço
não veremos ruptura em seu desenvolvimento, envolve transformações sensórias, percep-
tampouco avanços. Será a arte o que deve ser tivas e cognitivas que trazem consequências
como experiência em cada agora, que respon- também para a formação de um novo tipo de
de a uma necessidade interior do artista, de sensibilidade corporal, física e mental. Essas
sua época e da própria arte – como já definiu transformações devem muito provavelmen-
Wassily Kandinsky –, que busca, por meio de te estar baseadas em: a – tipos especiais de
todos os meios de manipulação por ela inven- ações e controles perceptivos que resultam
tados ou à sua disposição, mostrar uma rea- da decodificação ágil de sinais e rotas se-
lidade fora de qualquer manipulação, como mióticas, b – de comportamentos e decisões
nos disse Walter Benjamin? Assim também cognitivas alicerçados em operações indife-
Gilles Deleuze poderia responder à pergunta renciais, métodos de busca e de solução de
proposta por ele mesmo sobre o que seja uma problemas. Embora essas funções percepti-
obra de arte com o conceito de arte “como um vo-cognitivas só sejam visíveis no toque do
ser de sensação e nada mais, ela existe em si” mouse, elas devem estar ligadas à polissenso-
(DELEUZE, 1992, p. 213). rialidade e à s enso-motricidade, no envolvi-
Toda a teoria que está aí envolvida será mento extensivo do corpo na sua globalidade
importante para tentar estabelecer um diá- psicossensorial, isto é, na sua capacidade
logo com os objetos produzidos a partir da sensorial sinestésica e sensório-motora.
tecnologia atual com a arte digital, uma vez (SANTAELLA, 2004, p. 34-35)
que as diversas manifestações artísticas di-
gitais tendem a pressupor o sensório no seu Santaella coloca a modificação da sen-
aspecto interativo. A sensorialidade envolvi- sorialidade na raiz da comunicação digital;
da nos processos de interação digital foi bri- assim, quando ampliamos o uso dos recursos
lhantemente trabalhada por Lucia Santaella da tecnologia digital, o que se amplia é essa
em seu Navegar no Ciberespaço. Nesse livro, característica constituinte. Uma vez que a
ao apresentar três tipos de leitor – o contem- realidade virtual propicia a experiência sen-
plativo (característico da cultura impressa), sória por meio da utilização de interfaces
o movente (característico da era industrial múltiplas, ela pode realizar em grau máxi-
na cultura de massas e das mídias) e o imer- mo a extensão dessa polissensorialidade por
sivo (característico da cultura digital) –, a meio da tecnologia digital.
autora expõe de modo esclarecedor os as- A discussão apresentada por Deleuze
pectos sensoriais envolvidos nesse último torna-se também operativa quando pensa-
perfil cognitivo, que terá seu grau máximo mos nas condições de produção e recepção
de realização na realidade virtual. Ou seja, a da arte tecnológico-digital, pois aqui a tec-
imersão implica o sensório e, mais que isso, nologia digital – o material que constitui
uma transformação na própria sensibilidade a obra de arte – é tratada como fator dife-
corporal, física e mental, segundo Santaella: rencial na produção de uma nova forma
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Edilamar Galvão 69
artística que altera o próprio modo como a O meio aqui é uma necessidade. De ma-
arte é pensada, assim como os materiais e os neira análoga, em carta a Oliver Grau, Char-
procedimentos artísticos modificaram, cada lotte Davies reflete sobre a acessibilidade e a
um a seu tempo, o próprio conceito de arte. necessidade do uso da tecnologia:
Walter Benjamin deixou isso claro ao refletir
sobre a mudança provocada pelo advento da Uma das coisas que estamos fazendo
reprodutibilidade técnica: com Osmose é apontá-la para novas tecno-
logias à medida que a tecnologia aparece,
Já se haviam gasto vãs sutilezas em talvez no final das contas cheguemos com
decidir se a fotografia era ou não arte, mas, ela a algo relativamente pequeno. E espe-
preliminarmente, ainda não se perguntara ramos fazer isso também com o novo tra-
se essa descoberta não transformava a na- balho, Ephemere. É a minha insistência em
tureza geral da arte; os teóricos do cinema transparência (em tempo real) que nos faz
sucumbiriam ao mesmo erro. (BENJAMIN, necessitar desse equipamento tão de ponta.
1989, p. 233) Se pudesse fazê-lo apenas com um pincel de
madeira e pigmento eu o faria – mas então
Aliás, não seria interessante perguntar você não poderia ser envolvido no espaço
se o erro não vem sendo cometido suces criado, que foi o que me levou a esse meio
sivamente? em primeiro lugar e pode me manter aqui,
Uma reflexão que parta do objeto artís- apesar de todas as complexidades técnicas.
tico foi também a preocupação apresentada (DAVIES apud GRAU, 2003, p. 210)
por Herbert Read no clássico A Arte de Agora
Agora. No primeiro capítulo, o autor critica Podemos usar algumas obras de arte
toda a tradição estético-filosófica pelo seu tecnológico-digital como exemplo, dando
idealismo, pelo seu descolamento da arte, a ênfase à sua materialidade e às sensações
fim de, por outro lado, defender uma meto- delas resultantes. As aqui citadas são todas
dologia empírica para construir o discurso anteriores a 2004, mas mantêm sua atualida-
estético. Poderíamos dizer que Read defen- de e sua força em relação aos princípios teó-
de que a estética parta da materialidade da ricos propostos em minha tese de doutorado,
obra de arte, dos seus aspectos constituti- estes ainda adequados a obras mais recentes,
vos, da escuta do próprio discurso no mo- tais como as apresentadas nas cinco edições
mento de sua mudança, e que não parta das do Emoção Art.ficial, do Itaú Cultural, e no
regras de uma arte anterior para construir Festival Internacional de Artes Eletrônicas
uma verdadeira ciência da arte: “O artista (File), ambos realizados em São Paulo (SP).
fala em pedra, em madeira, em bronze, em Em The Legible City (1988-1991), do
cor, exatamente como o poeta fala em pa- artista e teórico Jeffrey Shaw1, o interator
lavras: o artista torna o pensamento visível, precisa pedalar numa bicicleta ergométrica
sem o intermediário dos conceitos verbais”, conectada a um computador que simula o es-
diz Read (1981, p. 25, grifo nosso). paço físico de uma cidade baseada nos seus
70 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
próprios mapas. No lugar de prédios, textos cidade surge na conjunção de sentidos que es-
edificados nas mesmas proporções dos edi- sas palavras geram enquanto surgem ao lon-
fícios da cidade. O “ciclista” imerge na cidade go do trajeto da bicicleta. (SHAW e STILES
por meio de um avatar e “lê” esses textos con- in SELZ, 1996, p. 487)
forme passeia pelas ruas dessa cidade legível.
Nas versões Amsterdam (1990) e Karlsruhe No trabalho de Sommerer e Mignonneau,
(1991), os textos são reunidos com base em a mesma tensão é percebida. Em sua primeira
arquivos de documentos que descrevem a instalação interativa por computador, Interac-
realidade histórica de cada lugar. Na versão tive Plant Growing (1993), os autores integram
Manhattan (1989), computadores ligados em a bioarte à plataforma computacional inte-
diferentes lugares permitem, ainda, que os in- rativa. Ao tocarem plantas reais, os usuários
teratores se encontrem em tempo real no espa- podem controlar o crescimento de plantas
ço simulado. Aqui os textos produzidos partem virtuais geradas por computador.
