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DUNKER, C. I. L. - A Interpretação do Chiste e a Retórica da Interpretação Psicanalítica.

Interações (Universidade São Marcos). , v.V, 1999.

A Forma Retórica dos Pensamentos Inconscientes Investigada a partir dos Chistes

Christian Ingo Lenz Dunker


Universidade São Marcos, 1999.

Resumo

O presente artigo procura examinar a noção de “chistes de pensamento” presente em


Freud. O objetivo é propor um modelo de interpretação deste tipo de formação do
inconsciente baseado na retórica dos argumentos e na retórica das figuras. Entende-se que
a explicitação de uma teoria linguística do sujeito é imprescindível para a tematização
deste caso em particular. Propõe-se a utilização de noções como as de “oráculo” e
“questão” extraídas da tradição retórica para melhor apreender os problemas da
interpretação psicanalítica do chiste e por coextensão das formações do inconsciente em
geral.

Palavras Chave: interpretação, chistes, retórica

1. O Lugar dos Chistes de Pensamento

Os chistes de pensamento talvez sejam o grupo menos estudado pelos teóricos das
relações entre psicanálise e retórica. Apesar de sua correlação evidente com materiais
clínicos e da ênfase que Freud dá a este grupo em seu estudo específico (Freud, 1905 a) as
contribuições ainda são esparsas quanto a esta aproximação. Talvez isto se possa atribuir
ao fato de que esta vertente dos chistes parece estar mais próxima de análise próprias à
retórica dos argumentos, e portanto da filosofia da linguagem e da lógica, do que da
perspectiva linguística ou semiológica. Outro motivo para tal afastamento refere-se ao
fato de que no centro dos chistes de pensamento encontra-se a idéia de contradição e

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portanto as noções de conceito, argumento e razão; atributos, como se sabe, refratários ao
inconsciente e normalmente associados ao pré-consciente e aos processos secundários.
No entanto, é face aos chistes de pensamento que Freud introduz e utiliza
amplamente a importante noção de deslocamento (Verschiebung), como atesta a seguinte
passagem:
“Consistirá a técnica do chiste precisamente no deslocamento da réplica em
relação ao sentido da reprovação ? Se tanto, uma modificação similar do ponto de vista,
uma mutação da ênfase psíquica, será talvez rastreável (…)” (p.67)
A mesma ambiguidade que encontramos no uso freudiano da idéia de
condensação replica-se no caso do deslocamento, como apontou Todorov (1996, p.320).
Isto porque o conceito refere-se alternadamente a:
a) Qualquer substituição de sentido, como em:
“Deve-se contar entre os deslocamentos não apenas o desvio no curso das idéias,
mas também todas as espécies de representação indireta, especialmente a substituição de
um elemento representativo (…) (p.291). O problema aqui é a evidente generalidade da
categoria.
b) Mudança de acento psíquico; quando uma expressão supõe a ênfase em um de
seus termos e a resposta toma outro termo como essencial. É o caso dos chistes de
prontidão. Esta acepção representa de fato um movimento específico, não tematizado até
então, e que exige novas categorias de análise.
c) Incoerência semântica entre termos contíguos. O problema nesta acepção é que
também na metáfora e nos chistes de palavra ocorre incoerência semântica, o que, aliás,
promove o processo interpretativo. O mesmo pode se aplicar aos casos morfológicos e
sintáticos. Ocorre que a incoerência nos chistes de palavra não é semântica mas
conceitual ou referente à relação entre o falante e seus ditos.
Portanto a acepção melhor aproveitável é também a que mais dificuldades de
compreensão apresenta. Pela hipótese da mudança de acento psíquico pode se entender a
dissonância semântica e a substituição de sentido ao passo que a recíproca não é válida.
Mas o que quer dizer “acento psíquico” ? A expressão injeta a idéia de força, intensidade
ou ainda presença do psíquico na linguagem. Em outras palavras, a noção exige, à
primeira vista, uma teoria do sujeito, para ser assimilada.

