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ECA – NARRATIVAS DA ONTEMPORANEIDADE

DOCENTE: DOUTORA CREMILDA MEDINA

1, 2... FEIJÃO COM ARROZ

...é por onde começamos. Através dos numerais versificados


nas cantigas para crianças tomamos conhecimento do casal
mais longevo que temos noticia: o feijão com arroz.
Dobradinha do barulho que se estendeu por todos os cantos,
melhor dizendo mesas e cuias do nosso país. Mas, a Embrapa
que cuida de tal assunto nos diz que no Peru (10.000 a.C.) e
no México (7.000 a.C.) feijoeiros domesticados já marcavam
sua presença, conforme atestam achados arqueológicos. Os
grãozinhos multicoloridos tinham participação garantida nas
festas gastronômicas romanas, quando não fosse utilizado
para pagamento de apostas. Tão popular era que se tornou o
prato favorito dos guerreiros troianos. Entre nós, a nossa
equipe sem o goleiro é assim escalada: Preto, Rosinha,
Roxinho, Carioca, Mulatinho, Rajado, Manteigão (jalo) e
Branco, mais os grandões de área Cramberry e Dark Red
Kidney. Bastante protéico precisa de um companheiro para
que suas proteínas sejam integralmente digeridas pelo nosso
organismo: o arroz.
Do sudeste da Ásia, a querida leguminosa encontrou seu par
ideal.
Índia, Indonésia e China enviaram seus representantes a
todos recantos da Terra. Contudo, os consulados das
províncias de Bengala, Assam e Mianmar enviaram um
personagem endêmico cujo estranho nome Orysa rufipogon
deu origem àquele que cultiva o arroz: o orizicultor. A África
por sua vez revelou o Orysa barthii que se mostra em vinte e
três espécies. Aqui no Brasil, os índios da tribo tupi, bem antes
do contato com os portugueses, cultivavam o milho d’água
(abati-uaupé) nos alagados próximos ao litoral. De acordo
com os especialistas, o tipo dessa erva da família das
gramíneas assim se classifica: agulhinha, arbóreo, aromático,
grão curto, grão médio, integral, japônico, parboilizado,
polido, preto e vermelho.

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- Como o feijão com arroz, o popular baião de dois ganhou
identidade nacional.
A propósito, recordo que Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira
fizeram estes versinhos:

Capitão que moda é essa


Deixe a tripa e a cuié
Homem não vai na cozinha
Que é lugar só de mulhé
Vô juntá feijão de corda
Numa panela de arroz
Capitão vai já pra sala
Que hoje tem baião de dois
Ai, ai, ai
Ai baião que bom tu sois
Ó baião é bom sozinho
Que dirá baião de dois

Antes, porém, é importante lembrarmos de que realmente


somos o que comemos?
As opções e proibições alimentares, como ensina o
antropólogo Igor de Garine, são definidas pela cultura: “O
homem se alimenta de acordo com a sociedade a que
pertence”. Se assim o for, refletimos os hábitos e costumes
que nos ensinaram. Até que ponto!
Com a medicalização da alimentação, amplamente repercutida
nos meios de comunicação, nos permite a seguinte colocação:
a um alerta médico-cientifico podemos confiar que é legitima
a proposição de que a banha de porco é nociva à saúde, visto
que aumenta o colesterol alto. A que interesses atende: da

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indústria ou da saúde? A substituição da banha por óleos
vegetais não compromete o sabor do alimento? Que dizer da
cozinha mineira, goiana e sulina para não falar de outras. O
caboclo acostumado a essa feitura, despreza todo o
pronunciamento de cautela com o...qualquê sô num faiz mar
não.
Atropelando esse discursivo embate se faz mal ou não, a
constituição das chamadas cozinhas reúne um conjunto de
elementos, produtos, técnicas, hábitos e comportamentos
relativos à alimentação, o qual inclui a culinária, que refere-se
às maneiras de fazer o alimento transformando-o em comida.
A transformação do alimento em comida implica um
determinado estilo de vida, produzindo uma mudança que não
é só de estado, mas de sentido. Daí a conhecida frase de
Brillat-Savarin: “Dize-me o que comes e te direi quem és”. Tal
colocação é um reforço ao que F. L. Gomme dizia: que
costumes, ritos e crenças são mantidos pela tradição [...]
Devem sua preservação em parte ao fato de que grandes
massas populares não participam da civilização que se ergue
acima deles e que nunca é criação sua. A distância entre a
culinária urbana e regional permanecerá conquanto se dê um
processo de globalização que não podemos confundir com a
local. A permanência desta como ilhas nas grandes metrópoles
é celebrada através do sucesso que têm os restaurantes
especializados, onde a população cansada de ingerir comidas
homogeneizadas se alargam saboreando pratos típicos com
entusiasmo familiar. Recipiendário de recordações da cultura
e da tradição. Outras combinações brasileiras que andam aos
namoricos são: pão com manteiga, bife com batatas fritas,
pastel com caldo de cana, café com leite e o romântico casal
Romeu e Julieta na deliciosa versão queijo com goiabada.
A importação generalizada do fast-food se deve à pressa, o
imediatismo com que os habitantes dos grandes centros são
obrigados a conviver, cujo fator decisivo foi a entrada da
mulher no mercado de trabalho e a multiplicação de oferta de
alimentos congelados e industrializados. Diogo Mainardi,
colunista da revista Veja raciocina que a declaração de Carlos
Lessa, ex-presidente do BNDES é de uma estupidez a toda
prova, ao afirmar que a comida a quilo nos elevou à condição
de povo que derrotou o McDonald’s, visto seu caráter
antropofágico, sempre propenso a mesclar. Nada tão
descabido diante do mimetismo cultural importado. O convívio
no mesmo prato de arroz marroquino, feijão mexicano, pastel
de carne indiano, espaguete e sushi é repugnante. Daí nos faz
pensar - realmente somos o que comemos?
- Talvez Pantagruel e seu companheiro Panurge pudessem
responder medievalmente tal questão. Não esqueçamos
porém de Frei Tuck e sua bela pança.