de monólogos ficcionais de oito moradores de
Manhattan, entre eles um motorista de táxi e As tensões do corpo dos usuários são
o magnata Donald Trump, que se distinguem captadas pelas plantas vivas e usadas para
em palavras construídas em oito diferentes controlar o crescimento de vários algorit-
cores. Ou seja, cada interator-ciclista define mos de plantas artificiais. Ao tocarem ou
sua rota e sua velocidade pela cidade virtual, simplesmente se aproximarem das plantas
construída a partir de seu espaço, de sua his- vivas, os usuários podem cultivar e criar
tória e de personagens reais. Essa experiência coletivamente plantas artificiais sempre
estética pode proporcionar uma redescoberta diferentes que são expressões diretas e inter-
do espaço citadino, mas ela é construída de um pretações de suas interações com as plantas
modo extremamente individual. O interator reais. (SOMMERER e MIGNONNEAU in
pode se sentir no espaço observado, trans- DOMINGUES, 1997, p. 200, grifos nossos)
formado em espaço verbal tridimensional. O
discurso mistura-se com estar no espaço físi- Os artistas declaram seu interesse numa
co, o espaço físico transforma-se em espaço arte orientada para o processo ante uma arte
verbal. A leitura, por sua vez, transforma-se orientada para o objeto. A reflexão sobre o
num caminhar à deriva, num construir rotas darwinismo e a vida artificial marcam o tra-
possíveis, alternativas, num ir ou voltar, atua- balho da dupla, bem como as mais variadas
lizando mesmo a concepção “peripatética” de intersecções com a tecnologia digital e o co-
construção discursiva de Aristóteles. nhecimento científico sobre a evolução das
espécies. No trabalho A-Volve (1994), os ar-
Andar de bicicleta nesta cidade de pa- tistas permitem ao público criar de fato vidas
lavras é, consequentemente, uma viagem de artificiais. Numa tela de toque 2D, os usuá-
leitura. A escolha da direção, a escolha de rios desenham uma figura qualquer que será
onde fazer uma curva, é uma escolha de tex- traduzida como um código genético. Desse
tos e sua sobreposição, e a identidade dessa código nasce uma vida artificial que viverá
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Edilamar Galvão 71
numa piscina com água. Esses seres virtuais numa vidraça de vidro opaco. A solidão do
adquirem uma visualidade e uma plastici- interator é intencional, pois ela intensifica
dade parecidas com as de águas-vivas. Eles a experiência individual do lugar virtual. A
interagem entre si na água segundo uma lei estrutura da instalação, uma combinação de
darwinista. Caçam, se acasalam, se reprodu- sistema independente e de um auditório às
zem ou podem até mesmo evoluir de acordo escuras com uma tela, faz lembrar um estú-
com as mutações provocadas pelo ambiente dio de teatro ou de cinema.
no seu algoritmo genético. Os usuários podem Como um mergulhador solitário e sem
criar mais vidas e tocar nesses seres virtuais, peso, o interator primeiro desliza para fora de
produzindo, assim, alteração no ambiente uma grade de coordenadas cartesianas para
ou criando energia vital para sua subsistên- os cenários virtuais: um abismo oceânico
cia. Segundo Grau, o usuário brinca de Deus sem limites com nuvens tremeluzentes de
(GRAU in DOMINGUES, 2003, p. 291). insetos gerados por computador até a densa
vegetação rasteira de uma floresta escura.
Osmose é uma simulação tecnicamente A passagem de um cenário para o seguinte
avançada e visualmente impressionante de é suave e fluida. Enquanto os primeiros meios
uma série de espaços textuais e visuais que virtuais utilizavam portais que tornavam as
se dividem de muitas formas: uma esfera mi- transições abruptas, no mundo de imagens
neral/vegetal intangível. Nada faz lembrar de Osmose o observador vivencia transições
as imagens granuladas, sobressaltadas e po- osmóticas de uma esfera para outra, vendo-a
ligonais dos primeiros anos da arte virtual; desaparecer gradualmente antes de se amal-
no espaço de dados da canadense Charlotte gamar à seguinte. Naturalmente, isso signi-
Davies, pontos de luz fosforescentes brilham fica que dois espaços de imagens têm de ser
na escuridão com foco suave. Osmose é um gerados simultaneamente. O monitor estéreo
ambiente interativo imersivo, que envolve HMD em frente aos olhos permite ao intera-
um equipamento que é colocado na cabeça tor passar imediatamente ao interior do solo,
[head mounted display, ou HMD], grafismos onde ele encontra rochas e raízes vívidas, e,
em computadores 3D e som interativo, que finalmente, entrar no microcosmo cintilante
pode ser explorado sinesteticamente. No e opalescente de uma folha de árvore.
segundo nível, a instalação oferece aos vi- No centro desse espaço de dados encon-
sitantes a oportunidade de seguir a viagem tra-se uma árvore sem folhas numa clareira,
de imagens do interator individual através representativa e isolada. Seu tronco e seus
desse simulacro de natureza. Com ajuda galhos brilham como cristal, inteiramente
de lentes polarizadoras, eles assistem à sua transparentes e permeáveis até o seu centro.
perspectiva de mundos tridimensionais Osmose é uma esfera ao mesmo tempo feita
em constante mudança numa grande tela de mineral sólido e fluida e intangível, um
de projeção. As imagens são geradas exclu- espaço não cartesiano. […] Olhado de cima
sivamente pelo interator, cuja silhueta em para baixo do alto da árvore digital, na qual o
movimento pode ser vagamente distinguida processo biológico da osmose é mistificado,
72 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
aureolado e mesclado às imagens técnicas, O fato é que as obras de arte voltam a particu-
o emaranhado de raízes lembra uma galáxia larizar a experiência em si. Na diversidade de
distante; no entanto, à medida que o observa- sua experiência, os caminhos são inúmeros e
dor se aproxima, evoca um microcosmo. Dois a cada artista deverá ser dedicada a reflexão
mundos textuais servem como parênteses que lhe seja própria e particular. Isso ainda não
desse simulacro de natureza. As 20 mil linhas deixará de ser uma construção que se distin-
de códigos de programa da obra são visíveis gue da obra de arte como experiência, mas, ao
no ambiente virtual, organizadas em colunas mesmo tempo, constitui-se na experiência de
colossais; e um espaço cheio de fragmentos de viver e pensá-la sem distinção.
textos – conceitos de natureza, tecnologia e Não se pode, assim, determinar um ca-
corpos, todos escritos por pensadores, como minho ou uma direção comum para a diversi-
Bachelard, Heidegger e Rilke, cujas ideias dade das práticas artísticas. Possivelmente, o
não foram tocadas pelos pano de fundo “comum” em
desenvolvimentos revo- A experiência proporcionada que elas se projetam é a pro-
lucionários recentes em por Osmose parece colocar posição do debate contem-
relação à imagem. Que o o indivíduo em completa porâneo sobre o indivíduo,
programa de computador imersão no ambiente o corpo, o conhecimento, a
esteja visível não diminui simulado. Tal simulação tecnologia, a ética na forma
também parece conferir
substancialmente a expe- de uma experiência. A expe-
ao participante a sensação
riência imersiva; ele reve- riência por meio da interati-
de corporeidade no e do
la em parte as fundações
ambiente, além da própria vidade que exige do outro a
binárias dos espaços de experiência ultraindividual. ação na obra e uma conse-
imagem e, dessa maneira, quente alteração da obra e
torna o observador consciente das origens da do discurso nessa ação. Se pela obra como
ilusão. (GRAU, 2003, p. 195-196, grifo nosso) processo se constrói o compartilhamento
da autoria, os resultados temporários desse
A experiência proporcionada por Osmo- processo e o próprio processo em andamento
se parece colocar o indivíduo em completa são sempre alterados e alteráveis pela ação
imersão no ambiente simulado. Tal simula- individual e coletiva.
ção também parece conferir ao participante “Eu entendo interatividade, nesse con-
a sensação de corporeidade no e do ambiente, texto, como o potencial para poder influenciar
além da própria experiência ultraindividual. intencionalmente o desempenho de um arte-
Esteticamente, como quer Ortega y fato tecnológico”, diz Felix Stalder (STALDER
Gasset em A Desumanização da Arte, procu- apud CZEGLEDY in DOMINGUES, 2003,
ramos um pano de fundo comum no qual a p. 143). Na reflexão sobre seu trabalho como
diversidade das manifestações artísticas se artista e curadora, Nina Czegledy afirma
encontra ou, como quer Deleuze, tentamos que seus projetos têm a intenção de suscitar,
construir uma “gigantesca alusão” que evapora de modo estético, questões relativas à cul-
e se distingue da realidade do acontecimento. tura contemporânea: o corpo, a ciência, as
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Edilamar Galvão 73
Edilamar Galvão
É poeta, jornalista e professora. Graduada em comunicação social com habilitação
em jornalismo pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) em
1993, defendeu o mestrado Poesia (em) Tradução (1999) pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/SP), sob a orientação de Arthur Nestrovski, e o doutorado
pela mesma instituição com a tese A Insuficiência da Linguagem – Fundamentos para
uma Estética da Arte Tecnológico-Digital (2006), sob a orientação de Sérgio Bairon. Na
área da educação, concluiu o máster em tecnologia educacional pela Fundação Arman-
do Alvares Penteado (Faap) em 2004. É coordenadora do curso de pós-graduação em
jornalismo cultural na Faap, onde também é professora de estética nos cursos de gradua-
ção e pós-graduação das faculdades de comunicação e artes plásticas. Como jornalista,
foi repórter, apresentadora e diretora, em 1994 e 1995, na TV Cultura do Amazonas e
colaboradora do jornal Folha de S.Paulo entre 1997 e 1999. É autora do livro de poemas
DUVIDA DIVIDA DADIVA (2009). Entre 2009 e 2010, assinou uma coluna sobre cinema
e filosofia na revista Beta. Atuou também como crítica de artes visuais na revista Bravo!.
