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O HASSIDISMO COMO VISÃO DE MUNDO -OS PRINCÍPIOS

BÁSICOS DA ÉTICA HASSÍDICA - Davy Bogomoletz


• Publicado por Jayme Fucs Bar em 18 maio 2010 às 8:17 em Não-categorizado
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O HASSIDISMO COMO VISÃO DE MUNDO

OS PRINCÍPIOS BÁSICOS DA ÉTICA HASSÍDICO

Davy Bogomoletz – 2005

Revisto em Shavuót – 2008

Todo o mundo conhece a história de Adão e Eva. Estavam os dois no Paraíso, estava tudo bem, chegou a serpente,
convenceu Eva de que o fruto da Árvore do Saber não matava ninguém, Deus é que tinha ciúme de quem o
comesse, pois se tornaria igual a Ele, e Eva comeu e deu um para Adão também, que não viu por que não comer,
se Eva estava comendo e continuava inteira. Abriram-se os olhos de ambos, e viram que estavam nus,
envergonharam-se e correram para se esconder atrás da moita, pois Deus vinha vindo, passeando que estava à brisa
do entardecer. Chegando ao local onde o casal costumava ficar, e não os encontrando, Deus perguntou: ‘Adão,
onde estás?’.

O comandante da prisão onde Rabi Shneur Zalman de Liady, fundador do Habad – que hoje chamamos
‘Movimento Lubavitch’, estava encarcerado por calúnia das autoridades rabínicas, era um homem culto e bastante
sensível. Ficou impressionado com o ar majestoso de seu prisioneiro, e um dia, bom cristão que era, entrou em sua
cela para fazer-lhe uma pergunta. ‘Como se explica que Deus, sendo onisciente e onipresente, precisasse perguntar
a Adão ‘onde ele está’? Será que Deus realmente não sabia? Gostaria muito de entender isto, mas não consigo.’
Disse-lhe o velho rabino: ‘Deus perguntou a Adão ‘Onde estás?’ não porque não o soubesse. Deus não queria
saber onde Adão estava. Deus queria que Adão tomasse consciência de onde ele estava, agora, depois de ter
cometido a transgressão. E essa pergunta não vale só para Adão – ela vale para cada um de nós, ao longo de toda
a nossa vida, e ao longo de todas as gerações.’

Assim, logo de saída, o tzadík nos explica há duzentos anos atrás por que a Toráh, entregue ao povo judeu há 3328
anos, continua sendo esse livro fundamental para a nossa vida cotidiana aqui (no Rio de Janeiro) e agora (3328
anos depois).

O texto é infinito, porque o homem que o lê é infinito, assim como o Deus que o escreveu, conforme diz a tradição.
Por isso é preciso tomar consciência: Porque se fôssemos finitos saberíamos sempre ‘onde estamos’, e não seria
necessário perguntar nada. A ninguém.

Para o Judaísmo não hassídico tudo isto é óbvio. Não é exatamente ignorado, simplesmente é deixado de lado.
Pois para o Judaísmo não hassídico ao homem não cabe fazer perguntas. Um rabino não-hassídico não teria
respondido ao funcionário russo da mesma forma. Ele teria dito algo como: ‘Deus sabe o que faz, e não nos cabe
questionar os Seus métodos’.

Do ponto de vista hassídico, embora não nos caiba questionar os métodos de Deus, nos é dada a liberdade de tentar
entendê-los tanto quanto possível. O Judaísmo não hassídico também considera que o homem é infinito, mas não
perde muito tempo com isso. Já para o Judaísmo hassídico, esta é uma dimensão essencial e de importância sempre
presente do ser humano. Pois somos infinitos. Cada um de nós. Cada um de nós que habitamos o planeta Terra.

A beleza do Hassidismo está nesta percepção da infinitude. Foi daí que Buber extraiu a idéia do Tu – um tu infinito,
que não pode ser conhecido inteiramente. E de um Eu, cabe acrescentar, que também não podemos conhecer por
inteiro. Segundo Buber, as coisas concretas podem ser conhecidas a ponto de não precisarmos ficar perplexos com
elas. Os seres humanos, não. Quando nos relacionamos com um outro ser humano sem essa dimensão de
perplexidade, sem esse sentimento de estranheza, sem nos darmos conta de que estamos diante de algo grande
demais para conhecermos inteiramente, nesse momento estamos nos relacionamento com uma ‘coisa’, não com
um ‘ser’. Quando queremos que esse outro seja como nós o imaginamos, esquecemo-nos de levar em conta que
ele é como é, e o transformamos em coisa. Quando alguém evita pensar e formular as próprias opiniões, adotando
as de outro, transforma a si mesmo em coisa.

