Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Estes não foram acontecimentos isolados. Desde 1976, ocorreram inúmeros encontros
com o Abominável Homem do Minhocão. A diferença é que em todo esse tempo ele
jamais surgiu duas vezes num único mês. E foi a primeira em que ele roubou comida. É
certo que muito se especulou sobre a consistência e veracidade de tais narrativas. Dizia-
se que tudo aquilo era um chiste, e que, na tentativa de eludir uma maior preocupação
com a segurança interna do campus, inventava-se toda sorte de causos. Mas o que não
era do conhecimento geral, senão um fato compartilhado por poucos, era a enorme
pegada deixada pela criatura junto às vítimas. Uma pegada com cheiro de merda. Um
horror.
“Antônio!!”
“Eunice?!”
Abraçam-se. Ela, na ponta dos pés, enlaça o pescoço dele com os braços, que se sujam
com os fétidos cascões de sua nuca. Ele a cinge pela cintura, deixando manchas escuras
na sua saia amarela. Beijam-se na boca ternamente. Os bigodes e a barba de Antônio,
assim como os pêlos dos seus braços, estão duros como palha de aço. Eunice sente seu
hálito de esgoto.
Ela o conhecera exatamente um ano, dois meses e treze dias antes de seu
desaparecimento. Amaram-se desde o princípio. Ela se tornara professora na UnB para
ficar junto dele.
Antônio nunca fora adepto da toalete. Por isto a namorada não o estranhava neste
sentido. Até gostava.
Quando o Abominável Homem do Minhocão foi avistado pela primeira vez, Eunice não
se sensibilizou… Pensou que fosse apenas mais um boato do tipo “a anistia vem aí”.
Um dia, lendo por acaso um relato sobre as antigas culturas andinas, deu com um nome
familiar: Sacharuna. Era assim que um colega do basquete, um peruano, tratava Antônio
durante os treinos. Queria dizer: o senhor das montanhas, o pé-grande da América do
Sul. Leu mais sobre o assunto. No Canadá e norte dos EUA, chamava-se Sasquatch. No
Himalaia, Yeti ou O Abominável Homem das Neves. Eunice ficou encucada: aquela
criatura do minhocão… seria ele?
“Como assim por aí?”, perguntou espantada. “E por que você tá largado desse jeito?
Vem comigo!”
“Meu Deus, que absurdo!”, e olhou-o solícita. “Antônio, desde 84 que nós temos
presidentes civis, eleições diretas… Já tivemos até impeachment! Em que maldito
buraco você se meteu?”
Ela o levou para casa. Deu-lhe banho, roupas e sapatos novos — tamanho 52 –, cortou-
lhe os cabelos, as unhas, fez-lhe a barba. Tornou-o reconhecível de novo. Exceto pelo
cheiro, felizmente. E ele estava deslumbrado. Não acreditava que passara mais de vinte
anos nos esgotos do Minhocão. Acabara o comunismo na União Soviética — acabara a
União Soviética! — não havia mais o muro de Berlim e havia Mac Donald’s na China…
Todos tinham um computador pessoal e cartões magnéticos… Sim, ainda havia fome,
miséria e injustiça… Mas, meu Deus, quantas transformações! E ele perdera vinte anos
de vida! Tudo por causa dum relógio russo, comprado em Cuba, que usara todo aquele
tempo e cujo ponteiro mal se movia. Triste, muito triste.
Eunice fez o que pôde para convencê-lo de que ainda era jovem e de que tinha toda uma
vida pela frente. Fê-lo assistir — para que se acalmasse e se reintegrasse ao mundo —
TV a cabo durante cinco dias inteiros. Por fim, disse-lhe que o melhor que tinha a fazer
era recuperar sua cadeira de professor. Logo que superou a depressão — quebrando a
TV — Antônio seguiu os conselhos de Eunice. Foi recebido na UnB como herói.
(Ninguém parecia recordar que ele encarcerara a si próprio.) Ganhou uma estátua ao
lado da de John Lennon [1] — “Meu Deus, ele morreu?!!” — uma estátua enorme, com
pés enormes. Ele estava novamente feliz.
“Lá vem a Abominável Ratazana dos Esgotos”, disse alguém logo que ele entrou.
“Alguém sabe qual foi o acontecimento mais marcante neste país entre as décadas de 60
e 70?”
“Não estou aqui para brincadeiras. Seus pais, tios e avós passaram por maus momentos
nessa época e vocês não estão nem aí…”
Antônio explodiu:
“Olha aqui, seus burguesinhos imbecis, vocês são muito pueris pra entender o
sofrimento pelo qual muita gente passou naqueles duros anos. Vocês jamais
imaginariam, por exemplo, a loucura que eu vivi…”
“Tenho mais o que fazer além de ficar ouvindo um professor histérico me chamar de
burguesinha imbecil!”
O professor pôs-se furibundo. Via tudo embaçado. Estava fora de si. A sala ficou
repentinamente silenciosa, ninguém parecia respirar. Ele caminhou com suas grandes e
sonoras passadas na direção da garota, que ficou paralisada. Extasiados, alguns alunos
esperavam presenciar um homicídio. “Um patricinhicídio”, contaram mais tarde.
Antônio apenas passou por ela e saiu pela porta. Precisava encontrar Eunice. Aquilo era
o fim da picada. Os alunos estavam mais mudados que a própria Rússia! Era difícil de
suportar.
“Uê, Antônio”, começou ela, metendo-se sob as cobertas. “É o Marcos, meu marido.”
“Marido?!!”
“É claro. Você não achou que eu ia te esperar esse tempo todo, não é?”
O marido levantou-se:
“Eu estava viajando e cheguei hoje”, disse, enrolando-se num lençol. “Muito prazer, a
Eunice me falou muito a seu respeito”, e estendeu a mão.
Antônio apertou aquela pequena mão involuntariamente. Sua cabeça estava longe,
muito longe.
[1] Caro leitor, atenção: realmente existe uma estátua do John Lennon, junto ao Bandejão, no Campus
Darci Ribeiro – UnB.