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Caderno Pedagógico - Criciúma

Caderno História das


Populações Afro-Brasileiras em Criciúma
2
Caderno Pedagógico - Criciúma
Universidade do Estado de Santa Catarina

Prof. Dr. Sebastião Iberes Lopes Melo


Reitor
Prof. Dr. Antonio Heronaldo de Sousa
Vice-Reitor
Prof. Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso
Pró-Reitor de Extensão, Cultura e Comunidade
Prof. Dr. Jarbas José Cardoso
Diretor Geral do Centro de Ciências Humanas e da Educação - FAED
Profª. Dra. Alba Regina Battisti de Souza
Diretora de extensão do Centro de Ciências Humanas e da Educação - FAED
Profª. Dra. Jimena Furlani
Coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros - NEAB/UDESC

Conselho Editorial
Profª Msc. Neli Góes Ribeiro
Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC
Prof. Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso
Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC
Prof. Dr. Wilson Roberto de Mattos
Pró-Reitoria de Pesquisa e Ensino de Pós-Graduação -
Universidade do Estado da Bahia - UNEB
Prof. Dr. Ahyas Siss
Vice-Diretor do Instituto Multidis-ciplinar - Campus da UFRRJ em
Nova Iguaçu -Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ
Prof. Dr. Paulo Vinicius Baptista da Silva
Coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros - NEAB/UFPR -
Universidade Federal do Paraná - UFPR
Profª Msc. Claudia Rocha
Coordenadora do Centro de Estudos dos Povos Afro-Índio-Americanos -
Cepaia - Universidade do Estado da Bahia - UNEB

Colaboração
Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC

Karla Leandro Rascke


Graduanda em História e Bolsista do Núcleo de
Estudos Afro-Brasileiros - NEAB/UDESC
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Caderno Pedagógico - Criciúma

Caderno História das


Populações Afro-Brasileiras em Criciúma

1a edição

Itajaí - 2008
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Caderno Pedagógico - Criciúma

Editores
José Isaías Venera
José Roberto Severino

Comercial
Ivana Bittencourt dos Santos Severino

Rua Lauro Müller, n. 83, Centro, Itajaí - CEP. 88301.400


Fone/Fax: (47) 30455815

981. 642 Caderno história das populações afro-brasileiras em Criciúma /


C122 Organizadores, Iolanda Manoel Lima, Adiles Lima [et. al.] –
Itajaí : Casa Aberta, 2008.

162. p.: il.


(Coleção África Brasil)

1. Criciúma - História. 2. Afrodescendente. 3. Caderno


Pedagógico. I. Lima, Iolanda Manoel (org.). II Lima, Adiles (org.).

CDD – 981.642

Revisão
Débora Michels Mattos

Projeto Gráfico e diagramação


J. I. Venera
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Caderno Pedagógico - Criciúma

Sumário

Apresentação 7

Introdução 11
Promovendo a igualdade racial da
população negra nas escolas munici-
pais de Criciúma

Panôs de sobrevivência: 17
pedaços de vidas enlaçados pela
moradia e pelo trabalho

Bairro São Simão: 43


da diáspora às múltiplas identidades
dos moradores e moradoras

Entre a mina, o lixão, 65


a escola, e os orixás:
encontros com locais de memórias e
histórias do Bairro Renascer

Mãos que lavam, escolhem, torcem: 87


memórias de mulheres negras no
Bairro Metropol
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Caderno Pedagógico - Criciúma

Palavras carregadas 111


de sentido:
reflexões sobre as relações
étnico-raciais na escola

Professoras negras do 123


bairro Pinheirinho:
o giz em movimento

Samba e sincretismo religioso 143


no Santo Antônio:
um bairro carnavalesco
e de resistência
7
Caderno Pedagógico - Criciúma

Apresentação

Este documento é de fundamental importância para


a sedimentação de uma concepção histórica que
considera todos como sujeitos construtores da sua
história e da história da sociedade.
Durante muito tempo, a história oficial inviabilizou
e excluiu a participação de diversos sujeitos que não se
enquadravam nos padrões estabelecidos por uma elite
dominante, produzindo assim, uma sociedade
permeada de discriminação e preconceito.
Contudo, a educação pode contribuir significativa-
mente neste processo promovendo a discussão e a
reflexão acerca de temáticas que apontem para a
construção de uma concepção diferente, buscando
promover mudanças.
Neste sentido, a Secretaria Municipal de Educação
de Criciúma cria o PMEDEC (Programa Municipal de
Educação para a Diversidade Étnica Cultural)
regulamentado por decreto municipal, que tem por
objetivo principal a implementação da Lei Federal
10.639/03, que estabelece que, em todos os
estabelecimentos de ensino, particulares e públicos, será
obrigatoriamente oferecido o ensino de História da
Cultura Afro-Brasileira e Africana.
É necessário lembrar que, há alguns anos, foi
aprovada a Lei 3.410/97, da autoria do ex-vereador
Nelo Satiro, que também estabelecia o ensino da história
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Caderno Pedagógico - Criciúma

dos afro-brasileiros no município de Criciúma. Tanto a


Lei Federal 10.639/03, quanto a Lei Municipal 3.410/
97, vêm fomentar o respeito inter-étnico entre escola,
secretaria e comunidade em geral.
O programa está dividido em eixos norteadores,
como: formação continuada, produção de material
didático pedagógico, estudos e projetos e fortalecimento
institucional. Esses eixos têm o intuito de desconstruir o
racismo, a discriminação e o preconceito, tão
internalizados nas escolas e que vêm manifestando-se
por meio de xingamentos, apelidos pejorativos, piadas
e até mesmo, ainda que sutilmente, por meio dos livros
didáticos.
Para subsidiar o corpo docente, foram realizadas
formações com professores multiplicadores, diretores e
orientadores educacionais, com o objetivo de incluir no
PPP da sua escola a Lei 10.639/03, pois acreditamos
que o negro não é pensado nas suas especificidades,
mas, de maneira genérica.
Desta forma, busca-se perceber e modificar a cultura
escolar a partir de um olhar voltado para a inclusão e
para a construção de um PPP cujos fazeres
diferenciados estejam direcionados ao coletivo,
ressignificando, assim, o currículo etnocêntrico,
conivente com o mito da democracia racial.
O trabalho com a história oral é uma metodologia
de pesquisa que se baseia em fontes orais. O diálogo
com o passado e o presente identifica as possibilidades
de intervenção e participação na realidade em que
vivemos. Essa metodologia consiste, também, numa
forma de captar informações relacionadas ao estudo
da história local. Com base nela, elaboramos alguns
artigos a partir das experiências obtidas junto a sete
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Caderno Pedagógico - Criciúma

escolas da Rede Municipal. Estes artigos compõem parte


do "Caderno Pedagógico" que irá contar, inclusive, com
história do afrodescendente no município de Criciúma.
Portanto, esta produção tem como prioridade dar
visibilidade às experiências cotidianas de homens e
mulheres, enfatizando o seu papel como sujeitos
históricos que estabelecem relações e que interferem e
sofrem interferência no seu contexto.
Os artigos abordados permitem que o aluno e a aluna
visualizem os diferentes sujeitos, excluídos do processo,
percebendo-os como atuantes e transformadores de sua
história, e que, professores e professoras disponham de
subsídios que permitam repensar suas práticas,
potencializando seus fazeres. Enfim, que todos possam
se perceber como sujeitos críticos, capazes de lutar pela
conquista de sua cidadania.

Marly Nunes Pacheco


Secretária Municipal de Educação
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Caderno Pedagógico - Criciúma
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Caderno Pedagógico - Criciúma

Introdução

Promovendo a igualdade
racial da população negra
nas escolas municipais de
Criciúma
Iolanda R. Lima Manoel*

Para o desenvolvimento de práticas anti-racistas na


escola, é necessário que reflitamos um pouco sobre a
escola e sua função social. Durante muitos anos, a
escola valorizou uma educação e cultura eurocêntrica
e patriarcal, desprezando a história, cultura e valores
de muitos alunos e alunas. A função social da escola
era de reproduzir conhecimentos a serviço de um
currículo dominante e sua relação com a sociedade que,
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Caderno Pedagógico - Criciúma

por séculos, explorou os povos minoritários. Fica, para


nós, refletirmos sobre a omissão, no currículo escolar,
das informações acerca da presença e da participação
dos negros (as) na história brasileira.
Nesse sentido, é necessário que a escola tenha um
olhar mais amplo para as experiências que crianças e
jovens negros(as) vivenciam, com o intuito de propor
situações de aprendizagem em que a atuação dos
mesmos seja importante na construção de sua
identidade. Desenvolver e apoiar ações que contemplem
a diversidade étnica racial requer sensibilidade, respeito
e tolerância por parte dos governantes e de toda
sociedade. Portanto, as políticas públicas e as ações
afirmativas são mecanismos necessários para a
promoção da igualdade racial.
É no bojo dessa afirmação que a Lei 10.639/03 vem
oportunizar, à sociedade brasileira, a inclusão no
currículo escolar da História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana, bem como a valorização e contribuição do
povo negro à história brasileira.

A Implementação da Lei Federal 10.639/03


no município de Criciúma e sua relação com
a Lei Municipal 3.410/97
O município de Criciúma, em 2007, completou uma
década na trajetória e luta da educação anti-racista. A
Lei Municipal 3.410/97 foi conquistada através do
movimento negro local e que, em 2003, teve amparo
maior com a aprovação da Lei 10.639/03 que hoje,
por meio de várias ações reparatórias, pretende garantir
aprendizagens significativas aos nossos alunos e criar
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Caderno Pedagógico - Criciúma

um currículo multicultural, em que todos os sujeitos


estejam representados nele.
Ao implementar a Lei 10.639/03 na rede municipal
de Criciúma, foi criado e regulamentado o PMEDEC
(Programa Municipal de Educação para a Diversidade
Étnica Cultural), que tem os mesmos objetivos das
referidas leis municipal e federal e criou, a partir delas,
ações para o funcionamento do Programa, garantindo,
de forma sistemática e processual, a formação e
produção de materiais acerca da questão racial na sala
de aula, desde a Educação Infantil até os anos finais do
Ensino Fundamental.

Quebrando preconceitos e construindo


novas práticas
A formação para os docentes envolve, portanto, a
oferta de subsídios teóricos e práticos sobre a
diversidade étnica racial, caracterizando-se a primeira
ação realizada, tanto para os gestores da Secretaria
Municipal de Educação, quanto para os professores,
diretores e orientadores, com o intuito de dar suporte
necessário às formações no decorrer do processo.
O Programa é estruturado em três eixos para garantir
a sua execução de forma linear e não-fragmentada.
Assim, a formação continuada, a produção de materiais
e o fortalecimento institucional norteiam o trabalho, cujas
parcerias com o NEAB/UDESC (Núcleo de Estudos
Afro-Brasileiros da Universidade do Estado de Santa
Catarina); com o NEGRA (Núcleo de Estudos de
Gênero e Raça) e com a Secretaria Municipal de
Educação de Criciúma, foram indispensáveis e decisivos
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Caderno Pedagógico - Criciúma

para a sua elaboração, execução, acompanhamento e


avaliação.

A colonização de Criciúma: o que a história


local “esqueceu” de contar?
Esse questionamento nos moveu para uma discussão
da invisibilidade da população negra criciumense,
quando professores e professoras, durante as formações
promovidas pelas instituições parceiras, perceberam e
sentiram grande dificuldade de registros mais completos
da chegada dos negros e negras a esse município.
Sabemos que a grande maioria veio de cidades como
Laguna, Jaguaruna, Morro Grande e outras, sobretudo
para trabalhar nas minas de carvão e na Estrada de
Ferro Dona Tereza Cristina.
Temos poucos registros das primeiras famílias aqui
chegadas e em que outros setores buscaram seu sustento.
É nesse momento que o Programa entra com mais uma
ação educativa: a de contar à sociedade criciumense e,
em especial, aos nossos alunos e alunas, a contribuição
que a população negra dedicou a Criciúma.
Ao meio de pesquisas e entrevistas com moradores
negros e não-negros das comunidades inseridas na
produção, constatou-se que essas famílias também
trabalhavam em outras funções. Não podemos deixar
de registrar a presença das mulheres negras no mercado
de trabalho que, sozinhas, ao lado de suas famílias ou
companheiros, labutaram para a manutenção de sua
sobrevivência.
Essa produção relata parte da história de negros e
negras: as memórias, a cultura, a religião e suas relações
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Caderno Pedagógico - Criciúma

inter-étnicas apresentadas por sete escolas municipais.


Esperamos que a publicação dessa obra seja o início
do registro das várias histórias que ainda não foram
contadas. Esse instrumento, com certeza, contribuirá
para ressignificar nossa história e ajudar negros e negras
a encontrar sua identidade, elevar sua auto-estima e ter
mais oportunidades, garantindo-lhes uma visibilidade
positiva no seio da sociedade a que pertencem. Essas
histórias visam criar vínculos e abrir espaços de diálogo
com outros povos e culturas, de maneira que todos
possam ser respeitados e tratados com igualdade.

Notas:
*
Iolanda R. Lima Manoel é graduada em Pedagogia pela
Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC;
especialista em Tecnologia Aplicada à Educação, pela
Faculdade Bagozzi; e coordenadora do Programa Municipal
de Educação para Diversidade Étnica Cultural – PMEDEC.
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Caderno Pedagógico - Criciúma
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Caderno Pedagógico - Criciúma

Panôs de sobrevivência:
pedaços de vidas enlaçados pela moradia e
pelo trabalho

Lucy Cristina Ostetto1


Mariza Cardoso da Cunha2
Maristela dos Santos Machado3
Rosimari Gorete Joaquim4

Dona Maria Leda,5 uma de nossas interlocutoras,


no percurso desta pesquisa realizada por alunos/as e
professoras da Escola Municipal Adolfo Back, enfatizou,
ao término de sua entrevista “[...] e isto é um pedaço
da minha vida!”. Desta fala, surgiu a inspiração para o
título deste artigo, que por meio de memórias de
moradores(as) afrodescendentes do Bairro Jardim
União,6 outrora também conhecido por Vila Palmares,
pela grande concentração de famílias afrodescendentes,
problematiza a formação do bairro, o significado da
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Caderno Pedagógico - Criciúma

aquisição de suas moradias e os trabalhos exercidos


por homens e mulheres para a sobrevivência familiar.
No encontro com estes sujeitos, foram desenhados
quadros ou pedaços de vida que eram emersos pelo ato
de lembrar. São, portanto, modos de agir, pensar e sentir,
que, segundo Halbwachs (Apud BOSI, 1987), vão ter
como suporte as relações estabelecidas entre os sujeitos
e os grupos de convívio. Por isso, suas lembranças são
amarradas à memória do grupo; entre eles, a família e
o trabalho.
Estes quadros ou pedaços nos remetem aos panôs
de uma história afro-brasileira 7, segundo a qual,
algumas crianças passaram a conhecer a história da
avó africana de Bruna. Transformados em artefatos,
configuram-se como um suporte para socializar
diferentes histórias que serão tecidas aqui, a partir da
linguagem, das narrativas que conferem aos depoentes:
“[...] o caráter não só pessoal, mas familiar, grupal,
social, da memória”. (BOSI, 1987, p. 27)
Os panôs, que por ora vão ganhando consistência,
permitem-nos visibilizar como este bairro recebeu o
nome de Jardim União. A professora Mariza Cardoso
da Cunha, que já residiu no bairro, informa que quando
se reuniam no Bar do Pato (Reginaldo Alves), entre uma
e outra conversa, comentavam: “Aqui tem tantos negros
que poderia se chamar de Vila Palmares.” Dona Dalziza8
recorda que “Os vizinhos combinaram de botar Jardim
União e ficou assim.” Dona Maria Leda9 ressalta, no
entanto, que o bairro passou a ser chamado de Jardim
União, em homenagem a um bairro já existente
chamado Mina União.
Com a abertura “da boca da mina” da Carbonífera
União Ltda. na década de 1910, 10 iniciou-se o
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Caderno Pedagógico - Criciúma

povoamento desta região. Por ter, além de uma área


minerada, uma área verde, propiciou o loteamento de
novos terrenos para abrigar as famílias dos mineiros,
originando-se assim diferentes operárias.
Conforme Dona Carmela:
O Jardim União foi loteado bem depois. Aquelas terras
pertenciam ao Senhor José Milanez e a outra parte do Senhor
Fortunato Simão. Mas perto do seu Severino Meller, do lado
esquerdo, era do Senhor Martinho Brunel; do lado direito,
era do Senhor José Milanez, onde está o parque ecológico.
Os terrenos da parte esquerda eram da Companhia. O
Senhor Arcangelo Meller também tinha uma parte.11
Neste sentido, foi a partir do bairro Morro da
Miséria,12 atual Mina União; que o bairro Palmares, atual
Jardim União; Tristeza, atual bairro Vila Belmiro; Sapo,
atual bairro São Sebastião; e pequenas comunidades
constituídas de apenas uma rua foram se formando.
Estas operárias foram sendo fixadas ao longo da Rua
do Pé Sujo (atualmente Rua Ângela Mello). Esta rua
passou a ser conhecida como Rua do Pé Sujo, “[...]
porque aos domingos à tarde as famílias (operárias) se
reuniam numa casa, tocavam e dançavam descalços.
Na verdade, era só aquela rua que sai do Seu Zé do
Norte até o seu Severino Meller.”13
Seu José Francisco dos Passos,14 (Zé do Norte),
apelido este que recebeu porque quando chegou aqui
foi numa bodega beber um trago e o dono da bodega
perguntou de onde que ele era, se era do norte ou do
sul, ele disse que era do norte. Daí o apelido Zé do Norte.
Conta-nos que chegou com sua família em 1959 e
começou a trabalhar na Mina União no dia 02 de março
de 1959, sendo José Portela o seu proprietário. Para
trabalhar, descia pela gaiola até sessenta metros de
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Caderno Pedagógico - Criciúma

profundidade. Quando chegou aqui, era tudo muito


difícil, mas como chamavam qualquer pessoa para
trabalhar na mina, conseguiu um emprego que durou
12 anos. Ele relembra que o Senhor Jaime Portela deu
uma carta para que fosse ao médico, porque sentia
muita dor de estômago. “Naquele tempo, os donos de
mina eram meio brabo. O médico queria cortar, mas
eu não quis. Só deu um tratamento e eu melhorei.”
Seu Zé do Norte lembra que existiam três bocas de
minas próximas à sua casa. Hoje, onde eram as minas,
está o Parque Ecológico da Mina União. A outra está
situada bem próxima à EEB “Irmã Edviges”, sendo o
terreno pertencente ao Senhor Guglielmi. A outra estava
situada nas Ruas Reginaldo Pedro Dias e José Borges,
hoje, com moradores fixos, no bairro Jardim União. A
retirada do carvão era feita a céu aberto.
Conta-nos, também, que havia uma estrada no meio
do mato que só passava pessoas a pé e de carro de boi.
Eles a utilizavam para ir à venda do Seu Simão, que
hoje fica no final da Vila Progresso, depois da pracinha
à esquerda. Ainda hoje, há moradores nesta casa. Do
outro lado da estrada, havia um galpão onde se
carneavam os bois.
Nossa conversa também permitiu que Seu Zé do
Norte relembrasse sobre sua família. Assim ficamos
sabendo que seus pais moravam no interior do
município de Imaruí, que ele tinha dez irmãos e que
eram muito pobres. Seus pais trabalhavam com a pesca.
E, com pesar, diz-nos: “A vida não era muito fácil. Meu
pai nunca me botou na escola. Como eu sinto falta!
Nunca fomos para a escola, era muito longe, precisava
trabalhar para poder comer!” Ia para o mato com o
machado para derrubar madeira o dia todo e voltava
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Caderno Pedagógico - Criciúma

para casa com 500 réis. A casa dos meus pais era feita
de ripas, cipó e barro. A cobertura era feita de palha do
mato. Era feita pelos vizinhos que ajudavam. Tinha
apenas uma repartição. O chão era batido, o fogão tinha
quatro pés e só cozinhava com lenha. Tinha um arame
pendurado na cumeeira da casa, até em cima do fogão,
com uma trempe na ponta para pendurar a panela ou a
chaleira. Os banquinhos eram feitos de madeira, a cama
(tarimba) era de bambu (alambrado), colchão de palha
de milho e a coberta e travesseiro eram feitos do algodão
que sua mãe, às vezes, plantava.
Hoje com 80 anos, mora próximo à E.E.B. Irmã
Edviges, no bairro Mina União. Casado com a Senhora
Sartira de Oliveira dos Passos, com quem vive junto há
50 anos, tiveram nove filhos. Atualmente, está
aposentado por invalidez, pois adquiriu uma hérnia pelo
esforço que fazia, empurrando os carrinhos de carvão
(vagões) e no trabalho com as picaretas. Seu Zé foi
enfático: “Era tudo muito pesado. Tinha que trabalhar
muito tempo deitado. Era tudo no muque!” E mesmo
tendo dedicado horas, dias e noites no trabalho
exaustivo da mina, o que ganha do aposento é muito
pouco, não dá para se manter e, por isso, ainda trabalha
com compra e venda de ferro velho.
Atraídas pelo emprego nas minas, a exemplo de Zé do
Norte, muitas famílias afrodescendentes vão formando,
junto com famílias italianas, um mosaico de vilarejos no
entorno da Rua do Pé Sujo. Os italianos ficaram na parte
alta do Morro da Miséria, atual Mina União, pois num
primeiro momento se dedicaram ao plantio e à criação de
animais, sendo os proprietários da maioria das terras.
Porém, a parte baixa da vila foi sendo habitada por
famílias vindas para trabalhar na mineração.
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Caderno Pedagógico - Criciúma

Dentre as famílias afrodescendentes, destacamos a


família da Senhora Margarida Vargas Cardoso, hoje com
73 anos de idade, moradora ainda da parte baixa do
bairro Mina União, viúva do Senhor Hercílio Cardoso,
mãe de oito filhos. Natural de Pescaria Brava, município
de Laguna, veio a Criciúma casada, acompanhando
seu esposo que trabalhava, como mineiro, na
Carbonífera União Ltda. Ao relatar sobre a sua vinda a
Criciúma em 1954, destaca:
Nossa mudança veio de trem. Trouxemos dois sacos brancos
amarrados. Eu era pobre e não tinha me preparado para
casar. O trem veio até o centro de Criciúma. Daí o meu
marido falou com um homem que morava no bairro e que
tinha uma carroça para ele ir nos buscar na estação. Minha
mudança foi dois sacos amarrados! Além de uma caixa,
um baú que eu ganhei do meu pai, e que tinha sido da
minha mãe. O Hercílio já tinha vindo antes, tinha arrumado
serviço, arrumado a casa, porque aqui era uma operária
bem grande. E, para receber os mineiros que não tinham
casa para morar, a companhia fornecia a casa. O
encarregado da mina, que arrumou a casa. As casas,
naquele tempo, estavam todas em reforma. Ficaram bem
bonitinhas. Tinha umas casas que eram pequenas e outras
bem maiores. O encarregado da mina disse que a casa ia
levar oito dias para ficar pronta, pra nós poder entrar pra
morar. Quando chegamos aqui, ainda não tinham
terminado. Mas, nós já tava aqui. Chegando aqui então,
ficamos na casa da vó da Maria do Seu Nelinho. Numa
casa em frente à igreja. Eles eram conhecidos do meu
marido. Ela disse: “Vem pra cá, fica comigo!” Ficamos na
casa dela por cinco dias. Quando ficou pronta, fomos morar.
Não tinha móveis, só um fogãozinho à lenha, quase toda
casa tinha. Era um fogão de tijolo, tinha até um forninho.
Onde eu me criei, só tinha fogão de lenha. E, até hoje, eu
tenho! Mas as outras coisas, não tinha nada. Fomos lutando
e comprando os móveis bem devagarzinho.15
23
Caderno Pedagógico - Criciúma

O depoimento de Dona Margarida nos fornece um


quadro repetido por várias famílias que, atraídas pela
mineração, passaram a habitar nas vilas operárias
construídas pela própria mineradora. Neste sentido, o
trabalho nas minas garantiu o sustento da família.
Chegaram à cidade com uma perspectiva de trabalho,
um local para morar e a vontade de lutar por melhores
condições de vida. Não sem dificuldades! Pois, conforme
relata Dona Margarida:
[...] Quando eu morava ali atrás, eu tinha um quintalzinho,
porque a gente não tinha terra. Plantá árvore, nem pensar,
porque o pé ocupava muito lugar, já esta coisa mais pequena
dava, só as saladas. Não tinha água encanada. Pra lavar
roupas, só no coxo, mas longe de casa, com a água puxada
de balde do poço ou na fonte! Só depois, colocaram a
água encanada e que colocaram os postes nas ruas e energia
nas casas, mas quando a gente veio morar aqui, não tinha
nada, nada! No começo era na base da lamparina de
querosene e vela. Depois a energia podia ser usada até as
onze horas, mas cortaram. E bem depois, podia usar energia
à vontade.16
Destes tempos de luta, em que não havia água
encanada, que a roupa era lavada na fonte, que usavam
lamparina de querosene e que o local onde residia era
“uma operária bem grande”, restou a memória, evocada
pelo ato de lembrar que, como pontuou Nora, por ser
afetiva “[...] se enraíza no concreto, no espaço, no gesto,
na imagem, no objeto [...].” Dando sentido ao “[...]
grupo que ela une [...].” (NORA,1981, p. 9). Por isso,
mesmo que as casas e os vizinhos que partilharam deste
modo de vida não se façam mais presentes, a lembrança
constrói um elo com o passado:
Os vizinhos eram muito bons. Inclusive, quando fazia três
meses que nós estávamos morando aqui, um vizinho veio
24
Caderno Pedagógico - Criciúma

convidar para o casamento da filha dele, porque eles eram


muito amigos do meu marido. Credo! O meu marido teve
quase um infarte. Quando eles saíram de perto de nós, nós
chorava, eu não tô mentindo! Eu e a mulher dele não podia
se ver na cerca, que uma já ia conversar com a outra.
Quando eles vinham nos visitar, ela dizia: como vocês foram
bons vizinhos, vocês criaram esses filhos, mandaram estudar
e nunca se viu brigando com os da gente dentro do pátio
[...]. Aqui (Mina União) era uma operária muito grande,
tinha muitas famílias, muitas casas, mas depois os mineiros
foram se aposentando e saíram. Uns ganharam a casa,
outros compraram e foram retirando as casas, né? Levando
para outro lugar, mas era uma operária bem grande!17
Com o passar dos anos, um novo loteamento foi
criado, originando o Bairro Jardim União. Entre as
famílias afrodescendentes que ali habitavam desde a
sua criação, podemos citar: José da Cunha e Mariza
Cardoso da Cunha; Juceli Santiago e Elizabete
Santiago; Ruberval e Fátima; Djalma (Minha) e Enedir;
Custódio Nunes (Seu Totodo) e Dona Laurina Pereira
Nunes; Seu Bazílio e Dona Dalziza Sebastião Bazílio
(Dona Pretinha); Jair Cardoso e Maria Leda da Silva
Cardoso; Milton Alves Silvino e Valcira Barbosa Silvino;
Toni e Valdete; Serginho (Pintado) e Lurdes; Albertina
e Marido; e a família de Reginaldo Alves (Pato).
Segundo informações colhidas em diferentes
depoimentos, este loteamento foi executado pela
imobiliária Santa Clara, a partir de 1978, e fazia parte
de um plano de casas financiadas pelo BNH, a fim de
possibilitar aquisição de moradia própria e em
condições acessíveis de pagamento, para uma classe
determinada: os trabalhadores do carvão. O que serviria
de aval para assiduidade do pagamento, visto que os
trabalhadores da época recebiam o suficiente para arcar
com determinada prestação, a serem quitadas por meio
25
Caderno Pedagógico - Criciúma

de carnê mensal, durante 25 anos.


Este loteamento representou uma possibilidade de
ascensão social para as famílias afrodescendentes. No
Brasil, o acesso à moradia se constituiu ao longo dos
séculos num problema social. No entanto, ele também
carrega um elemento étnico-racial, haja vista que,
historicamente, os negros não tiveram acesso a terra
no Brasil. Este loteamento representou, para estas
famílias, uma perspectiva de melhorar suas condições
de vida. Segundo Milton Alves Silvino:
Eu queria ter uma casa, porque morar de aluguel, a vida
inteira, não compensava. Primeiro, a gente morava de
aluguel. Começamos no bairro São Luiz, morando com o
sogro, mas daí a gente queria uma vida independente. Então,
para não entrar em atrito, pensamos, conversamos e
decidimos: vamos procurar uma casinha, um porãozinho,
seja o que for, mas vamos morar sozinhos e assim fizemos.
Viemos morar na Operária, aí o meu cunhado alugou uma
casa no Pinheiro e, como a casa era grande e eles não
tinham filho, eles convidaram e a gente veio morar ali. Em
1979, a gente entrou num plano de casas financiadas pelo
BNH, a Imobiliária Santa Clara, quem administrava essa
imobiliária era o Jorginho e o Senhor Nelo Satiro, que tinha
como filha, a secretária da imobiliária que funcionava no
centro. A casa que a gente comprou financiada em 1979
era para ser entregue em 90 dias, mas só foi entregue em
1980. Aí, em 80, a gente veio morar sem energia e sem
água. Na época, tinham 72 casas, tinha quatro casas de
tamanho grande, 72 metros quadrados, se não me engano,
e as demais eram de 48 metros quadrados [...].18
Quando a Dona Maria Leda veio morar aqui no
loteamento,
[...] morava a Dina que eu me lembro, mas já tinha os
colonos que moravam, Dona Helena, Dona Tereza, Dona
Maria e a Dona Iolanda. Nós escolhemos este bairro para
26
Caderno Pedagógico - Criciúma

morar, porque a imobiliária que vendeu para nós, procurou


os mineiros que trabalhavam nas minas. Ele trouxe a gente
para cá, mostrou o terreno. Era um loteamento alto, a gente
viu que era um lugar bom. Tem o parque ecológico que foi
uma reserva que deixaram, e era muito bom, tinha pasto,
árvore e tinha frutas por aqui.19
Comentando sobre as dificuldades, destaca:
Como o bairro era um loteamento novo, porque foi
derrubada as matas, feito a vila, na época, foram construídas
setenta e oito casas. Tinha então as quatro ruas ao redor
do bairro que eram as entradas e saídas. Não tinha água
nem luz. E como passavam muitos caminhões, em dia de
chuva, era uma lama só.20
Para Dona Dalziza, o aluguel sempre pesou no
orçamento, por isso:
Como vivia de casa alugada, aí então saiu este loteamento,
que a Santa Clara fazia as casas. Eu trabalhava na Cecrisa,
e eles perguntaram para mim se eu queria fazer uma casa.
Fui ver os preços e os preços eram mais ou menos. Foi
muito difícil quando vim para cá, não tinha água, não tinha
luz, não tinha encanamento de esgoto. Mas eu queria sair do
aluguel, hoje tem tudo. Mas, naquele tempo, não tinha mercado
para se comprar. Tinha que comprar lá na União. 21
Vejam só! Morar no bairro Jardim União, mesmo
nas condições precárias relatadas nos depoimentos
acima, representou para estas famílias uma conquista,
dadas as condições em que viviam anteriormente, tendo
que, além da sobrevivência, gastar o pouco que
conseguiam com o aluguel. Porém, o sonho da casa
própria não foi concretizado para todas as famílias. O
desemprego, as doenças, a carestia, além do aumento
abusivo das prestações também se fizeram presentes e,
algumas famílias, tiveram que abandonar suas casas,
como nos relata Dona Maria Leda:
27
Caderno Pedagógico - Criciúma

Vieram para o bairro muitas famílias de negros, na nossa


rua, era só negros! E todos trabalhavam nas minas. Mas
quando viemos para cá, levou uns cinco anos para o banco
vir fazer o despejo. Teve aquelas famílias que puderam
negociar, e aquelas que não puderam! Hoje, dos moradores
antigos, tem uma base de oito a dez famílias. O resto é
tudo gente nova.22
Conforme Senhor Milton Alves Silvino:
Na época (1983) que o banco queria despejar as famílias
que estavam em atraso, teve até o padre Miotello, que foi
uma chave positiva para os moradores do nosso bairro.
Junto à associação de moradores de Florianópolis, cancelou
o despejo que o banco queria fazer com polícia militar e
tudo. Mas mesmo assim, teve famílias que venderam suas
casas a troco de nada, porque não tiveram condições de
pagar. Muitos saíram, porque perderam o emprego, ou por
problemas de financiamento, para não ficar com aquela
prestação batendo na porta todo mês.23
Dona Dalziza reforça:
Quando começou a chegar mais famílias, a Santa Clara
deu um preço para as casas e mais tarde aumentou. Daí, o
pessoal teve de sair, porque o preço era muito caro. Eu
mesma pedi muitas vezes ao meu patrão para me ajudar a
pagar as prestações, quando eu não podia pagar.24
Os panôs construídos, em torno da obtenção de uma
casa própria, revelam que foi pelo trabalho e teimosia,
no sentido de superar as dificuldades que surgiam
cotidianamente, que as famílias ali permaneceram.
Sabemos, no entanto, que as oportunidades não foram
muitas e nem para todos(as)...
Para além das minas (das quais muitos(as) foram
despedidos(as) e tiveram que abandonar o bairro Jardim
União); a lavação, a costura, o futebol e os doces,
permitiram que outros panôs pudessem ser aqui
28
Caderno Pedagógico - Criciúma

partilhados. Tecidos pelas experiências, que tal qual


cicatrizes foram impressas na vida de Elizya, Maria
Leda, Dalziza - carinhosamente chamada de “Dona
Pretinha” -, Milton e Anoirte. Experiências e modos de
vida também partilhados por outros homens e mulheres
deste bairro e de tantos outros...