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Séculos se passaram, a dinâmica do tempo e a evolução
comportamental de nossas sociedades diante de novos
processos de viver, elegem um perfil moderno e rápido de se
alimentar. Priorizam a saúde e a estética do corpo, ideário
miscigenado de ethos médico-cientifico que satisfazem spas,
clinicas de tratamento, academias, vestuário, casas de pasto
diferenciadas, anoréxicos, indústria e comércio. Tudo isso
conduzido com arte e interesse pela publicidade e mídias de
comunicação, fixando o ideal de um corpo belo e saudável.
Recortam o marketing com lugares e situações apreendidas
em produções holywoodianas, despertando o imaginário
fantasioso que vive em nós.
Mas, do boteco da esquina, ali em Higienópolis, meu amigo
Dori dizia: porra! gasto uma nota para ficar bêbado e você me
vem com recomendações.
- Realmente somos o que comemos e bebemos.
Cada qual aplaca seus desejos e angustias a seu modo.
Essa ladainha toda me deixou com fome, sabe. Aquela fome de
fim de noite, ressacada, trêmula que você se promete nunca
mais beber.
No dia seguinte, vou ao Paddock da São Luis, mais
precisamente ao Bistrô e peço ao Derivan que me mande
urgente meu arroz com feijão e pastéis.
O Bistrô para quem desconhece foi um pub dos mais chiques
de São Paulo. Encravado no Conjunto Zarvos, abrigava a fina
elite dos bebuns e dos ditos homens de negócios. Alguns deles
fizeram fama, como o Zé do Pé que mereceu matéria quando
de sua morte em O Estado de São Paulo. Mulata, Marcelo, são
personagens presentes em nossa memória.
A uma centena de metros, na Dom José de Barros,
encontramos o Clube Cidade de São Paulo e o garçom Manolo,
com o seu típico jeito de receber as pessoas.
- Buenas.
Meu convite mandraque tinha surtido efeito e lá estava com
minhas Marias a um canto isolado do salão, onde poderia
prazerosamente conhecer algo sobre educação alimentar.
As Marias de quem eu falo, são a José Paes Leme e da Luz F.
Perim, autoras do livro de quem esta narrativa tomou
emprestado o titulo.
Gentil como sempre, Manolo, na sua impecável fatiota de
pingüim urbano serviu-me uma caipirosca e se afastou.
Na associação é permitida a presença da mulher no
restaurante, nas demais dependências não. Conhecido como
clube do bolinha, o carteado corre solto e as bolas de bilhar
estalam nas jogadas impossíveis, enquanto um bando de
marmanjos de cabelos brancos, enrolados em toalhas, torce
por este ou aquele jogador. Baganas de cigarro em mal-
cheirosos cinzeiros juntam-se a copos de bebida que

