no reconhecimento de que pessoas com deficiência podem e devem exercer seus direitos com total autonomia, participando ativamente da vida social. Por isso, seu artigo 6º fala que “a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa”, inclusive capacidade, como é visto no art. 6º, inciso II, de “exercer direitos sexuais e reprodutivos”. E também lhes é garantida a devida proteção, como diz o art. 5º, contra toda forma de “negligência, discriminação, exploração, violência, tortura...” e completa no parágrafo único desse mesmo artigo os considerados “especialmente vulneráveis”: crianças, adolescentes, mulheres e idosos com deficiência. Mesmo tendo seu direito à sexualidade garantido no Estatuto de Pessoas com Deficiência, surge uma discussão sobre um artigo do Código Penal brasileiro, o art. 217-A, que fala do estupro de vulnerável e em seu §1º trata diz que “incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”. Ou seja, os vulneráveis (sujeitos passivos) nesse artigo não são apenas os menores de 14 (catorze) anos, são também os enfermos e pessoas com alguma deficiência mental. E o artigo 217-A vai além quando em seu parágrafo § 5º fala que as penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º “aplicam-se independentemente do consentimento da vítima...”. Ora, a problemática está justamente nesse ponto do consentimento, quando tratamos de enfermos e pessoas com deficiência mental e é quando começam as discussões. Se o Estatuto das Pessoas com Deficiência garantes aos deficientes o direito à sexualidade enquanto que o Código Penal “proíbe” essa prática, independentemente do consentimento, estaria o Código Penal violando os direitos dos deficientes? Em se tratando de vulnerabilidade, segundo Bitencourt (2014, p. 101), há 3 modalidades: a real (que são os menores de 14 anos – súmula 593 STJ; equiparada (enfermo ou deficiente mental) e por interpretação analógica (quem, por qualquer outra causa, não puder oferecer resistência). Para ele, é preciso analisar a presunção absoluta de vulnerabilidade, que é quando a vítima é indiscutivelmente vulnerável. Ela é e pronto, não se admite prova em contrário. Do mesmo modo, é necessário analisar a presunção relativa de vulnerabilidade, onde devemos analisar a situação como um todo, ou seja, a vulnerabilidade deve ser comprovada, admitindo prova em sentido contrário. Também se faz presente a análise do grau de vulnerabilidade (absoluta e relativa), aqui ela existe, mas não se sabe o grau, intensidade ou extensão. Para Bitencourt (2014, p. 106), os enfermos e os deficientes mentais foram tratados de forma discriminatória como “objetos e não como sujeitos de direitos”. Para ele, foram tratados como quem não possui desejos, vontades e direitos. Como se não tivessem aspirações, emoções e necessidades. Ele acredita que mesmo a deficiência mental requerendo certos cuidados, não está nas mãos do Direito Penal esse cuidado, mas sim com pessoas que tenham conhecimento específico sobre a matéria, os devidos profissionais especializados. Para ele, o texto do Código Penal foi um tanto preconceituoso (2014, p. 107). É sabido de todos que são necessários cuidados especiais e muita proteção referente ao direito à sexualidade das PCD, mas esse tratamento especial não significa o impedimento das pessoas exercerem sua sexualidade livremente. É preciso o acompanhamento, cuidados, consentimento ou até mesmo a permissão das pessoas que as protegem, incluindo a autorização da família, pois: O que é inadmissível (...) é a sua repressão, condenando enfermos ou deficientes mentais ao infortúnio, ao tratamento desigual, inconstitucional e perverso, que lhes tolhe o livre exercício da sexualidade...” (BITENCOURT, 2014, p. 107).