Elizya Prudêncio Vargas: a lavadeira


Natural de Pescaria Brava, irmã de Dona Margarida,
vem para a Mina União no final da década de 1950. Se
formos passear no bairro Mina União hoje,
encontraremos a Rua Elizya Prudêncio Vargas. Nome
esse dado em homenagem a uma lavadeira negra. Tia/
mãe da Senhora Margarida Vargas Cardoso que
relembra:
A minha tia me criou e era solteira. Aí, eu a trouxe para
morar comigo até quando ela faleceu. O que ela fazia era
lavar roupas para fora. Ela gostava muito de lavar roupas.
Quando chegou aqui, se deu bem com a mulherada e como
muitas que tinham muitos filhos, tinham que cuidar do
marido, e trabalhavam fora, não tinham tempo para lavar
a roupa, então, essas mulheres pagavam para ela lavarem
suas roupas. O meu marido não gostava que ela lavasse e
dizia: Por que você lava tanto assim pra fora? (porque ela
tinha três ou quatro lavações) não lava tanto assim, porque
estraga tanto a pessoa, lavar tantas roupas [...].25
Sobre o local da lavação, informa-nos que:
A roupa era lavada num lugar onde existia um poço bem
grande e bem cheio, perto de dezoito cochos, porque outras
mulheres também lavavam as suas roupas. Cada mulher
tinha um cocho, que era feito de madeira, se puxava água
com um balde do fundo do poço e enchia o tanque. Aquela
água deixava a roupa tão limpa, que era uma beleza. Assim
29
Caderno Pedagógico - Criciúma

que nós começamos a lavar, não tinha lugar para estender,


nós trazíamos a roupa lavada para estender em casa. Mais
tarde, começaram a fazer varal lá. Compraram a corda,
falaram com a gente para fincar aquelas madeiras e estendia
o varal. Quando trazia as roupas de lá, já estava tudo
sequinha. Era um lugar muito bom, batia muito sol. Quando
a minha tia não estava aqui, eu ia lavar três vezes por
semana. Quando minha tia chegou, ela não deixava eu
lavar mais roupas. Ali era o lugar da falação. Imagina, era
o lugar onde tinha dezoito mulheres, porque tinha dezoito
cochos fora àquelas que ficavam esperando.26
Dona Elizya, uma entre tantas outras mulheres que
“lavaram roupa para fora”, ajuda-nos a dar visibilidade
a um dos trabalhos exercidos pelas mulheres nas vilas
operárias de Criciúma. Conforme nos aponta Carola
(2002, p. 122) “[...] lavar roupa era uma tarefa muitas
vezes árdua e difícil, pois as roupas ficavam encardidas
pela poeira do carvão e dos agentes químicos
desprendidos da pirita. Nestas condições, lavar as
roupas ia muito além de um simples esforço de
braços[...].” Dona Margarida reforça que “ali era o lugar
da falação”, como bem ressaltou Carola:
[...] os açudes, rios, riachos ou bicas fornecidas pelas
companhias eram locais de trabalho das lavadeiras, eram
espaços onde as mulheres, muito mais do que ‘falar da
vida alheia’ ou provocar intrigas para atingir sua vizinha,
também trocavam experiências, construíam redes de
solidariedade e ajuda mútua, planejam casamento,
informavam-se sobre os acontecimentos do bairro, sobre as
mortes das crianças, remédios, benzeduras, etc. (CAROLA,
2002, p. 122)
Este trabalho exercido pelas mulheres, longe da esfera
doméstica, mesmo sendo “[...] pouco valorizado, [...]
representava a garantia de sobrevivência de muitas
famílias.” (CAROLA, 2002, p. 122) Além de constituir-
30
Caderno Pedagógico - Criciúma

se em um espaço de sociabilidade, de encontro, de troca,


que “[...] foram gradativamente extintos ou
privatizados.” (CAROLA, 2002, p.122).

Maria Leda da Silva Cardoso: a costureira


Nascida em Tubarão, veio morar depois de casada
na região carbonífera em 1969, primeiro em Lauro
Muller, depois em Criciúma, no Bairro Boa Vista e, em
1979, chegou ao bairro Jardim União. A costura fez
parte da trajetória de sua vida:
O começo da profissão de costureira, eu aprendi com a
minha mãe. Ela gostava muito de costurar. Eu ficava ao
redor dela, ela me dava uma agulha e um paninho e dali eu
ia bordando. Quando eu vim para cá, a gente precisava de
um orçamento maior, porque meu marido se aposentou, aí
eu fui para as fábricas, comecei a trabalhar nas fábricas.
Primeiro de tudo, quem me ensinou foi uma facção pequena
a Lourdes, ela me ensinou e dali eu passei a ser uma
costureira, depois eu saí de lá e fui trabalhar na Rollyus. Foi
muito bem recebida lá pelo Seu Ademir Zanetti. E na Rolyus,
eu trabalhei quatorze anos. Eu era chefe de equipe, uma
das melhores costureiras. Era um serviço muito sacrificado,
porque dependendo do patrão, a gente era muito explorada
[...]. E no começo das costuras em Criciúma, a gente não
podia ir ao banheiro, a gente não podia conversar na
máquina, não podia olhar para o lado, a gente sentava às
sete horas, levantava às nove horas, sentava às nove e
quinze, levantava meio-dia, sentava uma hora e levantava
às cinco horas da tarde e, no começo, era às seis da tarde.
Mas depois, houve uma redução de trabalho e a gente então
saía às cinco. Eu trabalhei muito. Eu tinha dupla jornada.
Trabalhava fora e em casa, e os filhos, um cuidava do
outro [...]. Era um ajudando o outro. Sempre foi assim.27
31
Caderno Pedagógico - Criciúma

Dona Maria Leda relembra dos tempos em que


passava, o dia todo, sentada numa máquina de costura.
Cena repetida por inúmeras mulheres em Criciúma, em
meados de 1960, quando a economia da região passa
a se diversificar, pois “[...] outros grupos do
empresariado criciumense passam a investir em novos
ramos industriais, especialmente o setor do vestuário,
transportes, metalúrgico e plásticos.” (TEIXEIRA, 1996,
p. 65)
Na facção e na confecção, aprendia a ser costureira,
entre olhares vigilantes que exigiam disciplina, proibiam
olhares e conversas, controlavam os horários de almoço,
de idas ao banheiro... Um trabalho repetitivo que foi se
consolidando nas sociedades industriais. Mas não
esqueceu de referendar a mãe que, entre agulhas e
paninhos, ensinou a ela a arte da costura.

Dalziza Sebastião Bazílio “Dona Pretinha”:


doméstica e faxineira
Dona Pretinha é uma das primeiras moradoras do
bairro. Sua vinda representou a realização de um sonho:
adquirir uma casa própria. Ressaltou em seu
depoimento que a infância foi vivida em torno do
trabalho, como uma “ajuda” no sustento da família. E
que, mesmo dedicando sua vida ao serviço de doméstica
e faxineira, não conseguiu se aposentar. Sua experiência
de trabalho foi seguida também por outras mulheres
afrodescendentes que, por falta de oportunidades,
encontraram neste trabalho pouco valorizado em termos
salariais, uma possibilidade de sobreviver:
32
Caderno Pedagógico - Criciúma

Desde pequena, trabalhei com os Freitas na casa da Dona


Agripina. Saiu a Crecrisa, daí eu pedi para ele que eu queria
trabalhar de faxina lá. Eu trabalhava das duas às dez.
Quando eu trabalhava de empregada doméstica, eu ficava
na casa deles, eu morava com eles. Eu não consegui me
aposentar como faxineira. Mas recebo a pensão do meu
marido. Comecei a trabalhar mais ou menos com dez anos.
Só saí da casa deles para casar. Os meus patrões foram
convidados para o meu casamento, e eu ainda tenho hoje
uma colcha que eu ganhei de presente que já está amarelada,
mas eu guardo com muito carinho. Nos finais de semana,
eu vinha em casa quando queria. O dinheiro que eu ganhava
eu dava tudo para minha mãe. Aprendi a fazer bordado,
tricô e ponto cruz.28

Milton Alves Silvino:


mineiro e jogador de futebol
Natural de Osório, veio com a família a Criciúma,
em 1978. Após trabalhar em outras atividades, mudou-
se para o Jardim União, tornando-se mineiro e jogador
de futebol. É importante destacar que o futebol se
colocou como uma estratégia para controlar os
mineiros, além de se tornar um espaço de lazer para
toda a família. Assim, durante muito tempo, futebol e
mineração estiveram interligados ao cotidiano dos
mineiros. Inclusive, os nomes de muitos bairros tiveram
como referência os nomes das minas. Como ressalta
Teixeira (2000, p. 35): “Próspera, Metropolitana, Boa
Vista” são, ao mesmo tempo, nomes das minas e de
bairros de Criciúma. Associados à mineração, além dos
bairros, praças, ruas e da festa de Santa Bárbara, estão
os clubes de futebol [...].” Para o seu Milton poder, além
33
Caderno Pedagógico - Criciúma

de trabalhar na mina, jogar futebol, significou melhorar


a sua situação financeira, conseguindo, desta forma,
adquirir sua casa própria. Sobre o contato com o
trabalho nas minas destaca:
O meu cunhado era encarregado da mina de carvão da
mina Criciúma, o meu sogro trabalhava no almoxarifado
da Carbonífera Metropolitana, o outro, meu cunhado mais
velho, trabalhava na furação da Mina Criciúma também, e
ele, como encarregado da Mina Criciúma, dizia assim: Tu
queres ir para a mina, eu te arrumo uma vaga. E na época,
eu jogava futebol também, então eu fui para mina com a
maior facilidade, porque eu jogava. Eles tinham uma equipe
de futebol. Eu comecei a trabalhar como servente de subsolo,
me fichei na mina de carvão com um salário bem mais alto
na época, em relação ao que eu ganhava como fabricante
de abertura. Eu jogava futebol e me entrosei com
engenheiros, encarregados e comecei a jogar futebol na
seleção da companhia (Esporte Clube Metropol) e com os
engenheiros, jogava futebol de salão. Então, melhorou até
financeiramente[...].29

Anoirte Damázio Agostinho “Dona Anita”:


a confeiteira
Dona Anita nasceu no Próspera e era filha mais velha
de uma família cujo pai foi mineiro e a mãe trabalhou
como lavadeira e escolhedeira de carvão. Reside no
bairro Jardim União há mais de uma década.
Na sua narrativa, Dona Anita entrelaça passagens
da sua vida no Bairro Jardim União, quando já estava
casada, com a sua infância no bairro Próspera,
revelando como, a partir de suas experiências
cotidianas, foi se constituindo uma doceira.
34
Caderno Pedagógico - Criciúma

Sabemos que “O espaço da primeira infância pode


não transpor os limites da casa materna, do quintal, de
um pedaço de rua, de bairro.” (BOSI, 1987, p. 356)
Porém, as suas narrativas, evocadas a partir deste
espaço-tempo de convívio, possibilitam revistar o
passado, ressignificando-o no presente:
Laços de afetividade e solidariedade:
Eu morava na Próspera e alcancei casinhas de palha, onde
é o Shopping hoje. Tinha um senhor que era ex-escravo
que, até hoje, ninguém sabe de onde ele veio. Não tinha
família e quem cuidava dele era a comunidade. As famílias
dividiam as responsabilidades. Hoje, uma família levava
almoço; outra levava a janta; outra, o café. Quando eu ia
levar, eu conversava muito com ele. Tinha um casal da
Próspera, que é a Dona Patrícia e seu Lucidônio, que
cuidavam muito dele. Chamavam ele de Totonho. Ele não
tinha nem documento. Nosso pai e nossa mãe cuidavam
muito dele. Nós arrumamos uma caminha para ele e um
fogãozinho de quatro pés. Eu não lembro de alguém que se
apresentasse como parente dele! Eu era pequenina.
Conversava com ele todos os dias que voltava da escola. A
gente tinha muito carinho por ele ser ex-escravo e por fazer
parte da História.30
Modos de vida, de “saber fazer”, de espaços e tarefas
partilhadas, de cantorias que tiveram como referência
o trabalho:
Lá na Próspera, os homens trabalhavam na mina e suas
esposas eram lavadeiras de roupas, escolhedeiras. Depois,
surgiu a cerâmica. Principalmente minha mãe, ela lavou
muita roupa para os funcionários do escritório da Próspera,
ex-funcionários da CSN da Próspera. Minha mãe lavava
roupa lá no bairro Brasília, na fonte do Daré. Ia a pé até lá.
Ela ficava o dia todo lá. Nos dias de sol, levava de 3 a 4
trouxas de roupas, esperava secar, recolhia e vinha de volta
no final da tarde. Tinha os “lavadôs” na fonte e tinha muitas
35
Caderno Pedagógico - Criciúma

mulheres que lavavam lá. Cada uma tinha o seu “lavadô”.


Quem não tinha o seu ficava esperando. Tudo certinho!
Era um córrego de água que passava [...]. O sabão caseiro
era muito usado. Não se comprava! Fazia em casa mesmo.
Até hoje, eu ainda faço. O sabão, eu faço com gordura,
farinha de milho e a soda. Não sei por que eu tenho essa
coisa de fazer coisa caseira. Naquele tempo eu usava a
caldeira. Hoje, eu uso um latão. Dali já sai no ponto de
cortar. Corto tudo em pedaço para usar. As mulheres
lavadeiras da época cantavam muitas músicas de carnaval
a minha mãe sabia tudo de cor. As músicas eram mais
bonitas e tinham mais mensagens [...]. Enquanto elas
lavavam a roupa, nós ficávamos brincando na grama.
Quando ela chamava para ajudar a estender a roupa,
pedindo para não misturar, nós vínhamos. Quando
acabava, nós íamos brincar de novo. As minhas tias que
trabalhavam na escolha de carvão, elas reclamavam que
era um trabalho muito sujo, pesado, mas na época o que
fazer? Não existia outro trabalho. Elas faziam aquilo ali
para ajudar o marido. Eu lembro que minha mãe, até
debaixo da mina, foi trabalhar junto com meu pai. Era
tudo muito difícil. A minha mãe e a vizinha dela, quando
eles demoravam, elas ficavam muito preocupadas! Então
elas pediam um gás de carbureto emprestado, preparavam
e iam lá na Mina 6, na Próspera, por baixo da mina, e
viam que eles estavam atrasados. Elas os ajudavam a
terminarem o serviço, porque os mineiros daquela época
tinham que tirar uma quantidade de carvão. Era a cota que
eles tinham que produzir [...].31
A alimentação de ontem e hoje e o encontro com o
movimento negro:
O que tinha na época: o básico. O arroz, quando tinha,
porque era muito caro, carne seca ou peixe, pão caseiro, o
tal do “nego deitado”, ele era feito na frigideira sem fermento,
só na base de água, açúcar e o trigo. Senão, se fazia aquele
pão assado na folha de bananeira na chapa, era mais prático
e mais fácil de fazer. O nome “nego deitado” veio dos
36
Caderno Pedagógico - Criciúma

escravos. Eu já participei do movimento negro e acabei


descobrindo que a farinha de milho não é só do italiano. É
do negro também, que começou a fazer o angu. Eu acho
que era mesmo, porque meu pai gostava muito. Para fazer
o angu, é cozido a farinha de milho com um pouquinho de
sal e duas colheres de açúcar. Hoje mesmo, eu fiz um prato
bem gostoso de mingau. Comi e demorei a sentir fome. Eu
comi com leite. Depois de cozido, ele fica mingau, a farinha
fica transparente. Eu sei quando está cozido, porque a
farinha fica transparente, ela fica com um brilho de cozida
[...]. Eu faço na minha família. De vez em quando, meu
esposo pede para eu fazer. A feijoada, eu aprendi a fazer
também. O movimento negro passou para nós a História
da feijoada. É que os senhores comiam as partes melhores
do gado ou do porco e só sobrava as orelhas, os pés, os
miúdos do porco. A feijoada é uma herança dos escravos, e
foi passando de geração [...]. Como o negro gosta de
feijoada! Além do “nego deitado” e da feijoada, ainda tem
os doces caseiros para passar no pão: cocada, quindins, os
bolinhos de acarajé e de peixes [...]. Não tenho uma
participação direta na festa das etnias, mas sempre que
alguém me convida para alguma coisa que fale sobre o
negro, eu vou! Já trabalhei bastante no movimento negro.
Eu, hoje, não estou muito ligada, por falta de tempo, porque
eu procurei montar meu próprio negócio, não me sobra
tempo. Mas já trabalhei bastante na cozinha da etnia negra.
Já descasquei muito feijão para fazer acarajé. Fazia a massa
do bolinho na minha casa e só levava para fritar [...].32
O aprendizado e a descoberta de sua profissão de
doceira, quando adulta e casada:
Eu só passei a trabalhar fora, quando casei. Como
doméstica, cozinheira e, depois, doceira. E sou, até hoje,
confeiteira. Na minha casa, se preciso for, todos trabalham
de confeiteiros, salgadeiros. A minha filha me ajuda muito.
Comecei a trabalhar com as doceiras mais antigas de
Criciúma, que é a Dona Jandira, mãe do Dr. Paulo Amante
e Humberto Amante. Comecei a trabalhar com a família
37
Caderno Pedagógico - Criciúma

dela. E, dali, comecei a me aperfeiçoar cada vez mais,


fazendo curso no SEBRAE de doces e salgados e panificação
e montei meu próprio negócio e hoje trabalho com isso. Eu
sempre tive muita caída por fogão. Então eu comecei
trabalhando junto com a Dona Jandira e, também, a
Senhora Inês Benetton que também é uma doceira antiga
do centro. Aí, eu comecei a ver que dava pra eu montar
meu próprio negócio. Eu comecei a fazer curso, indicado
por outra pessoa, que disse que, em Araranguá, tinha curso
no SEBRAE. Fui fazendo, fui me aperfeiçoando e comecei
a comprar o maquinário para eu trabalhar. Comprei uma
picadeira pequenininha, para cortar salgados. Depois
comprei as pecinhas. Hoje, graças a Deus, com meu esforço,
tenho tudo. Estou com 60 anos e não pretendo parar tão
cedo! Eu amo bastante o que eu faço. Faço tudo por
encomenda. Eu faço tudo: tortas, doces e salgados. Não
sei daonde veio isso. Tem algum segredinho que a gente
não sabe [...]. Mas eu sei fazer maçã do amor, cocada,
todo tipo de doce que você possa imaginar, pão caseiro,
torta. Alguns pratos, eu também sei fazer. Faz vinte anos
que eu montei meu negócio. Parei de trabalhar em casa de
particulares e me dedicar como doceira. A minha filha me
ajuda muito, quando tenho encomenda muito grande eu
contrato pessoas para me ajudar.33
E o aprendizado, advindo de suas experiências como
“filha mais velha”, tendo nas figuras da mãe e do pai
um exemplo para também ter uma profissão e conseguir
criar seus filhos:
Quando a minha mãe ia trabalhar como escolhedeira, nós
ficávamos sozinhos, um cuidando do outro. A minha mãe
pedia para uma vizinha olhar. A gente estudava, era
organizado, unido, estava sempre junto. Eu, como irmã mais
velha, tinha muito cuidado com o irmão menor. A mãe
recomendava para nós tomar cuidado com o fogão de lenha
para não se queimar e ensinava algumas coisas de primeiros
socorros. Eu fiquei muito cedo cuidando de meus irmãos,
por isso, que gosto de trabalhar no fogão! Eu fiquei
38
Caderno Pedagógico - Criciúma

responsável por toda casa, a partir dos 8 anos. Meu pai


nasceu em Laguna e o alimento dele era o pescado. Meu
pai me chamava para ensinar a consertar o peixe e a
escamar o peixe, a fazer uma moqueca de bagre. E eu tive
que aprender, porque eu era a única filha mulher, eu tinha
que fazer. Até hoje, eu gosto muito de cozinhar. Faço tudo
com muito amor. Cada docinho que pego na mão, eu faço
com muito carinho. Essa profissão de doceira é que contribuiu
para eu sustentar toda minha família. Foi um pulo muito
grande que eu dei na minha vida. Foi extraordinário [...].
Como eu vim de uma família que tinha bastante
responsabilidade, eu assumi de verdade, com corpo e alma,
sendo o pai e a mãe, na maioria das vezes. A necessidade
obrigou quando eu era criança, porque eu tinha que cuidar
dos meus irmãos, cozinhar, lavar, passar e tudo. Então, eu
trouxe isso para o meu casamento e eu não senti muita
dificuldade [...]. Com essa profissão que assumi, eu consegui
trazer até hoje [...].34
As memórias de Dona Anita são evocadas a partir
de um saber: a arte de cozinhar. O aprendizado desta
profissão se liga à sua condição infantil de filha mais
velha que, na lida cotidiana, entre o fogão e as panelas,
aprimorava e levava para a vida adulta este saber. Temos
então um entre tantos exemplos de mulheres que vão
ter, nas mãos, o sustento da família. Mãos que lavaram,
que costuraram, que escolheram o carvão, que
limparam...
A oralidade, verbalizada nos encontros, nas
conversas, nas trocas de informações, também se
constituiu em laços de afetividade: tão necessários para
quem trabalha com os/as guardiões/ãs das memórias,
como já salientou Bosi (1987).
A partir de suas experiências, que se somam às das
demais depoentes, vimos surgir, diante de nossos olhos,
alguns retratos e imagens de famílias que, a partir do
39
Caderno Pedagógico - Criciúma

trabalho, foram dando contornos e matizes aos seus


modos de vida. No entanto, fica o convite para que
novos panôs possam ser tecidos e outras histórias
possam ser registradas.

Notas
1
Mestra em História pela UFSC, professora dos
Departamentos de História e Pedagogia da UNESC, membro
do NEGRA (Núcleo de Estudos de Gênero e Raça).
2
Formada em Letras, professora da Escola Municipal Adolfo
Back.
3
Pedagoga, uma das coordenadoras de ensino da Secretaria
de Educação Municipal de Criciúma.
4
Orientadora escolar da Escola Municipal Adolfo Back.
5
Maria Leda da Silva Cardoso, 54 anos, negra, reside no
bairro Jardim União. Entrevista concedida à Lucy Cristina
Ostetto, Rosimari Gorete Joaquim e aos alunos(as) da 7ª e
8ª séries, em 05 de junho de 2006.
6
O bairro Jardim União possui atualmente 873 habitantes,
supermercado, posto de saúde, ginásio de esportes, creche
(CAIC), escola, conjunto habitacional, mercearias, padaria,
fábrica, borracharia, ruas lajotadas e asfaltadas, água
encanada, coleta de lixo, energia elétrica, telefone público,
ônibus, asilo e conselho de segurança.
7
Cf.: ALMEIDA, Gergilda. Bruna e a galinha d’Angola.
Rio de Janeiro: Pallas, 2000.
8
Dalziza Sebastião Bazílio, negra, 73 anos, moradora do
bairro Jardim União. Entrevista concedida à Lucy Cristina
Ostetto e Rosimari Joaquim, em 24 de agosto de 2006.
9
Depoimento oral de Maria Leda da Silva Cardoso.
10
Conforme nos falou Vitório Benincá, em conversa informal,
no dia 20 de julho de 2006 (falecido em 01 de janeiro de
2007).
40
Caderno Pedagógico - Criciúma

11
Carmela Milanese, 80 anos, moradora do bairro Milanese.
Entrevista concedida à Lucy Cristina Ostetto, Marisa
Cardoso da Cunha e Rosimeri Goreti Joaquim, em 02 de
setembro de 2006.
12
Dona Carmela conta-nos que, na década de 1900 a 1910,
a sua família chegou no “Morro da Miséria” e que “este
local foi assim chamado, porque os homens saíam para
caçar, mas não encontravam nada. Então, começaram a
dizer que aquele lugar era um morro da miséria”.
13
Depoimento oral de Carmela Milaneze.
14
Conversa informal com Rosimari Goreti Joaquim, em 19
de outubro de 2006.
15
Margarida Vargas Cardoso, 73 anos, negra, moradora do
bairro Mina União. Entrevista concedida à Lucy Cristina
Ostetto, Mariza Cardoso da Cunha e Rosemari Goreti
Joaquim, em 12 de agosto de 2006.
16
Idem.
17
Idem.
18
Milton Alves Silvino, 54 anos, negro, morador do bairro
Jardim União. Entrevista concedida à Rosimeri Goreti
Joaquim, em 11 de junho de 2006.
19
Depoimento oral de Maria Leda da Silva Cardoso.
20
Idem.
21
Depoimento oral de Dalziza Sebastião Bazílio.
22
Depoimento oral de Maria Leda da Silva Cardoso.
23
Depoimento oral de Milton Alves Silvino.
24
Depoimento oral de Dalziza Sebastião Bazílio.
25
Depoimento oral de Margarida Vargas Cardoso.
26
Idem.
27
Depoimento oral de Maria Leda da Silva Cardoso.
28
Depoimento oral de Dalziza Sebastião Bazílio.
29
Depoimento oral de Milton Alves Silvino.
41
Caderno Pedagógico - Criciúma

30
Anoirte Damázio Agostinho, 60 anos, negra, moradora do
bairro Jardim União. Entrevista concedida à Lucy Cristina
Ostetto e Rosimeri Goreti Joaquim, em 24 de agosto de
2006.
31
Idem.
32
Idem.
33
Idem.
34
Idem.

Referências bibliográficas e fontes

Fontes orais:
Anoirte Damázio Agostinho
Carmela Milaneze
Dalziza Sebastião Bazílio
José Passos
Margarida Vargas Cardoso
Maria Leda da Silva Cardoso
Milton Alves Silvino
Vitório Beninca

Referências:
ALMEIDA, Gergilda. Bruna e a galinha d’Angola.
Rio de Janeiro: Pallas, 2000.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de
velhos. São Paulo: EDUSP, 1987.
42
Caderno Pedagógico - Criciúma

BOAVENTURA, Ilka Leite (Org.) Negros no sul do


Brasil: invisibilidade e territorialidade.
Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996.
CAROLA, Carlos Renato. Dos subterrâneos da
história: as trabalhadoras das minas de carvão de
Santa Catarina (1937-1964). Florianópolis: UFSC,
2002.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a
problemática dos lugares. Projeto Historia 10. São
Paulo, 1993. p. 7-40.
TEIXEIRA, José Paulo. Os donos da cidade.
Florianópolis: Insular, 1996.
ZAMPOLI, Fabio Alexandre Belloli. Entre
memorialistas e identidades: a historiografia da
cidade de Criciúma (1971-1989). Florianópolis, 2001.
Monografia (Especialização em História Social no
Ensino Fundamental e Médio), Universidade do Estado
de Santa Catarina.
43
Caderno Pedagógico - Criciúma

Bairro São Simão:


da diáspora às múltiplas identidades dos
moradores e moradoras

Adiles Lima1
Geórgia dos Passos Hilário2
Iolanda Romeli Lima Manoel3
Sonia Regina Trichez44

“Eu sou carvão!


E tu arrancas-me brutalmente do chão
E fazes-me tua mina, patrão.
Eu sou carvão!
E tu ascendes-me, patrão,
Para te servir eternamente como força motriz.
Mas eternamente não, patrão.
Eu sou carvão!
E tenho que arder sim;
44
Caderno Pedagógico - Criciúma

Queimar tudo com a força da minha combustão


Eu sou carvão!
Tenho que arder na exploração
Arder até as cinzas da maldição
Arder vivo como alcatrão, meu irmão,
Até não ser mais a tua mina, patrão.
Eu sou carvão!
Tenho que arder
Queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu sou o teu carvão, patrão.”