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2. Interpretação e Argumentação

O chiste de pensamento é compreensível no contexto da argumentação


intersubjetiva e não apenas no contexto da palavra, frase ou discurso. Um argumento,
retoricamente, comporta dois aspectos principais: o desejo dos envolvidos e a forma de
conduzi-lo ou enunciá-lo (sua estratégia). Historicamente três contextos mostram-se
particularmente apropriados ao jogo retórico: o jurídico (que inclui o político e o
comercial), o epidítico (o elogio estético por exemplo) e o ético. Contextos onde não se
trata apenas de provar a verdade das teses mas realizar a implicação do sujeito a estas. É
sugestivo, face a aproximação que propomos, que a maioria dos chistes de pensamento
descritos por Freud se efetivem em situações enunciativas do tipo: vendedor-comprador,
casamenteiro-noivo, rabino-fiéis; isto é, situações que introduzem por si a lógica da
justificação pela prova persuasiva; mais do que verdadeira apenas verossímil. A
importância das condições enunciativas explicaria a presença de certos adejetivos
insistentemente aderidos aos chistes em questão: capacidade de produzir surpresa,
desconcerto, iluminação, engano por um segundo. Termos que aludem, quer pela
recorrência à temporalidade quer pela detenção do sujeito na linguagem em face do
inconsciente.
A mudança de acento psíquico pode ser entendida como mudança do significante
que representa o sujeito para outro significante; retomando a definição de Lacan.
Distingue-se assim este sujeito do sujeito tradicional da intencionalidade, que segundo
uma certa tradição idealista de entendimento da linguagem, estaria por trás da fala,
expressando conteúdos mentais em acordo com sua volição. O sujeito, na acepção
lacaniana, é melhor definido como um efeito das articulações significantes. Ele ocupa
justamente este lugar representado nos chiste de pensamento pelo paradoxo ou
contradição. Outra maneira de dizê-lo seria associar este sujeito ao lugar da questão, o
que aliás é feito por Lacan em diversos momentos (1955, 1966). Questão é um termo de
largo emprego na história da retórica. Referia-se na retórica latina ao ponto inicial do
processo retórico, a inventio ou problema que se deve levar à solução, ou melhor, ao
consenso. Na idade média a questio representava a parte introdutória das disputae ou

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obligationes , disputas universitárias que tinham por objetivo desenvolver a
argumentação, isto é chamar à fala, para o encaminhamento do problema. É interessante
que a questão, neste sentido, não é propriamente uma pergunta, se bem que possa ser
traduzida em várias, mas uma forma de assunto indecidido, aberto ou paradoxal, que
permite assim retomada sob diversas perspectivas.
Em virtude desta assunção tácita da indecidibilidade de uma questão a estratégia
argumentativa mais apropriada está calcada no entimema, isto é, uma forma de silogismo
que não explicita todas as premissas envolvidas, deixando-as supostas (em absentia) com
o objetivo de reter a atenção do ouvinte e obedecer ao princípio retórico (e do chiste) da
brevidade. Hintikka (1994, p.74) chama estas premissas de oráculo da argumentação.
Ora, o oráculo é o que torna possível esta espécie de inversão com que Freud caracteriza
o chiste. Isto é, assumindo-se que a estrutura linear da argumentação se mostra numa
sequencia do tipo: -Questão-Resposta-Questão …n , o oráculo é o lugar de onde se
extraem as respostas. Assim, como nos oráculos da antiguidade, sob certas circunstâncias,
o lugar previsto para a resposta pode ser ocupado por uma outra questão. Este movimento
teria por efeito inverter os sinais da estrutura argumentativa, transformando a questão
inicial em resposta, fazendo da pergunta uma afirmação. O oráculo corresponde, em
outras palavras, ao lugar de onde se extraem os significantes que representam o sujeito,
uma definição que se aproxima do que Lacan chama de Outro; a saber:
a) o tesouro dos significantes;
b) o lugar de onde o sujeito recebe sua própria mensagem de forma invertida;
c) o discurso do inconsciente;
d) o lugar onde se articulam lei e desejo por intermédio do significante fálico.
Se nos atemos a outros momentos do ensino de Lacan podemos notar que a
sequencia: Questão-Resposta-Questão … n, converge com a chamada dialética entre
saber e verdade. A continuidade desta dialética é uma das propostas mais importantes do
tratamento psicanalítico e sua interrupção associa-se à produções sintomáticas, de
estrututra metafórica portanto.