A religião é um paradoxo: ao mesmo tempo é preciso ouvir, aceitar a tradição, e pensar, inovar a tradição. Os que
apenas seguem a tradição colocam-se na condição de ‘coisas’, não de ‘seres’. Os que apenas formulam as próprias
idéias e evitam ouvir a tradição saem fora do contexto da religião, pois transformam a religião em ‘coisa’, morta,
acabada, finita. Os que ouvem o que diz a tradição e com base nisso criam novas possibilidades estão exercendo a
sua dimensão infinita.

Se Deus existe e criou o homem, mas não desejava um homem infinito, teria criado ‘coisas’ e não homens capazes
de transgredir. Ao criar um Adão capaz de transgredir Deus não estava cometendo um equívoco. Estava deixando
claro que só assim teria algum valor o gesto de aceitação, o gesto que não é uma transgressão. Se a transgressão
não existisse como possibilidade, o ato reverente – A ÉTICA – não teria qualquer valor. Se não existisse o
Nazismo, o Judaísmo não teria valor algum. O Judaísmo é a prova de que, se a Humanidade pode produzir algo
como o Nazismo, não produz apenas Nazismo.

A Toráh deixa isto claro logo no início, quando Abrahão coloca-se em pé, acima dos três viajantes que ele convidou
para se alimentarem e descansarem em seu acampamento. Os rabinos entenderam muito bem a indireta: Se os três
viajantes eram anjos, Abrahão mostrou-se mais valioso que eles: Colocou-se acima deles. E como? Sendo
generoso. Sendo generoso com estranhos. Servindo-lhes uma refeição, e servindo-os com as próprias mãos. É
assim que nos tornamos superiores, até superiores aos anjos, diz a Toráh: quando ficamos em pé e deixamos os
que estão cansados sentarem. Quando damos a quem tem fome uma parte do nosso alimento. Quando não
perguntamos primeiro aos viajantes ‘Quem sois vós’, para só então, dependendo da resposta, lhes oferecermos
descanso e comida. Tornamo-nos superiores aos anjos quando as necessidades dos estranhos são satisfeitas em
primeiro lugar.

ESTRANHOS. DESCONHECIDOS.

PESSOAS QUE NÃO CONHECEMOS.

TU

EHEYÉH ASHER EHEYÉH, diz Deus, quando Moisés Lhe pergunta por seu nome. ‘SEREI AQUELE QUE
SEREI’, diz Deus. Ou, numa tradução menos literal, e a meu ver mais precisa, ‘SEJA EU QUEM FOR’. A
dimensão infinita de Deus está dada aí, nessa resposta aparentemente ‘malcriada’, em que Ele praticamente diz a
Moisés: ‘Deixa de fazer perguntas idiotas. Meu nome não importa, importa apenas a minha existência.’ Deus diz:
‘Sou um estranho, e jamais me conhecerás.’ (Surpreendentemente, o Zen Budismo parece ter se apropriado dessa
idéia tão judaica. Quando o discípulo faz uma pergunta, o mestre não lhe dá uma resposta mas um tabefe. Por que?
Para que o discípulo aprenda que tudo que ele é capaz de perguntar enquanto discípulo vem do raciocínio, não da
sabedoria. E deve ser jogado fora – até alcançar a iluminação.)