“Grito Negro”, de José Craveirinha

Introdução
Iniciamos este registro por meio de uma reflexão do
poeta moçambicano José Craveirinha (1922-2003),
uma das vozes literárias mais influentes de Moçambique
que participou da resistência anti-colonial, mas não
atuou na luta armada. Sua poesia expressa as múltiplas
faces culturais de seu país.
O poema que escolhemos se refere à exploração do
carvão no continente africano, rico em jazidas minerais
e pedras preciosas. Além disso, a poesia evoca a reflexão
de pátria à luz das relações entre patrão e escravizado,
pois o autor viveu a colonização em Moçambique, como
um dos impérios de Portugal: país que descolonizou sua
terra natal em 1974.
É importante fazer este relato de um dos países
africanos para contextualizar os fatos que ocorreram
45
Caderno Pedagógico - Criciúma

no Brasil, durante a independência e pós-abolição da


escravatura. Os africanos e seus descendentes viveram
experiências diversas, os primeiros diaspóricos e os
últimos de migração, o que ocasionou um hibridismo
na formação identitária cultural da sociedade brasileira
e de vários lugares por onde passaram.
O sul de Santa Catarina também viveu parte deste
processo com a vinda de diversos povos: italianos,
açorianos, poloneses, árabes, alemães e negros. Cabe
aqui ressaltar a presença de índios que, juntamente com
a população negra, são raramente citados no que se
refere às suas contribuições na construção deste Estado.
Em Criciúma, nosso município, a invisibilidade destes
últimos povos é gritante.
Na comunidade de São Simão podemos afirmar que
tais situações são mascaradas, isto é evidente, nas falas
que ouvimos das entrevistadas. Sabemos que nosso
município possuía a maior jazida de carvão mineral do
Brasil e, com a primeira mina aberta em 1912, surgiu
uma classe de trabalhadores dos mais combatentes e
valentes do país, marcada pelas condições insalubres
do seu trabalho. Este, por sua vez, constituindo profunda
divisão no labor e uma apropriação desigual dos
resultados, os operários, como eram chamados, não
possuíam meios dignos de produção e suas forças de
trabalho eram exploradas pelos “donos”. Sob ordem
de outro, realizavam as atividades nas quais não
decidiam nem desfrutavam de seus resultados. Estes
eram apropriados pelos donos das minas.
Vale lembrar que estes foram inicialmente os
imigrantes açorianos, juntamente com outros
trabalhadores que descendiam de escravos negros
vindos do litoral catarinense. Neste sentido, não
46
Caderno Pedagógico - Criciúma

podemos falar do bairro São Simão sem dar um


destaque à questão da territorialidade: fato marcante
para alguns de seus moradores e moradoras
entrevistados, pois, segundo Said (1995):
Tudo na história humana tem suas raízes na terra, o que
significa que devemos pensar sobre a habitação, mas significa
também que as pessoas pensaram em ter mais territórios e,
portanto, precisavam fazer algo em relação aos habitantes
nativos. Num nível muito básico, o imperialismo significa
pensar, colonizar, controlar terras que não são nossas, que
estão distantes, que são possuídas e habitadas por outros.
Elas atraem algumas pessoas e muitas vezes trazem uma
miséria indescritível para outras.
Sob essa perspectiva que envolve a diáspora e as
identidades híbridas que se formaram na comunidade
do São Simão, faz-se necessária uma reflexão acerca
do território e conseqüentemente da habitação que
envolve nossos(as) entrevistados(as), protagonistas da
construção da comunidade e, portanto, vítimas de um
projeto imperialista como foi a exploração das minas
de carvão em Criciúma, marcada pelas condições
insalubres e por uma apropriação desigual.
Além da questão territorial, é necessário e
fundamental que se construam novas formas de postura
e intervenção, com um olhar mais amplo sobre a questão
racial, identitária e cultural, que se dá nas comunidades
do nosso município e, assim, fornecer subsídios aos
professores e professoras à desconstrução de séculos
de negação da verdadeira história da população
brasileira.
Foi com este intuito que a E.M.E.I. Pe. José Bertero
contribuiu para o estudo da história local em que está
inserida. E para que a mesma intervenha no processo
47
Caderno Pedagógico - Criciúma

de aprendizagem significativa dos alunos e alunas, é


importante conhecer as suas realidades. A
implementação da Lei 10.639/03, na ação pedagógica
das escolas da Rede Municipal de Criciúma, é uma
tarefa difícil, pois requer determinação, vontade e
resistência: herança essa adquirida de nossos ancestrais
africanos.

Da diáspora e habitação no São Simão

Nossos povos podem traçar suas raízes, mais precisamente,


nos quatro cantos do globo, desde a Europa, África e Ásia.
Foram forçados a se juntar na “cena primária” no Novo
Mundo. Suas “rotas” são tudo, menos “puras”. A grande
maioria deles é de descendência “africana”, mas, como
deveria Shakespeare, “norte pelo noroeste”. Sabemos que
o termo “África” é, em todo caso, uma construção moderna,
que se refere a uma variedade de povos, tribos, culturas e
língua cujo principal ponto de origem comum situava-se no
tráfico de escravos. (HALL, 2003.)
Remetemo-nos a Hall para pensarmos a diáspora
dos negros africanos a diversos continentes e também
no seu interior geográfico, situando, então, a migração
de muitos descendentes dos escravizados no Brasil, em
várias regiões do Sul de Santa Catarina, caracterizando-
se também sob uma perspectiva diaspórica. Conforme
o conceito da palavra diáspora, Munanga (1986) a utiliza
para designar os negros de origem africana deportados
para outros continentes e seus descendentes (os filhos
dos escravos na América etc). É claro que, num
significado mais amplo, originalmente, a palavra foi
usada para designar o estabelecimento dos judeus fora
de sua pátria, da qual se acham vinculados por fortes
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Caderno Pedagógico - Criciúma

laços históricos, culturais e religiosos. Não distante desse


pensamento, observamos tal processo dos(as)
moradores(as) do bairro São Simão, durante a pesquisa
em seus relatos. Por meio deles, designamos diáspora:
o período de migração ocorrido no local através dos
descendentes africanos(as), para se estabelecerem na
localidade em busca de melhor condição de vida, sob a
ótica das relações culturais e étnicas que oportunizaram
um envolvimento de troca com o outro dessa
comunidade, pois ambos migraram para essa região.
Segundo os registros do Projeto Político Pedagógico
da Escola Pe. José Francisco Bertero, situada no bairro
São Simão, em 1949, houve um rápido crescimento da
população, devido às minas de carvão: motivo de
deslocamento de vários habitantes de regiões próximas
para essa localidade em busca de oportunidade de
trabalho. Essa migração provocou uma série de
modificações geográficas no bairro, em função da
exploração, e conseqüentemente uma troca de valores
culturais que a população trazia consigo.
O bairro era pequeno, nós chegamos aqui e moramos perto
do Santo Vidoto, do Abraão Zilli, da Dona Katina, do seu
Mezari, dos Fontana. E lá pra cima do São Simão, havia
uma venda do seu Otávio Fontana um armazém, a gente
fazia compra no Salvato, né?! E a capelinha era pequena,
de madeira. Naquele tempo, tinha bem poucas pessoas que
a gente quase nem conhecia, o resto era lá da mineiração
da poeira dos Tunins. Pra lá, nós não íamos, porque nós
morávamos aqui no bairro na estrada que vai pra Cocal.
Então, a gente quase não conhecia as pessoas, só os vizinhos
mais próximos que tinham fazendas, mas perto de nós
mesmo era esse que nos conhecia. (Relato de Tunízia)5
Conforme o relato de Dona Tunízia, existia uma
separação entre a população negra que migrava para o
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Caderno Pedagógico - Criciúma

bairro e assim ficavam afastados dos outros moradores,


os quais eram poucos e não-negros. Leite (1996) retrata
o território negro como elemento de visibilidade a ser
resgatado. Através dele, os negros, isolados pelo
preconceito racial, procuraram reconstruir uma tradição
centrada no parentesco, na religião, na terra e nos valores
morais cultivados ao longo de sua descendência. O
momento de conhecimento entre as diversas vizinhanças
se deu esporadicamente em função do afastamento
entre uma moradia e outra: “o bairro era pequeno”, mas
as famílias viviam longe umas das outras. Um paradoxo
que resultou num afastamento étnico, mesmo que
inconsciente, numa suposta cordialidade luso-tropical.
Os meus pais moravam na antiga Mina Tunim, mas o pai
era natural de São Martinho/Tubarão, e a mãe, de São
Ludgero. Vieram para Criciúma sem conhecer um ao outro,
se namoraram, mas meu pai, até por sinal, foi noivo com
outra guria. Aí depois, conheceu minha mãe, desmanchou
o noivado a família da guria entrou em conflito com ele, aí
ele foi embora para Florianópolis. Depois, voltou de nove,
conheceu bem a minha mãe, eles namoraram, noivaram,
fizeram um casamento muito bonito, e depois dali, eles
tiveram os dois filhos mais velhos. Nasceram lá na Mina
Brasil perto do Hospital São José, já depois vieram pra São
Simão onde os outros filhos nasceram. Do motivo da vinda
deles, eu não sei, mas a minha avó trabalhava em roça,
eles eram agregados, né? Então, eles eram chamados pra
trabalhar assim, fazenda ou lugar que muitos italianos
tinham terra, então chamavam eles, eles iam davam casa
pra eles morar, e aí eles moravam e trabalhavam na roça.
Então, dali, foram criando os filhos, foram trabalhando na
mina e ele trabalhou muito tempo aqui mesmo na Mina
Tunim, depois, ali se aposentou. (Relato de Maria Mahim)
A senhora Maria Mahim narra o processo de
migração de seus pais para o bairro de Criciúma, oriunda
50
Caderno Pedagógico - Criciúma

de cidades próximas como Tubarão e São Ludgero.


Muitos vieram para trabalhar no meio rural ou nas minas
de carvão. A vinda para uma cidade diferente, na
maioria das vezes, era desprovida de acomodações
necessárias às condições básicas de saúde e habitação
competentes aos direitos de um cidadão.
Essa aí era as casas. E o formato das casas, a nossa era de
maneira bruta, não era planado, tudo madeira arbruta, não
tinha forno. Uma casa bem simples, forrada mesmo, era o
quarto e a sala. O resto das peças não eram forrada. É
assim fogão à lenha. Não tinha poço, tinha que pegar água
de balde, não tinha luz elétrica era de lamparina, as vendas
eram longe. Muitas vezes, quando tinha aqueles mantimentos
ali, a gente tinha que esperar pra ir lá na cidade. As condições
de vida eram bem precárias.

Eu me lembro que a família que tinha mais filho, era a casa


assim: uma salinha, uma cozinha e três quartos, né? E a
família mais pequena era de dois quartos, uma sala , uma
cozinha, não tinha banheiro, era patente no fundo da casa,
não havia água dentro de casa era buscada no poço, era
lavado nas fontes e assim lavador, nem tanquezinho não
tinha. Era trazida água nos baldes, buscando água longe,
não havia luz era gás, luizinha de querosene. E, quanto aos
vizinhos, era tudo vizinho bom, a gente brincava. Final de
semana, assim, a gente saía a brincar. Os pais da gente
fazia uma limpada nos matos, as meninas brincavam de
cozinhadinho. Ali as mães davam arroz, feijão, até uma
galinha que criava a gente matava, fazia aqueles
cozinhadinho que era olha uma maravilha, não compara
aos dias de hoje, era uma benção. A gente brincava tão
tranqüilamente, não havia briga. A gente ia pra fonte lavar
a roupa, 15, 20 pessoas não havia assim conversa. Olha,
era uma tranqüilidade. (Relato de Joana)
A territorialidade negra tem sido entendida, de
maneira geral, como espaço construído pelos negros,
51
Caderno Pedagógico - Criciúma

resultantes da formação histórica das relações raciais no


Brasil. No Sul, a interação e ocupação das pessoas negras,
nos lugares com pouca infra-estrutura, revela um quadro
social bastante segregado, e isso não é diferente nas demais
regiões do Brasil, lembrando Leite (1996).
Existe também uma grande dificuldade das pessoas
negras estabelecerem residência numa região qualquer.
Essa afirmação faz sentido, quando falamos em falta
de condições. Isso está atrelado às condições sócio –
econômicas dessas pessoas sabendo que essas
conseqüências escravistas são fatos reais que convivem
até hoje na nossa sociedade.
As circunstâncias em que acontecem essas situações
fazem parte de histórias de vida. A procura de um lugar
mais tranqüilo para morar, a necessidade da busca de
emprego ou a expulsão de áreas cobiçadas por outros
grupos. É o que nos diz Geraldo Barboza de Oliveira
Júnior: “Na região sul do estado de Santa Catarina,
após a abolição, a fixação de populações negras se deu
em função da tentativa da obtenção de ‘terras’ para
agricultura [...] e, em seguida, nas minas carboníferas
[...].”(OLIVERIA JUNIOR, Apud LEITE, p. 271)
A minha chegada no bairro São Simão foi em 1954, mês
de maio. Nós viemos de Maracajá para o São Simão com
uma tombera de serviço do Estado – tombera é um
caminhãozinho - naquele tempo, a estrada vinha por
Forquilhinha e chegamos em São Simão. Não tinha estrada
federal, a estrada era de pedra, sem asfalto, tinha muita
poeira e chegamos em São Simão. Meu pai comprou um
lote aqui. Comprou um lote, não sei se era um lote, comprou
uns... Hoje em dia, se ir medir parece que é uns 4,5 lotes.
Naquele tempo, eram pedaços de terra, hectares, não sei se
era... Era uma ponta de terra ali dos Zilli, do Abraão Zilli.
(Relato de Tunízia)
52
Caderno Pedagógico - Criciúma

Neste sentido, constatamos, mais uma vez, que a


população negra está em constante construção e busca
por novos locais de habitação. Nossa cidade tem
considerável parcela de sua população composta por
descendentes de africanos, mineradores que têm sua
origem ligada à construção da mesma. Desta forma,
observamos que o relato de Tunízia pontua a construção
de estradas da cidade e muitas casas permanecem hoje
da mesma forma que foram construídas durante a
povoação do bairro São Simão, como demonstra o
relato que segue de Uganda:
Eu também gosto muito daqui. Vim para cá com quatro
meses, essa casa foi a estrada do departamento de rodagem
(DNR), marcado na parede que deu pra meu pai até hoje.
A minha casa está do jeito que meu pai deixou, é o que eu
gosto. A mina Tunim já foi maior que o São Simão, o que
tinha lá não tinha aqui. Na escola lá, tinha campo de futebol,
aqui não tinha armazém grande, o pessoal saía daqui pra
comprar lá em cima, depois a mina foi falindo. Cada um
foi carregando sua casa e foi levando, foi levando, que
acabou. Só ficou a casa do meu pai, que é da mina, e a
casa do seu Ambrósio. Nós somos as primeiras famílias
negras do São Simão, não tinha negros no bairro, só estas
duas famílias naquela época. (Relato de Uganda)
A mina Tunim recebeu este nome porque seu
proprietário era Antônio Guglielme, a mineração da
Poeira. Segundo seu Zilli, era assim conhecida em
função dos bailes que os operários faziam nas horas
vagas, como não havia assoalho, levantava muito pó.
A consolidação do território negro operou sobre forte
resistência estética e social em relação aos seguimentos
não-negros da população civil. No processo de
repartição de terras, os negros foram totalmente
excluídos, passando a viver nas periferias da cidade. O
53
Caderno Pedagógico - Criciúma

afastamento das populações de baixa renda das áreas


urbanas atingiu de modo significativo as populações
negras. Historicamente, essa exclusão é conseqüência
da desvalorização que a sociedade escravista praticou
contra os negros. Em momento algum foi pensado no
negro como produtor independente ou como garantia
de proteção jurídica. “Os ex-escravos não tinham
dinheiro para adquirir terras nem domínio das técnicas
sociais e dos instrumentos que lhes permitissem postular
e defender o seu direito à posse de terra.” (LEITE, 1996).
Sobre essa afirmação, existe a necessidade de
constituição de políticas públicas acerca desses espaços
físicos, em que os negros brasileiros têm direito. Essas
estratégias vão possibilitar ações mais objetivas, em que
possam ampliar discussões sobre a temática em questão.
Sabendo disso, a Escola Municipal de Ensino
Fundamental Pe. Francisco Bertero, comprometida em
dar visibilidade aos afrodescendentes de sua
comunidade escolar e fora dela, contribui para a
efetivação da Lei 10.639/03,6 para que seus dez alunos
negros e 241 alunos não-negros convivam numa escola
em que a história do outro seja respeitada e a sua cultura
vivenciada. Principalmente, a africana e afro-brasileira,
que sofreram e ainda sofrem preconceitos e
discriminação na sociedade criciumense.

Do território demarcado à realidade do


mercado de trabalho
Como pontuamos anteriormente, no registro da
diáspora em São Simão, muitos moradores e moradoras
migraram para o bairro em busca de oportunidade de
54
Caderno Pedagógico - Criciúma

trabalho nas minas de carvão, especificamente, no


vilarejo chamado Mina Tunim. Mesmo abrigando os
homens enquanto mineradores, descobrimos que as
mulheres também ganharam um trabalho durante a
exploração de carvão, conforme nos relata Tunízia:
As profissões mais comuns que eu vi, quando cheguei em
São Simão, com 12 anos, as moças trabalhavam na roça
com o pai, ajudavam ele. Eu não me lembro que tivesse
uma profissão fora. Só que eu mais admirava muito a Dona
Beatriz, era professora. Eu achava muito linda ela. Uma
mulher bem bonita chamava muita atenção, porque nós
não víamos uma mulher trabalhar. Ela era professora, a
Dona Beatriz, mulher do Seu Otavio Fontana. E quem
quisesse trabalhar mais que era a escolha, mas quando eu
cheguei ali, era pequena e não peguei a escolha e, para
trabalhar de empregada no centro, mas os pais não
deixavam os filhos trabalhar fora. Então, quando eu cheguei
ali, o Luciano Canaré era casado e a Iracema, sua filha,
tinha um seis anos e depois veio a Ivete. Cuidei dela e de
todas as crianças. A Dona Duzilina ia fazer o corte de costura
no centro e eu cuidava das crianças, depois ela costurava
pra fora. Com meus doze anos, já fazia polenta pra eles em
cima do banquinho. Naquela época, em São Simão, o mais
importante era os mineiros, os mineiros ganhavam. Quando
tinha meus dezoito anos, já estava pronta pra casar, primeiro
namorado, gente pobre eu também. E, uma recordação
que eu tenho e nunca me esqueço é dessa pessoa que já é
falecida, que Deus o tenha, merece ser bem recompensado
na graça de Deus. Meu pai trabalhava e ganhava pouco e
além de ganhar pouco, naquele tempo, os Estados
mandavam socorrer as pessoas que precisavam e,
pagamento em dinheiro, eles não viam. Não tinha
pagamento todo mês, eu não sei quanto ele ganhava, só
sei que ele tinha a caderneta da compra e quando chegava
o dinheiro e ele ia lá e pagava. E surgiu a sorte de me casar.
Meu pai era muito preocupado, como eu era a filha mais
velha, ele não deixava trabalhar fora de casa, só ajudava
55
Caderno Pedagógico - Criciúma

os vizinhos por ali. Aí, seu Otavio Fontana perguntou para


o meu pai: - Eu soube que essa guria é noiva, como é que
vai se aprontar pra casar? - Daí o meu pai tinha muita fé, e
o seu Otávio disse ao meu pai que tinha muito carvão lá na
“Poeira” e botou eu a escolher e pagou até para o senhor
fazer o casamento dela e o meu pai disse, mas como ela
não conhece carvão, nem a pedra, como ela vai trabalhar?
Aí o seu Manoel disse que colocava outra pessoa comigo
para escolher carvão. Quando elas terminassem de escolher
carvão, eu pego direitinho. Ele procurou a Dona Bela, mulher
do Seu Hercílio, deu serviço pra ela e fomos para o serviço.
Só eu e Dona Bela levamos dois meses para escolher um
monte de carvão. Quando comecei, ela já fichou, assinou a
carteira, trabalhei. E quando terminei o serviço, ele me
indenizou e, com esse dinheiro, eu fiz meu casamento. Tanto
que meu aprontô. Eu fiz em oito dias. Contando, ninguém
acredita.

A profissão mais comum que eu me lembro, e que a minha


irmã mais velha tinha uns 15 anos, ela foi trabalhar aqui
na Poeira. Ela e mais algumas senhoras. Lá elas escolhiam
o carvão, botavam em padiola pra ir amontoando para o
caminhão poder pegar aquele carvão que já era escolhido.
Elas não ganhavam bem, elas tinham muito respeito, não
era fichado só ganhavam pra se manter.
O trabalho das “escolhedeiras”, assim eram
chamadas as mulheres que trabalhavam na seleção do
carvão, embora pouco remunerado, ainda servia como
auxílio na manutenção da casa, ao sustento de várias
famílias. Percebe-se aí, a importância da mulher na
administração familiar e na organização da casa,
enquanto os homens labutavam nas mineradoras. Além
disso, ela também inicia sua história no campo de
trabalho constituindo, dessa forma, uma dupla jornada.
Estabelece-se nesse fato, a desigualdade social e de
gênero na prática doméstica e trabalhista, também
56
Caderno Pedagógico - Criciúma

relatada pelas moradoras do bairro São Simão. Em


alguns casos, apenas o homem trabalhava e as
dificuldades de sobrevivência aumentavam.
Da época que agente era pequeno, a gente era pobre, a
gente comia assim, abria aquelas carnes, botava no sol,
secava e ali a gente comia mais a carne assada ou
ensopadinha, feijão, pirãozinho d’água, arroz. Naquela
época, não existia quase macarrão, nem conhecia, uma
verdurinha plantada no quintal, um pãozinho da venda isso
era lá quase anos, era mesmo artigo de luxo, não dava
para comprar, porque era só meu pai trabalhando, porque
nós éramos tudo pequena e a vida era muito difícil.

Quando chegava o inverno, assim, a gente passava uma


dificuldade muito grande com o frio, e às vezes, numa cama
de casal, nós dormíamos as meninas tudo junto para uma
esquentar a outra. O travesseiro era de marcela, o colchão
era de palha e, às vezes, a minha mãe ficava com tanta
pena de nós que ela preenchia outro colchão com palha
pra botar em cima de nós, pra não passar frio. E sobre
sapato, naquela época, a gente não tinha. Nós só fomos
botar sapato, quando nós tínhamos 14 anos de idade, nós
íamos na praça a pé ou de carroça de pé no chão, porque
nem sandalinha de dedo, nós não tínhamos, porque o pai
não podia dar. Era muito filho. No inverno, os pés ficavam
vermelho e não ter um sapatinho pra botar no pé... e, às
vezes, a gente tinha uma mudinha (roupa), mas isso lá a
gente ia para o sol pra esquentar , o sol de manhã pra
poder se esquentar e, à noite, o pai assim abria um latão e
ali ele botava, fazia aquele fogaréu no chão em cima daquele
latão. Ali ele botava, fazia aquele fogaréu no chão em cima
daquele latão, ali ele botava nós tudo em redor pra esquentar
fogo. Ali ele contava história e nós tudo ali esquentando
fogo e ouvindo a história dele, mas ele foi um pai muito
bom e ali então, quando nós íamos se deitar aí, as meninas
dormiam tudo junto e os rapazes dormiam tudo junto lá na
outra cama pra gente não sentir tanto frio, porque naquela
57
Caderno Pedagógico - Criciúma

época o inverno era bem mais frio que agora. (Relato de


Tunízia)
Infelizmente, os dados sobre as dificuldades
vivenciadas pela família de Dona Tunízia não são
diferentes da realidade hoje vividas pela população negra
brasileira. Segundo o IHD,18 os negros representam
69,3% da camada constituída pelos 10% mais pobres
e, apenas 8,2% da população, constituída pelos mais
ricos. Os indicadores de pobreza e de indigência são
muito mais elevados entre os negros do que entre os
não-negros. O IPEA (2001)7 registra que 34% dos
brasileiros foram considerados pobres, isto é, viviam
abaixo da linha de pobreza. Nesse mesmo ano, verificou-
se que 47% da população total de negros era pobre.
Entre o total de brancos, a proporção de pobres era
de 22%. Ou seja, cerca da metade dos negros viviam
abaixo da linha de pobreza. Quanto à proporção de
negros, entre os pobres, apontou-se um percentual de
61%. Da população brasileira, 15% vivia abaixo das
linhas de indigência, o total da população negra 22%
era indigente, entre o total de brancos, esse percentual
era de 8%. Observou-se também que era de 66% a
proporção de negros, entre a população total que vivia
abaixo da linha de indigência. Tanto o IDH quanto o
IPEA trazem dados relevantes à sociedade brasileira,
embora seja do ano de 2001, mas o mais importante
que cabe aqui ressaltar é que estamos em 2007. O relato
de Tunízia nos remete ao período de 1950 e observamos
em nossa pesquisa que tal realidade pouco mudou à
população negra de nosso município. O acesso ao
mercado de trabalho, o qual oportunizaria melhores
condições de vida ao povo negro, ainda é pouco
inclusivo.
58
Caderno Pedagógico - Criciúma

A gente se vestia como podia, não tinha escolha, as mães


vestiam a gente. Às vezes, calçavam um sapatinho, mas
custavam a ganhar, porque só quando faziam a 1ª
comunhão que a gente se arrumava mais melhor. E as
comidas, nós acompanhávamos as pessoas da colônia. À
noite, já era uma minestra ou, às vezes, uma polenta e,
quando faltava alguma coisa, era batata. Outras coisas, só
quando era festa. Bolo, eu fui conhecer quando já era
mocinha, porque era simples, cada vez mais simples. Tempo
do milho, batata, aipim, era o que a gente se alimentava.
Leite sempre tinha, às vezes, ganhava. Naquele tempo, não
comprávamos.

A criança, quando ficava doente, pra ir ao médico, só quando


era urgente, não tinha condições adequadas. Só filho de
mineiro que tinha caixa, ou seja, paga INSS então esses
tinham direito, caso contrário, era recorrido às pessoas que
benziam, mas Deus o livre, se falasse em macumba. Nunca
fomos em médico, a minha mãe curava em casa com chá,
mas chegou uma época que um deles (irmão) precisava de
um médico. Naquela época, o médico vinha, me lembro
quando eles vinha em casa fora de hora, tinha que botar
uma luz na janela para o médico saber que aquela luz na
janela era a casa de quem estava doente. Eu lembro que o
pai botou o gás (lampião) na porta. Aí o médico veio
direitinho, as casas eram de operário e muito pertinho uma
da outra. Os partos eram feitos em casa, a parteira era
Dona Maria Chagas, era ela que trazia as criancinhas, era
minha madrinha. (Relato de Joana)
Com a escassez de trabalho, a dificuldade atingia a
questão da saúde. Esta última, caótica nos dias atuais,
com a ineficácia do sistema público de saúde. Sabe-se
que a população negra sofre a ausência nos tratamentos
pertinentes. Chás e benzeduras, práticas oriundas dos
ancestrais africanos serviam as várias populações
negras e não-negras do Brasil. Os partos realizados em
casa constituíam e ainda constituem uma herança das
59
Caderno Pedagógico - Criciúma

mulheres negras africanas, assim como as rezas e


benzeduras. Trabalho informal realizado ainda em
nossos dias.

Descontração nas relações sociais da


comunidade São Simão e a questão do
racismo na região criciumense

Olha, como já falei aqui, não tinha divertimento. Eu casei


cedo, com 18 para 19 anos, e aqui em São Simão, não
tinha nada a não ser a igreja. As poucas festas que tinha
era longe e não tinha colega pra sair, não tinha nada. Nosso
passatempo era uma dança que havia nas casas. Então,
cada domingo alguém fazia assim uma lambisoca, que era
um baile depois do meio-dia, daí se reuniam lá o sanfoneiro,
que era o Hilário Fontana, era o Zico Zagana e ali formava
aquele conjunto. Na Mina Tunim, não tinha igreja, mas a
Dona Otélia Dal Ponte era muito católica. Ela cedia a casa
dela pra fazer missa, festa, até muita festa de Santa Bárbara
era feita na casa dela, com churrasco e tudo como se fosse
na igreja.

Tem dois clubes, o União Mineira e o União Operária,


chamamos clube dos brancos e dos morenos. Nós piamos
no Clube União Operária, fica ao lado da igreja de Operária.
Então, naquele tempo, quando eu freqüentava, era de
madeira e pintado de amarelo. Então, a gente tinha que
saber entrar. Os morenos que dançava ali, só da raça
morena.

A escola era no Tunim. A minha professora era a Dona


Deliria, e depois a Dona Maria, uma bem pretinha. Ela veio
dar aula em São Simão, mas o pessoal aqui não aceitaram,
por causa da cor. Então, ela foi pra Mina Tunim e deu aula
lá por muito tempo, mas lá no Tunim muito italiano
estudavam com ela. ( Relato de Tunízia)
60
Caderno Pedagógico - Criciúma

No relato de Dona Tunízia, observamos que a cor


da pele de uma das professoras fez com que se abrisse
um abismo carregado de preconceito, deixando nítida
a segregação que houve nessa localidade, não apenas
racial, mas também geográfica e social. A referência ao
Clube União Operária não está à toa no depoimento
da entrevistada. A maioria da população afro-
criciumense se vê identificada no espaço que se destina
à diversão dos mesmos, também conhecido pelos não
afros da cidade por “clube dos morenos”.
Nesse local houve muitos eventos marcantes como
bailes, jantares, cursos à descendência de africanos/as.
Hoje, ainda acontecem alguns eventos, mas não com
muita ênfase como em décadas anteriores, pois não há
recursos financeiros que consigam gerenciar
devidamente o clube como deveria, infelizmente. Por
outro lado, o Clube União Mineira se mantém melhor
do que o outro. O mesmo se beneficia de uma das
tradições culturais africanas, como o samba e o pagode,
para realizar grandes eventos a toda população
criciumense.
Aí se revela a apropriação da cultura do outro, no
caso, a negra, em benefício dos dirigentes não-negros
que comandam essa sociedade. Um detalhe curioso é
que esse clube não possuía sócios negros/as em décadas
anteriores. Bem como, não aceitava a entrada da
população negra em suas dependências. Tal fato está
registrado no depoimento de Dona Tunízia. Temos no
século XXI, a profissionalização da negritude em
diversas áreas da sociedade brasileira...
61
Caderno Pedagógico - Criciúma

Considerações finais
Discutir e analisar, com professores e professoras, a
história do Brasil numa perspectiva racial, é fundamental
para que se construam novas formas de postura e
intervenção, em favor de um olhar mais amplo sobre a
diversidade.
A implementação da Lei Federal 10.639/03, na ação
pedagógica das escolas da Rede Municipal de Criciúma,
parece uma tarefa difícil, mas não impossível, pois
requer determinação, vontade e resistência: herança essa
adquirida de nossos ancestrais.
Para que a escola intervenha no processo de
aprendizagem significativa dos alunos, é necessário
conhecer a realidade do mesmo. A história do
afrodescendente em Criciúma precisa ser conhecida e
ressignificada. Foi com esse intuito que a EMEF Pe. José
Francisco Bertero contribuiu, para que o estudo da
história local em que a escola está inserida possa trazer
informações acerca das questões raciais, subsidiando
professores e professoras na desconstrução de séculos
de omissão da verdadeira história.
O nosso trabalho iniciou com uma sensibilização aos
docentes da escola em que pautamos o histórico da Lei
10.639/03, seu objetivo e importância, resultando no
PMEDEC (Programa Municipal de Educação para
Diversidade Étnica Cultural). Alguns professores e
professoras não se sentiam seguros ainda em iniciar a
pesquisa no bairro.
Então, assumimos o compromisso de apoiá-los, indo
a campo com alguns alunos do 8º e 9º ano. Houve
muitas dificuldades e enfrentamentos ao longo do
processo. Procuramos resolvê-las da melhor forma
62
Caderno Pedagógico - Criciúma

possível, pois o dia-a-dia na escola, as idas e vindas


nas casas das pessoas entrevistadas, muitas vezes,
impediram-nos de executar ao que nos propusemos,
porque nem sempre estavam com disponibilidade de
tempo para nos atender.
Além do envolvimento de alguns docentes, o que mais
nos encantou foi a participação dos alunos. É necessário
destacar que o registro das experiências históricas do
aluno tem um significado muito grande, quando
socializado com os seus pares.

Notas
1
Professora graduada em Pedagogia pela Universidade do
Extremo Sul Catarinense - UNESC, especialista em
Educação Infantil e mestre em Educação e Cultura pela
Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC,
professora do Curso de Pedagogia e Coordenadora do NEAB
na UNESC, membro do NEGRA (Núcleo de Estudos de
Gênero e Raça).
2
Professora graduada em Letras pela UNESC, especialista
em Práticas Pedagógicas Multidisciplinares pela AUPEX,
mestranda em Teoria Literária pela UFSC, membro do
NEGRA, coordenadora pedagógica do 6º ao 9º período na
Secretaria Municipal de Ensino.
3
Professora graduada em Pedagogia pela UNESC,
especialista em Tecnologia Aplicada à Educação pela
Faculdade Bagozzi, Coordenadora do PMEDEC (Programa
Municipal de Educação para a Diversidade Étnico-Cultural),
na SME.
4
Orientadora educacional, graduada em Pedagogia e pós-
graduada em Psicopedagogia na UNESC.
5
As fontes orais utilizadas para a realização deste trabalho
terão seus nomes substituídos por outros de caráter fictício,
de forma a preservar a identidade dos depoentes.
63
Caderno Pedagógico - Criciúma

6
DIRETRIZES Curriculares Nacionais para a educação das
relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura
afro-brasileira e africana. Distrito Federal, 2005.
7
Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, 2001.