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Cambridge: The MIT Press, 2002.
Nota
1 Descrição feita com base em Christiane Paul e Jeffrey Shaw (The Legible City) em
SELZ; STILES, 1996, p. 487.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Jorge La Ferla 77
Jorge La Ferla
Um percurso sobre a situação da obra de arte digital e sua conservação a partir de sua
especificidade, considerando a concepção de arquivos programados. Uma problemática que
abarca a ampla gama das artes tecnológicas, incluindo a simulação numérica dos suportes
analógicos. Desenvolve-se o conceito de arquivo como produto cultural e sua concepção a partir
da criação de algoritmos de compilador. As primeiras obras interativas na América Latina
são comparadas com produções recentes, considerando sua preservação e a constituição de
acervos inteligentes da história da arte digital no continente.
O
desafio da conservação da arte digital suas implicações – pode ser útil para fazer
faz parte de um tema transcendente: um balanço mais amplo.
a preservação de todas as artes au- A reflexão sobre a arte tecnológica ex-
diovisuais convertidas em processo de digi- pande a problemática do acervo para sua
talização, em que a constituição de arquivos materialidade original e, portanto, para
ocupa lugar central. A digitalização de mídias sua conservação, para os usos criativos e
e de comunicações modificou a concepção para uma interpretação crítica da constitui-
clássica de arquivo de obras em sua varia- ção de arquivos de artes digitais no âmbito da
da materialidade e dispositivos. A aparente cultura. É importante remeter-se à origem e
homogeneidade da conversão numérica é à história do arquivo ao longo do tempo e a
relativa para uma problemática que se ve- seu valor de memória cultural, cujo sentido
rifica em todo o campo da cultura e, parti- tem variado de acordo com a história dos
cularmente, no campo das artes, sendo um meios de comunicação, seu uso em massa e
disparate restringir o problema unicamente as práticas artísticas. É a documentação que
ao campo das artes tecnológicas programa- outorga o sentido de pertencimento, pois
das. O simulacro numérico do audiovisual vincula os indivíduos a uma cultura regida
analógico a partir da mídia digital é parte de pela economia de dados.
um debate que ainda não alcançou toda a sua A questão do arquivo de artes digitais
amplitude no que diz respeito à preservação. está relacionada ao colecionismo, ou seja,
Por isso, revisar algumas variáveis sobre o à aquisição, ao armazenamento, à conser-
conceito de arquivo como produto cultural – vação e à restauração de obras com base
em suas particularidades, sua ideologia e em critérios curatoriais que determinam
78 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
sua circulação e sua exibição – processos usam as mesmas máquinas baseadas no pro-
operacionais e conceituais que remetem a cessamento de informação de dados numé-
uma série de saberes que vão do tecnológi- ricos e na mídia digital.
co ao ideológico. A história da arte digital Podemos considerar alguns casos
é constituída de uma questão essencial, e emblemáticos de obras históricas da arte
específica, que implica considerar o próprio digital na América Latina que servem de
estatuto do processamento matemático de exemplo particular e de dificuldades no to-
dados e seus dispositivos, desde a máquina cante à sua preservação. Uma dessas obras
de calcular até o computador, no âmbito de é o antológico J. S. Bach2 (1988) – do artista
sua ontologia, sua história, sua materiali- chileno Juan Downey – laser disc tido como
dade e seus usos1. Tal problemática envolve referência por se tratar de um dos primei-
os variados campos da produção artística, a ros desse tipo, na história do audiovisual no
academia e o museu contemporâneo. continente, a ser interativo. Devido à nobreza
Estabelecer um panorama comparado do suporte, a obra pode ainda ser vista por
e abrangente da conservação da arte digi- aqueles que possuem o hardware necessário.
tal é uma tarefa ainda por realizar, devido à O Electronic Arts Intermix3, por sua vez, não
falta de critérios para a criação de coleções tem tal obra em seu catálogo, embora ofere-
completas, nacionais e regionais. Essa difi- ça a versão digital do vídeo linear de mesmo
culdade é um desafio que se coloca diante da nome4, também de Downey. Outras institui-
quantidade de centros, fundações, festivais, ções fazem-na figurar em seus arquivos, mas
museus, escolas e universidades dedicados apenas possibilitando sua visualização no lo-
à arte tecnológica, os quais, invariavelmen- cal, sem a opção de empréstimo5. Na maioria
te, evitam o assunto, considerando apenas a desses acervos, aparece o vídeo homônimo,
diversidade de máquinas e programas cujas mas são poucos os que registram e catalogam
principais características são sua difícil essa obra interativa de referência.
compatibilidade e sua rápida obsolescência. O vídeo, por sua vez, propõe um relato
A uniformidade computacional é aparente de- sobre a obra de Bach por meio de uma nar-
vido à impossível padronização de formatos de rativa baseada em uma estética imposta pela
hardware e de sistemas operacionais, evitada videoarte com a superposição de imagens em
pelas empresas que dominam o mercado. As quadro, configurando várias interpretações,
alternativas disponíveis, desde o software nas quais se destacam a voz e o pensamen-
livre até os programas de autor, oferecem as to de Downey. Já o laser disc se articula por
mesmas características, ou seja, são incompa- meio do projeto de uma interface que propõe
tíveis exceto por sua rápida obsolescência. A intervenções sobre a estrutura composicio-
produção, a exibição e a preservação de obras nal de “Fuga 24 em Si Menor”, de Bach, na
digitais encontram-se em uma conjuntura opção de diversas variáveis para sua execu-
paradoxal, considerando que um fotógrafo, ção. Lembremos que Downey, juntamente
um videoartista, um cineasta, um diretor com Woody Vasulka e Nam June Paik, fez
de TV ou um artista de “novas tecnologias” parte da saga de autores de vídeo que muito
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Jorge La Ferla 79
Da mesma forma como fazemos alusão que, de modo pioneiro, vincula trajetos a
às obras de Downey e Meyer, que nos reme- partir de um mapa imaginário cuja leitura
tem aos primórdios da arte digital no conti- da paisagem envolve a descoberta de luga-
nente, há exemplos recentes que servem de res e suas mitologias. Para recuperar a obra,
referência devido a seu processo de preser- cuja versão original de programação não
vação. Foi em 201410 que se voltou a expor funcionava mais, foi necessário reformular
Desertesejo (2000), de um artista-chave seu programa, o display e a interface ope-
como é Gilbertto Prado, pioneiro no campo racional para uma nova versão, que incluiu
das artes tecnológicas. Desertesejo, desen- novos trajetos em seu hipertexto cartográ-
volvido na época como integrante do pro- fico e conceitual – isso colocou novamente
grama Rumos Itaú Cultural Novas Mídias, em funcionamento uma obra cuja proposta
já não estava em operação. Essa instalação continua atual, mas que, sem o respectivo
interativa imersiva, multiusuária na época restauro11, teria desaparecido.
e construída na linguagem VRML, propõe Outro caso emblemático, sempre na
uma ação de navegação lúdica e inteligente complexa prática das instalações intera-
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Jorge La Ferla 81
tivas imersivas associadas a ações per- Sem dúvida, essa problemática excede
formativas, é OP_ERA, de Rejane Cantoni qualquer contexto nacional, sendo relevante
e Daniela Kutschat (2001-2010). Essa ver- em um âmbito mais amplo. Deparamo-nos
são da extensa série foi realizada na caver- com a questão central de como constituir ar-
na digital12 da Universidade de São Paulo quivos de obras de arte digital (HOFMAN;
(USP). Hoje sua recuperação é bastante ROZO, 2009), considerando a situação de seu
complexa, devido à dificuldade em dispor de estado computacional nas suas possibilida-
uma caverna virtual e dos programas e das des específicas de conservação, circulação e/
interfaces que foram projetados especial- ou exposição, mas que deveriam responder a
mente para esse projeto. Trata-se de uma uma tarefa prévia da constituição da docu-
das obras que marcam a história da arte mentação compilatória. Enquanto há vários
digital na América Latina, e dela restam órgãos e organizações dedicados à cataloga-
vestígios baseados em uma incisiva docu- ção de obras de arte digital – tendo em vista
mentação13 produzida por ambas as artistas sua conservação –, a imensa quantidade, a
como parte do processo. variedade e a hibridação de gêneros tornam
82 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Esse processo talvez seja o aspecto mais a obras e autores costuma ser desprovida
importante a levar em consideração antes de de uma leitura interpretativa do conjunto.