Essa mesma não-resposta já está implícita num momento bem anterior, quando Abrahão recebe desse Deus a
ordem de ir até um lugar desconhecido (‘que Eu te mostrarei’...), e ali sacrificar o seu filho. O seu filho único. O
seu filho amado. Isaac. Sim, porque Abrahão tinha dois filhos, cada um ‘único’ para a sua mãe, e cada qual amado.
Mas era através de Isaac que a mensagem de Deus seria levada adiante, não através do outro filho, e eis que agora
esse Deus tão esquisito lhe pede que sacrifique justamente a ESTE, a este do qual depende justamente a divulgação
para a Humanidade de que esse Deus EXISTE. Abrahão ouve e nada diz, e trata-se de um dos silêncios mais
retumbantes de toda a literatura universal. A mudez de Abrahão ao longo de todo o percurso só é quebrada quando
seu filho, a caminho do monte, lhe pergunta: ‘Pai, aqui estão a faca e o fogo, mas onde está o cordeiro para o
sacrifício?’ E nesse momento Abrahão dá uma resposta que é um exemplo magnífico de como fé, dúvida,
aceitação, revolta, indignação, humildade, amor, ódio e indiferença podem estar rugindo ao mesmo tempo numa
única alma humana: ‘Deus verá para si um cordeiro, meu filho.’ E continuam a andar ambos juntos.
Nesse episódio do quase sacrifício de Isaac, Abrahão defronta-se com o infinito de Deus, impossível de ser
compreendido. Com o infinito de Isaac, dono de um destino próprio, impossível de ser evitado pelo pai. E com o
infinito de si próprio, pois vê-se prestes a realizar um ato que ele jamais imaginaria fazendo parte das suas próprias
possibilidades. Um pai que vai conscientemente matar um filho não é um ser compreensível. Um filho que vai ser
morto pelo pai em vez de dar continuidade à sua estirpe não é um ser compreensível. Um Deus que ordena ao pai
que mate o filho POR AMOR não é um Deus compreensível.

A situação é traumática. Tão traumática para esses indivíduos, confrontados com a perda inexorável, quanto o
episódio do Monte Sinai, o confronto com a presença inexorável, o será depois para todo o povo. Nesses dois
momentos o infinito se abate com toda a sua violência sobre os nossos antepassados, e os ecos desses cataclismos
nos sacodem até hoje.

TU

O infinito da dimensão humana é o que dá ao indivíduo humano toda a sua criatividade. O infinito da dimensão
humana é o que dá a cada indivíduo a sua singularidade, transformando-o num caso único e irrepetível dentro da
história da Humanidade.

E a Toráh nos ensina essas lições desde o início. As idéias de infinito, de singularidade e de individualidade estão
lá desde o início.

Dizem que a Toráh é um livro de leis. E que as leis servem para comprimir o indivíduo dentro de um código que
o submete ao coletivo.

Não: As leis servem para que os seres humanos, individuais, singulares e infinitos consigam minimamente se
entender e viver próximos uns dos outros. A intenção das leis não é oprimir a singularidade do indivíduo, é libertar
o indivíduo da solidão total, abrindo sua consciência para a singularidade do outro. Pois, como diz Buber, é muito
mais fácil – mas ao mesmo tempo muito mais pobre – relacionar-se com coisas em vez de com seres humanos. O
Nazismo é a religião que ensina a relacionar-se com coisas. Cada um é uma coisa, acabada, conhecida, sem
perplexidades nem idéias novas. ‘1984’ é o livro que conta como seria o mundo caso o Nazismo houvesse
prevalecido. Uma linda fábula.

Nós, judeus, recebemos de herança essa outra visão de mundo, que o Nazismo queria exterminar: Na nossa visão
de mundo cada ser humano é infinitamente valioso e importante. Do ponto de vista judaico Sartre estava errado:
Os outros não são o inferno, como disse ele. Os outros são a nossa possibilidade de viver uma vida realmente
humana. Por isso nos desentendemos tanto – e continuamos juntos.

Foi esta Toráh que recebemos no Sinai, há 3328 anos atrás, e é nessa Toráh que ainda hoje encontramos idéias
novas, capazes de nos fazer entender de modo sempre novo a profundidade da existência humana. Buber, quando
escreveu seu trabalho sobre o Eu e o Tu, não estava realmente inovando, estava dando nome a algo que na Toráh
já estava implícito há muitos séculos: O homem não é uma ‘coisa’, o homem é um ‘fenômeno’ – algo que vemos
mas que não vemos por inteiro.

A assim chamada ‘percepção do outro’ depende inteiramente disto. Não podemos perceber o outro se imaginarmos
que somos capazes de conhecê-lo. Pois nesse caso ele não será ‘outro’, ele será ‘isto’ – uma ‘coisa’. Hoje em dia
fala-se muito da necessidade de ‘perceber o outro’, da importância da ‘alteridade’, da fundamental necessidade de
aceitarmos o ‘não saber’. Todas as três expressões são centrais nisso que se chama a ‘pós-modernidade’. Pois a
Toráh já é ‘pós moderna’ há muitos e muitos séculos. Nela a aceitação do não saber e a percepção do outro são
fundações, não conclusões. Abrahão era um peregrino, que veio do outro lado do rio. Moisés era um homem gago,
impaciente, fugitivo. O primeiro ‘templo’ judaico é um pé de sarsa, um arbusto espinhento que nem as cabras
apreciam.