Referências

BRASIL, Diretrizes Curriculares Nacionais para


Educação das Relações Étnico- raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira.
Brasília, 2005.
FRANTZ, Fanonn. Pele negra, máscaras brancas.
Porto: Paisagem, 1975.
FREIRE, Gilberto. Casagrande & Senzala: formação
da família brasileira patriarcal. São Paulo: Global, 2005.
HALL, Stuart. Quando foi o pós-colonial? In: Da
diáspora: identidade e mediações culturais. Belo
Horizonte: UFMG, 2003.
LEITE, Ilka Boaventura. Negros no sul do Brasil:
invisibilidade e territorialidade. Florianópolis: Letras
Contemporânea, 1996.
MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos!
São Paulo: Ática, 1986.
SAID, Eduard. Cultura e imperialismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
64
Caderno Pedagógico - Criciúma
65
Caderno Pedagógico - Criciúma

Entre a mina, o lixão, a


escola, e os orixás:
encontros com locais de memórias e
histórias do Bairro Renascer

Bárbara Eliana Milioli1


Fábio Alexandre Belloli Zampoli2
Iolanda Romeli Lima Manoel3
Maria de Fátima Pícolo4
Raquel Damázio da Costa5

Introdução
Tal qual pontuou Nora (2003), os locais de memória
se constituem por meio de laços de afetividade, de
reconhecimento, de pertencimento e de grupo. São,
portanto, suportes que possibilitam um diálogo com
66
Caderno Pedagógico - Criciúma

diferentes temporalidades e sujeitos e que carregam


consigo, para além do material, o simbólico e o funcional.
É material, porque concreta na sua edificação;
funcional, porque permite a cristalização de diferentes
lembranças; e é simbólico, porque propicia inserir
também aqueles/as que não participaram de
acontecimentos e de experiências anteriores à sua
existência. Sendo, então, uma forma de percebê-los
também como parte desta história. Compreendendo que
se trata de,
[...] lugares, portanto, mas lugares mixtos (sic), híbridos, e
mutantes, intimamente enlaçados de vida e de morte, de
tempo e de eternidade; numa espiral do coletivo e do
individual [...], do imóvel e do móvel [...] a razão de ser de
um lugar de memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho
de esquecimento[...]. (NORA, 2003, p. 22)
Pierre Nora (2003, p. 22) reforça: “[...] os lugares de
memória só vivem de sua aptidão para a metamorfose,
no incessante ressaltar de seus significados [...].” Os
lugares de memória não falam por si, precisam de
interlocutores(as), precisam ser problematizados. Sendo,
para isso, necessário escutar diferentes sujeitos que, por
meio de suas memórias, vão ressignificando estes
lugares e vão, a partir de seus olhares e experiências,
construindo a história do bairro.
É, portanto, uma construção coletiva e plural. Outras
poderão ser as formas de registrar a história do bairro;
mas, neste artigo, teremos como pano de fundo, para
historicizar os locais de memória do bairro, o processo
de sua construção, a Clotilde Lalau, mulher negra que
“empresta” seu nome à escola e à presença das religiões
de matriz africana; ressaltando o nosso compromisso
com a diversidade étnico-cultural e com a necessidade
67
Caderno Pedagógico - Criciúma

de registrar e dar visibilidade também às histórias do


afrodescendentes do bairro, a partir da sua religiosidade.
O que sabemos sobre a formação do bairro
Renascer? Segundo a história oficial, a cidade de
Criciúma teve sua origem a partir da imigração italiana,
no fim do século XIX, tendo sua ascensão econômica,
por meio do surgimento das minas de carvão, no início
do século XX.
Com a atividade carbonífera em franca expansão
nos anos posteriores, e com a diversificação de sua
economia em meados da década de 1960, ampliaram-
se também as oportunidades de emprego: fato que
contribuiu para o aumento populacional, pois a oferta
de vagas atraiu muitas pessoas de regiões vizinhas, que
acabaram fixando residência na cidade.
Porém, a cidade não estava preparada para receber
estes novos moradores: o que ocasionou uma série de
problemas sociais. Entre os mais freqüentes, o déficit
habitacional. Assim, os novos habitantes foram
ocupando aleatoriamente diversos espaços, alguns em
áreas verdes, outros próximos a antigos locais de
mineração.
Neste contexto, no início dos anos de 1980, uma
antiga área de mineração, denominada Mina 4, de
propriedade da Companhia Siderúrgica Nacional, que
abandonada, serviu como depósito de rejeito da
produção carbonífera, acabou servindo também de
depósito de lixo da cidade de Criciúma.
Esta paisagem, até então inóspita, em que a evidente
falta de vida proporcionada pelas montanhas de pirita,
pela acidez das águas de antigos córregos, foi sendo
substituída por um lixão e passou a ser habitada, num
primeiro momento, por alguns moradores que
68
Caderno Pedagógico - Criciúma

negociaram seus lotes com a prefeitura municipal, dando


início à comunidade de Mina Quatro6.
Posteriormente, na gestão do prefeito José Augusto
Hülse, 7 a comunidade cresceu em número de
moradores, pois passou a contar com a implantação
de um projeto habitacional pela prefeitura municipal
de Criciúma, quando foram construídas 101 casas
populares com recursos da COHAB.
É relevante mencionar que este projeto habitacional
sofreu um processo de ocupação ilegal, antes mesmo
de ser concluído, segundo seu Rubinho:
Os pedreiros começaram a levantar, eles iam embora, já de
noite, de madrugada, já vinha gente e invadia ali, já chegava
ali e botava uma cama, um fogãozinho velho, [...] quando
os pedreiros chegavam, retiravam as coisas e construíam,
com eles ali dentro.8
Porém, a implantação do projeto habitacional não
previu a retirada do depósito de lixo da localidade.
Assim, a convivência dos moradores com o “lixão” era
inevitável. O mau cheiro, as moscas, ratos, urubus, as
doenças de pele, proporcionados pelo indesejável
vizinho; além do lixo hospitalar que, entre seringas, gazes,
algodões, esparadrapos, que, por vezes, traziam em seu
meio partes de corpos humanos, desagradavam parte
da população que se mobilizava para retirar o depósito
de lixo do bairro.
De acordo com Seu Rubinho, os moradores não
tinham “força” para retirar o lixão da comunidade, para
isso era preciso:
[...] achar uma hora oportuna daí a gente tenta [...] aí deu
certo que achamos uma perna humana, [...] chamamos a
polícia, médico legista e aí vão saber de onde era, veio do
lixo hospitalar. Daí eles levaram e eu cheguei e falei: “Agora
69
Caderno Pedagógico - Criciúma

nós temo o nosso direito de tirar o lixão daí”. Reunimos o


pessoal e não deixamos colocar mais o lixo... Os caminhão
voltavam, com o lixo de volta. Daqui pra frente, ninguém
mais vai encostar o caminhão. Daí nós conseguimos tirar.9
Porém, o que era incomodo para alguns; para outros,
significava um meio de sobrevivência; pois era, entre
as montanhas de lixo, que conseguiam algum tipo de
renda, como afirma a professora Maria das Dores da
Silva Colonetti: “Havia uma senhora chamada Antônia
que vendia “torresminho”, tempos depois descobrimos
que eram feitos com restos de pele de frango, que os
caminhões dos supermercados depositavam no lixão
[...]”.10 Ou mesmo, alimentavam-se do que encontravam
naquele lugar. De acordo com Francisco Moreno:
“Quando caminhões de Supermercado apareciam
depositando produtos vencidos no lixão, iogurtes, frios
[...] parecia dia de romaria, de tanta gente caminhando
para lá [...].”11
A luta pela retirada do lixão acabou se transformando
em motivo de desavenças entre os moradores/as. Afinal,
a sobrevivência de alguns estava diretamente vinculada
à existência do mesmo, segundo nos relata Seu Rubinho:
“[...] tinha o depósito aqui, eles trabalhavam e tinha
uns senhores ali, do Ana Maria, e eles pagavam para o
pessoal para recolher o lixo, quando tiramos o lixão
daqui eles brigaram, nos chamaram de marginal, de
vagabundo [...]”.12
As dificuldades encontradas não acabavam por aí,
como em todo o bairro periférico. O bairro, inicialmente
conhecido como Mina 4, além de sofrer com problemas
ocasionados pela falta de infra-estrutura, como ressalta
Dona Olindina, “[...] não existia um telefone público,
não tinha um ônibus para ir para o centro, não tinha
70
Caderno Pedagógico - Criciúma

colégio, não tinha postinho [...] era tudo escuro, era um


deserto, estrada de chão bem estreitinha, [...] era uma
pantaneira”.13 Além disso, enfrentava a discriminação
social. Assim, relata-nos seu Rubinho,
[...] quando eu chegava no centro, os corneteiros, aquela
turminha que ficava próximo ao café São Paulo, quando
eu chegava eles diziam: lá vem o neguinho da Mina 4 e eu
dizia: “Tá por quê? O que é que tem? Não posso morar na
Mina 4? Eu não troco a minha casa na Mina 4 pra ir lá pra
Próspera, pra Brasília [...] Vocês não lê jornal, vê televisão,
escuta rádio? Quantos já mataram no Mina 4? Agora, vê
(nos outros bairros)?14
Neste ambiente tumultuado, contraditório e pouco
saudável à vida humana, muitas famílias provenientes
de outros bairros do município, de outras cidades e
estados começaram a ressignificar suas vidas, a partir
da conquista de uma moradia: o que representava,
também, a possibilidade de conseguirem emprego.
De acordo com seu Rubinho, foi por meio da
mobilização e da luta, que os/as moradores/as foram
transformando, aos poucos, a vida e a cara do bairro:
Depois da rede de esgoto, nós fomos brigar com o Altair
Guidi15 a respeito do lixão. Queria esgoto, queria igreja,
creche, posto. Aí ele disse: Vocês estão pedindo demais. A
escola, eu pago. Como resultado do empenho das famílias
que ali residem, o bairro atualmente conta com posto de
saúde, linha de ônibus, ruas calçadas, iluminação pública,
rede de esgoto, igrejas católica e evangélicas [...].16
Neste contexto, está inserida a Escola Clotildes Maria
Martins Lalau, inaugurada em 1991. A Escola, desde a
sua inauguração, tem atuado junto à comunidade a fim
de diminuir as dificuldades encontradas no bairro.
Conta, atualmente, com aproximadamente 550 alunos/
as, sendo que destes/as, 230 são afrodescendentes.17
71
Caderno Pedagógico - Criciúma

Como já citamos anteriormente, a construção desta


escola se deu pelo envolvimento da comunidade,
revelando o significado deste espaço para ela que e, ao
longo das décadas, transformando-se em um local de
memórias.
Por isso, para além do nome da escola, Clotildes Maria
Martins Lalau18, é também a mulher negra que, além de
contribuir para a educação escolar de Criciúma, também
lutou em defesa da cultura e da população negra de
Criciúma. Seu nome estampado na frente da escola pode
não ter significado para a comunidade, para alunos negros
e não negros, mas isso se deve em virtude de não
conhecerem um pouco de sua história. Aliás, é necessário
dialogarmos com os espaços, locais que comumente
freqüentamos, principalmente, quando se trata de um
ambiente escolar. Pois, desta forma, obteremos respostas
e construiremos significados, quando estes espaços forem
provocados e problematizados.
Por isso, o nosso encontro com Clotildes se dará a
partir de passagens de sua vida colhidas nas lembranças
de pessoas com as quais conviveu. Neste sentido, com
as lembranças evocadas, poderemos desvelar algumas
de suas práticas, experiências, ações e preocupações,
contribuindo também para incluí-las no histórico
escolar, já que essas lembranças estiveram presas na
memória das pessoas e que o tempo poderia se
encarregar de apagá-las.
Assim, para além do nome estampado na fachada
da escola, esta mulher vai ganhando visibilidade,
tornando-se concreta, porque também foi e é parte da
história da cidade.
Dentre muitas preocupações da professora Clotildes,
podemos destacar, também, os artigos que escrevia nos
72
Caderno Pedagógico - Criciúma

jornais locais, assinando com o pseudônimo de “Tulipa


Negra”, em que denunciava as diversas formas de
opressão enfrentada pela população negra da cidade,
como recorda Normélia Ondina Lalau de Farias,
[...] aí eu lembro-me muito bem, eu deveria ter uns nove
anos, que uma das minhas tias que morava conosco, tava
se formando no colégio São Bento, e o baile de formatura.
Nossa, aquilo foi show! Eu tenho até hoje isso gravado na
minha mente. E a minha tia era uma pessoa super pra
cima, muito alegre. Veio se arrumou, tal, e saiu pro baile. E
não levou o que, uma questão de uma meia hora, ela
retornou. Ela retornou, mas já retornou que ela, nossa (!),
vinha furiosa. Aí, a minha mãe perguntou o que houve. Aí,
ela disse: “Não fui pro baile e fui barrada, não podia entrar
no baile” [...] Mas é que, naquele período, era bem assim
mesmo. Lá, os brancos; aqui, os negros. Aí ela disse não
tem problema, na mesma hora ela levantou, trocou de roupa,
foi na delegacia mais próxima, prestou queixa e depois ela
lascou os artigos no jornal, que aí ela assinava como Tulipa
Negra. Aí o União Mineira ficou com as portas fechadas
durante uns dois meses na época se eu não me engano[...].19
Outro fato relatado por Normélia esteve relacionado
a um baile de debutantes promovido por um Clube local:
Eu não sei se era o Mampituba ou o Criciúma Clube que
faziam os bailes de debutantes, e no momento traziam os
espadins. Os meninos das Agulhas Negras né? Então eles
vinham com todo aquele cerimonial. E num desses bailes,
eles vieram junto a esses meninos. Veio um menino negro.
E chegou na hora, e os espadins vinham justamente para
dançar a valsa com as debutantes. E, numa dessas, eu não
me lembro, mas [...]eu vou até citar, mas depois teria que
confirmar, se não me falha a memória, era a filha de um
dos Althof, que aí, o par dela caiu o menino negro. E aí na
hora, no baile, os pais ficaram revoltados. Não queriam de
jeito nenhum, não aceitavam que a filha dançasse com o
espadin negro. E aquilo deu a maior polêmica. Na mesma
73
Caderno Pedagógico - Criciúma

hora, o chefe deles bateu continência e retirou-se do clube.


E no outro dia, ela foi pro rádio e pau. Então, ela era muito
assim.20
Passagens como essas lhe conferem um papel de
liderança que é reconhecida pela população negra da
região, segundo Dona Maura:
Ela tinha liderança, ela tinha liderança lá em Tubarão e
aqui em Criciúma. Logo ela começou a trabalhar a raça
negra, ela logo doutrinou os negros, e começou a dizer pros
negros que eles parassem com isso, que eles fossem estudar.
Ela era uma grande líder negra aqui em Criciúma né? Porque
ela chamou essa negrada às fala, ela ofendia e eles achavam
que tinha hora que ela se passava, mas ela não queria nem
saber. Lá em Tubarão, ela fazia a mesma coisa com os
negros também. Ela chamava e, pra ver se eles tinham
brios, então ela usava umas palavras fortes, que eles fossem
ter vergonha na cara, que eles fossem estudar. E aqui em
Criciúma, ela começou a dar em cima deles, e vai estudar, e
vai fazer isso e vai fazer aquilo e até hoje a gente encontra
muitos negros que dizem que são o que são, por causa dela.21
Suas inquietações relacionadas à educação escolar
são transformadas em ações concretas como nos relata
seu Toninho:
[...] eu já era velho né? Já tinha 27 anos. Eu disse, assim:
“Tinha vontade de estudar”; Diz ela assim: “Não, então
deixa que eu vou fazer uma sala especial só para adulto”;
Eu digo: “Mas eu não fiz a 4ª série completa”; Aí diz ela
assim: “Não, então vou fazer exame de admissão né?” [...]
Aí, ela inclusive deu umas aulas pra mim, estudei mais de
quatro meses pra fazê o exame de admissão e deram todas
as matérias. Aí botou uma professora. Aí fez sala, fez uma
sala e botou uma professora para fazer o exame de admissão
né? Aí então, ela, a diretora, então botou lá. Fez uma sala.
Só teve dois que não passou, o resto todo mundo passou.
Nós tava em vinte e poucas pessoas [...] e aí nós começamos
a estudar.22
74
Caderno Pedagógico - Criciúma

Além disso, podemos afirmar que sua luta e sua


causa estavam literalmente estampadas em seu corpo.
Afinal, era seu costume utilizar no cotidiano,
indumentárias típicas de povos originários da África.
De acordo com a professora Adiles Lima, “[...] era
comum encontrar a Dona Clotildes andando
orgulhosamente pelas ruas de Criciúma, com seus
turbantes elaborados e os vestidos típicos
combinando, ou então ser convidada/o para uma de
suas tantas festas onde a comida afro-brasileira fazia
parte do cardápio principal e era por ela preparada com
muito carinho”.23
Suas histórias de lutas e conquistas, como vimos,
refletem sua importância para além da comunidade aqui
referida, e ela transforma-se em uma das referências na
história das populações afrodescendentes de Criciúma,
demonstrando que a história desta população precisa
ganhar visibilidade na construção da cidade.
Ainda com o intuito de valorizar, reconhecer e
registrar a cultura afro-brasileira presente no bairro e
na escola, este projeto, ultrapassou os muros desta
instituição e possibilitou vivenciar o que, certa vez,
ouvimos: “Se queremos encontrar a África (ou elementos
da africanidade brasileira), basta atravessarmos a rua.”
E foi o que aconteceu literalmente, quando a duas
quadras da escola, deparamo-nos com um Ylê (ou uma
terreira) de Nação Cabinda.
Pensar ou escrever sobre as religiões de matriz
Africana em Criciúma e no bairro Renascer é uma tarefa
difícil. Por serem de tradição oral, esbarramos em alguns
empecilhos, como: a falta de fontes, dados, informações
sobre como ela se estabeleceu na cidade: o que
demandaria uma pesquisa mais aprofundada, sendo a
75
Caderno Pedagógico - Criciúma

memória uma fonte preciosa para registrar a presença


destas religiões na cidade.
Acostumados em seu cotidiano, com práticas de
benzeduras, com as festas de Cosme e Damião, com as
mesas de inocentes, com as espadas de São Jorge e
Santa Bárbara plantadas nas entradas das casas, ou
mesmo, nas esquinas, com as oferendas; à noite, com
som dos atabaques, muitos moradores talvez não
percebam ali traços de tradições religiosas que foram
se estabelecendo no Brasil, a partir do século XVI, e
resistindo aos séculos; toda forma de discriminação
chega aos dias atuais.
Entre estas tradições religiosas, estão a Umbanda e
o culto aos Orixás, que se divide em diferentes
expressões pelo país.24 No Sul do Brasil, segundo o
antropólogo Norton Correa (2002, p. 240), o “Batuque
ou nação (leia-se nação africana) é a religião negra mais
tradicional, antiga e característica do sul do Brasil.” Esta
manifestação religiosa, por sua vez, divide-se em
Nações, que traduzem diferentes rituais e Orixás
cultuados.
Podemos afirmar que a prática de religiões de matriz
africana, no sul de Santa Catarina, sofreram uma certa
influência do Batuque do Rio Grande do Sul. Em
Criciúma, vários Babalorixás e Yalorixás (ou pais e
mães de Santo) são oriundos do Estado vizinho, ou
foram iniciados e “aprontados”, seguindo as
manifestações religiosas praticadas no Rio Grande do
Sul.
Segundo o Antropólogo Ari Pedro Oró, em relação
ao mito fundador do batuque,
[...] há duas versões correntes: uma que afirma ter sido o
mesmo trazido para esta região por uma escrava, vinda
76
Caderno Pedagógico - Criciúma

diretamente de Recife; e outra que não associa a um


personagem, mas às etnias africanas que o estruturaram
enquanto espaço de resistência simbólica à escravidão.
(ORÓ, 2006)
Além disso, também, não há um consenso em relação
à sua estruturação, quando e onde surge. De acordo
com Ari Pedro Oró (2006),
A estruturação do batuque no Rio Grande do Sul constitui
outro tema que aguarda um aprofundamento investigativo.
Tudo indica que os primeiros terreiros foram fundados
justamente na região de Rio Grande e Pelotas. Para o
historiador Marco Antônio Lirio de Mello - que fez uma
ampla pesquisa nos jornais de Pelotas e Rio Grande do
século XIX -, a presença do batuque é atestada nesta região
desde o início do século XIX (Mello, 1995). Também Correa
situa o período inicial do batuque nesta região entre os anos
de 1833 e 1859 (Correa, 1988a:69). Se assim for,
permanece a dúvida de se saber se a estruturação do batuque
ocorreu posteriormente ou paralelamente à estruturação do
candomblé, uma vez que o primeiro terreiro de candomblé
teria surgido na Bahia no ano de 1830 (Jensen, 2001:2).
Assim como no Rio Grande do Sul, em Criciúma
não se pode datar com precisão a estruturação do
batuque. Porém, alguns autores25 afirmam a década de
1950 como sendo a data de seu início, a partir do
estabelecimento da terreira de Dona Antoninha26,
proveniente de Araranguá.
Após esta breve contextualização, cabem alguns
questionamentos: o que significa Nação, nesta
manifestação religiosa? Quantas são? Quais
características as diferenciam da Umbanda? Qual a
relação entre as religiões de matriz africana e o bairro
Renascer?
Aqui o sentido de Nação não está ligado ao contexto
dos Estados modernos ou dos Estados - Nações. Porém,
77
Caderno Pedagógico - Criciúma

aproxima-se muito do seu conceito por também estar


vinculado a um sistema simbólico e cultural que a
diferencia das demais nações.
Afinal, os Orixás, as encruzilhadas (ou cruzeiros), o
mar, cachoeiras, pedreiras, os cânticos, as oferendas,
as guias, os babalorixás e yalorixás, os filhos de santo e
outros rituais fazem parte desta rede simbólica que
possui um significado específico para os praticantes da
religião e que contribuem para a formação e existência
da Nação.
Segundo o Babalorixá Francisco de Ossanha,
morador do bairro Renascer há 14 anos, “Nação é o
povo que veio [...] veio pra cá a Nação Cabinda, Jejê
- Ijexá, Oió, Angola são várias as nações que veio de lá
[...]. Talvez reste muito pouco no meu sangue desse povo
de Cabinda, mas espiritualmente esse povo não se
perdeu, então essa é a minha Nação, é a partir da minha
doutrina religiosa, e que eu aprendi com meus pais
[...].”27
Percebe-se nas palavras de Francisco de Ossanha
que o sentimento de pertença do praticante a uma
determinada Nação e a existência da mesma são
estabelecidos por meio de uma relação dialética, ou seja,
são os laços culturais que vão se estabelecendo a partir
da sua iniciação na religião.
Neste sentido, os iniciados vão perpetuando a Nação
e se construindo enquanto membros da mesma, “Nação
é isso, é dentro do meu ylê, eu construo uma nação,
essa é a minha Nação[...]. Por ter os filhos de santo, os
afilhados, sobrinhos, os meus filhos de santo já têm
outros filhos de santo”.28
No Batuque, são cultuados doze Orixás, estando
estes relacionados às forças da natureza. Bará representa
78
Caderno Pedagógico - Criciúma

a força vital que movimenta o universo, a Terra, o mundo


material, o dono da encruzilhada, abridor dos caminhos.
Ogum, o masculino da religião, o dono dos metais, das
guerras. Iansã, o feminino da religião, dona dos raios,
tempestades, ventos, orixá que faz a passagem dos vivos
e dos mortos. Xangô, orixá do fogo, da justiça, do trovão.
Odé e Otim, protetotres das pequenas coisas da fauna
e flora, orixás da caça. Obá, orixá dos encantamentos,
do ouvido, da fé. Ossanha, orixá dono das folhas, dos
sentimentos, o “médico” da religião. Xapanã, o
“feiticeiro”, o “príncipe” da religião, o orixá das doenças
(varíola, lepra...), representa o término de um ciclo.
Oxum, orixá dona das águas doces, do ouro, da riqueza,
do amor, da vida. Iemanjá, orixá das águas salgadas,
da maternidade, da família, da fertilidade. Oxalá, pai
de todos os orixás, representa a paz, a vida, o lar, o
perdão, o céu. Cada orixá possui sua saudação, seu
dia da semana a ser saudado por seus filhos, seu dia do
ano a ser festejado, seu símbolo, sua cor, sua comida,
seu canto, sinal e oferenda.
Diferente do Batuque, a Umbanda (todos no mesmo
lugar), conforme alguns autores, é “[...] uma religião
autenticamente brasileira”29, e o significado da palavra
não poderia ser mais adequado, pois possui elementos
das religiões de matriz africanas, do catolicismo, do
kardecismo, os espíritos da terra, os indígenas e ainda
existem os encantados, como as sereias, entre outras
entidades e a linha do oriente. Há também cultos
específicos aos Exus, denominados de Quimbanda.
Segundo Francisco de Ossanha, na Umbanda, são
cultuados os “pretos velhos”, “caboclos”, “exus”,
“pombagiras”, “crianças”, ou seja, “[...] seres humanos
que um dia viveram e que levavam uma vida errada
79
Caderno Pedagógico - Criciúma

para nossa moral, mas que possuíam luz dentro de si.”30


Outra característica que diferencia a Umbanda da
Nação está na linguagem. Aqui todo o ritual, orações,
cânticos são feitos em português, enquanto na Nação
se faz em yorubá: seu idioma originário.
No panteão das divindades africanas, Xapanã, o
dono das doenças de pele, o dono da vassoura, o Orixá
que tem no corpo as marcas da varíola e, por isso, cobre-
se com palhas. Também é o orixá que representa o fim
de um ciclo.
Neste sentido, podemos dizer que o bairro Renascer
possui certa similaridade com este orixá. Os indícios
colhidos a partir dos depoimentos revelaram que sua
constituição está, assim, intimamente ligada a ele. Basta
lembrar o fim do ciclo da mina e o depósito de rejeito
de carvão para se tornar um lixão, que também se finda,
para dar lugar a um bairro, como se estivesse Xapanã
varrendo para longe a ausência de vida na antiga área
de mineração e limpando a comunidade de toda a
sujeira e doenças proporcionadas pelo depósito de lixo.
Assim, como esta analogia entre Xapanã e o bairro
Renascer, outras relações podem ser estabelecidas entre
Criciúma: os orixás e as religiões de matriz africana.
Basta atenção aos que a cidade oferece.
Na escrita deste artigo, o encontro com os(as)
depoentes foi importante para a condução de releitura
dos locais de memória do bairro, possibilitando o registro
desta história, considerada uma entre tantas
possibilidades. Isto porque, segundo as Orientações e
ações para a educação das relações étnico-raciais da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, vinculadas ao Ministério da Educação do
Brasil,
80
Caderno Pedagógico - Criciúma

Os grupos discriminados ou subalternos são portadores de


memórias ‘subterrâneas’ [...] No caso da trajetória da
população negra, marcada pela oralidade e por poucos
registros, a memória coletiva é fundamental para a
continuidade das coletividades tanto rurais como urbanas.
(SECAD, 2006, p. 220)
É importante ressaltar que esta pesquisa buscou, a
partir do seu registro, valorizar e respeitar a diversidade
étnico-cultural, numa perspectiva das relações étnico-
raciais, e da cultura afro-brasileira presentes no
cotidiano da escola e na comunidade da qual faz parte.
“LALUPO, OGUNHÊ, EPAIEYO, KAÔ KABELESSILE,
OKE OKEBAMBO, EXÓ, UÊUÊU, ABAO, ORI IEIEU,
OMIO OMIODO, EPAO EPA BABÁ!”31

Notas
1
Coordenadora de Arte da Secretaria Municipal de Educação
de Criciúma, assistente técnica pedagógica da E.E.B.
Natalio Vassoler, graduada em Arte pela UDESC e em
História pela UFSC, especialista em Educação Artística
Aplicada.
2
Professor de História da E.M.E.F. Dionízio Milioli e E.E.B.
Antônio Milanez Neto, graduado em História pela UNESC,
especialista em História Social pela UDESC, membro do
NEGRA (Núcleo de Estudos Gênero e Raça).
3
Coordenadora do Programa Municipal de Educação e
Diversidade Étnico-cultural, desenvolvido pela Rede
Municipal de Educação, graduada em Pedagogia pela
UNESC, especialista em Tecnologia Aplicada à Educação.
4
Professora da Escola Clotildes Maria Martins Lalau,
multiplicadora do PMEDEC, graduada em Educação Física
pela UNESC.
5
Diretora da Escola Clotildes Maria Martins Lalau, graduada
em Pedagogia pela UNESC.
81
Caderno Pedagógico - Criciúma

6
Em assembléia realizada na Associação de Moradores,
resolve-se mudar o nome da comunidade para Bairro
Renascer, oficializado pelo Decreto Lei nº 3445, de 05 de
setembro de 1997.
7
Prefeito Municipal no período de 1983/1988.
8
Rubens Izaltino Prudêncio, negro, pedreiro, 63 anos, morador
do bairro desde 1986. Entrevista concedida às professoras
Nelma e Fátima e alunos/as, em 22 de junho de 2006.
9
Idem.
10
Entrevista concedida à professora Iolanda.
11
Francisco de Assis da Rosa Moreno, negro, babalorixá,
morador do bairro há 14 anos, em conversa informal com
o Professor Fábio Alexandre Belloli Zampoli, em 23 de
agosto de 2006.
12
Depoimento oral de Rubens Izaltino Prudêncio.
13
Olindina da Silva Domingos, 54 anos, branca, moradora
do bairro há 24 anos. Entrevista concedida às professoras
Nelma, Maria de Fátima Pícolo, e aos alunos Mateus e
Jaqueline, em 26 de junho de 2006.
14
Depoimento oral de Rubens Izaltino Prudêncio.
15
Prefeito Municipal, nos períodos de 1977 a 1983 e 1988 a
1992.
16
Depoimento oral de Rubens Izaltino Prudêncio.
17
Para mais informações ver o PPP da E.M.E.F. Clotildes Maria
Martins Lalau.
18
Mulher, negra, professora e diretora, nascida na cidade de
Tubarão, no ano de 1933. Proveniente de uma família com
16 irmãos, junto a seus pais, Antônio Paulo Martins e
Normélia de Souza Martins. Estudou no Colégio Hercílio
Luz em Tubarão e foi para Florianópolis morar com uma
tia. Lá permaneceu durante um ano, quando retornou a
Tubarão, onde começou a estudar no Colégio São José,
em que fez o ginásio e o curso normal, formando-se no ano
de 1954. Mais tarde, rumou a Bagé (Rio Grande do Sul),
onde ingressou e concluiu o curso superior de Letras, no
ano de 1975. Como professora, iniciou sua carreira no Grupo
82
Caderno Pedagógico - Criciúma

Escolar Marechal Luz na cidade de Jaguaruna em 1955,


onde lecionava para o quarto ano primário e para o curso
normal regional. Após se casar com Vilson Lalau, em 1957,
transferiu-se para Criciúma. Lecionou na Escola de
Educação Básica Coelho Neto, além de ministrar aulas
particulares para moças e rapazes que pretendiam ingressar
no curso normal do Colégio Madre Tereza Michel, ou prestar
vestibular. No ano de 1970 fez concurso público para direção
escolar, assumindo o cargo na Escola de Educação Básica
Padre Miguel Giacca, situada no distrito de Rio Maina.
Posteriormente, foi diretora da Escola de Educação Básica
Joaquim Ramos nos anos de 1962 a 1982, onde ficou até
se aposentar. Paralelamente, nos anos de 1970 a 1982,
também foi diretora do Colégio Padrão.
19
Entrevista concedida às professoras Raquel Damázio da
Costa e Maria de Fátima Pícolo, em 28 de maio de 2006.
20
Idem.
21
Maura Martins Vicêncio: negra, 72 anos, entrevista concedida
à professora Raquel Damázio da Costa, em maio de 2006.
22
Antônio Tomaz, 63 anos, negro, técnico em edificações.
Entrevista concedida às professoras Raquel Damázio da
Costa, Maria de Fátima Pícolo e Bete, em 14 de junho de
2006.
23
Adiles Lima, professora do curso de Pedagogia da UNESC,
membro do NEGRA, em conversa informal com o professor
Fábio Alexandre Belloli Zampoli, em 18 de outubro de 2006.
24
Entre as diferentes formas ritualísticas, podemos destacar o
Candomblé da Bahia, a Casa de Mina do Maranhão, o
Xangô de Pernambuco e o Batuque do Rio Grande do Sul.
25
Cf.: COSTA, Marli de Oliveira. Tudo isso eles contavam:
memórias dos moradores do Bairro Santo Antônio.
Criciúma: Secretaria Municipal de Educação, 2000.
26
Idem.
27
Francisco de Assis da Rosa Moreno, 41anos, negro,
Babalorixá, morador do bairro Renascer há 14 anos.
Entrevista concedida às professoras Raquel Damázio da
Costa, Maria de Fátima Pícolo e Edna, em 04 de julho de
2006.
83
Caderno Pedagógico - Criciúma

28
Idem.
29
Sobre as origens da Umbanda ver: GIUMBELLI, Émerson.
Zélio de Moraes e as Origens da Umbanda no Rio de janeiro.
In: SILVA, Vagner Gonçalvez da (Org.). Caminhos da
Alma: memória Afro-brasileira. São Paulo: Summus, 2002.
p. 182-217.
30
Depoimento oral de Francisco de Assis da Rosa Moreno.
31
Saudações aos Orixás; Bará, Ogum, Iansã, Xangô, Ode/
Otin, Obá, Ossanha, Xapanã, Oxum, Iemanjá e Oxalá.