3. Ironia, Antítese e Oxímoro: formas retóricas de figuração do desejo

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Passemos então ao exame dos casos prescritos por Freud de chistes de
pensamento, a saber: falhas de raciocínio (deslocamento e contra-senso), unificação e
representação indireta (pelo contrário, por semelhança e por comparação). O chiste por
falha de raciocínio é ilustrado da seguinte forma:
Um indivíduo empobrecido toma emprestado uma certa quantia de um conhecido.
Neste mesmo dia o benfeitor encontra-o num restaurante comendo maionese de salmão.
O benfeitor o repreende:
“Como ? Você me toma dinheiro emprestado e vem comer maionese de salmão ?
É nisso que você usou o meu dinheiro ? Não lhe compreendo - retrucou o objeto deste
ataque; se não tenho dinheiro, não posso comer maionese de salmão; se o tenho não devo
comer maionese de salmão. Bem, quando então vou comer maionese de salmão ?” (p.66-
67)
Evidencia-se claramente aqui a estrutura: Questão-Resposta do diálogo. O lugar
prescrito para a resposta é ocupado por uma nova questão. Para tanto retira-se do oráculo
a seguinte pergunta: “Quando então vou comer maionese de salmão?” O efeito disso é
transformar a pergunta inicial em uma afirmação: “você não deve comer maionese de
salmão sob tais circunstâncias econômicas”. A contra pergunta destrói, por explicitação,
o caráter retórico da primeira pergunta, posto que de fato ela não é uma pergunta, no
plano da enunciação, mas uma afirmação ou um imperativo. Ora, a figura de pensamento
que melhor representa o descentramento entre sujeito da enunciação e sujeito do
enunciado é precisamente a ironia. Por que então o chiste não a revela diretamente ? Se
assim o assumíssemos ele não seria motivado por um “raciocínio falho” , como o quer
Freud (p.73), mas por uma eficaz estratégia retórica para desviar a questão do ponto que
se pretende evitar, em suma, falso porém eficiente. Falta à concepção freudiana a noção
de que em boa parte dos processos sociais não se está procurando a verdade a partir de
raciocínios rigorosos mas sim efetuando-se uma espécie de jogo cuja finalidade pode ser
produzir prazer, como nas próprias circunstância do chiste, ou ainda fazer-se amável ou
desejante. O chiste não soa como ironia 1 pois não revela insinseridade no empobrecido
comedor de salmão, isto é, deixa vago o lugar em que um sujeito sabe que não deveria

1O paradoxo de Epimênides ilustra a forma retórica deste tipo de chiste. Nele se afirma “Eu estou
mentindo”. Como posso estar mentindo se estou dizendo a verdade, a saber, que estou mentindo ?

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agir e mesmo assim o faz. É este lugar, que Freud chama de “terceira pessoa” (driten
Person), que é ocupado pelo ouvinte do chiste, produzindo correlativamente a esta
identificação uma satisfação cujo índice é o riso. O lugar desta terceira pessoa está
claramente exemplificado no seguinte chiste:
Dois comerciantes concorrentes tomam o mesmo trem. Cada um sabe que o outro
está em busca do lugar onde se encontram os melhores preços de tecidos, nas cidades de
Lemberg ou Cracóvia. A situação pressupõe portanto que não se revele o destino de cada
um. É então que um deles pergunta:
“ - Para onde vai ?
- Para Lemberg.

- Porque me diz que vai para Lemberg para que eu pense que você vai a
Cracóvia quando de fato você vai a Lemberg ?
O chiste extrai sua força da inclusão de uma premissa, presente no oráculo, a
saber, que nesta situação não deve-se dizer a verdade. Ocorre que esta premissa pode ser
chamada de uma metapremissa localizada na terceira pessoa, pois não versa sobre os
ditos possíveis mas sobre a própria situação de enunciação ou seja o dizer. Quando isso
acontece o efeito é a imediata transformação do contexto de enunciação, pois ele não é
mais sustentado por esta metapremissa, e outra deve ocupar seu lugar. Isso esclarece a
diferença entre ironia, ou sua variante cínica presente neste caso, e o chiste. Suponhamos
que estivéssemos no lugar de um dos comerciantes, certamente não teríamos dificuldades
em interpretar a situação como uma profunda ironia ou como um ato de cinismo. O chiste
depende de estarmos indiretamente fora e dentro da situação, isto é, de uma reduplicação
da enunciação entre os personagens e entre quem conta e quem escuta o chiste. Todorov
(1996) descreve este processo da seguinte maneira:
“Em primeiro lugar, percebe o enunciado do primeiro interlocutor; na ausência de
qualquer contexto sintagmático, interpreta-o da mesma maneira que este; percebendo a
réplica do segundo, constata que ela não corresponde ao primeiro enunciado; para
explicar essa incoerência, ele substitui a sua primeira interpretação do enunciado inicial
por uma nova interpretação.” (p.324)
O que Todorov salienta ao isolar dois tempos na interpretação do chiste pode ser
assimilado ao movimento conhecido como ressignificação (Nachträglichkeit, ou aprés