Claro, o ‘establishment’ judaico afastou-se dessa simplicidade primordial. E foi a essa simplicidade primeva e a
essa complexidade infinita que o Hassidismo paradoxalmente acabou voltando, ao surgir. O ‘establishment’
hassídico também afastou-se, com o tempo, tanto de uma quanto da outra. Mas aí está a imperfeição humana –
filha da infinitude e da singularidade – que tornam a História uma eterna sucessão, um eterno crescimento. Como
na história do indivíduo: se você é hoje igual a quem era ontem – significa que não aprendeu nada.

Repetindo o já dito antes: O Judaísmo não hassídico não ignora nada disso. No entanto, no Hassidismo essa idéia
adquiriu um lugar central, graças ao ensinamento cabalístico do Rabi Isaac Luria, o ARI, segundo o qual Deus
criou um mundo, mas este explodiu: A Luz (energia) foi excessiva, e os ‘vasos’ que a continham (a matéria) não
suportaram a pressão. Deus, então, criou um novo mundo, e nele colocou o homem – algo no meio do caminho
entre a matéria e a pura energia divina, para ajudá-lo a consertar a obra: sendo puramente divino, Deus não tinha
como lidar com a matéria. Sendo meio material, meio divino, ao homem seria possível fazer esse trabalho. O
fenômeno mais importante dessa doutrina é o TIKÚN, o ‘conserto’, a reparação: cada pedaço de matéria – aquilo
que existe no mundo que conhecemos, e isso inclui as pessoas –, contém uma centelha da luz divina, e o homem
pode recolher essa centelha e libertá-la, santificando aquilo em que ela está presa, para que ela volte à sua origem
e o Universo se torne inteiro de novo.

O Hassidismo apegou-se, por inteiro, a essa doutrina. Assim, se para o Não-Hassidismo o homem é ínfimo diante
de Deus, para o Hassidismo o homem é o Ajudante do Criador. E ao Hassidismo cabe ensinar-lhe isso.

Terminei minha dissertação de Mestrado contando uma história que ilustra essa preocupação hassídica: Certo dia,
um grande tzadík deu um tapa na testa e gritou: ‘Já sei. Acabei de descobrir por que motivo o Diabo será realmente
julgado no Dia do Juízo Final. Não por essas besteiras de que o acusam. Ele será julgado por ter tentado convencer
o homem de que ele não é um príncipe.’

A ÉTICA HASSÍDICA

Até aqui não falei de ética. Mas creio que não é necessário. A ética é um conjunto de princípios que dão lugar a
uma série de regras de conduta, que chamamos moral. O que acabei de dizer é o princípio central do conjunto de
princípios que constitui a ética do Hassidismo.

Antes de terminar a explanação ‘teórica’, uma última palavra. Na estrutura do mundo existem, segundo a Cabaláh,
dois princípios eminentemente éticos: O princípio da Retidão, do Rigor, da Lei, Din, e o princípio da Compaixão,
da Tolerância, do Acolhimento, Héssed. Esses dois princípios se equilibram, dizem os nossos sábios de abençoada
memória, para que nunca um deles vença o outro. Essa convivência equilibrada dos opostos pode ser chamada de
Paradoxo. É possível dizer, para estabelecer uma diferença definitiva entre o Hassidismo e o Judaísmo clássico,
que lhe era contrário, que o Judaísmo clássico deixou – ao menos até certo tempo, no passado – que o princípio
do Rigor vencesse o da Compaixão. Justamente por isto, o Hassidismo inverteu a tendência da balança e fez com
que, para o homem comum, o princípio da Tolerância e da Compaixão pesasse mais que o do Rigor. No entanto,
como bem sabemos, para julgar a si mesmo, o mestre hassídico, o tzadík, usava com muito mais intensidade o
princípio do Rigor.