Referências bibliográficas e fontes

Fontes orais:
Adiles Lima
Antônio Tomaz
Francisco de Assis da Rosa Moreno
Maria das Dores da Silva Colonetti
Maura Martins Vicêncio
Normélia Ondina Lalau de Farias
Olindina da Silva Domingos
Rubens Izaltino Prudêncio

Referências:
CORRÊA, Norton F. Mãe Moça da Oxum: cotidiano e
sociabilidade no Batuque gaúcho. In: SILVA, Vagner
Gonçalvez da (Org.). Caminhos da Alma: memória
Afro-brasileira. São Paulo: Summus, 2002.
84
Caderno Pedagógico - Criciúma

COSTA, Marli de Oliveira. Tudo isso eles


contavam...: memórias dos moradores do Bairro
Santo Antonio. Criciúma: Secretaria Municipal de
Educação, 2000.
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática
dos lugares. Revista Do Programa de Pós
Graduação em História e do Departamento de
História da PUC-SP. São Paulo, 1981.
ODÉ, João Carlos de. A mãe Iemanjá quer falar
contigo. Criciúma: do Autor, 1999.
ORÓ, Ari Pedro. Religiões Afro-brasileiras do Rio
Grande do Sul: passado e Presente. www.scielo.br.
Acessado em 15/10/06.
______________ Os Negros e os Cultos Afro-brasileiros
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Negros no Sul do Brasil: invisibilidade e
territorialidade. Florianópolis: Letras Contemporâneas,
1996.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria da Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade. Orienta-
ções e ações para a educação das relações
étnico-raciais. Brasília: SECAD, 2006.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001.
________________ Os príncipes do destino:
histórias da mitologia afro-brasileira. São Paulo:
Cosac& Naify, 2001.
SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nàgô e a morte:
Pàdê, Àsèsè e o culto Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes,
1986.
85
Caderno Pedagógico - Criciúma

SILVA, Vagner Gonçalves da. As esquinas sagradas: o


candomblé e o uso religioso da cidade. In: MAGNANI,
José Guilherme C.; TORRES, Lílian de Lucca (Orgs.).
Na Metrópole: textos de antropologia urbana. São
Paulo: EDUSP, 2000.
TRAMONTE, Cristina. Com a bandeira de Oxalá!:
trajetórias, práticas e concepções de religiões afro-
brasileiras na grande Florianópolis. Itajaí: UNIVALI,
2001.
86
Caderno Pedagógico - Criciúma
87
Caderno Pedagógico - Criciúma

Mãos que lavam,


escolhem, torcem:
memórias de mulheres negras no
Bairro Metropol

Adiles Lima1
Elisângela de Souza dos Santos2
Fábio Alexandre Belloli Zampoli3
Geórgia dos Passos Hilário4
Lucy Cristina Ostetto5

Quando se trata da minas e dos seus trabalhadores


em Criciúma, geralmente pensamos imediatamente na
figura masculina e, muitas vezes, desconhecemos a
história da mão-de-obra feminina nesse mercado de
trabalho, que deixou também sua marca durante o
88
Caderno Pedagógico - Criciúma

processo de exploração do carvão em nossa cidade.


Pretendemos, com esse artigo, reconhecer a mão-de-
obra feminina como um elemento fundamental para o
desenvolvimento do bairro Metropol e da cidade.
Além de reconhecermos a contribuição das mulheres
nas minas, também evidenciaremos o seu labor
enquanto lavadeiras, que se deu paralelamente à escolha
do carvão. Enfocaremos também o momento de
diversão das trabalhadoras como nos clubes, o seu
envolvimento com o futebol, que representa uma
referência para o bairro, o seu olhar sobre a segregação
racial e o preconceito, impressos em suas experiências
de vida.
Desta forma, questionando como era o trabalho nas
minas na função de escolhedeiras, o trabalho como
lavadeiras, o preconceito e a segregação racial nos
clubes de dança e, por último, o seu envolvimento com
o futebol, entendemos que se faz urgente e necessária
uma reflexão sobre a presença feminina e os papéis
desempenhados por elas em diferentes espaços e locais
do bairro.
A escrita deste artigo tem como ponto de partida os
depoimentos de três mulheres negras: Rosa Otília Alves,
que chamaremos gentilmente como Dona Rosinha, e
que foi morar no bairro aos 8 anos de idade porque seu
pai trabalhava nas minas de carvão; Pedra Belmiro, hoje
com 66 anos de idade, que aos 23 anos foi morar no
bairro e se casou com um mineiro da Carbonífera
Metropolitana, jogador de futebol da empresa durante o
período de ascensão do Metropol Esporte Clube; e Dilma
Paulo de Souza, natural do Rio Maina, que se mudou para
o Metropol porque se casou, sendo a mina considerada
mais próxima para o deslocamento do esposo.
89
Caderno Pedagógico - Criciúma

São mulheres que têm as suas trajetórias de vida


marcadas por experiências que as aproximam. Entre
elas, o fato de serem negras, viverem num bairro
operário, terem contribuído com seu trabalho para o
sustento da família e conviverem em diferentes espaços,
quer seja no campo de futebol, nas minas, nos locais de
lavação, quer seja no clube. Seus depoimentos se pautam
na concretude das suas experiências sociais. O ato de
lembrar é individual, no entanto,
[...] ele só ganha sentido quando referido aos grupos
sociais restritos ou amplos que compartilharam
experiências comuns, que vivenciaram a mesma atmosfera
de outrora, que guardam pontos de contato da mesma
memória. A lembrança é uma tradução individual
enraizada em múltiplas camadas de experiências sociais,
que emergem através da linguagem. Assim, cada
memória pessoal é uma perspectiva da memória coletiva.
Tal apreensão diz respeito ao lugar social do qual se fala
- um ponto que varia, segundo a multiplicidade de
relações com inúmeros grupos sociais que compõem o
mosaico de uma vida. (MALUF, 1995 p. 40)
Suas memórias estão enraizadas na Vila
Metropolitana. Esta, nos melhores momentos de
expansão da exploração do carvão, tinha escola, igreja,
armazém, açougue, campo de futebol, salão de baile e,
até mesmo, um pequeno cinema. Havia também uma
pracinha. Segundo Silva Jr. (1996), durante a década
de 50, Criciúma foi invadida por uma mão-de-obra que
vinha de todos os lugares dos três estados do Sul do
país. Gente que abandonava a lavoura para se aventurar
na rudimentar extração do carvão. As carboníferas
instalavam o pessoal que chegava nas vilas operárias,
com casas de 5 x 7. Pouquíssimas residências eram
equipadas com energia elétrica. À noite, era a luz que
90
Caderno Pedagógico - Criciúma

se mantinha nas bocas-de-minas e vinha dos motores.


Água encanada não existia.
O bairro Metropol é hoje um dos bairros periféricos
de Criciúma, mas no auge do carvão foi um dos bairros
operários de maior prestígio da “capital do carvão”.
Tudo girava em torno da mina. O próprio nome do bairro
confundia-se com o nome da empresa: Cia.
Metropolitana, instituída em 1941, de acordo com
Carola (2002). Um dos fatores que contribuiu para
projetar este bairro na cidade e região foi o time de
futebol: o Esporte Clube Metropol, mantido “[...] pelo
grupo Metropolitana, na época uma sociedade dos
Freitas/Guglielmi.” (TEIXEIRA, 1996, p. 35)
O time que foi “[...] cinco vezes campeão catarinense
e a sensação esportiva na região nos anos 60.”
(TEIXEIRA,1996, p. 35), iniciou como um espaço de
lazer da comunidade:
O divertimento daquela época era o futebol, festa junina.
O pessoal ia no futebol quarta e domingo. Parava tudo, o
Metropol parava, o Metropol fechava. Eu acompanho
futebol dês dos 10 anos. Depôs aí, casei com jogador aí é
que eu acompanhava, meu marido jogava no Metropol.
Quando chegamos aqui, o Metropol era dos mineiros, aí
em 57, em 58 passou para companhia Metropolitana, né?,
do Diti Freitas aí foi o Metropol grande né, na época o meu
marido trabalhava e jogava, ganhava só para trabalhar para
jogar não, aí depois é que veio o Metropol forte. Aí, eles
não trabalhavam mais, porque tinha treino, tinha
concentração. Com o passar do tempo, os jogadores
começaram a receber pelos jogos, o “bicho”. Com esse
dinheiro, comprava colchões [...].6
Mas como bem salientou Dona Pedra, o time “passou
para a Metropolitana”. E representou uma possibilidade
para os mineiros ampliarem seus ganhos por meio do
91
Caderno Pedagógico - Criciúma

“bicho”. Em reportagem publicada no Jornal da Manhã,


de 13 de janeiro de 1995, encontramos uma referência
sobre o momento em que o time passa a ser vinculado
à Carbonífera Metropolitana:
Quando surgiu o Metropol, existia um clima muito quente
na cidade: a greve dos mineiros parou Criciúma em 1959.
Para garantir a paz na cidade, os empresários Diomicio
Freitas e Santos Guglielmi, donos da carbonífera
Metropolitana, decidem investir no futebol. Surge o Metropol
que, de cara, conquista os mineiros e torna-se uma potência
do futebol, disputando em igualdade com o Grêmio de Porto
Alegre e Botafogo do Rio [...] o sucesso do Metropol foi
além do esperado. Os mineiros da Metropolitana
abandonaram as manifestações para lotar as
arquibancadas[...]. Com o time, mudaram, também os
costumes da cidade: foram os jogadores que introduziram
em Criciúma hábitos como beijar as namoradas em público,
andar de bermudas no centro da cidade- coisas inéditas até
então.
Como evidenciamos na fala da Dona Pedra, o futebol
consistia em uma diversão (pelada), em que os
trabalhadores se envolviam para se distraírem, e toda a
comunidade prestigiava, pois era o que tinha de atrativo
no local. Do início, sem a pretensão de galgar ao futebol
profissional, visto que, os mineiros não recebiam pelo
que jogavam, o time do Metropol passou a ser um
espetáculo financiado pela carbonífera Metropolitana.
Dona Pedra, ao rememorar sobre como o futebol
surgiu no bairro, ressalta:
A maioria dos jogadores era do bairro, no início com o
Metropol pequeno, eram só os mineiros. Quando a pessoa
nasce com o dom, ela joga. Aquela época não tinha
escolinha de futebol. Tinha amor pela camiseta, time. O
treinador escolhia o time, só os melhores jogadores. No início,
era jogador só do bairro; quem trabalhava aqui; com o
92
Caderno Pedagógico - Criciúma

Metropol grande, veio gente de fora. Era muito bom,


acompanhava as viagens como torcedora, eram
reconhecidas. Acompanhava nas viagens, nas festas. As
lojas fechavam. Tudo parava, para ir para o campo torcer.
Até o padre rezava a missa mais rápido para assistir os
jogos, na época era o Padre Humberto.7
A Dona Pedra era quem organizava a mulherada
para que fossem acompanhar. Ela escolhia hotel,
restaurante, tudo. A relação entre elas era muito boa. A
Dona Pedra fez algumas mulheres, que antes não
gostavam, passarem a gostar de futebol.
Há algumas décadas, não muito distante do início
do século XXI, o futebol era um esporte quase
exclusivamente masculino. A sociedade brasileira, de
um modo geral, possuía a ideologia de que tal esporte
era voltado para homens. Uma visão sexista que ainda
possui resquícios. Mas, contrariando-a, as mulheres já
começaram a participar como jogadoras profissionais,
nos dias atuais, mesmo com remuneração menor que a
dos jogadores masculinos.
Quando se trata da feminização no futebol, à frente
do seu tempo, encontra-se o bairro Metropolitana. A
presença da mulher era uma constante em suas
partidas, enquanto torcedoras. Elas freqüentavam
assiduamente os jogos do time dos mineiros e
abrilhantavam as partidas com sua animação, como
relata, em seu depoimento, a Dona Pedra. Mesmo
aquelas que não gostavam de futebol, passaram a
gostar, incentivadas pela febre que contagiava a todos
e todas na cidade.
Silva Júnior apresenta o comentário de um repórter
gaúcho a respeito da presença feminina em campo,
durante uma das partidas do time:
93
Caderno Pedagógico - Criciúma

A primeira coisa que nos chamou a atenção, já na manhã


de domingo em Criciúma, foi o predomínio do sexo frágil
nas ruas da cidade. Na praça, então, nem se fala. E que
garotas! Mas o mais impressionante nos foi dado a assistir
no campo do Metropol. Lá chegamos às 15 horas e o
pavilhão social dos donos das casas já se achava lotado e,
surpreendam-se, com uma torcida constituída em pelo menos
60% de mulheres. Voltando-nos para os portões de entrada
observamos que de cada cinco pessoas que entravam no
estádio, apenas duas eram homens. Durante a partida, os
“gritinhos histéricos” da grande torcida de saias criciumenses
destacaram-se, dando a nítida impressão de que quem
estava na cancha não eram atletas metropolitanos e
comercialinos, mas sim os Beatles. É, fora de dúvidas,
Criciúma, uma das poucas cidades do mundo que consegue
arrastar a um campo de futebol mais mulheres que homens.
(SILVA JÚNIOR, 1996, p. 174)
Analisando o relato do repórter gaúcho sobre o papel
da torcida feminina do time metropolitano, contata-se
que a mulher já contribuiu muito para o
desenvolvimento do futebol em Criciúma. Sabemos que
uma torcida organizada dá maior visibilidade ao clube
esportivo, como acontece em grandes clubes do futebol
brasileiro. Além disso, como vimos anteriormente, grande
parte dessas mulheres trabalhavam como escolhedeiras
para a carbonífera, lavavam roupas para ganhar a vida
e sustentar seus lares. Tinham seu direito ao lazer
garantido pelas grandes partidas de futebol, realizadas
fora e dentro do município. Isso quando o Esporte Clube
Metropol estava no auge.
Por meio do futebol, esporte em que a maioria dos
brasileiros possui verdadeira paixão, as mulheres do
bairro Metropol esqueciam as agruras da vida cotidiana
divertindo-se com as emoções proporcionadas durante
as partidas do Esporte Clube Metropol.
94
Caderno Pedagógico - Criciúma

Porém, além da presença feminina nos campos de


futebol, que evidenciava alguns momentos de lazer, de
descanso, de sociabilidade, de reunião entre as famílias;
sua presença foi marcante também no trabalho de
escolhedeiras, além dos trabalhos e afazeres do cotidiano
que iam se constituindo num modo de vida.
Assim Dona Dilma apresenta como era a sua vida:
Uma vida trabalhosa, bem trabalhosa. Eu era bem
agoniadinha, porque eu trabalhava muito, era muito, tu vai
fazê isso. Eu nem aprendi a lê por causa do serviço que,
com 9 anos, a gente tinha que carregá água da bica, porque
era longe. Batia o sinal, eu morava ali bem pertinho do
sindicato do Rio Maina, batia o sinal lá numa escolinha
que tinha, eu vinha correndo pra encher os latão, pra depois
almoçá, pra depois começá a trabalha; eu passei uma
vida[...].8
Segundo Sorj (2003), uma das principais
contribuições dos estudos de gênero e dos estudos
feministas foi relacionar o trabalho remunerado e o
trabalho não-remunerado, realizado comumente por
mulheres na esfera privada, que se encontram como
dimensão do trabalho social, intimamente ligados entre
si. Até então, prevalecia a noção de que a produção
para o mercado de trabalho doméstico seria regida por
diferentes princípios. Isto é, as regras do mercado se
aplicariam à produção, enquanto o trabalho doméstico
seria, por assim dizer, um dote natural que as mulheres
aportam ao casamento em troca do seu sustento. Por
essa razão, o trabalho doméstico ficou por muito tempo
invisível, carente de um conceito que lhe conferisse
existência social. Só nas últimas décadas do século XX,
passou a ser problematizado e integrado aos estudos
de trabalho.
95
Caderno Pedagógico - Criciúma

A casa era o palco que também contava com o


trabalho feminino, isto porque, conforme Dona Pedra:
“Fora da casa, eu não tinha atividade. Era só trabalhar.
Era difícil para um negro [...] muito difícil [...] cuidar
dos filhos, era um atrás do outro, lavar, passar, cozinhar
a cera era com peso, dava brilho.”9
Por essa fala de Dona Pedra, observamos que a
mulher negra não tinha, como ainda não tem, um espaço
no mercado de trabalho. O fato da atividade que a
entrevistada realiza ser, por ela mesma, considerada
como um trabalho, contribui para desconstruir a idéia
de que a mulher, no seu afazer doméstico, não realiza
uma jornada de trabalho, visto que, na sociedade
ocidental, durante muito tempo o trabalho desenvolvido
pelas mulheres no cotidiano familiar não foi considerado
por não ser uma atividade remunerada, além de criar a
idéia de que este era um serviço “leve”.
Por outro lado, quando as mulheres negras atuam
no mercado de trabalho como empregadas domésticas,
ou então, quando atingem um grau de escolaridade,
como educadoras, são muitas vezes alvos de
desqualificação, como nos revela ainda a fala de Dona
Pedra: “Não trabalhavam fora, a mulher não trabalhava
fora. Só Dona Lina e a Zélia que eram professoras. As
mulheres que trabalhavam fora eram blasfemadas, mal
vistas, mal faladas.”10 Isto porque, na divisão normativa
dos papéis sociais atribuídos aos homens e mulheres, cabia
a elas o cuidado da casa, do marido e dos filhos. As
primeiras tentativas das mulheres saírem do espaço
doméstico, principalmente nas classes populares, não
foram vistas “com bons olhos”, afinal, estariam
transgredindo as normas e deixando de cumprir os papéis
tidos com parte de uma suposta natureza feminina.
96
Caderno Pedagógico - Criciúma

No entanto, segundo Bernaldo (2005, p. 26), “[...] a


exploração do carvão possibilitou para Criciúma um
crescimento econômico significativo e, com esta nova
fonte de riqueza, a cidade passou a possuir uma
diversidade étnica mais acentuada, porque as
oportunidades de emprego se tornaram mais amplas.”
E é aí que entram as mãos das mulheres no mercado de
trabalho: na área de mineração. Para muitas, é o início
da dupla jornada de trabalho, como nos conta a Dona
Rosinha, nesse relato: “Nós estávamos acostumadas ao
pesado, era como lavar uma louça, depois de chegar
da escolha, ia para a fonte lavar a roupa, colocava em
cima do fogão pra secar. Levava meu filho para mamar
junto comigo. Criei meus filhos sozinha, mas criei.”11
Carola (2002) afirma que, em seu processo de
escolha, as trabalhadoras das minas assimilavam a
suposta “natureza feminina” para o trabalho leve e
classificavam a escolha como um trabalho tipicamente
feminino. No entanto, Dona Rosinha coloca que as
mulheres, além da escolha, realizavam serviços tidos
como masculinos:
Eu trabalhava de tempo. Nós começava das sete da manhã
até as quatro da tarde. Tinha que dar conta de todo o
carvão, carregar caminhão, ajudante de subida. Faltava
madereiro. Nós tinha que pegar o copiador, serrar madeira,
carregar trolo, levar até um pedaço da Mina, ajudante de
subida, quando dava aquelas enxurradas de água que trazia
todas aquela pedraradas, que entupia a caixa debaixo, que
o caminhão não podia entrar, que arrastava a cabina em
cima nós tinha picar rio e picareta cava.Abaixar um meio
metro pro caminhão poder entrar. Nosso serviço era brabo.12
Apesar de muitos classificarem o trabalho como
“leve”, as mulheres relatam que seu trabalho não estava
reduzido à escolha, pois contribuíam no trabalho da
97
Caderno Pedagógico - Criciúma

Mina de forma mais ampla e muitos reconheciam que


estas mulheres desenvolviam uma “força” para o
trabalho igual à força dos homens. As escolhedeiras
tinham uma identidade profissional de que se
orgulhavam, mas também tinham conflitos com colegas
da categoria, particularmente, quando eram de outra
empresa.
Após o horário de trabalho, havia mulheres que
catavam o carvão jogado fora no processo de separação,
pois isto significava um dinheirinho extra. Por isso,
Tinha que escolher todo o carvão que saía durante o dia
dos mineiros. Os mineiros pegavam três horas da manhã,
aquele tempo era tudo braçal não era mecanizado. Não
tinha eletricidade era tudo com gás. Quando meus pais era
vivo, nós trabalhava no carvão. Todas as quatro irmãs para
ajudá em casa.13
As crianças também eram estimuladas a desenvolver
esta atividade. As mulheres começavam a trabalhar nas
minas já na adolescência, acompanhando sua família
como ajudantes. Em algumas empresas era muito
comum o trabalho de meninas escolhedeiras.
Eu comecei com 15 anos, parei com 25, porque a escolha
parou. Aí me aposentei com 25 anos. Lá nós íamos na
carbonífera pedir emprego e eles davam.Quem ensinava
era o fiscal. Começava às sete horas, classificava o carvão,
quebrava os blocos maiores com marreta, tirava os metais,
carregavam caminhões, tobiava madeira, carregava trole,
vagoneta, descarregava tudo a braço, não tinha energia.
Era bom, divertido, porque era uma turma, eram amigas,
às vezes brigavam. Tinha alguns Homens que não
respeitavam, eram malcriados, falavam palavrões.
Trabalhávamos de calça comprida embaixo de vestido. O
encarregado ficava em cima. Aos sábado à tarde, tirava o
tempo para me arrumar. Lavávamos a mão com a folha
de figueira, açúcar e farinha, passávamos caco de telha
98
Caderno Pedagógico - Criciúma

para afinar a mão, para quando ia dançar, a mão está


fina.14
O processo de exploração do trabalho do menor e
da mulher, no Brasil e no mundo, foi regulamentado
com a criação de leis que estabeleciam alguns limites.
As condições jurídicas no aspecto referente à “Proteção
à Maternidade contribuíram para que os mineradores
dessem preferência às mulheres solteiras para a
contratação. Quanto ao limite de idade para trabalhar,
há alguns indicadores de que ‘as escolhedeiras’
aumentavam a idade com a finalidade de alcançar a
idade mínima para trabalhar na mineração. Muitas
vezes era a atividade da mãe e das crianças que
sustentavam a família.” (CAROLA, 2002)
O caminhão de carvão, nossa família e a de Seu Pedrinho,
dia 15 de novembro, estava uma garoa e um cheiro de
enxofre. Eu não gostei. Aqui morria muita criança, por causa
do cheiro. Morei depois em uma casa que me deram, no
meio do campo.15
Além das perdas em acidentes com os homens nas
minas de carvão, o depoimento retrata um outro
agravante do processo de mineração no bairro, no que
diz respeito ao meio ambiente, no aspecto da poluição.
Este problema atingia também as crianças dos
moradores que morriam com a influência do enxofre
no ar, que contaminava não só o bairro, mas também a
cidade.
O deslocamento das moradoras pra outras áreas
menos poluídas consiste num fator habitacional que
vitimou muitos criciumenses para péssimas condições
de moradia e saúde, fato que pode ser evidenciado em
lugares menos privilegiados do bairro, até hoje.
99
Caderno Pedagógico - Criciúma

Segundo Carola (2002), no começo dos anos 50, a


atividade carbonífera enfrentou uma crise, diminuindo
a oferta de emprego. Neste momento, cresceu o contrato
da mão-de-obra feminina. Além disso, muitas famílias
perderam os homens em acidentes ou ficavam inválidos.
Neste caso, através do trabalho das escolhedeiras que,
além do recorte de gênero, em boa parte, está associado
ao recorte de raça, pode-se verificar as condições das
mulheres negras.
Segundo Carola, no retorno da Mina para a casa os
trabalhos domésticos as esperavam.
[...] lavar a roupa suja de carvão exigia esforço e técnicas
peculiares que, para muitos homens, não passavam de mais
“um simples serviço de mulher”. Geralmente, as mães e
filhas que ficavam em casa incubiam-se de lavar as roupas
da família. Mas em muitos casos era a própria “escolhedeira”
que lavava suas roupas, as do pai e dos irmãos. (CAROLA,
2002, p. 43)
Nas vilas, segundo Carola (2002), o trabalho das
mulheres também eram destaque, assim como nas
minas. A força de trabalho feminino nas vilas estava
associada a tarefas, como cuidar dos mantimentos,
lenha e água. Esta última era distribuída pelas empresas
por meio de bicas. As mulheres buscavam água para
beber e lavar roupa. A lavação, desde cedo, passou a
fazer parte da rotina feminina, como nos relata Dona
Dilma:
[...] Eu, com 12 anos, peguei lavação, com 12 eu já tinha
lavação já limpava sanga, sanga, a fonte aquela fonte [...]
eu já tinha umas quatro lavação e meia com 12 anos. Eu
chegava em casa, era obrigada a lavá louça, fazê as coisa
pra voltá lá pra torcê a roupa que, naquele tempo, não
tinha OMO, não tinha a QBOA, era tudo aqui no lavadô,
né?16
100
Caderno Pedagógico - Criciúma

E também reforça que continuou até depois do


casamento:
Treze, treze lavação. Lavação era vinte e cinco saco. E eu
era, dia e noite, lavando e lavando que a minha mão corria
sangue, pra não vê as minhas filhas dizê assim: “ô mãe, eu
quero dia sete, mãe eu vou marcha assim, assim”. Eu dava
o jeito, é e ele trabalhando também pra comê. Ganhava
pouco.17
De acordo com Carola,
[...] muitas mulheres ainda mantinham suas tradições de
lavar roupa nos riachos e açudes locais. Mas havia aquelas
que instalavam seus tanques de lavar roupa perto das “bicas”
para evitar o trabalho de carregar baldes de água até nas
casas. Outras, no entanto, tinham que se submeter a esse
fatigante martírio, pois seus maridos viam com maus olhos
o “ajuntamento” de mulheres nos “lavadouros”. Para eles,
eram locais de fofocas e intrigas, propícios à contaminação
pelo tempestuoso “germe” da infidelidade. (CAROLA, 2002,
p. 118)
As lavadeiras, além de enfrentar a poluição das
águas, enfrentavam concorrência com as lavanderias e
as máquinas de lavar. Estas faziam uma publicidade
dizendo que a roupa lavada pelas lavadeiras propagava
doenças, continuava contaminada e as de lavanderia e
máquinas de lavar não. (CAROLA, 2002)
Na verdade, as lavadeiras, que eram mulheres pobres
e, em sua maioria, negras, eram acusadas de propagar
doenças, mas os problemas que estas enfrentavam eram
o da “poluição das águas”, que não foi resolvido quando
a água chegou pelas torneiras, pois esta água tinha
apenas a aparência de não-contaminada.
Lavar roupa “para fora” era um trabalho pouco
valorizado, mas representava a sobrevivência de famílias
101
Caderno Pedagógico - Criciúma

pobres. As mulheres faziam desta atividade uma


estratégia de sobrevivência. (CAROLA, 2002).
A Dona Rosinha ressalta que, mesmo depois de se
aposentar, começou a lavar roupas para o time do
Metropol:
Depois que eu me aposentei, comecei com o Metropol.
Lavava, passava, a referência da mulher no time do
Metropol era eu. E trabalhava na concentração, era ropeira
e ajudava a cozinhar. Vieram falar comigo; Pedrinho e o
pai de Manjuão (João Estevam de Souza). Como era dona
de casa, já sabia. A roupa vinha em casa, um menino trazia.
Quando chovia eu lavava e secava na estufa. Usava soda
para clarear sol, e o muque, sabão caseiro.18
A importância da presença da mulher negra na
condição de lavadeira, conforme nos relata Dona
Rosinha, reafirma a figura feminina enquanto
protagonista no cenário em que os homens aparecem
sempre como atores principais. Mesmo estando
aposentada como escolhedeira, na classificação do
carvão, quando era primordial a sua contribuição, ela
reapareceu em cena, no papel de lavadeira.
Circulavam por diversos locais, entre eles, pelo Clube
Metropolitano. De suas lembranças, vão reforçar as
relações étnico-raciais ali estabelecidas. Segundo
Munanga (1999), no Brasil, o mito da democracia racial
bloqueou, durante muitos anos, o debate nacional sobre
as políticas de “ação afirmativa” e, paralelamente, o
mito do sincretismo cultural ou da cultura mestiça
(nacional) atrasou também o debate nacional sobre a
implantação do multiculturalismo no sistema
educacional brasileiro.
Esse argumento de Munanga (1999) nos ajuda a
compreender as falas de nossas entrevistadas, quando
102
Caderno Pedagógico - Criciúma

interrogadas sobre o lugar onde se divertiam enquanto


moças: o Clube Metropolitano. Vale dizer aqui, que o
bairro trazia o mesmo nome, Metropolitana. Há alguns
anos, por um projeto de lei, o nome modificou-se para
Metropol.
Durante a década de 60, período em que nossas
depoentes freqüentavam tal clube, havia, não apenas
no Brasil, uma forte divisão racial entre negros e não-
negros em vários segmentos da sociedade. No bairro
Metropol, o reflexo da segregação racial culminava no
clube da localidade freqüentado por todos e todas. No
entanto, nesse mesmo ambiente, uma cerca de madeira
os dividia: negros de um lado e brancos de um outro:
O que eu mais lembro foi esse negócio de separação de
dança [...] quando eu cheguei aqui, eu achei [...] estranhei
não podia chegar até a área do clube nem no barzinho no
clube não entrava [...] os brancos não entravam. Um mês
do baile dos brancos, um mês dos morenos [...]. Era dividido
naquele tempo. Um dançava numa parte, outro dançava
noutro.19
Fazendo uma relação com as falas de nossas
entrevistadas e com a pontuação do historiador,
percebe-se que, no bairro, a situação não era diferente
e que a segregação racial se fazia presente por meio do
lazer entre jovens negros e não-negros da época, pelo
instrumento da cerca que fica ainda em suas memórias,
como simbologia do racismo existente ainda hoje.
Segundo Dona Pedra:
[...] os negros iam para o Rio Maina e não me lembro se lá
tinha clube dos morenos lá [...] Tinha outro lugares aqui no
Metropol que era separado o Brotolândia (não o clube que
tem hoje no centro do Rio Maina, era outro clube) aqui em
cima também tinha separação. Agora nós assim de criança
103
Caderno Pedagógico - Criciúma

nunca nós, a gente brincava, ali a gente até tinha essa família
branca lá onde a gente morava era só sítio né? Era só nós
mesmo, mas nunca nos chamaro assim de negro não. Aqui
no Metropol, tinha bastante, hoje em dia não são todos
iguais.20
Conforme Bernaldo:
No Sul do Brasil, a política imigratória obteve excelentes
resultados no que tange a segregação do negro(a), pois
conseguiu surrupiar do mesmo (a) a sua condição plena de
cidadania. A importância dos diferentes grupos étnicos
existentes tanto no Sul do Brasil, quanto no restante do
país, passou pelo acesso à terra pelo seu reconhecimento e,
como território, pela sua inclusão no sistema direitos sociais.
(BERNALDO, 2005, p. 15)
E é justamente neste ponto que permanece a
desvantagem dos negros na sociedade brasileira, no que
diz respeito aos seus direitos com relação aos não
negros: moradia, saúde, educação, a cultura ancestral
invisível entre outros aspectos. Sob essa perspectiva,
até mesmo no campo do lazer, através do qual o(a)
negro(a) tenta afirmar sua identidade, não apenas nas
décadas já citadas, como em nossa atualidade, percebe-
se a exclusão. Isso porque ainda existem restrições à
presença do(a) negro(a) em alguns clubes de nossa
sociedade, principalmente, na realização de alguns
bailes tidos como “tradicionais”, em que é possível
perceber diferenças e disputas no âmbito da condição
econômica e social. Neste cenário, o(a) negro(a)
criciumense não se inclui pois ele não tem visibilidade.
Segundo Dona Pedra, alguns papéis eram ocupados
por homens e mulheres, na manutenção do Clube: “[...]
As mulheres fiavam com a parte da limpeza e a diretoria
era só de homens. Uma vez, um homem passou a mão
em uma mulher casada, e não dançou mais no clube.”21
104
Caderno Pedagógico - Criciúma