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coup); movimento utilizado por Freud em diversos contextos para compreender certos
processos psíquicos 2 . Ora, o que a ressignificação realiza é uma escansão temporal do
discurso, faz com que um significante posterior altere o valor do significante anterior, na
sucessão discursiva. Mesmo que o significante se apresente uma única vez (como no
caso da antanáclase nos chistes de palavra) ele é submetido a duas leituras, o que faz
concluir que ele é, diante destas duas leituras, igual e diferente de si mesmo. Ora, se
entendemos que o contexto sintagmático é uma forma de referir-se ao que Lacan chama
de S2 (saber) e que S1 é o significante que permite a reinterpretação, chamado justamente
por isso, de significante assemântico, chegamos na idéia de que o que caracteriza o chiste
é justamente a alteração de uma certa temporalidade sucessiva suposta ao discurso 3 .
Vejamos como isso permite esclarecer certos aspectos da ironia.
Tradicionalmente a ironia é definida como a figura de linguagem onde se diz algo
visando afirmar justamente o contrário. O ironista mente, mas deseja que sua mentira seja
descoberta. Neste sentido toda ironia pressupõe a mentira mas nem toda mentira
pressupõe ironia. Estabelece-se assim uma linha divisória entre falar seriamente (de modo
sincero) e falar mentirosamente (de modo não sincero). A ironia corresponde a ruptura
dessa linha divisória pois implica que através de um enunciado não sincero realize-se
uma enunciação sincera. Também nos chistes de palavra pode-se levantar uma oposição
semelhante, a saber, entre sentido literal e sentido figurado. Ocorre que tais oposições
estão fundadas em premissas não completamente assimiláveis no quadro teórico da
psicanálise, a saber:
a) que o falante saiba plenamente de suas intenções no ato de fala
b) que o falante saiba distinguir, em todos os momentos, quando sua fala é literal e
quando ela é figurada (simbólica, por exemplo)
Inclusive a técnica da associação livre suspende calculadamente os elementos que
subsidiam a imaginada comunicação perfeita, não se sabe mais com quem se está falando

2 O movimento aparece sob forma teórica na carta 56 a Fliess (1896), para designar a transcrição
retrospectiva de signos de percepção em signos de inconsciência, aparece de forma generalizada no
entendimento do processo de recalcamento e na gênese dos sintomas neuróticos, além de ser crucial para o
entendimento do investimento retrospectivo das experiências sexuais infantis. Lacan valorizou sobretudo a
forma linguística que permite compreender a resignificação.
3 Em termos freudianos isso equivale a dizer que a representação meta, levada a cabo por uma dada ilação
de pensamento é desinvestida, fazendo com que a conexidade associativa da série se interrompa e caia sob
a égide dos modos de associação inconscientes.

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(transferência), por que se está falando (a intencionalidade) e o que se está falando (a
fixação do sentido). Suspende-se enfim as regras conversacionais de Grice (1967) 4 , que
servem, indiretamente, de parâmetro para boa parte das teorias sobre a metáfora e sobre o
discurso. Com isso a divisão entre a fala séria e a fala mentirosa, discurso racional e
discurso irracional, sentido literal e sentido metafórico tornam-se categorias
inadequadas 5 . A inclusão de uma categoria temporal permite contornar o problema e
está, como observou Perelman (1997) em estrita concordância com a idéia de
argumentação retórica e em oposição à de demonstração.
Além do deslocamento os chistes por erro de raciocínio dependem ainda de outro
movimento: o contra-sentido, provocado não pelo deslocamento do acento psíquico mas
pela fragmentação da ordem ou estratégia do raciocínio. Isso se mostra particularmente
no seguinte chiste:
“A toma emprestado um caldeirão a B. Quando o devolve o caldeirão apresenta-se
furado. B procura A para tomar satisfações. B argumenta da seguinte forma:
Em primeiro lugar eu não tomei nenhum caldeirão emprestado.
Em segundo lugar ela já estava furado quando eu o tomei emprestado.
Em terceiro lugar eu o devolvi intacto.”
Separadamente as respostas são razoáveis, o paradoxo surge quando estas se põem
em adjunção, ou no que Freud chama de unificação 6 . Aqui não há nenhuma premissa
oculta no oráculo que é chamada a inverter os sinais da estrutura argumentativa. O
conjunto pode ser descrito como um sofisma, ou melhor uma falácia dada sua
intencionalidade, do tipo extra dictione segundo a classificação aristotélica), uma vez que