qualquer restauração, ou seja, estabelecer Uma programação algorítmica inte-
um conjunto comparativo de obras funda- ligente implicaria recriar a base de dados,
mentado em diversos critérios de classifi- mas traduzida de diferentes lugares de aná-
cação dados pela mesma condição digital lise comparativa. É a partir da linguagem
do arquivo e pela elaboração de um código de compilação, de acordo com o significado
de programação pertinente. Ante a impos- do termo computacional, que se poderiam
sibilidade de restaurar toda a história da gerar diferentes cotejos e assimilações dos
arte digital e a irreversível obsolescência de dados armazenados. Os próprios sites des-
sua própria conservação, torna-se impres- ses centros dedicados às artes e ao meio
cindível catalogar, classificar e pesquisar os digital se limitam a fornecer informações
conjuntos de obras, sua tipologia genérica lineares sobre esses arquivos, suportados
e sua possível simulação para, por fim, ava- por uma resolução gráfica que geralmente
liar uma decisão de preservação sob critérios tem a forma de banners 2D – um modelo
possíveis de restauração para uma exposição de implementação de página controverso,
operacional que sempre será efêmera. pois não realiza nenhuma comparação sob
A maioria das instituições dedicadas nenhum aspecto da coleta de patrimônio.
às tarefas de conservação e promoção vem Informações que, interpretadas a partir de
favorecendo os processos de arquivamento sua base de dados numérica, possam ser
de suas obras de arte digital com variados analisadas e explicadas, sofrer intervenção
critérios, que sempre partem de cada expo- e ser percorridas de maneiras diferentes.
sição, peça ou autor. A mesma categoria de Refletir sobre a formação de acervos de
arte digital é ainda uma enteléquia, mas, de obras digitais nos leva a recuperar conceitos
qualquer forma, falamos de obras de cine- transcendentes enunciados no último sécu-
ma, vídeo, instalações, multimídia digital lo, como o Atlas Mnemosyne (WARBURG,
(net.art, interativos fechados, instalações 2010), o museu imaginário (MALRAUX,
imersivas, videogames de autor, entre 1947), o “anarquivo”14 e o arquivo vivo15. São
muitos outros exemplos) que respondem propostas de interpretação sobre as artes
a determinado hardware que está longe de visuais baseadas em mapeamentos e siste-
ter sido padronizado e de cuja atualização mas de classificação comparados como um
se produzirá uma versão simulada. É uma passo essencial para a preservação de todo
escolha generalizada que os conjuntos acervo de arte digital.
desses acervos sejam apresentados como A posse de obras e acervos representa o
informação sob a forma do conhecido site desafio da conservação, começando por sua
corporativo. Esses catálogos geralmente catalogação como arquivo digital interativo
não aproveitam sua materialidade digital comparado, o primeiro passo para uma pos-
nem seu caráter programático hipertex- sível preservação como forma de pensamento
tual. A ordem clássica estabelecida quanto baseada em sua compilação programada.
84 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Jorge La Ferla
É pesquisador, curador e programador em artes audiovisuais. Professor da Fun-
dação Universidade do Cinema (FUC) e da Universidade de Buenos Aires (UBA), onde
é chefe de cátedra. Foi curador de mostras de cinema, vídeo, multimídia e instalações
nos Estados Unidos, na América Latina, na Europa e no Oriente Médio. Organizou mais
de 40 publicações de arte e mídia na Argentina, no Brasil e na Colômbia. Seu último
livro é Cine (y) Digital.
Referências bibliográficas
FARKAS, Solange; MARTINHO, Teté (Org.). Videobrasil: três décadas de vídeo, arte,
encontros e transformações. São Paulo: Edições Sesc: Associação Cultural
Videobrasil, 2015. Disponível em: <http://site.videobrasil.org.br/acervo>. Acesso
em: 22 ago. 2015.
Notas
2 DOWNEY, Juan. J. S. Bach: Fugue #24 in B Minor, laser disc, Estados Unidos, 1988.
7 MEYER, Pedro. Truths & fictions. CD-ROM, Mac System 7, Nova York, Voyager, 1995.
11 Caso exposto por Marcos Cuzziol em: Arte, preservação e banco de dados.
In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DIÁLOGOS TRANSDISCIPLINARES: ARTE
E PESQUISA. São Paulo: Paço das Artes, 2015.
15 ARANTES, Priscila. Arquivo Vivo, exposição realizada no Paço das Artes, São
Paulo, 2014. Disponível em: <http://www.pacodasartes.org.br/exposicao/
arquivo_vivo.aspx>. Acesso em: 8 ago. 2015.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES 87
3. CRISE, RESISTÊNCIA
E REINVENÇÃO
A cultura não pode mais ser pensada como um “setor”, e sim como um processo transversal
e decisivo em um capitalismo que é cultural e cognitivo. Partindo da cultura também se criam
formas de resistência e invenção, processos e linguagens, cosmovisões que apontam para outro
modelo de desenvolvimento, baseado não na escassez, mas na abundância. No capitalismo
cognitivo – que tem como valor a informação, a comunicação, os afetos –, o modo da produção
cultural (que engloba a precariedade, a informalidade, a autonomia) é a própria forma do
trabalho contemporâneo, a forma geral de trabalho, e não mais uma “exceção”. Essas novas
dinâmicas são um desafio e uma oportunidade para as políticas culturais.
A
cultura está no centro de um em- Em um mundo em crise de postos e
bate em torno de outro modelo de empregos, em crise narrativa, a cultura in-
desenvolvimento e radicalização venta novas formas de atuação, fabulação e
da democracia, como um campo expandi- sustentabilidade. A cultura emerge não como
do, que é a porta de entrada para os direitos luxo nem como exceção, mas como modelo
sociais. Hoje, trata-se de entender a cultura de mutação do trabalho precário em potência
como estruturante de mudanças decisivas e vida, o que impacta as formas de produção
já em curso. É que a cultura não é mais um de valor em todos os campos.
setor – ela é um processo transversal e de- Colocar a cultura no centro de um novo
cisivo. O capitalismo é cultural e as formas modelo econômico significa que podemos, par-
de resistência e invenção são processos e tindo da cultura, repensar questões decisivas
linguagens, cosmovisões que apontam para, no campo social, articulando o campo das ar-
inclusive, outra cultura política. A cultura tes e das linguagens ao campo sociocultural.
é decisiva porque no “semiocapitalismo”, o Estamos falando de políticas de valorização,
capitalismo cognitivo – que tem como valor apoio, sustentabilidade e ampliação dos Pon-
a informação, a comunicação, os afetos –, o tos de Cultura, como o reconhecimento da
modo da produção cultural (que engloba a cosmovisão indígena, as ações voltadas para os
precariedade, a informalidade, a autono- movimentos urbanos, as novas redes de produ-
mia) é a própria forma do trabalho contem- ção cultural, audiovisual e de mídia dos p ovos
porâneo, a forma geral do trabalho, e não tradicionais, remixando a cultura digital com
mais uma exceção. a tradição oral, as linguagens urbanas e as artes.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Ivana Bentes 89
literatura, artes visuais e performáticas – to- desejos de uma democracia em tempo real
das essas áreas sinergizadas com o campo e on-line, conectada, em que as posições e
comunitarista e sociocultural, com os Pontos as decisões políticas são monitoradas, co-
de Cultura, com as linguagens indígenas, de mentadas e criticadas ao vivo. Vemos ain-
matriz africana, de tradição oral. Emergência da o descrédito e o não funcionamento de
das vidas-linguagens em que a estética nasce sistemas tradicionais de governança: con-
dos territórios e das lutas. ferências, conselhos de cultura estaduais e
Aqui temos uma oportunidade histórica municipais, conselhos que não funcionam
de juntar os artistas do circuito tradicional ou que não têm incidência real; planos na-
das artes – das galerias e dos museus – com a cionais, estaduais e municipais de cultura
experiência, a estética e as linguagens vindas que não saíram do papel.
das bordas, das periferias, das tribos. Essa é O pânico da participação social vocali-
inclusive uma tendência internacional, a de zado em muitos setores (mídia, corporações,
uma conexão territorial-global, de um encon- Estado) nos seus diferentes níveis impede a
tro de gerações de grandes artistas de todas construção de um Estado-rede, poroso e aber-
as linguagens com esse campo alargado da to à cogestão com a sociedade civil e com os
cultura no sentido antropológico. agentes culturais. Trata-se de superar o fosso
entre o Estado e a sociedade civil, em um novo
Participação e governança arranjo de governança.