Torna-se evidente, por este depoimento, que a


segregação, além de racial, era também de gênero. O
papel que a mulher ocupava era de submissão, pois
desempenhava atividades ligadas à limpeza, enquanto
os homens preocupavam-se com a administração e o
funcionamento do clube. Nesse ponto, existe uma
contradição, isso porque, na maioria das vezes, essas
mesmas mulheres que limpavam, serviam também como
alicerce de trabalho no sustento de suas famílias.
Entrando no clube havia regras a serem seguidas
pelas mulheres:
A mulher tinha que obedecer, se um moço tirasse a gente
pra dançar, tinha que dançar. Só os homens pagavam, a
mulher tinha que dançar. Naquele tempo, tinha a gasosa.
Tinha homens bêbados que nós tinha que dançar; senão a
mulher ficava fora, chamando as moça [...] de tudo.22
Além disso, há outro fator que serve de denúncia para
as mulheres de hoje: a questão do abuso e do assédio
sexual que se denotava no clube, quando a entrevistada
diz que um homem “passou a mão” em alguém e não
dançou mais ali. O desrespeito ao gênero feminino é
constatado também pela agressão gestual que, na
época, era resolvido com uma punição: o indivíduo não
retornava mais ao ambiente.
Era no clube que os namoros também aconteciam:
O namoro era direitinho. Os pais levavam as filhas. O
namoro era no clube e em casa. Não podia dançar
encostado, a mulher do dono do clube chamava a moça
para conversar. Noivos não podia andar de mão. Beijo era
só escondido, por trás das cortinas.23
Às vezes, os conflitos no bairro ocorriam por
aspectos religiosos em que o clube estava envolvido no
que diz respeito ao seu funcionamento. Evidencia-se aí,
105
Caderno Pedagógico - Criciúma

uma referência muito importante na vida dos moradores


e das autoridades religiosas locais da época, como
relembra a Dona Rosinha, sobre um dos acontecimentos
marcantes em um clube vizinho: “Foi na São Marcos, o
Padre proibiu de ter dança nesse dia, mas o proprietário
abriu, o Padre colocou a Santa no andor e entrou no
clube. Era festa da Igreja e o Padre não queria.”24
As relações inter-étnicas ocorriam de maneira que
cada indivíduo procurasse os seus pares. Isso também
incluía nos espaços freqüentados no clube que, mesmo
sendo ele dividido por uma cerca, como já mencionamos
anteriormente, surgiam os namoros, o interesse, os
olhares.
Eu não tenho preconceito, mas o pai sempre dizia assim:
“Deve procurar a raça para casar”. É o meu pai. Eu vou
dizer, quando minha filha casou com branco eu não gostei.
Não gostei, porque quando eu era solteira, aqueles italianos
procuravam, mas eu nunca quis, queria um da minha cor
para um dia não haver desavença, o meu pai e nós “cada
um procura sua cor”. O meu marido não tava mais em
casa quando os filho começaram a casar. Eu só dizia; “vocês
sabe a cor é morena”, agora amanhã ou dispois, fica ruim
tá tocando assim. Eu casei, porque né?, mas graças a Deus,
aqui todos deram certo (baixa o tom de voz) mas eu tenho
aquele outro que vem aqui me enchê de beijo, adora nossa
família, esse casado com a Sandra. Com o tempo, as coisa
vão mudando. Mas em Orleans, quando nós era mocinha,
clube a gente não ia era longe, então fazia muito batizado,
aniversário, festa junina. Então, a gente ia, mas tinha uma
família que tinha preconceito. Daí, o dono da gaita do
conjunto disse assim “se for um preto de alma branca eu
toco os baile, senão vendo tudo e não toco”. Porque eles
diziam que a gente era muito melhor que um branco, negro
que era considerado bom era um negro de alma branca.
[...] Mas aqui no Metropol, eu nunca ouvi esse comentário,
só o clube, a separação. Só os filhos da Tia Antônia do Tio
106
Caderno Pedagógico - Criciúma

Pedro que brigavam que uns eram preto e outros branco


era quase branco; um era bem moreno, olhos puxaram a
Tia Lauriana, que era branca. Aí no clube, os branco
mostravam a língua pros morenos. No outro dia, era uma
brigaçada, porque era assim né? Nós somos todos irmão e
não podemos dançar juntos. Aqui no Metropol era só no
clube uma cerquinha que passava para separar.25
O preconceito racial se encontra tão naturalizado
nas pessoas que a depoente não se dá conta quando
diz “[...] era só no clube uma cerquinha que passava
para separar.” Este fato vivido por ela e as outras
entrevistadas delimita o processo de segregação racial
existente no bairro Metropol, capaz de influenciar na
convivência social e no futuro dos seus moradores,
principalmente na questão da identidade.
Por meio da pesquisa-ação e da busca pelas
informações, a construção do caderno pedagógico,
caderno este que concretiza uma das ações que se propõe
como uma atividade que dá importância à Lei 10639/03,
houve uma absorção de conhecimentos adquiridos, não
apenas na parte pedagógica, mas também nas
inquietações pessoais que trazíamos acerca desse tema.
Desde a primeira atividade, o reconhecimento do
bairro, pautado em questionamentos à comunidade,
detectamos uma diversidade étnico-cultural de pessoas
que têm muito mais histórias para nos contar, mas que
o tempo não foi um elemento facilitador no
desenvolvimento de nossas pesquisas.
Nesse sentido, a atenção se voltou para os relatos
que as pessoas fizeram sobre sua infância, juventude e
maturidade. É comum ouvir colegas falarem a respeito
de suas famílias, suas expectativas, suas vidas pessoais
e profissionais. É inebriante aprender a ouvir e a se
reportar às situações relatadas. A concentração é a
107
Caderno Pedagógico - Criciúma

maravilha de poder ouvir as pessoas. É tão especial


quanto à riqueza das histórias. Essas que trazem
lembranças emocionantes.
Mulheres negras, que sempre batalharam e foram à
luta para escrever suas histórias, com suores de seus
rostos, de donas de casa, lavadeiras, escolhedeiras...
Vivências de discriminação e preconceito.
Certa vez, em um curso sobre história oral, foi
colocado pelo palestrante que, em uma entrevista, temos
que ser neutros. No momento, pareceu difícil e, agora,
mais ainda. É como se a pessoa entrevistada estivesse
contando a história não dela, mas de nossos avós e de
nossos pais. A cada dia, sentimos a necessidade da Lei
10.639/03 e de suas possibilidades para o exercício da
plena cidadania.
Quando nos bate o desânimo e a descrença, é bom
pensar nos direitos dos nossos alunos negros e não-
negros. A cada conquista, pensamos em quantas
pessoas já não buscaram esse ideal. Não é justo não
investir, não incentivar na promoção da igualdade racial.
Não seremos únicos(as), nem os(as) primeiros(as), mas
faremos parte de um recomeço, em nossa unidade
escolar e na cidade criciumense.

Notas
1
Professora graduada em Pedagogia pela UNESC,
especialista em Educação Infantil e mestre em Educação e
cultura pela UDESC, Professora do Curso de Pedagogia e
Coordenadora do NEAB na UNESC, membro do NEGRA
(Núcleo de Estudos de Gênero e Raça).
2
Professora graduada em Ciências Biológicas pela UNESC,
especialista em Tecnologia Aplicada à Educação pela
Faculdade Bagozzi.
108
Caderno Pedagógico - Criciúma

3
Professor graduado em História pela UNESC, especialista
em História Social pela UDESC, membro do NEGRA.
4
Professora graduada em Letras pela UNESC, especialista
em Práticas Pedagógicas Multidisciplinares pela AUPEX,
mestranda em Teoria Literária pela UFSC, coordenadora
pedagógica do 6º ao 9º ano, membro do NEGRA.
5
Professora graduada em História pela UFSC, mestra em
História do Brasil pela UFSC, professora dos Departamentos
de História e Pedagogia e Arquitetura da UNESC, membro
do NEGRA.
6
Pedra Belmiro: 66 anos, concedeu entrevista à Elisangela
de Souza Santos em 28 de abril de 2006, no bairro Metropol.
7
Depoimento oral de Pedra Belmiro.
8
Dilma Paulo de Souza: 60 anos, concedeu entrevista à
Elisangela de Souza dos Santos, Fábio Alexandre Belloli
Zampoli e Geórgia dos Passos Hilário em 28 de agosto de
2006, no Bairro Metropol.
9
Depoimento oral de Pedra Belmiro
10
Idem.
11
Rosa Otília Alves: 71 anos, em entrevista concedida à
Elisangela de Souza Santos, no bairro Metropol. s.d.
12
Idem.
13
Idem.
14
Depoimento oral de Rosa Otília Alves.
15
Depoimento oral de Pedra Belmiro.
16
Depoimento oral de Dilma Paulo de Souza.
17
Idem.
18
Depoimento oral de Rosa Otília Alves.
19
Depoimento oral de Pedra Belmiro.
20
Depoimento oral de Pedra Belmiro.
21
Idem
22
Depoimento oral de Rosa Otília Alves.
109
Caderno Pedagógico - Criciúma

23
Idem.
24
Idem.
25
Depoimento oral de Pedra Belmiro.

Referências bibliográficas e fontes


Fontes orais:
Dilma Paulo de Souza
Pedra Belmiro
Rosa Otília Alves

Referências:
BERNALDO, Pedro Paulo. Sociedade Recreativa
União Operária: um espaço de luta, lazer, identidade
e resistência da comunidade negra criciumense (1950-
1970). Monografia (Especialização em História Social
e Cultural do Brasil) Universidade do Extremo Sul
Catarinense- UNESC, Criciúma 2005.
CAROLA, Carlos Renato. Dos subterrâneos da
história: as trabalhadoras das minas de carvão de
Santa Catarina (1937-1964). Florianópolis: UFSC,
2002.
MALUF, Marina. Ruídos da memória. São Paulo:
Siciliano, 1995.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem
no Brasil: identidades nacionais versus identidade
negra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999..
SILVA JR, José da. Histórias que a bola esqueceu:
a trajetória do Esporte Clube do Metropol e de sua
torcida. Florianópolis: CCM Comunicação, 1996.
110
Caderno Pedagógico - Criciúma

SORJ, Bila. Feminismo, cidadania e desigualdades


sociais. In: 55 Reunião Anual da SBPC, 2003,
Recife. Anais/Resumo da 55 Reunião Anual da SBPC.
São Paulo: SBPC/ UFPE, 2003.
TEIXEIRA, José Paulo. Os donos da cidade.
Florianópolis: Insular, 1996.
111
Caderno Pedagógico - Criciúma

Palavras carregadas
de sentido:
reflexões sobre as relações
étnico-raciais na escola

Cristiana Francisco1
Ivana Beatriz dos Santos2
Lucy Cristina Ostetto3
Pedro Paulo Bernaldo4*

[...] palavras eu preciso, preciso com urgência, [...] dizer o


que se sente [...] palavras que se diz, se diz e não se
pensa [...] páginas rasgadas [...] palavras são sombras
[...] palavras pra esquecer versos que repito, palavras pra
dizer de novo o que foi dito [...] todos os livros fechados,
tudo com todas as letras [...]. (Palavras, Titãs)
112
Caderno Pedagógico - Criciúma

Com as palavras, também expressamos o que


pensamos. E entre as inúmeras possibilidades de
registrá-las, encontra-se a música. Aliás, a música e a
musicalidade, como traço das culturas africanas e afro-
brasileiras, estão presentes na religiosidade, nos ritos,
nas celebrações, constituindo- se como um espaço de
afirmação de identidades e denúncia.
Por isso, como sugere a música dos Titãs, refletiremos
sobre o que, por muito tempo, “se diz e não se pensa”,
expresso nas relações inter-pessoais e inter-étnicas, para
que possamos ressignificá-las. E para que isso aconteça,
precisamos dizer “[...] tudo com todas as letras [...]”
E, entendendo que são, nas relações permeadas pela
cultura, que as palavras ganham significados, o que se
diz, o que se escuta e o que se sente, carregam consigo
uma intencionalidade e múltiplos sentidos. E foi a partir
desta ponderação que a escola municipal Oswaldo
Hülse, desenvolveu um projeto, para que pudessem, por
um lado, problematizar sobre o que os apelidos que são
construções sociais, expressados nas relações inter-
étnicas do cotidiano escolar, portanto, concretizados a
partir de palavras, gestos e atitudes, revelam-nos sobre
o não respeito às diferenças étnicas, culturais e sociais,
dos/as estudantes negros(as). E por outro, procurar
estratégias para promover o respeito e a valorização da
diversidade étnico-racial na comunidade escolar.
A Escola Municipal Oswaldo Hülse está situada no
bairro São Francisco, tendo início em 1952. Em
entrevistas realizadas com moradores (as)5, ficamos
sabendo que esta localidade era divida em duas áreas,
sendo que a mais antiga era denominada Operária do
Jacó, por ter sido loteada pelo Sr. Jacó que comprou as
mesmas da Carbonífera Boa Vista.
113
Caderno Pedagógico - Criciúma

A área nova pertencia ao loteamento Santa Augusta.


Mas, antes de ser loteada, o Sr. José Antônio Lemos,
utilizava estas terras para o plantio de mandioca. No
entanto, com a extração do carvão, esta paisagem sofreu
alterações, quer seja pela oportunidade empregatícia
que este bairro representava; quer seja pelo
desmatamento ocasionado pela mineração a céu-aberto,
e pelo descaso com a recuperação ambiental desta área
minerada.
Segundo um morador, explicando o motivo de virem
morar no bairro, assim relembra: “Viemos para cá a
procura de trabalho na mina. Nós viemos com a
mudança em cima do caminhão e a madeira para fazer
a casa [...] aqui não tinha água e nem luz.”
A perspectiva de uma estabilidade empregatícia foi uma
das razões citadas, para que também as famílias afro-
brasileiras residissem no bairro São Francisco e pudessem
contar com a Escola Municipal Oswaldo Hülse.
De acordo com um mini-censo, organizado e
realizado pela equipe diretiva como subsídio para a
elaboração do seu Projeto Político Pedagógico, a escola
atende hoje 770 alunos, sendo que, 564 foram
considerados brancos e 106 negros.
No entanto, a comunidade onde se localiza esta
escola (bairro São Francisco) é composta, desde a sua
formação, por muitas famílias afro-brasileiras:6 o que
também foi tomado como relevante e significativo para
justificar o projeto. Visto que, além de evidenciar a baixa
auto-estima e a não-valorização de sua identidade e
das suas histórias (alunos/as negros/a), também
demonstrou que esta instituição precisa intervir a partir
de ações pedagógicas que propiciem, no espaço escolar,
a sua visibilidade.
114
Caderno Pedagógico - Criciúma

E voltamos a nos indagar: como têm sido pautadas


as relações étnico-raciais entre alunos e professores?
Em que momentos e espaços estes alunos se perceberam
e foram valorizados, a partir do seu pertencimento
étnico-racial na escola? Por quais motivos eles/as não
se identificam como negros/as?
Mesmo com o esforço de algumas professoras e da
diretora Ângela Maria Santos do Franco, diretora da
Escola Oswaldo Hülse que, desde 1997, vem
contribuindo com a comunidade, apoiando e
desenvolvendo projetos7 que contribuem para trabalhar
com a auto-estima, auto-imagem e identidade destes(as)
estudantes; um movimento maior que possibilitasse o
engajamento de toda comunidade escolar, em especial,
professores, alunos, funcionários e familiares ainda não
aconteceu.
Mas, tendo a escola um compromisso social com a
inclusão e valorização de todos os alunos, no sentido
de transformar as relações étnico-raciais que precisam
estar pautadas no respeito às diferenças e na
diversidade, procurou ouvir alunos afrodescendentes (os
quais serão identificados aqui com os nomes de países
africanos), sobre como se percebem, que problemas
enfrentam, como se sentem na escola. Garantindo neste
espaço que utilizem a sua “[...] liberdade de expressão,
um dos poucos direitos que jovem negro ainda tem neste
país”, como outrora (1992), já cantavam os Racionais
Mc’s.
Por isso, ao propor ações que minimizem as questões
que se fazem presentes no cotidiano escolar, tendo nas
relações étnico-raciais o seu foco, ouvindo as múltiplas
vozes que compõem a comunidade escolar, é
necessário...
115
Caderno Pedagógico - Criciúma

Fala 1:
“[...] sofremos muito na diferença de cor, mas eu sei que
um dia todos nós negros vamos dar a volta por cima.”
(Estudante da Uganda).8

Fala 2:
“[...] acontece (o racismo), porque os pais falam aos filhos:
você não pode brincar com negros. As crianças brancas,
desde pequenas, aprendem a ser racistas.” (Estudante da
Argélia).

Fala 3:
[...] Só que quando eu estudava ali, tinha algumas divisões
entre as alunas brancas e negras. Essa divisão tornava-se
preconceituosa entre vários alunos. Divisão de algumas
negras de um lado, brancas de outro. Porque tinha os
bolinhos, daí elas sabiam sambar, sabiam de tudo, elas
tinham ginga. [...] não era tão declarada a divisão. Às vezes,
conseguia conversar. [...] só que tinha essa coisa meio racial.
Elas chamavam a gente de branca e eu sendo morena, não
negra, já era considerada branca e, às vezes, do grupinho
dela, que era mais clara do que eu, era considerada negra,
mas cada um é cada um. (Ex-aluna do Congo)

Fala 4:
“Eu sou negra, não gosto de ser negra, porque tem
preconceito, só porque sou negra, me chamam de cabelo
de esponja, de negra preta e outras coisas.” (Estudante de
Mali).

Fala 5:
“Eu gostaria de ter o meu cabelo liso.” (Estudante do
Sudão).
116
Caderno Pedagógico - Criciúma

Fala 6:
“Eu me identifico como negra, porque meu pai é negro e
minha mãe também. Eu queria ter os olhos azuis e que
meus cabelos fossem mais lisos.” (Estudante de Gana).

Fala 7:
“Eu não gosto que me chame de negra, porque dói demais.
Se alguém me chamar de negra, vou ficar bem chateada.”
(Estudante de Zaire).

Fala 8:
“[...] tem branco que tem nojo de negro. Alguns dizem que
os negros são sujos, macacos. Esses brancos são idiotas,
pois, não sabem o que é ser negro.! (Estudante de
Moçambique).

Fala 9:
“Meu padrinho quer tirar meus primos do colégio, porque
têm muitos negros [...].” (Estudante de Gâmbia).

Fala 10:
“Negro, tira seu braço que é sujo de minha carteira!”
(Estudante de Huanda)

Fala 11:
“É um negócio muito chato, isso de apelido. É muito feio.
Já ouvi ‘macaco’, ‘beiçudo’[...].” (Funcionária da Costa do
Marfim).
117
Caderno Pedagógico - Criciúma

Fala 12:
“[...] eu acho muito feio, aqui no colégio tem vários alunos
que botam apelidos uns nos outros ‘seu cabelo de bombril’,
‘passou da validade’, ‘suco de pirita’.” (Estudante de
Angola)

Fala 13:
“Hoje eu adoro gente morena, porque a única pessoa que
me cuidou foi uma pretinha.” (Moradora do Zimbábue).

Fala 14:
“[...] porque a cor negra é igual a qualquer uma. A cor
negra é linda [...].” (Estudante de Togo).

Ao adotarmos estas falas como indícios de


identidades soterradas, de relações étnico-raciais
pautadas pela unilateralidade, de conflitos que ainda
há quem teime em dizer que eles não se fazem presentes
no cotidiano escolar, vamos desnaturalizando as
relações étnico-raciais e avançando no sentido, primeiro,
de materializá-las, caso alguém precisasse ser
convencido de que “[...] o aluno afro-brasileiro, ao entrar
na escola, encontra um mundo que nada ou quase nada
reporta à sua identidade cultural e mantém uma postura
discriminatória, quando da manifestação de suas
características próprias.” (COELHO et al. 1998, p. 74)
Mas como superá-las? Se for uma questão cultural,
imposta há séculos, de que forma nós, educadores/as,
podemos contribuir para ressignificá-las? De que saberes
precisaríamos nós no trato destas questões? Como a
escola pode se preparar para transformar-se numa aliada
nesta luta?
118
Caderno Pedagógico - Criciúma

E, se múltiplas devem ser as vozes, múltiplos devem


ser os olhares que “[...] pode (precisa) fundamentar
ações pedagógicas construtivas no âmbito escolar.”
(COELHO et al. 1998, p. 78.)
Aliás, sabemos que a identidade é construída a partir
das relações estabelecidas com os outros, ao longo da
nossa vida. Então, “[...] reconhecer-se numa identidade
supõe, portanto responder, afirmativamente a uma
interpelação e estabelecer um sentido de pertencimento
a um grupo cultural de referência.” (COELHO et al.
1998, p. 78.)
Porém, as múltiplas identidades sociais pontuadas
por Gomes 9 podem ser provisórias, rejeitadas e
abandonadas. O que equivale dizer que “[...] somos,
desse modo, sujeitos de identidades transitórias e
contingentes. Por isso, as identidades sociais têm caráter
fragmentado, instável, histórico e plural.” (COELHO et
al. 1998, p. 43.)
Assim, por meio das relações que travamos em
múltiplos e diferentes espaços, “ [...] enquanto sujeitos
sociais, é no âmbito da cultura e da história que
definimos as identidades sociais (todas elas [...] mas
também as identidades de gênero, sexuais, de
nacionalidade, de classe, etc.) essas múltiplas e
distintas identidades constituem os sujeitos.” (GOMES,
2005, p. 42).
Historicamente, no caso dos negros, essas relações
têm sido pautadas pela sua invisibilidade, marcada
também pelo padrão de beleza ocidental. O que, muitas
vezes, fez com que não se identificassem como negros,
ou preferissem o cabelo liso, os olhos azuis.
Acrescentando ainda o racismo, a discriminação e o
preconceito, temos os elementos que, ao longo dos
119
Caderno Pedagógico - Criciúma

séculos, contribuíram para que muitos não tenham a


sua identidade étnica positivada tal qual algumas falas
apontadas acima reforçam.
Vale destacar que “[...] a identidade negra é
entendida aqui, como uma construção social, histórica,
cultural e plural. Implica a construção do olhar de um
grupo étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a um
mesmo grupo étnico/racial, sobre si mesmos, a partir
da relação com o outro.” (GOMES, 2005, p. 43).
Loureiro (2005), apoiada nas leituras de Oliveira
(1976), ressalta:
[...] um grupo, para ser designado como étnico, deve possuir
pelo menos algumas das seguintes características: um
crescimento no número de seus membros, principalmente
por meios biológicos; compartilhar valores culturais explícitos
e importantes na história do grupo; ter um campo de
comunicação e interação; e, finalmente, os membros se
identificam e são identificados por outros como constituintes
de um grupo que se distingue dos demais. Como valores
culturais explícitos e importantes, gostaríamos de ressaltar
que a religião, a moda, a ideologia, a concepção de beleza,
os rituais de casamento e as cerimônias fúnebres são alguns
elementos que dão ao grupo uma especificidade cultural.
Se a valorização e o processo de construção das
identidades étnicas são atravessados pelos valores
culturais explícitos, os quais permitem uma
especificidade, percebemos que as falas dos alunos
trazem alguns elementos importantes, para que a escola
possa, em seu cotidiano, contribuir para a afirmação
de identidades étnicas.
Reiterando que as relações interpessoais e inter-
étnicas pautadas pelos “[...] estereótipos criados para
as etnias negras influenciam as interações sociais,
dificultando a construção de uma representação positiva
120
Caderno Pedagógico - Criciúma

das pessoas afrodescendentes, inclusive durante as


interações” (LOUREIRO, 2005, p. 56), compreendemos
que os estereótipos são, também, uma faceta presente
na violência simbólica da escola, então as
[...] verbalizações da maioria desses alunos, isto é aquela
violência sutil presente nas instituições de forma velada
expressa através de gestos e máscaras, negações de
participação, o tornar a pessoa invisível embora presente
fisicamente, piadas sociais, olhares desabonadores, ironias,
etc. (COELHO et al, 1998, p. 74)
Por isso, ao romper com o silêncio que permeou e
permeia estas relações, seus “ecos” necessitam se
fazer ouvidos na e pela escola. Ao registrarmos nossas
reflexões, esperamos que este artigo seja um subsídio
para transformar a nossa ação pedagógica e que, na
medida em que contribuir para direcionar um olhar
pautado nas relações étnico-raciais, possa traduzir-
se em um instrumento educacional que vislumbre a
escola como palco “[...] de ações pedagógicas
construtivas” (COELHO et al. 1998, p. 78), como
um local de cidadania, de pluralidades e de múltiplas
identidades já.

Notas
1
Professora e coordenadora pedagógica do 6º ao 9º ano,
pós-graduada em Fundamentos Psicopedagógicos do Ensino
pela UNESC.
2
Professora de Língua Portuguesa que inspirou este artigo.
3
Mestre em História do Brasil pela UFSC, professora dos
Departamentos de História e Pedagogia e Arquitetura da
UNESC, membro do NEGRA.
121
Caderno Pedagógico - Criciúma

4
Professor formado e pós-graduado em História pela UNESC.
5
As entrevistas e os dados colhidos com moradores,
funcionários, alunos e ex-alunos, durante a pesquisa, não
terão seus nomes revelados no artigo.
6
O que nos leva também a refletir sobre a metodologia
utilizada para identificá-los, sendo dedutiva para a educação
infantil e de 1ª a 4ª séries; e a da auto-identificação de 5ª a
8ª séries.
7
Citamos como exemplo a criação da Fanfarra da escola
“Oswaldo Hülse”, um dos projetos que, a partir do contato
com a musicalidade, meninos e meninas podem vislumbrar
e vivenciar outras experiências e perspectivas. Seu João
Geraldo Lima, que veio morar aos sete anos no bairro São
Francisco, é mineiro aposentado e, hoje, é funcionário da
escola, reforça a importância desta atividade. Na sua
trajetória comunitária, atuou como vice-presidente da APP
da Escola Oswaldo Hülse, participou da Associação do
Campo de Futebol do Boa Vista e atua como delegado do
orçamento participativo. Colaborou com a construção do
Centro Comunitário do bairro, acompanha como voluntário,
a fanfarra da escola e trabalha nesta instituição, desde 1996.
O “Menor Aprendiz” é outro projeto, que possibilita os(as)
estudantes a desenvolverem estágios, em parceria com
empresas da região, visando um aperfeiçoamento
profissional, que lhes propicie uma ascensão social por meio
deste trabalho.
8
Os depoimentos aqui reunidos foram colhidos a partir de
uma atividade desenvolvida pela professora Ivana, com
alunos da escola Oswaldo Hülse.
9
Cf.: GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos
presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma
breve discussão. In: Ricardo Henriques. (Org.). Educação
anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal 10.639/
03. Brasília: SECAD/MEC, 2005. p. 39-62.
122
Caderno Pedagógico - Criciúma

Referências Bibliográficas

COELHO, Michelle Leão et al. Mitos, monstros ou


anjos: um estudo sobre heterogeneidade. Gênero, raça
e tempo de escolaridade. Porto Alegre: Pallotti, 1998.
DIRETRIZES Curriculares nacionais para a educação
das relações étnico-raciais e para o ensino de história e
cultura afro-brasileira e africana. Out. /2005.
GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos
presentes no debate sobre relações raciais no Brasil:
uma breve discussão. In: Ricardo Henriques. (Org.).
Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei
Federal no. 10.639/03. Brasília: SECAD/MEC, 2005,
p. 39-62.
LOUREIRO, Stefânie Arca Garrido. Identidade étnica
em re-construção: a ressignificação da identidade
étnica de adolescentes negros em dinâmica de grupo
na perspectiva existencial humanista. Belo Horizonte:
O lutador, 2004.
LOURO, Guacira Lopes (Org.) O corpo educado:
pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica,
1999.
123
Caderno Pedagógico - Criciúma

Professoras negras do
bairro Pinheirinho:
o giz em movimento

Adiles Lima1
Andréia Guzzatti2
Geórgia dos Passos Hilário3
Iolanda Romeli Lima Manoel4
Vanilde Crispim de Jesus5

De Joelhos

Bem hajas Tu, Senhor!


A benção do teu olhar meigo,
manso e humilde palpita e vibra no meu caminho,
vive dentro de mim,
abre-me os olhos para um horizonte sempre deslumbrante
e põe-me nalma os cânticos dulçurosos
124
Caderno Pedagógico - Criciúma

dos que chegaram ao Sinai dos seus sonhos!


Bem hajas Tu,
Senhor que na Tua infinita bondade me fizeste Mestra!
Diante de Ti, de joelhos, o meu coração,
pela graça da Tua escolha!
Mestra, Senhor! Bendito sejas!
E, para que cumpra integralmente o destino que Quizeste
fosse o meu,
deixa que eu perceba sempre mais a prodigalidade do Teu
Amor
que me elegeu para trabalhar o material que trabalhaste!
Dá-me luz, Senhor,
para sentir a grandeza da Tua misericórdia,
por me abrires as portas do santuário da escola!
Dá que eu saiba emprestar à singeleza da sala,
onde serei mestra,
a santidade mística dos templos,
a operosidade santa das oficinas,
a alegria abençoada dos lares!
Que eu tenha, Senhor,
a mansidão dos fortes,
e a intrepidez dos que querem vencer!
Enche-me as ações da grandeza da tua serena Justiça,
e dos esplendores do Teu divino Amor que todos irmanou
e acolheu sem lhes negar o perdão.
Que o meu coração seja irmão poderoso,
e,limpo de todos os preconceitos saiba agasalhar,
]com carinho, sem distinguir,
o coração daqueles de quem me fizeres Mãe !
E dá-me sabedoria, Senhor,
para que, por Teu Amor Divino,
modele e aprimore os filhos de minha alma,
para Te glorificarem,
enobrecendo a Humanidade nesta Pátria
que me deste e cujo destino a luz das Tuas estrelas,
em cruz, ilumina e abençoa eternamente.
Amém.