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compõem o mobiliário móvel e indispensável nesse balneário
down-town.
-Iniciamos o nosso convívio com uma delas propondo que
Comida... também é cultura. A alimentação é reconhecidamente parte
integrante e inseparável da forma de vida de todo grupo humano: dá
significado às relações sociais aproximando pessoas à mesa; serve para
simbolizar uma gratificação afetiva (como o aleitamento ao peito); é
oferenda religiosa em muitas sociedades e pode representar identificação
com pessoas famosas e poderosas (a expressão comi como um nababo
ilustra bem este aspecto).
-Muito clara e objetiva foi a colocação que não interrompi.
Pontuou como os nossos ancestrais saíram da condição de
coletor para produtor de alimentos; recordando que o arroz
(2.800 a.C.) era a planta sagrada do imperador da China e que
há indícios de que a receita originária do arroz de forno venha
da Pérsia, onde o pilau era um prato completo de arroz com
nozes, frutas, passas e especiarias.
-Meu interesse cresce e ela me diz que: a escrava negra... foi
certamente quem preparou a primeira feijoada, este prato genuinamente
brasileiro, que nasceu na senzala e era feito com as partes menos nobres
do porco, que sobravam da mesa dos senhores. Tanto africanos como
portugueses eram apreciadores do feijão, leguminosa que alcançou logo
destaque na mesa do brasileiro, tornando-se prato nacional, apreciado
pelos ricos e quase único alimento dos pobres (o que pode ser atribuído ao
fato de ser ele um alimento que sacia rapidamente a fome, e sendo de
cultivo fácil, é mais barato do que a carne, equivalendo a ela em valor
nutritivo). Na Bahia, onde as escravas africanas dominavam o forno e o
fogão com seus pratos sagrados, a culinária caracterizou-se pelo encontro
entre o real e o imaginário religioso.
-Por outro lado, destaca ainda que: O feijão chegou mesmo a ser
elevado a categoria de prato de resistência pelos portugueses e índios, no
seu dia-a-dia, pelos caminhos do ouro. Infelizmente, em virtude das
condições econômicas do país, que afetam camadas inteiras da população,
estes alimentos básicos, devido ao seu alto custo, vêm sendo substituídos
por outros mais baratos, porém menos nutritivos, tais como batata,
macarrão e farinha de mandioca. Este empobrecimento sistemático da
dieta do povo afeta a sua saúde e põe em risco o desenvolvimento do país.
O feijão com arroz precisa voltar, com urgência, à mesa do brasileiro,
independentemente da camada socioeconômica a que pertença, para
garantir-lhe, ao menos em parte, a melhoria de suas condições
nutricionais.
-Por fim celebra que: Pesquisas cientificas já demonstraram que esta
mistura satisfaz as necessidades básicas do organismo, do ponto de vista
calórico-protéico, garantindo inclusive o crescimento das crianças. Embora
cada grão de per si não contenha todas as proteínas essenciais, pois o
feijão é pobre em metionina e o arroz em lisina, juntos, entretanto,
formam uma combinação tão perfeita que um prato de feijão com arroz
poderia substituir um bom bife! Um forte argumento para estimular o
hábito do feijão com arroz... Além disso, o feijão é rico em ferro, mineral
muito importante na formação das células vermelhas do sangue e o arroz é
rico em vitaminas do complexo B necessárias para o equilíbrio do sistema
nervoso.
-À guisa de curiosidade verifico que a dupla brasileira pode ser
apresentada de vários modos, eis alguns deles: Feijão

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Tropeiro, Tutu de Feijão, Salada de Feijão Branco, Sopa de
Feijão, Feijão com Caldo e o insuperável Mexidinho de Feijão
com Arroz.
-Êta trem bão!
-Já sei, você quer a receita.
Então vamos lá: Com o feijão e o arroz que sobraram do
almoço, vamos improvisá-la. Ponha numa panela meia cebola
picadinha para dourar com óleo; junte um ovo batido e mexa
bem; acrescente um pouco de feijão bem grosso (com pouco
caldo) e um pouco de arroz cozidos. Mexa bem, pique bastante
salsa e cebolinha e jogue por cima. Se quiser o mexidinho bem
seco, polvilhe-o com um pouco de farinha de mandioca ou
milho.
-Que tal, gostou?
Podes me convidar que não me farei de rogado.
Até mais.

paulo costa
dezembro/2009

FONTES CONSULTADAS

BIBLIOGRAFIA

O Portal da Embrapa Arroz e Feijão


disponível em www.cnpaf.embrapa.br/arroz/historia.htm, em
15/novº/2009

Museu do Arroz
disponível em www.almanaquedoarroz.com.br/noticias/4789, em
15/novº/2009

Uma cozinha à brasileira, Maria Eunice Maciel


disponível em www.cpdoc.fgv.br/revista/arq.364.pdf, em
16/novº/2009

Somos o que comemos?


disponível em www.ufrgs.br/pgdr/arquivos/528.pdf em 16/novº/2009

E.P. Thompson, Costumes em Comum, Companhia das Letras, 3ª


reimpressão, p. 16.

Editora Abril, Revista Veja, de 1º de dezembro de 2004, disponível em


www.veja.com.br em 29/novº/2009

Maria José Paes Leme e Maria da Luz F. Perim, 1, 2... Feijão com Arroz,
Mercado das Letras, Campinas SP, 1997, págs. 20 a 23, 26, 41/42.

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