4 Sumariamente estas regras podem ser resumidas a quatro: (1) a máxima da qualidade (Faça com que sua
contribuição á conversação seja verdadeira); (2) máxima da quantidade (Faça com que sua contribuição à
conversação seja o mais informativa possível); (3) máxima da maneira (Seja claro.) e (4) máxima da
relação (Faça com que sua contribuição seja relevante em relação ao argumento).
5 A crítica destas oposições encontra-se desenvolvida no cenário filosófico contemporâneo, especialemnte
no pragmatismo de Davidson (1992, p.48) e no pós estruturalismo de Derrida (1996, p91). Ambos, por
caminhos diferentes, colocam sérias restrições à idéia de um sentido literal, essencial, ou refratário aos seus
contextos históricos de utilização.
6 O caso clássico que ilustra este tipo de chiste é o do paradoxo de Zenão. Nele se argumenta contra a
existência do movimento a partir de premissas, que tomadas em separado são plausíveis, por exemplo, entre
Aquiles e a tartaruga existe uma distância, para percorrê-la Aquiles deve transpor a metade desta distância,
mas para transpô-la ele deve transpor a metade da metade desta distância, e assim por diante. Como existem
infinitos pontos que separam Aquiles e a Tartaruga e é impossível ultrapassar infinitos pontos em um tempo
finito prova-se que Aquiles jamais ultrapassará a Tartaruga e que portanto o movimento é impossível.

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não há qualquer equívoco semântico em jogo. Compare-se com este outro chiste para
clarificar a diferença:
Um casamenteiro diz que o pai de uma certa noiva não vive mais. Depois de
algum tempo o noivo descobre que o pai está de fato na prisão. Diante disso o noivo
exclama: Você me disse que ele não vivia mais. Ao que o casamenteiro retruca: Mas isto
é vida ?”
Aqui encontramo-nos diante de um sofisma in dictione, centrado no equívoco
semântico do conceito de vida que se leva em conta. Aqui não é do oráculo que se retira a
ambiguidade mas da própria do caráter vago do termo 7 . Podem ocorrer casos onde a
contradição não deriva da dificuldade definicional do conceito mas da sua própria
corrupção, como em:
“Para muitas pessoas seria melhor não ter nascido, mas infelizmente isto é algo
que não acontece nem uma vez em 100.000.”
O chiste alude, ou representa indiretamente, a possibilidade de que uma pessoa
possa existir e não ter nascido. É como dizer: “este é um círculo quadrado”, uma
afirmação que não possui sentido, do ponto de vista da referência ou do referente mas que
retoricamente se vê contemplada em figuras retóricas como a antítese e o oxímoro.
Chegamos assim a uma curiosa convergência entre os chistes de pensamento e as
categorias de análise dos chistes de palavra. Nestes isolamos processos morfológicos,
sintáticos e semânticos, ao passo que nos chistes de pensamento sua motivação pode
derivar de:
a) corrupção da intensionalidade 8 do conceito (sofisma in dictione)
b) processos gramaticais ou lógicos (sofisma extra dictione)
c) processos de transferência de acento psíquico (deslocamento)
A categoria freudiana dos chistes de pensamento por figuração indireta é , a
princípio frágil, posto que também os chistes de palavra implicam em figuração indireta,
também neles existem subgrupos que levam em conta a semelhança, a comparação, o

7 Esse caso pode ser aproximado de certos paradoxos propostos por Eubúlides como o dito do monte.
Suponha-se que um grão de areia seja depositado num lugar, isto não faz um monte. Nem se
acrescentarmos mais um grão, e assim por diante, logo não se pode dizer que um monte é um conjunto de
grãos de areia.