O outro princípio ético fundamental do Hassidismo tem por base a noção cabalística de Tzimtzúm. Tzimtzúm é o
‘encolhimento’ que Deus decidiu fazer, diminuindo a si próprio de ‘tamanho’ a fim de deixar livre um espaço onde
o mundo, o aspecto material, não divino, do Universo, pudesse existir. Para o Hassidismo, à semelhança do que
os cristãos chamam de ‘imitatio Dei’, a imitação de Deus, cabe ao homem encolher, restringir-se um pouco, a fim
de dar lugar ao outro. Isto, em certo sentido, é banal, pois não é diferente do que a filosofia pós-medieval chamou
de ‘contrato social’ – a auto-limitação da própria liberdade realizada pelos membros da sociedade a fim de viverem
em conjunto com menos atrito. No entanto, quando passamos para situações onde existiria uma hierarquia
‘natural’, como na relação entre empregador e empregado, mestre e aluno, ou ainda mais, entre pais e filhos, o
contrato social não basta, pois o elemento mais fraco da situação não está em condições de cobrar os seus direitos.
Nesse momento, o tzimtzúm aparece com todo o seu peso emocional, social e político. A sociedade hassídica típica
é descrita, pelos autores, como uma sociedade de iguais, não porque as pessoas são iguais, mas porque têm todas
o mesmo valor, independente de quem sejam, e do lugar que ocupam na pirâmide social. Embora central ao tema
da ética hassídica, o tzimtzúm já deve ter sido apresentado a vocês na palestra anterior, de modo que não vou me
estender a esse respeito.

Vou ilustrar alguns dos aspectos dessa ética com as seguintes histórias, a primeira das quais ilustra justamente o
ponto do rigor com que o mestre julga a si próprio, e as demais ilustrarão o modo como o tzadík comporta-se em
relação ao homem comum, seja por força do princípio da compaixão, seja por força do tzimtzúm:

O Rabi Rafael de Berschad era conhecido nos mais distantes rincões por seu amor à verdade. Certa vez devia
prestar um depoimento decisivo sobre a vida de um judeu acusado de um crime. O Rabi Rafael sabia que o homem
era culpado. Na noite anterior ao julgamento não se deitou e debateu-se, em prece, até o raiar da madrugada.
Depois deitou-se no chão, fechou os olhos e morreu.

Perguntaram ao Maguid de Zlotschov: Todos os mandamentos constam da Toráh. Mas a humildade, que vale mais
do que todas as outras virtudes, não figura aí como mandamento. Há apenas elogios a Moisés por ter sido o mais
humilde dos homens. O que significa este silêncio? Respondeu o Rabi: — Se alguém quisesse exercer a humildade
a fim de cumprir um mandamento, não chegaria jamais à verdadeira humildade. Achar que a humildade é
mandamento é inspirar-se em Satã. Ele infla o coração do homem, diz-lhe que é sábio e justo e temente a Deus, e
que seria digno de se elevar acima do povo, mas que isso seria soberba e que é necessário ser humilde e ser comum,
igual a toda a gente; o homem cumpre o pretenso mandamento, e assim alimenta ainda mais seu orgulho.

Andando na rua, o Rabi de Berditschev dirigiu-se certa vez a um homem que ocupava um alto cargo, e que era tão
mau quanto poderoso, e lhe disse: — Senhor, eu o invejo. Quando você se voltar para Deus, cada uma das suas
manchas se transformará num raio de luz. Sabe, eu o invejo por seu grande brilho.

Quando Levi Itzhak se tornou Rav de Berditschev, combinou com os chefes da comunidade que não o chamariam
para suas reuniões, a menos que fossem instituir algum novo costume, ou nova ordem. Um dia foi convidado a
participar de uma sessão. Logo depois de saudá-los, perguntou: — Qual é o novo costume que vocês pretendem
estabelecer? — Responderam: — Queremos que os pobres, doravante, não mais peçam esmolas à soleira das
portas. Vamos criar uma caixa, e todos os abastados contribuirão com dinheiro segundo suas fortunas, e com isso
os necessitados serão atendidos. — Ao ouvi-lo, o rabi falou: — Meus irmãos, não solicitei que não me tirassem de
meus estudos por qualquer coisa antiga, por qualquer regra já conhecida, e não me fizessem vir às suas reuniões à
toa? — Admirados, objetaram os administradores: — Mestre, trata-se de uma instituição nova, sobre a qual só
hoje iremos deliberar! — Estão enganados — exclamou o rebe, ela é antiqüíssima! É um costume muito antigo,
que vem de Sodoma e Gomorra. Vocês não se lembram do que é contado a respeito da jovem que, em Sodoma,
deu um pedaço de pão a um mendigo? De como agarraram a jovem, despiram-na, lambuzaram-na de mel e
lançaram-na às abelhas, devido ao grande crime que ela havia perpetrado? Quem sabe, talvez também eles
possuíssem uma caixa da comunidade, onde os abastados depositavam suas esmolas para não terem de olhar seus
irmãos pobres nos olhos.