Maria da Ilha
125
Caderno Pedagógico - Criciúma

Introdução
Identificando-se por este pseudônimo, Antonieta de
Barros foi a primeira deputada do Brasil, rompendo aí,
com preconceitos de gênero, classe e raça, tão presentes
na época, a terceira década do século XX.
Antonieta, educadora negra, transcendeu à época
em que vivia, constituindo uma referência para a
concretização do objetivo deste artigo: discutir a
constituição das identidades das mulheres negras
professoras nas escolas públicas do município de
Criciúma.
Nesse texto poético, a Professora Antonieta de Barros
nos remete então a alguns questionamentos: por qual
razão um grande número de mulheres negras, do Bairro
Pinheirinho, tornaram-se professoras? O que levou estas
mulheres à escolha desta profissão? Quais as trajetórias
percorridas para essa conquista? Quais os espaços
ocupados por essas mulheres negras professoras?
Nesse contexto, buscando respostas a estas
indagações, a Escola Municipal de Ensino Fundamental
Erico Nonnenmacher, durante o ano de 2006, propôs-
se a caminhar sob o prisma da diversidade étnico-racial,
em sua prática pedagógica escolar. O campo
pesquisado foi a própria localidade onde a escola se
situa: à Rua Artur Frederico de Andrade, nº 410, no
Bairro Pinheirinho, atendendo, segundo o seu Projeto
Político Pedagógico, a uma comunidade de nível sócio-
cultural e econômico baixo.
Dessa forma, a orientadora educacional Vanilde
Crispim de Jesus, atuando como multiplicadora do
Programa Municipal de Educação para a Diversidade
Étnico-Cultural proposto pela Prefeitura Municipal de
126
Caderno Pedagógico - Criciúma

Criciúma, a equipe diretiva, as educadoras e alunos de


7ª e 8ª séries, por meio de pesquisa-ação, iniciaram
um processo de olhar o bairro com outros focos.
Num primeiro contato com a comunidade, as
moradoras mais antigas negras e não-negras foram
entrevistadas. Entre elas, destacamos: Luci Besbati
Speck e Orandina Fernandes Vitória, Oscar Manoel
Felício e Sueli Cardoso K. Felício; Tereza Dotina
Domingos, Maria Helena Domingos Lopes e Ana Sônia
Alano Domingos.
Assim, numa análise mais minuciosa das entrevistas,
em especial, a partir dos depoimentos de Ana Sônia e
Maria Helena, optamos por abordar alguns aspectos
de suas histórias de discriminação racial feminina, a
formação no magistério e a constituição das identidades
destas professoras negras.
Tais falas provocaram diversas reflexões sobre a
mulher, particularmente à mulher negra professora.
Pensamos, então, na importância de dar visibilidade à
presença feminina negra na educação.
Entre nossas interlocutoras, citamos as irmãs Ana
Sônia Domingos e Maria Helena Domingos Lopes,
Janete Leonor e Begair de Souza Leonor, filhas de
mineiros que assim como vários outros negros e negras
da região, para Criciúma, deslocaram-se em busca de
melhores condições de vida.
Como mulheres negras e educadoras, possuem em
comum uma história de vida que permeia lutas, sonhos,
superação e, principalmente, revelaram a alunos,
professores e profissionais da Escola de Ensino
Fundamental Erico Nonnenmacher, por meio de suas
memórias, trajetórias de mulheres negras educadoras
na cidade de Criciúma. Essas mulheres negras, no
127
Caderno Pedagógico - Criciúma

decorrer de nossa pesquisa, provocaram com suas


histórias, aguçaram a nossa curiosidade sobre a
constituição de suas identidades, o ingresso no
magistério, a profissão de professoras e os processos de
resistência.
Ana Sônia Domingos e Maria Helena Domingos
Lopes, naturais de Criciúma, são filhas de Florêncio
Domingos e Dotina Maria Domingos. Segundo Maria
Helena, o Sr. Florêncio “[...] foi criado pela família
Sampaio de Tubarão, que eram seus padrinhos [...]
porque os pais dele faleceram [...]. Depois com 17 anos,
fugiu da fazenda, veio para Criciúma trabalhar na mina
e casou com a minha mãe.”
Janete Leonor informa que “[...] é natural de Orleans
e veio para Criciúma com um ano de idade, para o pai,
Manoel Sebastiana, trabalhar na estrada de ferro [...].”
Begair de Souza Leonor é filha de Valdemira Isabel
de Souza e José de Souza, natural de Siderópolis, relata-
nos que “[...] chegou a Criciúma com menos de um
ano de idade quando o pai veio também trabalhar na
mina.”

Tornar-se professora: há outra opção?


Quando direcionamos o foco de nossa pesquisa às
professoras negras, não havíamos constatado o grande
número de educadoras afro-criciumenses que residem
no bairro Pinheirinho. Isso porque, como afirma Gomes
(1995, p. 115), “[...] ser mulher negra professora
expressa uma outra maneira de ocupação do espaço
público, [...] significa muito mais que uma inserção
profissional. É o rompimento com o estereótipo de que
o negro não é capaz intelectualmente”.
128
Caderno Pedagógico - Criciúma

Além disso, significa ainda romper com uma


trajetória de exclusão do espaço escolar, a que vem
sendo submetidos várias crianças e jovens negros, ao
longo da história. O ingresso no magistério significa,
para a mulher negra, segundo Gomes (1995, p. 152),
“[...] a culminação de múltiplas rupturas e afirmações:
[...] a busca de uma profissão que lhe garanta um espaço
no mercado de trabalho [...].”
Nesse processo de rupturas, questionamos o que
levou estas mulheres negras a se tornarem professoras,
ou seja, a optarem pela profissão do magistério?
Dessa forma, Ana Sônia Domingos e sua irmã Maria
Helena declaram:
[...] procuramos fazer o Magistério, porque era o curso onde
as negras que atingiam um certo grau de escolaridade nas
décadas de 50, 60 procuravam cursar. Além disso, tínhamos
como referência nossa irmã mais velha, que já era professora,
e o apoio do pai que primava pelos estudos.
Já, Begair relata que “[...] já possuía na veia a arte
de ensinar, desde criança brincava de escolinha e
gostava de ensinar, sua mãe era educadora e motivo de
orgulho, logo a incentivava a seguir essa carreira.”
Nesse sentido, Begair revela a intensidade que o
magistério representava em sua vida, pelo fato de ter
uma referência na família: “[...] minha mãe era
professora e eu achava muito bonito o ato de ensinar
[...] e era um exemplo. Foi um espelho para mim e eu
queria seguir. A minha mãe era assim, uma rompedora
de barreiras, porque naquela época, a pessoa negra era
pro trabalho braçal.”
E ainda, lembrando Gomes (1995), narrar a trajetória
das professoras negras reflete uma trajetória de luta,
resistência, emoção e muita dor. O magistério torna-se,
129
Caderno Pedagógico - Criciúma

assim, uma forma de alcançar um status social mais


elevado, havia a necessidade de romper com o círculo
vicioso que a sociedade racista impunha às mulheres
negras.
Observa-se que, mesmo respaldadas no espaço
privado pelos familiares, a escolha pela carreira do
magistério, quando atingia o espaço público, muitas
vezes, era a única opção destas mulheres. É a partir da
fala da educadora Maria Helena que este fato se
evidencia:
Então na época, trabalhar nas lojas né? Coisa assim não
pegava. O comércio, como ainda acontece agora, havia
dificuldade de aceitar mulheres negras. Só que tu não sabia.
Então quando tu percebias essa discriminação procurava,
como diz o outro a tua turma [...]. Então as negras que
conseguiam estudar, não tinha jeito, iam ser professoras.
Assim nos foi revelado na fala de Janete Leonor,
reafirmando as dificuldades em tornar-se professora:
Muito me marcou foi quando eu terminei o curso Normal
Regional no Lapagesse, que na época nos habilitava
professora formada. Então, eu achava que já tinha tudo
nas mãos, pois comecei a dar aulas. Quis parar de estudar,
ou seja, só trabalhar. Foi quando minha mãe, ao fazer o
curso Normal no Michel, pois só ali existia o referido curso,
relutei contra a idéia dela. Pasmem: minha mãe, analfabeta,
lavadeira de roupas, de joelhos em uma fonte, não
conseguindo me convencer, não se deu por vencida. Recorreu
ao Senhor Tibério Milanez, hoje falecido, na época
trabalhava no escritório da mina União que me chamou
para interrogar qual o motivo de não prosseguir os estudos,
já que mamãe dizia que breve aquele curso já não valeria
mais. Olhem só a visão de mamãe! Então, com vergonha
do Sr. Tibério fiz minha matrícula no Michel, foi o que me
valeu, pois alguns anos depois só poderia continuar
lecionando quem fosse normalista quem não quisesse se
130
Caderno Pedagógico - Criciúma

habilitar teria que deixar a sala de aula e ocupar o cargo de


servente. Este foi o fato que mais me marcou: o
esclarecimento de mamãe, analfabeta, lavadeira, criada na
roça, pobre e com uma família de doze filhos.
O curso Regional ao qual se refere a educadora
Janete era feito na Escola Pública Estadual Professor
Lapagesse e, na época, o mesmo habilitava para dar
aulas. No entanto, depois ocorre a exigência do curso
normal, atual Magistério, oferecido somente pela escola
particular Colégio Michel, as mulheres negras não
podiam pagar. Esse se tornou mais um obstáculo na
luta para a obtenção de um título para que se tornasse
legal sua atividade em sala de aula, senão corriam os
riscos de trabalhar na mesma escola como serventes,
encerrando suas atividades na sala de aula como
professoras.
Depois de formadas, as professoras negras ainda
enfrentavam outros obstáculos, havia uma grande
dificuldade em obter as vagas nos concursos públicos
para trabalhar, como fica evidente neste relato de Maria
Helena Domingos Lopes:
[...] quem passava em concurso, às vezes com os melhores
lugares, quando as vagas abriam, eram ocupadas pelas filhas
das pessoas mais abastadas da cidade, políticas, sobrenomes
elas estudavam, geralmente eram da política. Aí o que é
que eles faziam? Queriam trabalhar, mas elas não queriam
ir para o interior dar aula, então as vagas não apareciam.
Elas ficavam anos e anos sempre trabalhando ali. Elas
pegavam as vagas de secretárias, diretoras, elas pegavam
as vagas como substitutas anos e anos [...].
Constata-se, ainda por meio da fala da educadora
Janete, que não era apenas fazer o ensino normal,
conseguir a vaga e dar aulas, para exercer o magistério,
muitas vezes enfrentavam situações de racismo na
131
Caderno Pedagógico - Criciúma

própria sala: “No início, tive alguns problemas com


algumas crianças pequenas que não aceitavam
professoras negras. [...] naquela época, as crianças não
gostavam de professora preta (risos). Choravam. Ainda
tinha que agradar não tem? O racismo era aberto.”
No desabafo da educadora, percebe-se que, no
Magistério, em que muitos acreditam não existir o
racismo, as educadoras sentiam na pele as mazelas da
discriminação racial.
Um outro foco desta pesquisa foram as formas de
resistência e organização destas professoras negras como
militantes inseridas nos movimentos sociais. A importância
e a participação das professoras negras fica evidente na
fala de Ana Sônia Domingos: “[...] a mudança [...] acho
que ela tem um pouco [...] está dentro da cabeça [...] esta
vem através da participação ativa dos Movimentos, é que
houve assim um certo alerta, assim aquele espírito guerreiro
de lutar por aquilo que se quer [...].”
Essa fala evidencia de que forma os movimentos
sociais de luta, como o Sindicato dos Trabalhadores
em Educação (SINTE), o movimento negro e outras
organizações em que nossas mulheres entrevistadas
estiveram envolvidas, durante o período de trabalho
efetivo, interferiram na constituição de suas identidades.
O depoimento revela a importância dos Movimentos
nas suas vidas e o desejo de mudar a realidade opressora
à mulher negra de Criciúma.
As ações desempenhadas e o compromisso de luta
firmado pelas mulheres negras, segundo Ribeiro (2004),
merecem destaque onde, conscientes de seu papel na
história, procuraram desmascarar situações de conflitos
e exclusão associadas às desigualdades de gênero e raça,
como rememora a professora Janete Leonor:
132
Caderno Pedagógico - Criciúma

No momento em que participo dos movimentos negros, nas


discussões sobre o combate ao racismo, nas reuniões em
minha comunidade, nos movimentos políticos, sociais e
religiosos, quando sou convidada, lá estou atenta para o
bom combate. Já liderei a Pastoral da Consciência Negra
do Pinheirinho. Hoje prefiro participar e não liderar. O negro
se mexeu. Lá eu fiquei sabendo, lá estou para aprender e
ver a força do negro de hoje. Sou sócia do SINTE até hoje.
Nessa tentativa de ocupar os espaços possíveis, o
fato de ser educadora competente e ativista política não
bastava para justificar a presença dessas mulheres em
cargos de destaque nos órgãos da educação pública
estadual. Era motivo para que a população tecesse
comentários racistas quanto à sua permanência nesse
espaço, como relata a Professora Maria Helena
Domingos:
Quando eu fui convidada para ser coordenadora da terceira
CRE, sofri muitos preconceitos, dentre eles, o de ser negra e
mulher. Só pelo fato de entrar e dar visibilidade às
professoras negras, chamando-as para trabalhar, o
comentário era de que 3ª Coordenadoria Regional de Ensino
estava tornando-se um navio negreiro.

O espaço religioso ocupado


por mulheres negras
Falar sobre as religiões de matrizes africanas no Brasil
e, principalmente, de Criciúma, é ainda um tabu, além
de representar uma grande reflexão sobre os valores que
adquirimos enquanto crianças, muitas vezes repletos de
racismos e preconceitos, impostos por uma cultura
etnocêntrica e eurocêntrica que insiste em reproduzir
modelos de cultura, raça, gênero e religião
133
Caderno Pedagógico - Criciúma

embranquecidos. Nesse contexto histórico em que o


Brasil está inserido, a maior parte da população
criciumense assume-se como descendente européia e a
religião,portanto, católica, como afirma a Professora
Begair Leonor de Souza: “Faz uns anos [...] Uma época
toda igreja católica tinha missa afro, um sábado por
mês. Encenação do Evangelho, ofertório encenado, calça
arregaçada, tocavam atabaque, era emocionante”
Tal situação para os homens negros e as mulheres
negras da cidade os impede de assumirem-se ou
identificar-se com as religiões de matriz africana,
sobretudo porque não conhecem a sua história e muitas
vezes acreditam nas ideologias racistas que inventam
sobre as religiões africanas. Aliás, desmistificar o folclore
que gira em torno disso é uma das metas das diretrizes,
onde reconhece o(a) negro(a) como um ser político,
social e cultural, herdeiros(as) de uma fortuna religiosa
que merece respeito. “As religiões são estudadas. Existe
tal negócio de bruxaria, que nunca foi religião de negro.
Ela é da Alemanha,da Inglaterra e daqueles lugares
todos”, afirma Professora Ana Sônia.
Segundo Moura (1988), há o intercruzamento de
valores entre negros e a sociedade branca, terminando,
quase sempre, ou pela sua dissolução, ou por um
processo de subordinação desses grupos, econômica,
ideológica e cultural, aos estratos dominantes do Brasil.
E neste aspecto, entra a questão da religiosidade que
entra como uma marca negativa da população negra,
que responde à opressão, usando seus valores culturais
de origem para se fecharem e/ou resistirem.
A Professora Maria Helena Domingos, acrescenta:
“Qualquer espaço que tu estejas fazendo uma parte
espiritual, tu tendo a cultura do teu povo, [...], por
134
Caderno Pedagógico - Criciúma

exemplo, do negro, tu podes fazer os louvores, os cantos,


o coral, a encenação, mas tu sabes o que está fazendo
porque tens embasamento.”
Esse depoimento nos leva à reflexão de que nenhuma
cultura permanece igual em tempos e espaços diferentes.
O universo da cultura afro-brasileira é imenso, tanto que
seria impossível aqui identificá-lo em todos os seus
aspectos. Estes, que foram alterados durante o processo
de escravidão e depois durante a marginalidade do negro
na sociedade brasileira, após a abolição em 1888. Existe
uma pluralidade, quando se trata do termo cultura afro-
brasileira, porque sabemos que vários povos do continente
africano vieram para o Brasil e cada um deles trouxe uma
cultura diferente da outra, assim como a Língua. Logo, a
religião foi um espaço de sobrevivência e resistência dos
africanos frente ao sistema escravista desde o século XVIII.
Tratando-se desse contexto, podemos dizer que não
há apenas uma prática religiosa africana, são várias,
como declara Professora Janete Leonor: “Seria eu
ingrata, se deixasse cair por terra o pouco de cultura
deixada pelos nossos ancestrais. Por isso, respeito e
cultivo a beleza que a religião afro nos mostra.”
Segundo Moura (1988), a Quimbanda surge no
interior da Umbanda, aos valores da sociedade
tradicional, são completamente ignorados. Há uma
liberação de instintos, sentimentos e vontades quase
total. O Exu é um símbolo libertário para resolver
problemas quase impossíveis.
Considerada uma religião brasileira de matriz
africana, o Candomblé é uma das práticas religiosas
que tem fortes ligações com uma religião que já existia
em alguns lugares da África, mas que se desenvolveu e
se transformou aqui no Brasil. Angola (de Angola), o
135
Caderno Pedagógico - Criciúma

Nagô (da Nigéria) e o Jeje (do atual Benin) são exemplos


de Candomblé. Na década de 1960, essa prática
expandiu-se aqui no Brasil, também conhecida como o
Rito do Batuque no Rio Grande do Sul. Essa religião já
foi exclusiva dos negros, mas atualmente é também
adotada por várias pessoas de diferentes origens e
camadas sociais.
Em nosso município, esse quadro não é diferente: no
bairro Pinheirinho há vários “terreiros”, locais onde são
realizadas as cerimônias religiosas. Afirma a Professora
Maria Helena: “Se Cristo veio para todas as tribos, com
certeza, Ele é dono dessas entidades maravilhosas.”
Segundo uma de nossas entrevistadas, Begair de
Souza Leonor, sua irmã mais nova pratica o
Candomblé “[...] e a minha mãe freqüentava em função
da minha irmã e muitas coisas ela acreditava também,
bem mais do que eu. Então não era de prática, mas era
de assistir, de discutir, de se informar sobre [...]”.
A partir dessa observação, compreendemos que,
quando se trata das religiões de matriz africana, existe
uma grande resistência em função da desinformação e
dos mitos que se criaram em torno dessas práticas,
afastando o negro ou a negra de sua identidade e
referência histórica, impedindo que homens e mulheres
afro-brasileiros conhecessem sua própria cultura,
obrigando-os(as) muitas vezes, a negação de sua
identidade.
De acordo com Moura (1988) as religiões africanas
cultuam entidades que comandam a natureza, presentes
na água do mar e dos rios, nas pedras e nas árvores,
bem como a energia, ou axé. No fim, da morte das
religiões africanas, nasceram as religiões afro-brasileiras
como a Umbanda e o Candomblé.
136
Caderno Pedagógico - Criciúma

A prática do Candomblé foi proibida durante muito


tempo, seus adeptos, que devotavam os orixás (homens
que pela sua virtude, tornaram-se deuses) tiveram que
disfarçá-los em figuras de santos católicos. Os exemplos
mais conhecidos são Iemanjá, orixá cultuada na figura
de Nossa Senhora da Conceição; Iansã, cultuada como
Santa Bárbara e o Ogum, como São Jorge, no Rio de
Janeiro e Santo Antônio, na Bahia.
A força da vida falou mais alto, e hoje, no dia 2 de
fevereiro, milhões de brasileiros(as) de todas as cores e
crenças vão para a praia celebrar a orixá do amor,
Iemanjá. E como afirma Ana Sônia: “O que é ruim tu
corre, mas tu tens que trilhar, tu tens que levar tem que
conhecer, porque se não vai receber teu limbo. Tu passas
por todo tipo de satanismo, por todo o tipo de coisas
lindas, maravilhosas divinas.”
As entrevistas revelam que o contato com os
movimentos sociais incidem na formação do perfil de
identidade dessas professoras e que seu processo de
construção é marcado por lutas, ambigüidades,
resistência e emoção.

Identificar-se enquanto negra...

“Todo mundo quer ser negro, também quer ser bronzeado,


da cor da jabuticaba, da cor de não sei o quê, mas não
tem [...].”

Professora Ana Sônia

No Brasil, existe a idéia de que “negro é ruim, feio e


sujo” e de que a mulher deve ter lugar menos favorecido.
Fontes do DIEESE (2005) mostram que a situação da
137
Caderno Pedagógico - Criciúma

mulher negra está aquém dos homens negros e não-


negros e também da mulher branca. A mulher bela é
quem tem descendência européia: loira, alta, olhos azuis,
branca. Já, a mulher negra é rejeitada pela cor, e a mulata
(termo discutível na história do Brasil) é vista como
disponível e sedutora, objeto de prazer e feita apenas
para servir o “outro”.
A fala de Begair de Souza Leonor evidencia o
sentimento de identificar-se enquanto negra: “Temos que
valorizar a nossa raça. Por muito tempo, fomos
considerados inferiores e se puseram assim. Hoje temos
possibilidade de modificar tudo através de leitura,
estudo. Essa postura mudou.”
O título dessa análise, por meio da fala da professora,
faz-nos pensar sobre o que é ser mulher, pobre e negra
no Brasil hoje, que está associado à cor da pele
implicando na invisibilidade nos aspectos sociais e
culturais da sociedade brasileira. Quando se diz “todo
mundo quer ser negro”, há uma intencionalidade de
provocação no aspecto identitário brasileiro, pois sabe-
se que mais da metade da nossa população é negra e
que, pela não visibilidade, as pessoas não assumem a
negritude, porque não conseguem romper com os
estigmas e estereótipos socialmente construídos ao longo
da história, na sociedade brasileira, a qual insiste ainda
em discriminar o indivíduo pela cor.
Segundo a professora Maria Helena, “Tudo gira em
torno do poder e do que é belo, bonito, do que é bem
aceito, é em torno daquele povo que geralmente aqui
no Brasil é da raça negra, isto é, branca.”
Este depoimento da professora aborda as relações
de poder estabelecidas também no padrão de beleza,
que interferem na vida social das mulheres negras da
138
Caderno Pedagógico - Criciúma

nossa sociedade. Prova de tal argumento é que, em


nossa cidade, ainda predomina em nossos
estabelecimentos comerciais a presença branca. Não
existem mulheres negras trabalhando nos bancos, nas
lojas dos shoppings da cidade e também é escassa a
presença da mulher negra nos espaços públicos e,
quando estes são ocupados, são delegadas apenas
funções elementares e não cargos de chefia.
Desta forma, muitos vêem e consideram Criciúma
um “pedacinho da Europa”, no extremo sul brasileiro,
mascarando a negritude e a beleza de seus
afrodescendentes que foram e são capazes de contribuir
no desenvolvimento do município em todos os seus
aspectos. Este fato fica evidente na fala da Professora
Begair de Souza Leonor, quando rememora um fato de
sua infância: “Queria ser anjo e nunca colocaram Só
brancos. Cheguei a pensar em querer ser branca e não
negra.”
Por meio desse depoimento, constata-se que é urgente
a valorização da mulher negra pela educação, para que
contagie outras áreas e se desfaça os estereótipos
construídos ao longo desses anos, sobre sua imagem.
Isso perpassa também por um redimensionamento de
valores entre todas as pessoas, numa forma de romper
o que já está padronizado.
Dessa forma, poderemos proporcionar para as
nossas crianças negras e não-negras um futuro mais
justo e igualitário, onde a cor da pele seja motivo de
orgulho e respeito e não como símbolo de opressão, que
perpetua ao longo dos tempos em nossa sociedade
brasileira e manifestado em nossa cidade.
139
Caderno Pedagógico - Criciúma

Considerações finais
A situação da mulher negra, apesar da multiplicidade
recente de pesquisas sociológicas, educacionais e
antropológicas, não tem suscitado muito interesse nas
reflexões educacionais brasileiras, se considerarmos a
história da educação em nosso país e sua produção
teórica.
Torna-se fundamental darmos relevância às mulheres
negras, professoras de Criciúma e o modo de
constituição de suas identidades, enquanto sujeitos de
uma história, em que estas não aparecem como um
elemento capaz de contribuir com o desenvolvimento
sócio-econômico, cultural e político da sociedade
brasileira, mas na condição de subserviência ao status
quo vigente em nosso país.
Assim, é conhecida a precariedade de dados sobre
a trajetória escolar da mulher negra, desde a educação
infantil ao ensino superior. Nós, mulheres negras,
lutadoras, trabalhadoras, criativas, domésticas,
empreendedoras, mães, esposas e amantes, somos
ousadas, determinadas e com todas essas qualidades
enfrentamos uma sociedade cheia de preconceitos de
gênero, classe e raça.
Sob essa perspectiva, são muitos os fatores que
contribuem para que a sociedade brasileira tenha
consciência do desrespeito e pouco caso que fazem
especialmente com a cultura negra.
Como disse a nossa entrevistada, a professora Maria
Helena: “consciência de quem tem valor, buscar cultura,
do que tem valor desde o conhecimento dos orixás, até
os antepassados, os que fizeram a luta até chegar até
aqui e de que eles vão abrir caminho para continuar.”
140
Caderno Pedagógico - Criciúma

Segundo Gomes (1995), ser mulher negra e


professora em um país, como o Brasil, implica em um
redimensionamento desses dois papéis, demonstrando
todos os estereótipos e estigmas historicamente
colocados. Requer ver a si mesma como negra e
profissional. E ver a si mesma como negra envolve se
reconhecer enquanto sujeito negro, possuindo um papel
político na construção de uma análise prática
pedagógica, que desvele o racismo presente no ambiente
escolar e aponte a mudança no trabalho que a escola
vem realizando.
Há vários fatores que precisam ser considerados:
dentre eles, as atitudes dos teóricos da educação que
camuflam a questão racial ou por não saberem ou por
não quererem lidar com ela.
A luta contra os preconceitos étnico-raciais precisa
começar na escola, porque as crianças não nascem
racistas. Segundo a professora Janete, as pessoas
diziam: “Pra mim, tanto faz negro ou branco, é tudo
igual”. É mentira. O professor precisa selecionar o
conteúdo, definir as estratégias de ensino e decisões
significativas a respeito de cada situação presente. Cabe
também à escola contribuir para que as pessoas nelas
inseridas mudem a sua visão de mundo para uma nova
ótica, onde os diferentes olhares reconheçam e respeitem
as desigualdades sociais.
O Brasil precisa aprender a conviver com as
diferenças sem hierarquizá-las a partir do ponto de vista
do grupo dominante, ao criar espaço para que essas
diferenças sobrevivam na composição da sociedade. É
preciso dar visibilidade àqueles que se destacam na
cultura e no desenvolvimento sócio-cultural e do mundo.
Essa visibilidade do negro hoje é fruto da luta por
141
Caderno Pedagógico - Criciúma

melhores condições de vida, ainda não condiz com sua


representatividade, bem como sua participação na
construção da nação. Como afirma a Professora Maria
Helena: “[...] não esquecendo nunca que assim caminha
a humanidade, que o Brasil é o segundo país em
população negra do mundo e nós temos a obrigação de
educar, tanto as crianças brancas como as negras sobre
a cultura afro.”

Notas
1
Professora graduada em Pedagogia pela UNESC,
especialista em Educação Infantil e mestre em Educação e
cultura pela UDESC, professora do Curso de Pedagogia e
coordenadora do NEAB na UNESC, membro do NEGRA
(Núcleo de Estudos de Gênero e Raça)
2
Orientadora educacional e multiplicadora do PMDEC
3
Professora de Língua Portuguesa da EEB João Frasseto,
Coordenadora Pedagógica da Secretaria de Educação de
Criciúma.
4
Coordenadora do Programa Municipal de Educação e
Diversidade Étnico-cultural, desenvolvido pela Rede
Municipal de Educação, Graduada em Pedagogia pela
UNESC.
5
Orientadora educacional e multiplicadora do PMDEC.

