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Artigo Antropologia Visual
Artigo Antropologia Visual
Resumo: Este trabalho faz uma análise da manifestação cultural do humor no âmbito
da Internet, considerando o caso do coletivo Porta dos Fundos sob a perspectiva da
antropologia visual, tomando como base os conceitos de cibercultura (Lemos, 2013),
multiplicidade, metamorfose e permutabilidade (Machado, 1993). Conclui-se que além
de fruto da cibercultura, o Porta dos Fundos é um precioso exemplo de uma forma
expressiva da nossa contemporaneidade.
Abstract: This paper analyzes the cultural manifestation of the mood within the
internet, considering the case of collective Backdoor from the perspective of visual
anthropology, based on the concepts of cyberculture (Lemos, 2013), multiplicity,
metamorphosis and interchangeability (Machado, 1993). We conclude that in addition
to be a product of cyberculture, the Backdoor is a precious example of an expressive
form from our contemporary age.
Introdução
*
O coletivo Porta dos Fundos tem um canal no YouTube intitulado Backdoor, onde são disponibilizadas esquetes
legendadas em inglês. Disponível em: https://www.youtube.com/user/TheBackdoorchannel Acesso em
15/09/2015.
†
Mestranda em Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina.
2
‡
Aqui nos referimos ao vídeo caseiro “Para a nossa alegria”, disponibilizado no YouTube.
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O Porta dos Fundos também despertou o interesse do jornal The New York
Times pelo fato de ter tido o crescimento mais rápido do mundo entre os canais do
YouTube. Em artigo no Times, o jornalista Simon Romero (2013) destacou o caráter
desafiador e influenciador de opiniões do Porta dos Fundos em relação a temas
normalmente polêmicos tais como religião, política e até corrupção.
As in the United States and other countries, new Internet ventures are
challenging established companies in various industries in Brazil, but
few her have captured audiences and ruffled feathers like Porta dos
Fundos, whose satirical videos are challenging – and influencing –
how Brazilian society ponders thorny subjects like religion, drug use,
politics, sexuality and, of course, corruption. (ROMERO, 2013).
Em artigo publicado pelo jornalista Zeca Camargo no portal G1, sob o título
Verdadeiro ou Falso: 70% das piadas do Porta dos Fundos poderiam passar na TV
aberta, Camargo (2013) argumenta que, com uma leve adaptação, mais da metade
das esquetes do coletivo poderiam ir ao ar na TV aberta, ou melhor dizendo, no
institucional humorístico da casa, o Zorra Total. Cerca de 40 internautas comentaram
o artigo discordando da tese proposta, argumentando que, na TV, o grupo perderia
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uma das qualidades mais admiradas pelos fãs, que é a liberdade criativa que
proporciona vídeos que debocham sem pudor de temas que vão do consumo de um
refrigerante à concepção de Jesus Cristo. Cerca de um mês depois, o grupo publicou
em seu canal no YouTube o vídeo Porta dos Fundos na TV (2013). Nesse vídeo, o
coletivo fez um pout pourri de algumas de suas esquetes mais famosas, adaptadas
ao padrão humorístico do programa Zorra Total, que vai ao ar todos os sábados pela
Rede Globo de Televisão. No ar de 1999 a 2014, sob a direção de Maurício Sherman,
o programa Zorra Total tinha variados quadros cômicos, com piadas que se apoiavam
na exploração de desgastadas piadas sobre minorias, baixo nível educacional,
pobreza, sexualidade, via personagens e bordões fixos. Em queda de audiência
contínua, o programa teve sua reformulação anunciada pela direção da Rede Globo
em 2014 (PACHECO, 2014).
O que faz do humor do Porta dos Fundos ser diferente do humor realizado pelo
programa Zorra Total? Por que os fãs do coletivo se opõem à adaptação das esquetes
de uma plataforma mais restrita que é o canal do YouTube para uma plataforma que
detém a hegemonia da comunicação de massa no Brasil, como é o caso da TV Globo?
Seria lógico imaginar que um grupo de atores em franca “ascensão” sonhasse em ter
seu produto veiculado pela maior e melhor rede de televisão do Brasil. Considerando
a importância cultural e social que a Rede Globo tem em nossa sociedade, essa
contratação normalmente seria tida com o ápice da carreira de qualquer artista atuante
em território nacional. Entretanto, é curioso notar, que apesar dos convites e cortejos
da grande rede, o Porta dos Fundos não se entregou às propostas. Preferiu
permanecer na Internet até finalmente ir para a TV via um canal pago de televisão.
Por que?
questionamento que se pretenda suscitar, mas que de fato está aquém das previsões
dos próprios criadores, como demonstra o exemplo de uma entrevista para o portal
Uol, onde um dos componentes do grupo revelou que em seu plano de negócios
projetaram a marca de 50 mil visualizações por vídeo. A receptividade às produções
do coletivo superou vastamente essa meta, uma vez que a maior parte das esquetes
ultrapassa os 3 milhões de visualizações e a mais vista tem mais de 20 milhões de
acessos. Inicialmente o grupo lançava somente dois vídeos por semana e em função
da demanda do público, passaram a publicar três. A despeito das críticas e processos
judiciais advindos de esferas institucionalizadas da sociedade, como políticos e
religiosos, mantêm com grande sucesso a produção de vídeos que satirizam ambas
esferas. Nesse sentido fica muito explícito esse caráter de uma arte da relação em
processo de fortalecimento. Uma relação de muitos nós, entre artistas, expectadores
e mídias, em uma constante reconstrução.