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símil e o contrário. A figuração indireta, exige, no entanto, algo dispensável no caso nos
chistes de palavra, a saber, a contradição. Mas o que é uma contradição ? Uma definição
possível é de que a contradição exige recíproca negação determinada. Vemos assim que o
problema relativo à incompatibilidade entre contradição e inconsciente se desloca agora
para a incompatibilidade entre inconsciente e negação. Vimos que nos três casos
possíveis de chistes de pensamento ocorre uma espécie de contradição entre o dito e o
dizer. Podemos agora concluir que em cada um deles o dizer nega diferentemente o dito e
o dito nega reciprocamente o dizer. A negação pode se dar em face do predicado, do
conectivo ou do sujeito. Em termos retóricos no primeiro caso estamos diante da antítese,
no segundo do paralogismo e no terceiro da ironia.
Ora, esta divisão, converge com a que Gabbi Jr. (1994) estabelece a partir de
Davidson para caracterizar uma teoria dos atos acráticos, ou uma teoria sobre a
irracionalidade linguisticamente considerada na psicanálise. Tal teoria deveria acatar três
princípios:
“a) conceber a mente como dividida em instâncias;
b) as instâncias apresentam uma certa independência entre si;
c) as relações causais entre as partes não são lógicas.” (p.1)
Ocorre que a teoria dos atos acráticos toma como premissa o ato irracional
definido como “fracasso dentro de uma mesma pessoa, em ser coerente, ou consistente
dentro de um certo padrão de crenças atitudes, emoções, intenções e ações.” (p.1). Ora,
isso equivale a privilegiar a coereência como atributo de uma certa instância psíquica e
indiretamente compreender as formações inconscientes como corrupção desta disposição.
A verdade, no sentido pragmático aqui utilizado, derivaria do reestabelecimento da
referência que torna o sujeito novamente consistente. Isto foi suficientemente
demonstrado por Gabi Jr. na análise dos sintomas em pacientes histéricos, efetuada pelo
jovem Freud. A interpretação dos sintomas encontrados no caso Emma, por exemplo, se
efetua pela retirada dos contra-sensos que o organizavam. O mesmo não se aplica nas
circunstâncias do chiste uma vez que sua eficácia depende da manutenção do contra-
sentido. Um chiste parafraseado ou explicado simplesmente deixa de ser um chiste.

8Referimo-nos aqui ao sentido medieval da palavra onde ela designa atributos próprios ou necessários de
uma determinada classe representada pelo termo. Opõem-se a extensão como sinônimo de atributos
possíveis ou acidentais do termo representativo da classe.

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Antes, porém ,de refletirmos sobre as consequencias de nossa teoria para a noção de
interpretação façamos um esquema da aproximação entre chistes de pensamento e sua
forma retórica:

Princípio Chiste Forma Retórica

deslocamento falhas de raciocínio ironia


a) deslocamento
b) sofismas

subverção do conceito representação indireta


a) pelo contrário antítese
b) por semelhança
c) comparações comparação

subverção da ordem unificação oxímoro


lógica das proposições falhas de raciocínio
a) contra senso zeugma

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Bibliografia

Dunker, C. - Lacan e a Clínica da Interpretação, Hacker/Cespuc, São Paulo, 1996a.


Eco, U. - Semiótica e Filosofia da Linguagem, Ática, São Paulo, 1991
- A Estrutura Ausente, Perspectiva, São Paulo, 1980.
Freud, S. - - (1900a) Interpretação dos Sonhos
- (1901b) Psicopatologia da Vida Cotidiana
- (1905c) O Chiste e sua Relação com o Inconsciente
in Obras Completas de Sigmund Freud, Amorrortu, Buenos Aires, 1985.
Ediçõesde controle: Studienausgabe, Fischer, Frankfurt, 1989.
Obras Completas de Sigmund Freud, Imago, Rio de Janeiro, 1987.
Lacan, J. - - (1953a) Função e Campo da Palavra e da Linguagem em Psicanálise
- (1958b) Direção da Cura e os Princípios de seu Poder
- (1958c) Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud
- (1961) A Metáfora do Sujeito
in Escritos, Siglo XXI, Barcelona, 1988.
Edições de controle: Écrits, Seuil, Paris, 1985.
Escritos, Perspectiva, São Paulo 1897.
Todorov, T. - Os Gêneros do Discurso, Martins Fontes, São Paulo, 1980.

- Teorias do Símbolo, Papirus, Campinas, 1988

Christian Ingo Lenz Dunker


Programa de Pós Graduação em Psicologia
Universidade São Marcos
R. Abílio Soares, 932
Paraíso – São Paulo – SP
Cep: 04005-003
Email: chrisdunker@uol.com.br

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