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Kelly Cristina. Áfricas no Brasil. São Paulo:


Scipione, 2003.
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-Raciais e para
142
Caderno Pedagógico - Criciúma

o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e


Africana. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2006.
35 p.
CECCON, Claudius (Coord.). Pele escura, estrada
escura, beleza pura: desconstruindo o racismo na
escola e na comunidade. Rio de Janeiro: CECIP, 2003.
(Manual da Campanha Direitos são pra valer!)
CRICIÚMA. Projeto Político Pedagógico do
E.M.E.F. Érico Nonnenmacher. 2002.
DECRETO Municipal de Criciúma, nº 1750/2005.
DIEESE http://www.dieese.org.br/esp/estpesq14112005
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2006.
GOMES, Nilma Lino. A mulher negra que vi de
preto. Belo Horizonte: Mazza, 1995.
MOURA, Clovis. Sociologia do negro brasileiro.
São Paulo: Ática, 1988.
RIBEIRO in VENTURINI, Gustavo; RECAMAN,
Marisol; OLIVEIRA, Suely de. (Orgs.) A mulher
brasileira nos espaços público e privado. São
Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
143
Caderno Pedagógico - Criciúma

Samba e sincretismo
religioso no Santo
Antônio:
um bairro carnavalesco e de resistência

Adiles Lima1
Anália José Lima2
Geórgia dos Passos Hilário3
Iolanda R. Lima Manoel4
Munique do Nascimento5
Sandra Helena Búrigo Rosso6

Introdução
No Brasil, o Carnaval principiou com as brincadeiras
que os portugueses trouxeram para o Rio de Janeiro,
144
Caderno Pedagógico - Criciúma

chamada “entrudo”: com farinha, ovos e principalmente


água. A brincadeira, às vezes, chegava à violência.
Quem quisesse uma maneira mais “calma” de brincar
o Carnaval participava dos bailes em salões fechados.
Os negros eram proibidos de participarem das
brincadeiras, mas faziam nas ruas um “cortejo”, com
batuque inspirado nos rituais festivos africanos.
Havia também o “Zé Pereira”, um português que
tocava bumbo nas ruas, e o “Zé Codea”, outro português
que originou o bloco de “sujos” (brincavam nas ruas
nos dias “gordos”: domingo e terça-feira antes da
quaresma).
Após a abolição, mesmo sofrendo perseguições, os
grupos foram aumentando e se organizando, aos poucos,
ganhando a simpatia e a participação de operários,
funcionários públicos, donos de comércio etc. Surgiram
os “arranjos”, palavra portuguesa que significa
“bando”; depois, os ranchos, escola; e por fim, em 1928,
foi fundada a primeira escola de samba no Rio de
Janeiro que se chamava “Deixa Falar”, criada pelo
compositor Ismael Silva, para ensinar samba no Estácio
de Sá. Como era próximo à escola normal da Corte.
Talvez daí, derive o nome “escola de samba”.
Objeto de estudos e de divergências, o fato é que o
samba surgiu e predominou no Carnaval e, nas escolas
de samba, a bateria é a “alma” da comunidade. Hoje,
tudo isso faz parte da nossa identidade, está no nosso
passado e no presente. Ela representa a mais bela e
original criação do povo, constituindo o maior traço de
identidade cultural do Brasil, o país do Carnaval.
Estamos atualmente envolvidos no processo de
implantação de políticas afirmativas do Governo
Federal, que vem instituindo e implementando um
145
Caderno Pedagógico - Criciúma

conjunto de medidas e ações, objetivando eliminar


discriminações, injustiças e promover a inclusão social
e a cidadania para todos no sistema educacional
brasileiro.
Houve, então, o convite da Secretaria Municipal de
Educação para nossa Escola participar, com encontros
sistematizados de uma multiplicadora representando a
Escola, do Projeto de Diversidade Étnica – Caderno
Pedagógico, que tinha como objetivo contemplar a Lei
10.639/03, que altera a LDB (Lei de Diretrizes e Base)
e instituiu a obrigatoriedade do ensino da História da
África e dos africanos no currículo escolar do ensino
fundamental e médio, assim, recuperando
historicamente a contribuição dos negros na construção
e formação da sociedade brasileira.
O bairro Santo Antônio se estruturou a partir das
transformações do processo de trabalho que envolveu
a localidade. Inicialmente, final do século XIX até
meados do século XX, as casas eram espalhadas, uma
bem distante da outra. A subsistência vinha do cultivo
da terra. Posteriormente, com a mineração, casas foram
construídas em série para os operários, uma bem
próxima da outra. A maioria dos moradores, inclusive
os colonos, vivia da extração, escolha e transporte do
carvão. Com o passar do tempo, as atividades de
trabalho se diversificaram e o bairro figura-se,
atualmente, na cidade, como uma grande área
residencial.
A comunidade do bairro Santo Antônio tem uma
história bonita de lutas e conquistas no que diz respeito
à educação. Desde 1956, a E.M.E.F. Giácomo Zanette
realizou uma educação pública de qualidade,
contribuindo na formação de seres que valorizam o
146
Caderno Pedagógico - Criciúma

companheirismo, a bondade, a justiça, a integridade, a


amizade, a compreensão e a valorização das diferenças,
fazendo o estudo e a leitura da realidade para a
conscientização e a transformação social.
Iniciou-se com uma pesquisa de campo, com alunos
de 7ª e 8ª série, acompanhados com seus professores,
visitando famílias pré-estabelecidas por grupo, com o
cuidado de ouvirmos famílias negras e não-negras em
números iguais. Os alunos das demais séries
contribuíram trazendo depoimentos dos pais, fotos e
objetos da ancestralidade, para coletar dados referentes
à memória histórica do bairro Santo Antônio,
apontando contradições, as quais evidenciaram uma
das formas de violência: a discriminação.
Tem-se, a partir daí, o conhecimento do evento
cultural mais significativo no bairro Santo Antônio e
que envolve a grande maioria da comunidade: o
Carnaval. É justamente lá que aparecem as divergências
entre negros e não-negros, gerando conflitos.
Considerando o Carnaval como o espaço de encontro
de toda nacionalidade brasileira, é através dele que
vamos ajudar a minimizar a violência com o projeto
titulado: “Carnaval como um caminho para a
transformação da violência à cidadania na escola.”
Foram elencadas novas estratégias de pesquisa:
ações direcionadas para pessoas que vivenciaram
diferentes momentos da história do Carnaval na Escola
de Samba, no Bairro Santo Antônio, trazendo à tona
situações concretas das divergências que geram
violência.
Entrevistaram-se dirigentes e componentes que
atuaram, ou ainda atuam, e que demonstraram
acompanhamento e envolvimento com a Escola de
147
Caderno Pedagógico - Criciúma

Samba Unidos do Bairro Santo Antônio. Pesquisamos,


nos documentos da Escola de Samba, dados e
informações que tratassem da estruturação e
organização da Escola. Também, coletamos fotos que
ilustrassem as falas dos entrevistados.
Quando falam de episódios vivenciados, as pessoas
mostram como a história se formou e como facilita o
entendimento da construção social.
Paralelamente a esta pesquisa-ação, em sala de aula,
os professores comprometidos com a promoção do ser
humano na sua integralidade trabalharam em suas
disciplinas, estimulando a formação de valores, hábitos
e comportamentos que respeitem as diferenças e as
características próprias de grupos e minorias.
É indiscutível a importância do Carnaval na formação
da brasilidade, que se constitui de cidadãos orgulhosos
de seu pertencimento étnico-racial, descendentes de
africanos, povos indígenas, descendentes de europeus,
de asiáticos. Carnaval é cultura, é história. Existem,
assim, possibilidades de potencializar a Escola de
Samba como agente e produtora de conhecimento,
juntamente com a Escola Formal, ajudando-se
mutuamente a superar as dificuldades e promover a
construção de uma nação democrática, em que todos,
igualmente, tenham seus direitos garantidos e sua
identidade valorizada.

Um pouco da história do carnaval


criciumense
Em Criciúma, as quatro noites de Carnaval eram
comemoradas no Mampituba e no centro. Os moradores
148
Caderno Pedagógico - Criciúma

do centro, de origem italiana, por volta de 1936 e 1938,


não eram dados ao Carnaval. Em algumas vezes, duas
noites dançavam no Mampituba: primeira sociedade
criciumense. As fantasias, ou eram em bloco de casais,
ou individuais. Dois ou três instrumentos de sopro da
banda musical, mais a bateria e tambores faziam o
Carnaval. Xavantes foi um dos primeiros blocos de rua.
Sr. Dino Campos, João Campos e Jurê Borba eram os
mais animados.
Em Santo Antônio, era diferente: toda semana de
Carnaval era “entrudo”. Brincavam à tarde e à noite
depois do trabalho, dançavam nas áreas das casas.
Paraíba foi um dos primeiros clubes. Os blocos visitavam
as casas das pessoas da chefia das companhias e
amigos. Havia rivalidade entre os blocos, as músicas e
as letras eram compostas (versos) e fantasias que não
podiam ser ouvidas nem vistas. Diziam que furavam o
bloco, quando o outro bloco descobria as fantasias e
ensaiavam, às vezes, até embaixo das galerias.
A primeira escola de samba de Criciúma foi a Vila
Isabel, fundada na Operária Nova, tinha as cores,
amarela, vermelha e azul. Os diretores eram Enedina
Alano, José Bento e Romeu (apelidado de Pinicilina).
Os negros formavam as alas e os brancos, dificilmente,
faziam parte. Assim, meses antes, começava a animação
com os ensaios. Muitos assistentes e poucos
componentes, carros alegóricos, rainhas baianas e
tambores formavam suas salas.
Criciúma nunca teve escolas de samba de luxo,
ninguém contribuía mensalmente e todas as fantasias
eram oferecidas aos componentes pela prefeitura.
Atualmente existe a associação Carnavalesca LECC
(Liga das Escolas de Samba de Criciúma), que trata
149
Caderno Pedagógico - Criciúma

dos blocos e escolas de samba. São muitos com poucos


componentes, quando deveria existir apenas uma com,
mais ou menos, mil componentes.
Com a rivalidade entre Santo Antônio e a Belunense
de Siderópolis, o Carnaval melhorou bastante, a partir
de 1997. Destaque para o bloco Iakekerê, da etnia negra
que, durante cinco anos, abrilhantou o Carnaval
criciumense.
Muitos problemas fizeram o Carnaval do município
decair: pouca verba dividida entre muitos, ausência de
local para ensaios (reclamações de moradores); não
existência dos chamados barracões para a guarda dos
carros e para aproveitamento de materiais, para desfile
e acomodações, apesar do esforço da Liga.
Agora os vários clubes, como o Mampituba, City
Clube, União Mineira, União Operária e muitos nos
arredores, dançam as quatro noites. Entretanto,
atualmente, está menos animado. O povo dispersa para
as praias, Laguna e Florianópolis.

Movimentos de resistência e
o mercado de trabalho
Após a realização das entrevistas e das observações
realizadas durante a pesquisa, alguns dados foram
constatados sobre a população do bairro Santo Antônio.
Alguns temas relevantes foram levantados e aqui serão
expostos na tentativa de uma melhor compreensão do
contexto atual em que esta população está inserida.
Os primeiros moradores negros do bairro foram o
Senhor Manuel Esteves, o Senhor Otacílio, João Alípio
Braz e a família Enéias. Eles se alojaram no bairro,
atraídos por uma oportunidade de emprego nas minas
150
Caderno Pedagógico - Criciúma

de carvão que foram as primeiras minas descobertas


no município. A chegada da população negra no bairro
Santo Antônio se deu por volta de 1918, na época do
início da exploração do carvão em Criciúma.
A primeira grande companhia carbonífera foi a
Companhia Lage e Irmão, que foi substituída pela
Companhia Carbonífera de Araranguá: a conhecida
CBCA. Mais tarde, surgiram outras, como a Companhia
Catarinense e a Companhia Próspera, que também
serviram como forma de produzir emprego para a
população negra. O relato a seguir demonstra como
eram os serviços realizados nas minas de carvão.
Os negros, antigamente, a parte que eles mais trabalharam
era na mineração, porque antigamente a mina não era
embocação7, a mina era mais na parte do dia8, que era
trabalhado com animal, carroça. Então tinha picareta e a
pá. Então, eles trabalhavam mais nessa área. E depois com
os anos aí, começou a vir a mineração que é a embocação
de hoje, que até hoje nós temos. Aí já facilitou mais, mas
naquela época eles trabalhavam com animais, era carroça,
caçamba, eles iam lá e pegavam o carvão e aí, depois,
levavam pro chefe de porto e viravam. Hoje é tudo
hidráulico, mas naquele tempo, era à manivela. Era braçal.
Então, os negros faziam este papel aí dentro da mineração.
(Entrevistado, de 49 anos)
Além das minas, existiam outros meios que serviam
como uma forma de manter os negros e as negras
empregados, para que pudessem sustentar suas famílias
que, em geral, passavam por muitas dificuldades. Alguns
informantes relatam outros tipos de trabalho exercido
por essa população:
Meu pai se aposentou pela especial e continuou a trabalhar
em casa fazendo covre. Covre é coisa de pescador. Aí ele
encapava garrafão, ele fazia giqui, ele fazia tudo, tudo isso
151
Caderno Pedagógico - Criciúma

aí. Este era um outro tipo de trabalho na época.


(Entrevistada, de 48 anos)

Eu trabalhei no Coque9. Na escolha do carvão. Desde


novinha, eu trabalhei na escolha do carvão. Depois eu casei
e parei. (Entrevistada, de 75 anos)

[...] os caminhos que abriram aqui sobre as roças, os


matagais, que eles faziam estradinhas para o pessoal passar,
pra fazer poço. Era tudo com os negros. Pra fazer poço, os
italianos vinham conversar com os negros. Mas não eram
bem valorizados. [...] Eles trabalhavam em roças, de fazer
roças e em plantação. Criavam galinhas, pegavam as roças
pra desmatar pra vender a lenha. (Entrevistada, de 50 anos)

Embora o bairro fosse marcado pela valorização do


modelo cultural europeu, existiram alguns movimentos
de resistência negra nesse local, que serviram como uma
forma de preservar sua cultura. Como exemplo de
resistência, surgiu, mais tarde, no bairro Santo Antônio,
um coral de negros e negras, e que repercutiu na criação
do conhecido “Movimento Negro”. O movimento teve,
como principal foco, a inclusão do/a negro/a no
mercado de trabalho, conforme o relato de um dos
entrevistados:
O Movimento Negro no bairro Santo Antônio seria mais
um movimento para poder estar colocando nossos negros
no mercado de trabalho. Até porque, o negro, na revolução
de 64 pra cá, ficou meio esquecido aqui no bairro Santo
Antônio. Assim, o movimento atenderia a dificuldades de
emprego. Então nossas reuniões, aqui no bairro, a gente
sempre colocava para eles que quem estivesse empregado e
a hora que tivesse uma vaga dentro da empresa, que dissesse
lá pro encarregado que queria colocar um amiguinho muito
bom, e na hora que surgisse essa vaga, que levasse o nosso
negro. (Entrevistado, de 58 anos)
152
Caderno Pedagógico - Criciúma

Para Fanonn (1961, p.79), “A exploração capitalista,


os trustes e os monopólios são os inimigos dos países
subdesenvolvidos, tornando de fato impossível essa
caricatura de sociedade em que alguns detêm todos os
poderes econômicos e políticos com prejuízo da
totalidade nacional.” Este pensamento vem de encontro
ao relato, pois aborda a dificuldade de homens e
mulheres negras à sobrevivência no sistema capitalista,
em que o mercado de trabalho não é favorecido a essa
população. Percebemos então, uma cumplicidade na
população afro do bairro Santo Antônio: uma espécie
de corrente para o acesso ao mercado de trabalho
criciumense, caracterizado por uma elite branca na
administração das empresas. Constata-se, portanto, a
luta dos negros e negras resistindo e enfrentando um
racismo institucionalizado em todo município. Temos,
então, um movimento de resistência incógnito no bairro
Santo Antônio.
A primeira missa afro do município de Criciúma
também foi realizada no bairro Santo Antônio. Esta
aconteceu em 1984 e demonstra também um
movimento de resistência de negros e negras. No início,
não foi muito aceita pela própria direção da Igreja, por
considerar que iria contra os costumes religiosos da
época. Mesmo apresentando desaprovação, a direção
abriu espaço para que a missa fosse realizada. Então a
missa tradicional do bairro Santo Antônio realizava-se
às 19 horas e a afro, logo após o encerramento desta.
Como não havia uma aceitação do padre da Igreja,
esta última era realizada por um padre negro de outra
paróquia. Era muito bem organizada: os cantos eram
em ritmo de samba e, para a alegria dos organizadores,
a igreja enchia de fiéis negros/as. Um dos entrevistados
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Caderno Pedagógico - Criciúma

relata com emoção a primeira missa:


A casa encheu de negro. Foi a coisa mais linda do mundo.
Trouxemos a Mãe Antoninha, a esposa do seu Osvaldo, a
falecida Júlia e todo mundo aqui foi. E alguns italianos
vieram pra expiar e vieram ver se estava dando certo o
negócio. E foi um troço tão lindo e tão bonito! Na hora da
oferenda, nós mostramos o que é que o negro fazia no
passado. Eles plantavam café, eles plantavam cana de
açúcar, eles comiam o seu pãozinho de milho [...] isso tudo
foi mostrado na oferenda. Então, cada um entrava lá na
porta da igreja com uma enxada, com uma cana nas costas,
a própria negra com uma trouxa de roupa na cabeça, porque
era tradição lavar roupas para os senhores e tal. Fizemos
toda aquela apresentação. Dali pra frente, foi onde eles
começaram aceitar orquestras dentro da igreja. (Entrevistado,
de 58 anos)
Por meio desse relato, identificamos a diferença de
culturas e os conflitos que ela gera quando sai do mundo
eurocêntrico. Lembrando ainda Fanonn:
O problema não consiste ainda em assegurar uma cultura
nacional, em apossar-se do movimento das nações, mas
em assumir uma cultura árabe ou africana diante da
condenação global manifestada pelo dominador. No plano
africano, como no plano árabe vê-se que a reivindicação
do homem de cultura do país colonizado é sincrético,
continental, mundial no caso dos árabes. (FANONN, 1961,
p. 178)
Quando o autor fala a respeito do sincretismo,
pensamos no fato de que a missa afro sofreu um processo
de adequação aos ritos religiosos eurocêntricos: o que
caracteriza mais uma luta de resistência de moradores
e moradoras afros, em manter alguma tradição cultural
de sua ancestralidade africana, ainda que suprimida
pelo domínio de descendentes europeus, os quais
estavam na direção da Igreja católica do bairro. Não
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Caderno Pedagógico - Criciúma

podemos deixar de registrar a presença de um centro


de Umbanda: fruto do sincretismo brasileiro que
falaremos mais adiante.
Outro movimento de orgulho para os moradores
do bairro foi a criação da Escola de Samba Unidos do
Bairro Santo Antônio. Este nome foi dado em 1996,
quando esta foi reativada após dez anos. A escola surgiu
de um bloco de sujos em 1961, quando 17 integrantes
resolveram brincar o Carnaval de Criciúma. O
conhecido Bloco dos Sujos desfilou por três anos. Em
seguida, resolveu criar uma escola que recebeu o nome
de Filhos do Xavante. O primeiro desfile ocorreu em
1965. Mesmo passando de bloco para escola, a mesma
foi desqualificada por muitos moradores do bairro e da
cidade, pela sua simplicidade. Mas os membros da
escola, em sua grande maioria, negros e negras, sempre
a apoiaram e acreditavam que, um dia, ela seria motivo
de orgulho para a cidade. Os relatos a seguir
demonstram o amor de seus integrantes pela escola:
Eu que participei desde o início. Eu era porta bandeira da
escola. Nós saíamos com uma bandeira, com a fantasia
que pra mim era muito bonita, e de tamanco no pé. E o
restante tudo de índio. Índio mesmo. Não tinha esse negócio
de fantasia chique. A fantasia mais chique que tinha era a
minha de porta-bandeira e a de mestre-sala e os passistas e
a bateria. Agora, o resto da ala, a ala inteira era tudo de
índio. (Entrevistada, de 50 anos)

O Xavante era bom. Era um blocozinho. Naquele tempo,


era o Tapanote né? Tinha o Catolé também, que hoje é
falecido. São todos falecidos hoje. Olha, era um blocozinho,
mas a gente se divertia muito. Nós saía de índio, nós saía de
xita, nós saía de qualquer coisa. Aí chegava lá no Centro e
ninguém ligava. A turma aqui do Santo Antônio não dava
valor. Não dava valor pro Xavante. O que eles diziam era
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Caderno Pedagógico - Criciúma

assim: “Lá vem o fiasco do Santo Antônio!” Eles diziam. E


toda a vida, nós ali, oh!, prontinha. A gente saía de qualquer
jeito. Ainda teve uma vez que nós saímos, as escolas Rosa
de Maio, a Vila Isabel, elas pegou e desfilou tudo na avenida
e, quando chegou a nossa vez, tinha os Embaixadores do
Ritmo, que também era da Próspera, e quando chegava o
Santo Antônio, até a turma do Santo Antônio, que era pra
dar uma força pra nós, vinham tudo embora. Uma vez,
chegaram a apagar as luz! E nós saímos no escuro. Mas
nós saía. E o seu Vergílio, que hoje é falecido, ele dizia
assim, que a nossa escola, o nosso bloquinho, que ele nunca
tirou um título, mas ele disse assim: “eu não vou ver, mas
um dia vai ter muita gente aqui do Santo Antônio, que hoje
estão correndo, vão se orgulhar dessa escola.” Mas o
coitadinho não teve tempo de ver a escola crescer. Mas os
filhos e nós sim. (Entrevistada, de 48 anos)
A escassez de informações da sua própria história
não impediu que a população negra do bairro se
identificasse por meio de uma das manifestações
culturais mais ancestralizadas que o Brasil assimilou
através dos africanos: o samba. Este, por sua vez,
contaminou negros e não-negros, pela ginga, de sua
dança originalmente trazida pelos cativos da região do
Congo, conhecida como a dança da “umbigada”. Os
batuques que a acompanhavam deram origem ao
samba como nós o conhecemos e, conseqüentemente,
às escolas de samba do Rio de Janeiro. Cabe aqui
ressaltar que, em algumas regiões do Brasil, ocorre a
festa da “congada”, em homenagem ao Chico Rei:
africano cativo do Congo.
Mesmo sendo a escola de samba desvalorizada por
muitos, os negros resistiram a fim de preservar algo
criado, em sua grande maioria, pelos negros/as do
bairro. No relato de alguns informantes, percebe-se a
falta de respeito e a discriminação dos “italianos” em
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Caderno Pedagógico - Criciúma

relação à escola de samba, pois tais descendentes


europeus julgavam-se desrespeitados pela manifestação
cultural e identitária oriunda dos afrodescendentes:
aspecto este que pouco se modificou ao longo dos anos,
uma vez que aqueles ocuparam grandes extensões de
terras no bairro Santo Antônio, as práticas
discriminatórias e as relações de poder manifestavam-
se durante os ensaios.
Os italianos não aceitavam a escola de samba. Às vezes,
eles estavam ensaiando e lá vinha uma baldada d’água lá.
Saía lá de trás uma baldada e espalhava negro pra tudo
quanto era lado. É! Eles faziam este tipo de coisa!
(Entrevistado, de 58 anos)
Em 1996, após ficar sem desfilar por dez anos, o
Presidente da escola resolveu ativá-la, realizando uma
assembléia para propor a troca do nome da escola. A
idéia foi aceita e a escola passou a se chamar Escola
de Samba Unidos do Santo Antônio, lembrando que
sua diretoria era composta agora por pessoas não-
negras, na sua maioria. Tal fato nos leva à reflexão de
que, quando a escola era comandada por negros e
negras, estes eram vítimas diretas da discriminação
racial, pois não tinham (como ainda não têm)
visibilidade significativa para administrar sua própria
resistência. No entanto, a aceitação de uma nova
formação na diretoria mascara uma segregação racial
que sempre existiu no interior do bairro e em suas
diversas manifestações.
Outra luta de resistência no bairro foi a criação de
um grupo de pagode. Após uma apresentação na
primeira Quermesse de Tradição e Cultura de Criciúma,
o grupo ficou tão conhecido na região que resolveu
batizá-lo com o nome “Santo Antônio Samba Show”.
157
Caderno Pedagógico - Criciúma

Um dos participantes do grupo relata como foi a


repercussão:
Foi na primeira Quermesse de Criciúma. Em função da nossa
missa aqui no bairro Santo Antônio, que nós fazíamos
apresentação, fora a gente, reuniu uma turminha que estava
ali, fazia o seu barulho e tal. Então, fizeram a primeira
Quermesse de Criciúma. E nós criamos um grupo de pagode
no meu quintal. O Márcio dali é que ele brilhou como cantor
e formou um grande grupo de pagode, o segundo maiorrdo
Rio Grande do Sul. Era o grupo do Márcio. Criamos este
grupo de pagode. A minha esposa enfeitou os negrinhos e
foram fazer a apresentação na cidade. Olha, quando se
apresentaram foi um sucesso. Tocaram até pra um candidato
a governo. Quando ele esteve aqui, fizemos um contrato
bom e esse grupo ficou bem famoso... é o “Santo Antônio
Samba Show”. E depois, dissolveram e criaram outros
grupos. Mas o primeiro surgiu daqui do bairro Santo Antônio.
(Entrevistado, de 58 anos)
Apesar da resistência, a discriminação racial e a
diferença entre negros, negras e brancos foi fortemente
marcada desde a chegada destes no bairro. Esta deixou
marcas profundas que, ainda hoje, repercutem na
população afro deste local.
Os clubes existentes eram divididos entre negros e
brancos, ou seja, os negros não poderiam freqüentar os
clubes dos brancos como mostram os relatos a seguir.
Ah! Eu vivi isso em 1975, 76. Nós tínhamos um clube aqui
no Santo Antônio, o clube do seu Antenor, mas eu estava
fora de Criciúma. Eu estava em Curitiba e fiquei lá uns dois
anos. E lá a gente dançava todo mundo junto. Tinha
festinhas juntos, negro namorava com branca, branco
namorava com negra, aquela coisa toda. E aconteceu que
eu vim de lá e fomos numa festinha lá no bairro São
Cristóvão. Aquele tempo, usava toca-disco de pilha, aí tinha
que levar as pilhas e tal. Então, estamos vindo ali pelas 2
158
Caderno Pedagógico - Criciúma

horas da manhã. Aí, chegou ali no Santo Antônio, eu entrei.


Cheguei, entrei porta a dentro, fui lá e pedi uma cerveja.
Comecei a tomar a cervejinha. Naquele tempo, dançava e,
aí, se dava o bis. E aí, parava e os namorados ficavam
conversando e depois aí continuava a dança e... Serviram
a cerveja, estou tomando e tal. De repente, essa banda não
tocou mais. Eu me lembro muito bem: Alcidino e seu
Conjunto. Aí veio uns senhores daqui do bairro e disseram:
“Você é filho do seu Ataíde”. E eu disse: “Sou. O que é que
houve?” Não, é porque o pessoal não quer mais dançar,
porque você está aqui dentro do clube. Aí eu fui e disse:
“Não, tá tudo bem”. Tomei a minha cervejinha e saí. Aí eu
disse: “Não, é que eu fiquei 2 anos fora e lá de onde eu
venho todo mundo dança com todo mundo. Mas não tem
problema”. Tomei a cervejinha e saí. Quando eu botei o pé
na porta a banda tocou. É, aconteceu aqui no bairro!
(Entrevistado 6, de 58 anos)

Existia divisão sim. Era assim, tinha o salão dos negros e


tinha o salão dos brancos. É, e se a gente fosse e só chegasse
assim e expiasse no salão dos brancos, os brancos fechavam
as portas. Era verdade! Era bem dividido mesmo. A gente,
o negro, parecia que tinha uma doença contagiosa. Era
mesmo assim! No clube dos negros, os brancos nem iam.
Não iam, porque, na minha época, os brancos não iam.
Quando eu era mais nova né? Não iam não. A gente que,
às vezes, tinha curiosidade de ver como é que era o baile
dos brancos, e eles fechavam as portas. Era verdade. O
Seu Pedro Anacleto era um. Ele tinha um salão ainda aqui
onde hoje é a Turim. (Entrevistada, de 48 anos)

Nós trabalhávamos muito, muito, muito e a nossa diversão


era o bingo à tarde, era o suarê, os brancos que eram unidos
com os negros eram uns três, quatro. Mas o clube dos brancos
começava às duas da tarde, mas o negro não podia entrar
nele. O negro era só olhando da cerca. Até um clube que
tinha de branco era até, bem, um clube chique na época.
Aí os negros tinham que ficar de fora olhando. Não podiam
entrar. (Entrevistada, de 50 anos)
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Caderno Pedagógico - Criciúma

A religião de matriz africana também é evidenciada


na história do bairro. Por volta de 1925, instalou-se no
bairro Santo Antônio o primeiro terreiro de Umbanda,
cuja fundadora foi a Mãe de Santo Antoninha. Embora
tenha passado por forte preconceito de alguns
moradores, o terreiro resistiu até 2004, com o
falecimento da Mãe de Santo.
Quando os negros chegaram ao bairro, os italianos
aqui já estavam e, conseqüentemente, a religião
praticada era o catolicismo. Somente mais tarde, em
1925, é que foi aberto o primeiro terreiro de Umbanda.
Segundo relato da primeira Mãe de Santo do Santo
Antônio (e provavelmente a primeira de Criciúma), para
introduzir sua religião no bairro, a mesma passou por
muitas dificuldades:
Quando eu vim de Porto Alegre “eles”, já tinham me avisado.
Aí eu entrei na justiça, porque o Padre [...] me chamou de
ladrona. Aí fomos pra justiça, mas eu não vou processar...
Deixa assim. Deixa assim! O [...] era o delegado. Aí eles
vieram com as pedras, mas a proteção foi tanta que eles
largaram as pedras... Jogavam pedras. Eles subiam esse
morrinho aqui e largavam pedras, lá em cima da casa, né?
E foram uns quantos deles lá em casa. Faziam por causa
da igreja... Eu ia na igreja e tudo, mas, quando eu ia na
igreja, eu ficava cá atrás, porque, se eles me vissem... Às
vezes, eu nem estava na igreja e eles já estavam falando.
Era o Padre [...] e outro. Mas eu nem ligava. Já sabia que
eles iam me perseguir, que eu ia passar trabalho, já sabia.
Uma vez, eles vieram cheio de pedra, pau. Eu passei muito
trabalho. (Entrevistada, de 94 anos)
Sabe-se que as religiões afro-brasileiras fazem parte
de uma cultura de raiz africana. Porém, existe no Brasil
uma desqualificação destas religiões, assim como da
maioria das representações culturais da base africana.
160
Caderno Pedagógico - Criciúma

Esta desqualificação da cultura pode causar no indivíduo


vergonha da sua ancestralidade e, conseqüentemente,
a negação da identidade étnica positiva da população
negra. Por isso, muitos negros e negras possuem em sua
constituição de sujeito uma baixa auto-estima, por conta
de vários mitos e estereótipos criados pelas teorias
raciais, acerca de sua história e contribuição na
construção do Brasil. Em se tratando de religião, esse
aspecto não foi diferente.

Considerações finais
A omissão das verdadeiras informações acerca da
contribuição da população negra no currículo escolar
traz sérias seqüelas para a formação da identidade
negra, que não consegue perceber a si e seus
descendentes de forma positiva, fazendo com que muitas
vezes seus representantes deixem de reivindicar o direito
à sua própria história. Entretanto, podemos mudar essa
situação. E foi percebendo essa questão que alunos,
professores e muitas outras pessoas envolvidas e
cansadas de assistir a essa história, resolveram sair da
platéia e mudar o cenário de desigualdade, recontando
a história do bairro Santo Antônio e envolvendo outros
atores que, por muito tempo, permaneceram invisíveis
para o bairro e município.
Foi muito gratificante essa produção que, certamente,
servirá para que se consolide de forma sistemática a
Lei 10.639 e modifique a postura de cada escola,
juntamente com os profissionais da educação;
promovendo, de fato, a inclusão positiva de negros e
negras no conteúdo dos veículos que contribuirão para
161
Caderno Pedagógico - Criciúma

mais oportunidades de criar espaços e movimentos


sociais coletivos, disseminando valores mais igualitários.

Notas
1
Pedagoga, professora da Universidade do Extremo Sul
Catarinense - UNESC.
2
Graduada pela UNESC, professora de arte e educação.
3
Graduada em Letras pela UNESC, mestranda em Teoria
Literária.
4
Graduada em Pedagogia pela UNESC, especialista em
Tecnologia Aplicada à Educação.
5
Graduada em Psicologia pela UNESC, com formação em
Análise Transacional.
6
Graduada em Arte pela UNESC, especialista em Arte e
Metodologias Alternativas.
7
Extração de carvão no subsolo.
8
Extração de carvão na superfície.
9
Serviço que geralmente era realizado por mulheres. Lavagem
de carvão.

Referências bibliográficas e fontes


Fontes orais:
Ivani Costa Marcos
Aladia Cipriano do Nascimento
Darci Vitto Maurício
Acervo Arquivo Morto Municipal de Criciúma
162
Caderno Pedagógico - Criciúma

Referências:
DIRETRIZES Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História
e Cultura Afro-brasileira. Brasília, DF: Ministério da
Educação, 2006. 35 p.
FANONN, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas.
2ª ed. Porto: Paisagem, 1975.
__________. Os Condenados da Terra. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1961.
NASCIMENTO, Munique. Ser negão deve ser legal:
identidade e auto-estima dos adolescentes negros do
bairro Santo Antônio. Criciúma, 2003. Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação em Psicologia),
Universidade do Extremo Sul Catarinense.
ROMÃO, Jeruse; LIMA, Ivan Costa (Orgs.). Negros e
Currículo. Florianópolis: Núcleo de Estudos Negros,
1997.
163
Caderno Pedagógico - Criciúma

Livros publicados pela

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Tensões da Romanização no caso da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos -
Desterro/Florianópolis (1880-1910)
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“Lá vem o dia a dia, lá vem a Virge Maria.


Agora e na hora de nossa morte”:
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos
Homens Pretos, em Desterro (1860-1880)
Maristela dos Santos Simão

Entre a Praça e o Porto:


Grandes fortunas nos inventários Post Mortem
em Desterro (1860-1880)
Angelo Renato Biléssimo
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A diversidade cultural presente nos


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Santa Catarina:
Um estudo sobre a implementação da
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