Para terminar o ano de 2013, sem deixar dúvidas quanto ao seu caráter
permutável e iconoclasta, o Porta dos Fundos lançou um vídeo intitulado Especial de
Natal, com pouco mais de 16 minutos nos quais cinco esquetes satirizam passagens
icônicas da Bíblia. O vídeo cumpriu a missão natalina de promover a união de
evangélicos e católicos, com o objetivo de retirar a produção do YouTube (Aragão,
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2014). Sem sucesso, Especial de Natal permanece disponível para quem quiser
assistir, afirmando o desejo manifestado por Arlindo Machado de que por meio desse
processo de permutabilidade se estabeleça uma via de libertação dos “discursos
autorizados da verdade” (Machado, 1993, p. 209).
Sylvia Novaes (1998) ressalta que embora as imagens não falem por si
mesmas, elas são fruto da dinâmica social vigente e que se não se tratam da
realidade, interpretam essa existência de forma criativa advinda de um imaginário
social, que pode se desdobrar em realidade. Não podemos convier em uma sociedade
que não se dá conta do que significam suas produções imagéticas. O atentado
terrorista ao semanário Charlie Hebdo é um exemplo brutal do raciocínio empreendido
por Novaes. A imagem, por risível que seja, não é inocente de modo que não apenas
merece, como deve ser interpretada.
André Lemos nos apresenta ao lema dos cyberpunks: “A informação deve ser
livre; o acesso aos computadores deve ser ilimitado e total. Desconfie das autoridades,
lute contra o poder; coloque barulho no sistema, surfe essa fronteira, faça você
mesmo” (2013, p. 191). Herdeiros da contracultura, os cyberpunks se mostraram
críticos ao sistema de poder estabelecidos, ao mesmo tempo que foram entusiastas
das novas possibilidades trazidas pelo desenvolvimento das tecnologias da
informação e comunicação.
A informação deve ser livre: Tal como os cyberpunks, o Porta dos Fundos
celebrou em sua obra a liberdade de acesso dos consumidores ao seu produto
artístico: as esquetes do YouTube. Entretanto, posteriormente renderam-se ao
faturamento com produtos licenciados, ao fechamento de contrato com um canal pago
e à produção de subprodutos que precisam ser comprados para serem usufruídos.
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Desconfie das autoridades: embora tenha sido bastante cortejado pela Rede
Globo de Televisão, o Porta dos Fundos se manteve firme por um tempo à proposta
de destinar suas produções humorísticas apenas à Internet (Neves, 2013), sob o
argumento de que a veiculação televisiva iria requerer uma produção totalmente nova,
especialmente formatada para esta mídia. Entretanto, em 2014 o coletivo fechou um
contrato de exclusividade com o canal pago Fox, passando a veicular na TV por
assinatura uma versão adaptada de suas esquetes.
Lute contra o poder: destaca-se no Porta dos Fundos a sátira dirigida, não às
minorias, como normalmente ocorre em programas de humor, mas ao contrário, as
piadas satirizam a maioria estabelecida: grandes companhias e produtos famosos, a
religião cristã, os políticos no poder, o cotidiano classe média. Essa característica
mantém-se até os dias atuais.
Faça você mesmo: Sem um líder na sua estrutura, o grupo surgiu como um
“coletivo” de cinco amigos atores/ roteiristas. Com o tempo e o crescimento, o Porta
dos Fundos se rendeu a contratação de uma CEO (chief executive officer) para
organizar o andamento da multiplicidade de subprodutos continuamente gerados pelo
grupo.
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Considerações finais
Assim, temos elementos para afirmar que o coletivo Porta dos Fundos
se configura como uma forma expressiva da contemporaneidade, trazendo em seu
DNA a vitalidade da cibercultura, com elementos cyberpunks. Entretanto, já não há
mais revolução a ser empreendida. O sonho do estabelecimento de uma harmoniosa
aldeia global já ficou no passado. No presente, assistimos aprofundamentos de crises
étnicas, econômicas, sociais e ambientais. Se nos faltam certezas e sobram dúvidas,
o riso, a arte e a criatividade podem não ser o remédio curativo, mas ajudam a nos
sustentar.
Referências bibliográficas
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Referências online
CAMARGO, Zeca. Verdadeiro ou Falso: 70% das piadas do Porta dos Fundos
poderiam passar na TV aberta. 27 de maio de 2013. G1. Zeca Camargo. Um giro
pelo universo da cultura, do pop e da cultura pop. Disponível em: <
http://g1.globo.com/platb/zecacamargo/2013/05/27/verdadeiro-ou-falso-70-das-
piadas-do-porta-dos-fundos-poderiam-passar-na-tv-aberta/> Acesso em:01/10/2013.
NEVES, Carla. Sucesso no Porta dos Fundos, João Vicente deixa de ser
reconhecido apenas por namoradas famosas. Disponível em:
http://celebridades.uol.com.br/noticias/redacao/2013/05/23/sucesso-no-porta-dos-
fundos-joao-vicente-deixa-de-ser-reconhecido-apenas-por-suas-namoradas-
famosas.htm Aceso em 19/09/2015.
Referências videográficas
PORTA DOS FUNDOS. Porta Dos Fundos Na Tv. Direção: Ian SBF. Porta dos
Fundos. 20 de junho de 2013. 1’36”. Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=zvyFNjxTy-E&feature=c4-
overview&list=UUEWHPFNilsT0IfQfutVzsag> Acesso em: 01/10/2013.
___________________. Oh, meu Deus! Direção: Ian SBF. Porta dos Fundos. 19 de
agosto de 2013. 1’39”. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=AYiSqyiVaA4> Acesso em: 01/10/2013.