A democracia brasileira vive, entre tan- Mais uma vez o desafio é fazer emergir
tas crises, uma crise de representação, com uma cultura de redes que apoie e reforce a
experiências cotidianas de participação e criação de novas institucionalidades – e in-
expressão de milhares de cidadãos nas re- duza a isso – com redes específicas de cogestão
des sociais, o que faz emergir uma cultura com o sistema MinC em todos os níveis. O sis-
plebiscitária de sociabilidade em tempo real. tema de participação vai desde a ativação de
Essa erótica da comunicação recém-ex- Pontos de Cultura, agentes territoriais locais,
perimentada produz, por parte do Estado e de redes e arranjos nacionais, conferências,
parlamentares tradicionais, um “pânico da teias, fóruns e encontros até plataformas,
participação”, sintoma da crise dos interme- gabinetes digitais, consultas públicas e fer-
diários, quando milhares de pessoas passam ramentas de participação virtuais, em escala
a exercitar a governança e a “ruidocracia” nas e modulação distintas mas complementares.
redes sociais e nas ruas, da mesma forma Nessa arquitetura, a política de partici-
como buscam processos sem intermediação pação social – polifônica, digital, nas redes
na produção cultural (provocando a crise de e nas ruas – torna-se a base do que estamos
gravadoras e editoras, por exemplo) com a chamando de movimento social das cultu-
ascensão da cultura do faça você mesmo. ras, que se constituiu nas conferências, nos
Trata-se também de uma crise de ve- fóruns e nos debates a partir da era Lula, mas
locidade: governos, Congresso, parlamen- cujo sistema de participação se tornou insu-
tares são lentos demais para responder aos ficiente e está em disputa.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Ivana Bentes 95
Ivana Bentes
É pesquisadora de comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
e secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura (MinC). Dou-
tora em comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da
UFRJ e ensaísta do campo da comunicação, da cultura e de novas mídias. Desenvolve a
pesquisa Estéticas da Comunicação: Novos Modelos Teóricos no Capitalismo Cognitivo
e Periferia Global, sobre o imaginário e as ações vindas das favelas e das periferias na
cultura brasileira e no cenário global, bem como suas redes de articulação.
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comunicação democrática. São Paulo: Le Monde Diplomatique: Instituto Paulo
Freire, 2007.
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ESTÉTICAS, SOCIAIS E POLÍTICAS EM DEBATE. São Paulo: Sesc Belenzinho, 2005.
96 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
G
abriella Coleman é antropóloga e uma das maiores especialistas do
planeta nas novas formas de ativismo, em cultura hacker e grupos de
ativistas digitais, como o Anonymous1. Mas como alguém se torna es-
pecialista em temas tão fugidios e de acesso tão restrito? Gabriella mergulhou
por anos nesse universo, ganhando a confiança de muitos de seus integrantes,
participando de seus canais de discussão (todos criptografados, aliás) e fazendo
um mapeamento amplo das formas como esses grupos se organizam e atuam.
Seu trabalho é uma aula de etnografia no mundo digital, que revela o ethos de
um dos protagonistas mais importantes dos nossos tempos: o hacker-ativista.
Biella (como é chamada pelos amigos) nasceu em Porto Rico, g raduou-se
na Universidade Columbia e obteve mestrado em antropologia sociocultu-
ral na Universidade de Chicago, ambas as instituições nos Estados Unidos.
É hoje professora da Universidade McGill, com sede em Montreal (Canadá),
cidade onde vive desde 2011. Em seu trabalho, Gabriella já explorou temas
como a estética da programação e dos códigos de computador, as dinâmicas
do movimento do software livre e das licenças Creative Commons e a questão
da ética entre os hackers. Nos últimos anos, vem se dedicando à compreensão
das novas formas de ativismo digital, o que a levou a conviver de perto com
grupos como o Anonymous.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lemos entrevista Coleman 97
COMO VOCÊ ACHA QUE OS AVANÇOS DAS ÚL- de dentro, não é preciso trabalhar na empresa,
TIMAS DUAS DÉCADAS DA TECNOLOGIA NA não é preciso ser um informante interno. Isso
MÍDIA MUDARAM O PAPEL DO ATIVISTA E O significa realmente uma mudança profunda e
PAPEL DO ARTISTA? importante e só está começando agora.
Acho que grandes movimentos sociais e Por último, os movimentos de protesto
políticos não precisam da internet para se es- sempre contaram, em grande medida, com a
palhar rapidamente e mundo afora. Sabemos arte e o imaginário, com cartazes, zines e coisas
disso [pela experiência] da década de 1960, dessa natureza. Contudo, o tipo de rico vocabu-
quando houve movimentos de protesto que lário visual que é possível por causa de mídias
eram realmente robustos. A internet, porém, on-line, como vídeos, imagens e “memes”, não
certamente reduz o tempo que os movimentos traz necessariamente uma mudança que seja
sociais podem levar para se espalhar. Outro radicalmente nova. É mais como um aprofun-
elemento está muito relacionado às novas damento das formas de participação artística
formas de ação direta que são possíveis com que podem acontecer devido à existência de
o hacking. Por um lado, há melhores condi- muitos outros canais para a expressão artística.
ções para nos vigiar com as novas tecnolo-
gias, mas, por outro, também há melhores
condições para invadir as empresas e roubar
dados. Creio que estamos apenas no início
disso. Acho que os ativistas estão somente
aprendendo agora o que significa participar de
ações digitais diretas, quebrando a segurança
de governos e empresas para pegar dados em
situações nas quais não é preciso ser alguém
98 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
VOCÊ ACHA QUE, DE CERTA FORMA, HÁ UMA VOCÊ ESTUDOU O TRABALHO DO ANONYMOUS
FUSÃO DE ATIVISMO E PERFORMANCE-ARTE? POR BASTANTE TEMPO. COMO ACHA QUE
Bem, repetindo, acho que a performance ELES FIZERAM OS DEBATES POLÍTICOS AVAN-
sempre teve um papel no ativismo. Há vários ÇAR? E TAMBÉM NOÇÕES COMO AUTORIA?
exemplos da década de 1960 até o presente, Essa é uma ótima pergunta. Acho que
como os hippies, que eram bastante performa- uma das mais fascinantes e importantes
tivos. Creio, porém, que a diferença – e isto é intervenções relacionadas ao Anonymous
o que importa – é que esses esforços tendiam diz respeito à autoria coletiva. A ideia não é
a ser de pequenos grupos de pessoas muito ganhar prestígio nem fama pelo que se faz.
fechados que realmente tinham os recursos, É verdadeiramente por uma causa coletiva.
os quais verdadeiramente [os] identificavam Isso é tão importante, porque há uma manei-
como artistas e ativistas. O Anonymous é o ra pela qual as intervenções ativistas formam
exemplo perfeito dessa diferença. Trata-se uma corrente por meio da mídia dominante,
apenas de indivíduos que não necessariamen- e é apenas um punhado de pessoas. Os líde-
te se identificam como artistas, no entanto res que se transformaram em ícones para o
usam os meios artísticos para o seu ativismo. movimento. Isso é um verdadeiro problema
Admitindo isso, algumas das pessoas que são para um movimento envolvendo muitas pes-
os melhores media makers do Anonymous, soas. O Anonymous é um entre alguns grupos
em algum momento, terão de se considerar que realmente afirmaram com êxito: “Olha, o
artistas. Eles são um tanto geeks. Esse é o su- nosso negócio é o coletivo, não o individual”,
porte deles, isso é o que eles fazem. Esse tipo e eles conseguiram efetivamente fazer isso.
de acesso está realmente disponível a uma É uma ética viva. Pede-se que uma pes-
parcela muito maior da população. soa leve a vida de acordo com essa ética e, se
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lemos entrevista Coleman 99
ela a violar, será punida dentro do coletivo. VOCÊ ACHA QUE, APESAR DE TUDO ISSO,
É importante ter espaços onde se faz algo EXISTE UM SISTEMA DE REPUTAÇÃO ENTRE
para o bem do coletivo, não para reconhe- OS MEMBROS DO ANONYMOUS NESSE SEN-
cimento individual, e é muito difícil criar TIDO? VOCÊ ACHA QUE ELES AINDA BUSCAM,
tal espaço onde essa coletividade aconteça. DE CERTA FORMA, O RECONHECIMENTO
O Anonymous conseguiu fazer isso. Ago- DOS SEUS PARES OU DE ESTRANHOS PARA
ra, uma das razões pelas quais eles ainda O TRABALHO DELES?
atuam na esfera pública é o fato de serem Definitivamente, dentro do coletivo há
realmente bons em gestão de marca e em uma reputação que é acumulada, e alguns
criar uma história rica, que não é meramen- membros têm mais autoridade porque as pes-
te o ato de fazer ataques de denial of service2 soas confiam mais neles do que em outros. Dito
ou hacking. Eles têm os seus vídeos, os seus isso, se alguém conta vantagem e fica se mos-
suportes. Eles são muito performativos. trando, a reação será apenas: “Nós vamos eli-
Isso só vem mostrar a importância de miná-lo”. Isso não se faz – existe, mas também
ter certo elemento que seja forte, perfor- é ajustado. Essa é uma das grandes tensões na
mativo, narrativo, artístico para qualquer história do Anonymous. Existem certas contas
mensagem que se queira transmitir lá fora, de Twitter com pseudonomes, como Topiary
porque se atrai mais atenção assim. Eles são ou Sadu, que se tornaram famosas. Por um lado,
simplesmente fantásticos em gerar o tipo de ter essas personalidades foi útil, porque as pes-
espetáculo que chama atenção. soas podem se relacionar com elas, querem se-
gui-las; por outro, isso se tornou um ponto fraco
do movimento, na medida em que, uma vez que
se é persistente, é possível ser apanhado.