No curso de suas longas andanças, os irmãos Rabi Zússia e Rabi Elimelech, todas as vezes que chegavam à cidade
de Ludmir, costumavam hospedar-se em casa de um homem pobre e piedoso. Anos mais tarde, quando sua fama
se espalhara por toda parte, foram novamente a Ludmir, não a pé como outrora, mas de carruagem. O homem mais
rico da cidadezinha, que antes nada queria com os dois, foi-lhes ao encontro tão logo teve notícia de sua
aproximação, e pediu-lhes que se hospedassem em sua casa. Mas eles disseram: — Em nós nada mudou para que
você nos respeite mais do que antes. A única coisa nova são a carruagem e os cavalos. Receba-os pois em sua casa,
mas deixe-nos buscar abrigo numa casa onde sempre nos sentimos bem.
Contam: ‘Um aldeão e sua mulher foram ao Maguíd de Kosnitz e pediram-lhe orações para que lhes nascesse um
filho, pois não tinham nenhum. — Dai-me cinqüenta e dois florins, disse o Maguid — que é o valor numérico da
palavra ben, filho. — Dez florins lhe daremos com prazer — retrucou o aldeão; o Maguid, porém, se recusou a
receber tão pouco.

Assim,o homem dirigiu-se ao mercado e voltou com um saco cheio de moedas de cobre, que ele espalhou sobre a
mesa: vinte florins. Veja quanto dinheiro! — exclamou. Mas o Maguid não reduziu sua exigência. Com isso, o
aldeão ficou furioso, juntou todo o dinheiro e disse à mulher: — Vamos embora, mulher: Deus há de nos ajudar
sem as orações desse pretensioso! Já conseguiram a Sua ajuda — disse o Maguid. Agora deixem-me os dois florins,
que para mim são o bastante. E no ano seguinte tiveram o seu filho.

Havia um rabino anti-hassídico, Rabi Azriel, na cidade em que vivia o Vidente de Lublin. Um dia ele perguntou
ao Vidente: — Como ocorre que tanta gente se aglomera em torno de você? Eu sou mais versado do que você nas
escrituras, mas a mim ninguém vem. — O tzadík respondeu: — A mim também me espanta que tantos se
aproximem de alguém tão insignificante como eu para ouvir a palavra de Deus, em vez de a procurarem junto de
você, cuja erudição move montanhas. Mas talvez o caso seja: Vêm a mim porque a mim me surpreende que
venham, e não vão a você, porque a você o espanta que não venham.

Vivia em Lublin um grande pecador. Cada vez que desejava falar com o Rabi, este o atendia prontamente e
conversava com ele, como se fosse um amigo de confiança. Muitos hassidím irritavam-se com o fato e um dizia
ao outro: — Como é possível que o Rabi, a quem basta olhar a testa de alguém para saber toda a sua vida até
aquele dia, não veja que esse homem é um pecador? E se ele vê, como é que o distingue com seu convívio e sua
conversa? — Finalmente, reuniram suficiente ânimo para chegar diante do Rabi e questioná-lo. Respondeu-lhes:
— Sei disso tão bem quanto vocês. Mas vocês também sabem o quanto amo a alegria e odeio a melancolia. E este
homem é um pecador realmente grande. Outros se arrependem no momento em que pecaram, ficam tristes por um
instante e depois voltam à sua estupidez. Mas esse não conhece a tristeza, nem pensamentos tristes, e mora em sua
alegria como numa torre. E é o brilho de sua alegria que domina meu coração.

Certa vez um hassíd do Rabi de Lublin jejuou de sábado a sábado. Na tarde de sexta-feira, foi tomado de tamanha
sede que pensou estar morrendo. Então viu um poço, foi até ele e quis beber. Mas de repente, pensou que, por uma
única hora que ainda teria de agüentar, ia destruir toda a obra daquela semana. Não bebeu e afastou-se do poço.
Então sobreveio-lhe o orgulho de ter passado por aquela prova severa. Logo que o percebeu, disse de si para si: —
É melhor eu ir lá e beber do que meu coração ser vítima do orgulho. — Voltou ao poço. Já estava debruçado para
tirar água, quando percebeu que a sede o havia abandonado. Depois de iniciado o shabát, foi à casa de seu mestre.
— Colcha de retalhos! — gritou-lhe o rabino, assim que ele entrou.