100 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Uma das coisas interessantes, acho eu, UMA PERGUNTA SOBRE O MOVIMENTO OCU-
que têm acontecido no último ano não é algo PAR WALL STREET. É INTERESSANTE OBSER-
[feito] por um Anonymous com “A” maiús- VAR QUE ELE FOI INICIADO PELA REVISTA
culo, mas sim por um anonymous com “a” CANADENSE ADBUSTERS, QUE FAZ PARTE
minúsculo – Phineas Fisher3, que invadiu o DO MUNDO DA PUBLICIDADE, FAZ PARTE DO
sistema de duas empresas, Gamma e H acking SISTEMA. COMO VOCÊ VÊ ESSA CONFUSÃO
Team4. Quando invadiu a Gamma, ele divul- DE PAPÉIS?
gou o acontecimento no Twitter, ficou ron- Sim, são muito confusos esses papéis,
dando e depois desapareceu. Agora, ele está porque não há um que seja puramente ati-
mais uma vez de volta para atacar a Hacking vista. É muito difícil ver alguns formatos
Team e desapareceu novamente. Para mim, puros de ativismo em atividade. Está tudo
isso não é sob o nome do Anonymous, mas ligado. Acho que foi apenas um erro imagi-
este foi um dos primeiros grupos a invadir as nar que alguma vez poderia haver uma po-
empresas de segurança e, assim, eles defini- lítica pura. É fato que alguns dos ativistas
tivamente deram vida a essa forma de ação. tecnológicos mais radicais que conheço são
Então essa pessoa está adotando os princí- de esquerda, vistos como anticapitalistas,
pios do Anonymous e executando-os de uma mas, mesmo assim, trabalham no Google.
forma mais cirúrgica e limpa, o que, a meu Eles não necessariamente gostam do Goo-
ver, é realmente interessante. gle, mas é lá que ganham o dinheiro de que
precisam para conseguir praticar o seu ati-
vismo. Acho que parte do problema é uma
expectativa de pureza, que, para começar, é
falsa. Nunca deveríamos buscar essa pure-
za. Dito isso, penso realmente que existem
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lemos entrevista Coleman 101
formas mais ou menos radicais de ativismo. encontrar pureza, na verdade o que se estaria
No fim da década de 1990, o Indymedia era fazendo seria prejudicar o impacto do projeto.
o lugar onde todos esses ativistas desenvol- Por outro lado, movimentos políticos
viam o que se transformou nas tecnologias podem ser identificados por alguns atores –
da web 2.0. Muitos dos que faziam parte do atores empresariais – como sendo “legais” e
Indymedia foram contratados no Vale do podendo ser cooptados. O melhor aspecto do
Silício, em 2000, 2001, por empresas como Anonymous é que isso não acontece, por dois
Flickr e Yahoo!. A tecnologia ativista foi a motivos. O primeiro é que eles são anônimos
base para o surgimento da web 2.0. Isso é e o segundo é que são impiedosos ao atacar
surpreendente. Pense a respeito – é exata- as empresas diretamente. Eles só fazem as-
mente o que você está falando. sim: “Ah, nós os odiamos. Não queremos ter
Acho que [o software] Tor5 é um ótimo nenhuma espécie de ligação com eles”. Eles
exemplo disso. O Tor ganha bastante dinheiro estão relativamente protegidos. Acho que
do governo norte-americano e isso incomoda ativistas têm de ser inteligentes e saber que
muita gente. Não tenho tanta certeza se o fato não deveriam estar necessariamente bus-
de aceitar esse dinheiro está diluindo o projeto cando a pureza o tempo todo, mas também
ou tornando-o algo politicamente suspeito. têm de ser realmente táticos para saber de
O que ele permite, na verdade, é ter pessoas quem vão pegar dinheiro e com quem se rela-
radicais que se comprometeram com a pri- cionam. Acho que o Tor tem feito, na verdade,
vacidade para trabalhar em tempo integral um grande trabalho em não ter a abordagem
porque têm bons salários. Se elas estivessem na linha de “Nós não vamos pegar nenhum
conseguindo sobreviver sem dinheiro, então dinheiro público”. Eles levam toneladas
o projeto estaria avançando com dificuldade. de dinheiro do governo e, consequentemente,
Isso é um caso perfeito. Se a tentativa fosse de constituem um projeto muito forte.
102 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
COLETIVOS COMO O ANONYMOUS USAM o ativismo por meio da arte, no mesmo nível
MUITO HUMOR, COMO MEMES E PIADAS. OS de importância, sempre poderá ser cooptá-
POLÍTICOS ESTÃO, CURIOSAMENTE, APRO- vel. Se é arte e ao mesmo tempo também se
PRIANDO-SE DESSA LINGUAGEM – BARACK atua no vazamento, na delação e no hacking,
OBAMA, POR EXEMPLO. CONVERSEI RECEN- o governo não pode se apropriar disso. Na
TEMENTE COM IVAN KRASTEV, UM ESPECIA- verdade, e isto é uma coisa completamente
LISTA EM DEMOCRACIA BEM CONHECIDO. diferente, o que é preciso é tomar cuidado
ELE ME DISSE: “ISSO É MUITO PERIGOSO”. NA para o governo não marcar a pessoa como
OPINIÃO DELE, SEMPRE QUE O PODER USA O terrorista. Recentemente, o Anonymous
HUMOR DESSE JEITO, TORNA-SE PERIGOSO. escapou do rótulo de terrorismo, mas por
O QUE ACHA DE HUMOR E POLÍTICA? muito, muito pouco.
Acho que isso mostra como se pode fa- Isso ocorreu, em parte, por causa da
cilmente cooptar algo que, em um momento, arte e do humor. Isso é realmente impor-
era muito contracultural ou independente das tante para garantir que eles não sejam vis-
formas dominantes de poder. Só acho que isso tos como loucos extremistas ou algo assim,
não vai sumir. Trata-se de um processo que o que é um perigo enorme para qualquer
vai acontecer invariavelmente, e os ativistas movimento radical. Penso justamente que,
precisam assegurar-se de estar constante- uma vez que aqueles no poder passam a
mente diferenciando a sua posição, se fizer apropriar-se do imaginário e do humor, de
sentido, daquela do poder dominante. É nes- material visual, é preciso continuar a garan-
se ponto que acho que a ação direta faz com tir que se está agindo, e não simplesmente
que certos tipos de política sejam incooptá- divulgando uma causa, porque depois será
veis. Se é somente uma questão de expressar muito mais difícil diluí-la ou cooptá-la.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lemos entrevista Coleman 103
Sim, acho que a trollagem pode real- QUAL É O FUTURO DO ANONYMOUS E DA SUA
mente atrapalhar a liberdade de expressão. TÁTICA? VÃO SOBREVIVER À FREQUENTE
Contudo, também acho que seja um grande REAÇÃO VIOLENTA CONTRA ELES?
teste. Por exemplo, a Nova Zelândia acaba de A reação é muito grande. Há repressão
bani-la. É melhor procurar pessoas específi- de governos na Europa e nos Estados Uni-
cas que estejam assediando, digamos, um in- dos, e em menor grau na América Latina,
divíduo com muita persistência. Não se pode mesmo que algumas pessoas tenham sido
simplesmente dizer “Ah, nada é possível”, certamente pegas. Acho que há alguns as-
mas proibir toda a vontade de fazer t rollagens pectos a considerar. Na verdade, acho que
repentinamente... O que o A nonymous faz – e havia um inacreditável volume de atividade
que talvez não seja trollagem – poderia em 2011 e 2012, e nós nunca vamos voltar
ser categorizado como trollagem e, depois, a ver esse nível de atuação. A atividade que
subitamente, considerado ilegal. Acho estamos vendo hoje é executada de uma for-
que isso é um precedente muito assustador ma mais precisa, menos desleixada e com
em alguns aspectos. Grandes ataques de maior segurança. Para dar um bom exem-
trollagem podem ser muito, muito difíceis plo, houve na verdade um grande ataque de
de controlar na internet. denial of service no Canadá contra um proje-
to de lei sobre vigilância ou antiterrorismo.
Atingiram os sites do governo e derrubaram
a maioria deles, também deixando inaces-
sível o e-mail do governo. Eles na verdade
arquitetaram durante meses essa operação,
que foi realmente bem executada. A re-
gra número 1 deles: sem danos colaterais.
Ninguém será preso por isso.
Isso foi muito diferente de seus ata-
ques distribuídos de negação de serviços
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lemos entrevista Coleman 105
anteriores, quando diziam: “Vamos fazer um Vamos ver mais disso. Se as pessoas
ataque de DDoS [sigla em inglês para esse se autodenominam Anonymous ou não, o
tipo de ataque]. Venha a bordo”. É apenas Anonymous as ajudou a ter uma existência,
caótico e confuso. Trata-se de uma mudança aquele tipo de desejo de usar o hacking para
completa por causa das prisões. De fato, nin- vazar informações, principalmente contra
guém foi preso. Na Itália, eles foram detidos. empresas de segurança e coisas assim. A
Contudo, nos Estados Unidos e no Canadá, invasão da Hacking Team é enorme. Pro-
por exemplo, ninguém foi preso e, em parte, vavelmente foi uma operação política muito
acho que também porque a questão ilegal irá bem articulada. Pelo que entendo, Phineas
acontecer em lugares como a América La- Fisher vai explicar como fez isso, mas os da-
tina e o Oriente Médio, onde é mais difícil dos, creio eu, foram retirados muito lenta-
pegar as pessoas. De fato, acho realmente que mente durante um longo período de tempo,
continuaremos a ver ação. Talvez não tanto para que não se percebesse que estava tudo
quanto antes, mas isso também será devido a indo embora. Outras pessoas vão imitar essa
um planejamento mais cuidadoso. O segundo invasão, e ela deve a sua concretização ao
ponto é que – já vimos isso antes – os hackers que o Anonymous fez antes. É um novo am-
estão indo direto para as empresas em busca biente que foi criado. Também acho que, se
de informações, o que não é o mesmo que fez virmos o suficiente disso, as empresas final-
Bradley/Chelsea Manning6. Ela trabalhava mente levarão sua segurança muito mais a
para o Exército, era uma pessoa de dentro. sério. Haverá, porém, uma janela de tempo
Edward Snowden era um funcionário da durante a qual elas não poderão melhorar
empresa. Jeremy Hammond7 não era uma a sua segurança a fim de atingir os padrões
pessoa da casa. A ntiSec8 não era alguém da necessários para evitar acontecimentos
casa. Phineas Fisher, que organizou as ações dessa natureza. Acredito, portanto, que ve-
contra a Gamma e a Hacking Team, provavel- remos várias situações assim nos próximos
mente não era de dentro e, se for, o que ele fez dois a quatro anos.
foi muito inteligente.
106 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
VOCÊ ACHA QUE A ESTÉTICA DO ANONYMOUS a revolucionário, acho que é possível esse
VAI DESAPARECER? MINHA OPINIÃO É QUE JÁ movimento de vai e vem.
ESTÁ DESAPARECENDO. HÁ ALGUMA OUTRA Quero dizer, acredito que existe a fadiga
ESTÉTICA PARA OS MOVIMENTOS SOCIAIS da marca e há uma maneira pela qual o po-
NO HORIZONTE? der tanto do DDoS quanto do ícone deveria
É interessante, porque Guy Fawkes9 recuar e depois aparecer inesperadamente.
está aí há bastante tempo, desde o século Uma presença demasiadamente persistente
XVII. Isso vai e vem. É interessante tam- vem acompanhada de uma espécie de fadiga
bém porque antigamente a associação que da marca. Agora, o que fica claro em relação
se fazia era somente negativa. Foi no início à invasão do Phineas Fisher é que não exis-
do século XX que começou a haver uma as- te gestão de marca nem um movimento. É
sociação positiva. Ele começou a ser retra- a ação de um indivíduo. Repetindo, isso vai
tado como um herói em livros infantis e isso inspirar outros, mas também é possível ver
não acontecia antes, até [aparecer] nosso os seus limites. Quando se tem todo um uni-
romance mais litográfico, o que realmen- verso simbólico, pode-se realmente abri-lo
te o tornou um verdadeiro tipo de herói. a uma participação ampla, e isso não vai ne-
Mais tarde, com o filme de Hollywood [V cessariamente acontecer com as pequenas
de Vingança], as massas falavam “Ah, Guy invasões isoladas. A arte é um meio pelo qual
Fawkes é um cara legal”, em vez de “Nossa, se pode realmente inscrever porções maiores
ele é um terrorista horrível” ou qualquer da população. Mas não estou certa de qual
outra coisa. Eu o considero um personagem será o tipo de imaginário ou iconografia do
muito interessante porque, diferentemente futuro em alguns aspectos. Eu diria, contudo,
do símbolo de paz, qual é a causa de Guy que o anonimato ideal não desaparecerá, e isso
Fawkes? Se ele pode passar de terrorista também é um aspecto poderoso.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lemos entrevista Coleman 107
Ronaldo Lemos
É professor e pesquisador brasileiro respeitado internacionalmente. É diretor do
Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITSrio.org) e professor da Uni-
versidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). É pesquisador e representante para o Brasil
do MIT Media Lab. Fez mestrado na Universidade Harvard (Estados Unidos) e doutorado
na Universidade de São Paulo (USP). É especialista em temas como mídia, inovação e
tecnologia. Foi professor visitante nas universidades de Princeton (EUA) e Oxford (Rei-
no Unido). É membro do conselho de administração de várias empresas de tecnologia,
incluindo a Mozilla, que faz o browser Firefox. Foi curador de vários festivais de música,
arte e tecnologia, entre eles o Tim Festival e o Festival Hipersônica. Foi responsável pela
concepção e pela curadoria do Laboratório de Atividades do Amanhã, do Museu do
Amanhã, no Rio de Janeiro. Foi eleito pelo Fórum Econômico Mundial, em 2015, um dos
jovens líderes globais.
Gabriella Coleman
Ocupa a cátedra Wolfe em Alfabetização Científica e Tecnológica na Universidade
McGill (Canadá). É formada em antropologia cultural e seu trabalho de pesquisa, redação
de artigos e ensino versa sobre os hackers de computador e o ativismo digital. Seu pri-
meiro livro sobre software livre, Coding Freedom: the Ethics and Aesthetics of Hacking, foi
publicado pela Princeton University Press. Seu novo livro, Hacker, Hoaxer, Whistleblower,
Spy: the Many Faces of Anonymous, publicado pela Verso, foi indicado na categoria de
Melhor Livro de 2014 do Kirkus Reviews.
Notas
POLÍTICA DE EXPERIMENTAÇÃO:
nas redes e nas ruas
T
homas Mann, escritor alemão, em- mundo como uma espécie de tábua de salva-
preende uma viagem de navio, em ção. Na perspectiva do uno, o futuro só pode
1934, da Holanda aos Estados Uni- ser concebido como uma cruel repetição do
dos. Na travessia vai acompanhado de Dom presente. Avançamos num mar de surpresas
Quixote – escrito por Miguel de Cervantes –, e incertezas, lembra Favaretto (2012), o que
que, segundo o alemão, é o livro justo para uma nos coloca diante da indeterminação, de uma
viagem pelo mundo: “[...] escrevê-lo foi uma paisagem desconhecida que é preciso confi-
aventura ousada, e a aventura receptiva que se gurar e decifrar. Ante tal desafio, e na impos-
cumpre ao lê-lo está à altura das circunstân- sibilidade de dar respostas seguras, cabe-nos
cias”, anota Mann. A experiência da viagem, a tarefa de problematizar a respeito do novo
tramada com a leitura, é registrada em diário. contexto em que estamos inseridos.