E um dia entrou uma mulher na sala do tzadík. Este percebeu imediatamente que se tratava de uma adúltera, e
gritou-lhe: ‘Sai daqui, pecadora. Não venha sujar a minha casa com os seus pecados’. A mulher, branca de medo
e cólera, disse entredentes: ‘Até hoje Deus não deixou que soubessem do meu segredo. Quem é você para torná-
lo público?’ E dali em diante o tzadík costumava contar: Em minha longa vida ninguém conseguiu me vencer. Só
uma mulher, e uma única vez.’

Alguns mitnagdim (adversários do Hassidismo) procuraram o Rabi Israel quando este se encontrava de passagem
por sua cidade, e se queixaram: — Em nossa congregação rezamos ao alvorecer e em seguida nos sentamos,
envoltos em nossos talitim, com os filactérios na cabeça e nos braços, e estudamos um capítulo da Mishnáh. Os
hassidim não são assim. Eles rezam depois que a hora prescrita já passou e, terminadas as suas preces, sentam-se
juntos e põem-se a beber aguardente. E apesar disso nós somos chamados de ‘adversários’ e eles de ‘piedosos’
(significado de ‘hassidim’).

Leib, o shamash (bedel) do Rabi Israel, caiu na gargalhada e disse: — O serviço e a oração dos mitnagdim são
gelados, não têm calor algum, assim como um morto, e quando se vela um morto, estuda-se precisamente a parte
da Mishnáh prescrita para aquele dia. Os hassidim, porém, quando prestam o seu pobre serviço, ficam com os
corações inflamados e quentes como um homem vivo, e quem é vivo precise de uns schnaps (umas pingas).
O Rabi disse: — Deixemos passar o gracejo. A verdade, porém, é a seguinte: A partir do dia em que o nosso
Templo foi destruído, a oração substituiu o sacrifício. E assim como o sacrifício perdia sua validez quando o
pensamento era impuro, também assim acontece com a oração. Por isso, o Impulso do Mal fica à espreita a fim de
confundir o rezador com algum tipo de pensamentos estranhos. Mas os hassidim descobriram agora um contra-
ardil. Após a reza, sentam-se juntos e brindam-se: Lecháyim (Á Vida!). Cada um expressa aquilo que lhe oprime
o coração, após o que um diz ao outro: ‘Possa Deus satisfazer o teu desejo!’ E assim como — segundo os nossos
sábios — as preces podem ser proferidas em qualquer idioma, esta sua forma de falar e responder enquanto bebem
é também considerada oração. Mas a única coisa que o Impulso do Mal vê é que eles estão comendo, bebendo e
proferindo palavras corriqueiras, e por isso deixa de se preocupar com eles.

Certa vez, os hassidim estavam sentados e bebiam juntos quando o Rabi entrou. O seu olhar não lhes pareceu
amistoso. - Desagrada-lhe, Rabi, porque bebemos? — perguntaram. — Dizem, porém, que, quando os hassidim
se encontram juntos bebendo, é como se estivessem estudando a Toráh! — Há muitas palavras na Toráh, algumas
das quais sagradas e outras profanas — replicou o Rabi Israel. — Assim, por exemplo, está escrito: ‘Então disse o
Senhor a Moisés: Lavra-te duas tábuas de pedra’; mas em outro lugar também consta: ‘Não te lavrarás imagem
esculpida!’ Por que motivo a mesma palavra é santa numa passagem e profana na outra? Vejam, isto ocorre porque
a palavra ‘te’ em um lugar vem antes e noutro vem depois. Assim é com todas as ações. Onde o ‘te’ sucede, tudo
é sagrado, e onde o ‘te’ precede, tudo que precede é profano.

E há uma última história: Um judeu muito simples costumava, na sinagoga, repetir ‘Barúch hu ubaruch shemó’
toda vez que chegava ao fim de uma frase, que no sidúr é separada da outra por dois pontos. O tzadík, ao perceber
isso lá pelas tantas, perguntou-lhe por que ele assim fazia. Disse o judeu: Ora, rebe, toda vez que tem dois ‘yíden’
(a letra yud, mas também ‘judeus’), se trata do Santo Nome, não é assim? ‘Não, explicou o rebe. Só se trata do
Santo Nome quando um yid está ao lado do outro. Quando um yid está por cima e o outro por baixo, não é o Santo
Nome não.’

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