Em um dos seus apontamentos lê-se que Um eixo fundamental dessa problema-
tização diz respeito ao fato de que, nas socie-
é preciso acolher o presente em toda a dades em que a democracia está instalada, há
sua complexidade, em todas as suas contra- uma disjunção crescente entre o Estado e a
dições, pois o futuro nasce do que é múltiplo, sociedade civil que tem se tornado visível em
não do que é único. (MANN, 2014, p. 117) várias esferas, sobretudo nas políticas públi-
cas, que parecem andar a reboque da dinâmica
O preceito de Mann parece encontrar social, dia a dia mais complexa em decorrên-
resistência ainda hoje, quando o acolhimen- cia do próprio processo democrático. A socie-
to ao múltiplo, ao desconhecido e ao incerto dade civil é ator-chave da dinâmica atual.
desconcerta e muitos ainda anseiam por um O filósofo Jacques Rancière, em seu li-
amplo relato que organize a diversidade do vro Ódio à Democracia, busca compreender
112 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
de que forma, no interior das supostas so- esse processo de ampliação pelos desejos, essa
ciedades democráticas, uma intelligentsia permanente condição de desejo. A multiplici-
dominante, que não deseja viver sob outro dade de vozes que buscam espaço na arena
regime, acusa diariamente os males causados pública é inerente ao exercício democrático.
pela democracia, “a catástrofe da civilização A continuidade e o alargamento do processo
democrática”. Em outras palavras, a expan- de democratização levam a sociedade a exigir
são da democracia incomoda, sobretudo pelo uma participação cada vez maior e mais ativa
princípio segundo o qual seu cerne é o poder na esfera pública e na tomada de decisões.
de qualquer um para governar, para adentrar A disjunção entre a sociedade civil e o
em esferas antes reservadas a poucos. A in- Estado tem evidenciado o esgotamento de
tensidade da vida democrática, sua ingover- instituições tradicionais das democracias
nabilidade advinda da constante e conflituosa representativas, que não conseguem dar res-
expansão que opera em seu interior, funda- postas satisfatórias à sociedade nem dar vazão
menta seu governo. Nas palavras do autor, à multiplicidade de desejos e de voz pública,
não mais passíveis de contenção nos espaços
o processo democrático é o processo delimitados pelas instituições tradicionais. A
desse perpétuo pôr em jogo, dessa invenção legitimidade do Estado tem sido abalada pela
de formas de subjetivação e de casos de verifi- dificuldade em acompanhar as transforma-
cação que contrariam a perpétua privatização ções da sociedade, o que se traduz na tensão
da vida pública. (RANCIÈRE, 2014, p. 81) constante entre as suas instituições e as novas
dinâmicas sociais, trazendo reflexos diretos
A razão de ser da democracia é o reco- nas políticas públicas. Estas parecem se guiar
nhecimento do outro, o permanente exercí- por modelos e sistemas antes legitimados, mas
cio de reconhecimento, e tem como princípio que não fazem face à indeterminação contem-
fundamental a ampliação dos direitos, cuja porânea, às múltiplas dinâmicas que consti-
matéria-prima é o desejo, na bela formulação tuem sua paisagem. As lentes parecem apontar
de Renato Janine. É o desejo dos sujeitos, com para a criação de relatos parciais de sujeitos
novas lógicas e novas sensibilidades na are- e grupos que buscam construir espaços no
na pública, que lutam por reconhecimento. mundo, abrir fendas, mesmo que temporárias.
Vivemos, portanto, um fenômeno próprio do A política toma a forma de uma batalha entre
desenvolvimento democrático, que é a cons- diferentes âmbitos de visibilidade. Os corpos
tante busca pela ampliação do espaço na arena estão saindo às ruas. A perspectiva empreendi-
pública, a qual advém da multiplicidade de de- da por Paul B. Preciado para a compreensão de
sejos. A administração dessa diversidade é algo movimentos como os Indignados na Espanha
próprio da dinâmica da democracia e um dos e a vitória de Ada Colau em Barcelona foca a
grandes desafios da gestão democrática. Tra- passagem de uma política de representação para
ta-se da compreensão de que a democracia não uma política de experimentação, em que a ação
chegará a um momento em que estará consoli- e a narração remetem à construção de múltiplos
dada, na medida em que ela tem, por princípio, significados por corpos indisciplinados.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira 113
culturais respondem às inquietações, aos elas devem criar condições e facilidades, ha-
desejos e às necessidades do emergente que, bilitar canais, negociar de maneira pactuada
segundo Raymond Williams, se transmu- para adquirir legitimidade. A cultura é o fle-
tarão em dominantes no futuro? Citando xível, falando novamente com De Certeau, e
Martín-Barbero (ibid., grifos nossos): a política e a gestão cultural devem assumir
tal perspectiva, criando fendas para que seja
A convergência digital introduz nas po- possível respirar, abrindo possibilidades
líticas culturais uma profunda renovação do para interações e intercâmbios. A cultura
modelo de comunicabilidade, pois do unidire- sempre será um campo de incertezas.
cional, linear e autoritário paradigma da trans-
missão de informações, passamos ao modelo da
rede, isto é, ao da conectividade e da interação
que transforma o modo mecânico da comu-
nicação a distância pelo modo eletrônico da
interface de proximidade. Novo paradigma tra-
duzido em uma política que privilegia a siner-
gia entre muitos projetos pequenos acima da
complicada estrutura dos grandes e pesados
aparatos tanto na tecnologia como na gestão.
Referências bibliográficas
MANN, Thomas. Travessia marítima com Dom Quixote. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
COLEÇÃO OS LIVROS
DO OBSERVATÓRIO
Identidade e Violência: a Ilusão do Destino
Amartya Sen
Nesta obra, Amartya Sen trata da violência relacionada à ilusão iden-
titária e às confusões conceituais. Ele problematiza a identidade apon-
tando que, ao mesmo tempo que ela pode trazer conforto ao indivíduo
que se sente representado em uma cultura, pode impedir a identificação
das pessoas com a humanidade, abordando para isso as questões rela-
cionadas à divisão dos indivíduos por raça, classe, religião ou partido
a que pertencem.
Arte e Mercado
Xavier Greffe
Este título discute as relações da arte com a economia de mercado e
a atual tendência de levar a arte a ocupar-se mais de efeitos sociais e
econômicos – inclusão social, o atendimento das exigências do turismo
e as necessidades do desenvolvimento econômico em geral – do que de
suas questões intrínsecas. Conhecer o sistema econômico é o primeiro
passo para colocar a arte em condições de atender realmente aos direi-
tos culturais, que hoje se reconhecem, como seus.
Cultura e Educação
Teixeira Coelho (Org.)
Esta publicação remete ao Seminário Internacional da Educação e Cul-
tura realizado no Itaú Cultural em setembro de 2009. Os participantes
latino-americanos (inclusive brasileiros) e espanhóis comparam e re-
fletem práticas capazes de culturalizar o ensino, por meio de iniciativas
administrativas e curriculares e de ações cotidianas em sala de aula.
Saturação
Michel Maffesoli
O título reúne os textos “Matrimonium” e “Apocalipse”, de Michel Maf-
fesoli. Neles o autor estende a discussão sobre a pós-modernidade para
além do domínio das artes e analisa os fatos e os efeitos pós-modernos
na vida social. A partir desse debate, Maffesoli questiona valores como
indivíduo, razão, economia e progresso – pedras fundamentais da so-
ciedade ocidental moderna, que está em crise, saturada.
Este é um Maffesoli diferente, polêmico e que não receia ser até mesmo
panfletário. Seu alvo é o pensamento conformado com as conquistas
teóricas dos séculos passados que não mais servem para entender a
época contemporânea. Discutindo com o pensamento oficial, Michel
Maffesoli investe contra o politicamente correto, o moralmente correto
e todas as formas do bem pensar, isto é, contra as ideias feitas que se
transmitem e se repetem acriticamente.
Cultura e Economia
Paul Tolila
Durante muito tempo os economistas negligenciaram a cultura e por
muito tempo o setor cultural também se desinteressou da reflexão eco-
nômica. Vivemos o fim dessa época. Para os atores do setor cultural, as
ferramentas econômicas podem se tornar uma base sólida de desenvol-
vimento; para os tomadores de decisões, a contribuição da cultura para
a economia do conhecimento abre oportunidades originais de ação; para
os cidadãos, trata-se de ter os meios para compreender e defender um
setor cujo valor simbólico e potencial de riqueza humana e econômica
não podem mais ser ignorados.
TECNOLOGIA E CULTURA: UMA SOCIEDADE EM REDES 123
AS REVISTAS DO
OBSERVATÓRIO