A questão do discernimento também é tratada por Bitencourt, que traz a
discussão de o sujeito passivo apresentar somente a causa (ser portador de enfermidade ou de deficiência mental), mas não trazer consigo a consequência (a falta de discernimento). Por isso, “a ausência de capacidade de discernir a prática do ato (...) também precisa ser comprovada pericialmente” (BITENCOURT, 2014, p.112). Ou seja, o fato de ser enfermo ou deficiente mental não torna alguém necessariamente vulnerável, sendo indispensável “comprovar-se no, no caso, que essa pessoa (vítima) não tem ‘capacidade de discernir a prática do ato’” (BITENCOURT, 2014, p. 112). É preciso comprovações de perícia médica especializada e somente a presença dos dois aspectos (anormalidade psíquica e a incapacidade de discernir a prática do ato libidinoso) comprova a vulnerabilidade do sujeito passivo quando se trata de enfermos e deficientes mentais. Para Lopes apud Prado (2014, p. 1048), assim como para Bitencourt, a questão da falta do discernimento precisa ser comprovada, pois “as anomalias psíquicas não são por si sós suficientes para presumir e permitir a conclusão da falta de capacidade da vítima para se autodeterminar em matéria sexual”. Já o entendimento jurisprudencial diverge de acordo com cada caso, analisando a capacidade de discernimento da pessoa com deficiência mental. Como foi em um caso ocorrido no Rio Grande do Sul, comarca de Arvorezinha (Apelação Crime nº 70050841105, TJ-RS), que trata de uma apelação criminal de um homem de 40 anos condenado a 8 anos de reclusão por estupro de uma adolescente de 17 anos que possuía uma deficiência intelectual. Na avaliação e voto do relator ele diz que é preciso comprovar a falta de discernimento da vítima durante a instrução processual, mas que isso não aconteceu, pois, os dois únicos documentos juntados não eram hábeis para comprovar a deficiência da vítima. Nesse caso, o réu foi absolvido (o voto do relator foi acompanhado pelos demais desembargadores da Sexta Câmara Criminal do TJ do Estado). Já em outro caso, ocorrido em Rondônia, comarca de Ouro Preto do Oeste (Apelação nº 0000896-28.2012.822.0004), que trata de violência contra mulher com problemas mentais, mesmo apresentando laudos médicos suficientes para comprovar a falta de discernimento, o julgamento recusou a apelação do réu e manteve a condenação, pois as provas testemunhais e a própria vítima já foram suficientes para a comprovação da busca do réu pela satisfação de sua lascívia, por meio de ato libidinoso com a vítima, que sofre notadamente de doenças psíquicas, sem o seu consentimento. Estamos cientes que as pessoas com deficiência devem ser integradas na sociedade para que possam exercer seus direitos com maior autonomia possível, inclusive seu direito à sexualidade, mas questões de vulnerabilidade em relação a essas pessoas existem e não podemos negar. Por isso, no Estatuto também há a garantia de proteção às pessoas com deficiência. Com isso, acreditamos que o Código Penal, em seu art. 217-A, § 1º não tira esses direitos subjetivos das pessoas com deficiência, ele na verdade está protegendo o deficiente em casos em que existam situações de vulnerabilidade pela sua própria condição. Para punir pessoas que usam da situação do outro para se aproveitar e saciar suas lascívias. É aí então que o Código Penal surge com esse viés protetivo, não proibitivo. Em se tratando da punibilidade, depois da leitura de alguns doutrinadores e algumas decisões de tribunais, constatamos que em casos de estupro de vulnerável, quando se trata de pessoas com deficiência, se faz necessária a análise de cada caso concreto. Se houve consentimento, a vítima tinha discernimento para consentir? Quantos anos a vítima tinha? Ela tinha como sair daquela situação se quisesse? Ofereceu resistência? O juiz nesses casos não pode julgar com achismos, deduzindo o que aconteceu ou não. É necessária uma equipe pericial para auxiliá-lo, com médicos especializados e com laudos detalhados para a comprovação dessa falta de discernimento para consentir o ato sexual. Além do critério biológico (a existência da deficiência), é preciso provar também o critério psicológico (discernimento para a prática do ato). O juiz não pode apenas se guiar pelo artigo literal sem julgar cada caso concreto com suas especificidades. Não é interessante punir a qualquer custo em se tratando desse assunto em especial, pois as pessoas com deficiência mental têm os mesmos direitos que os ditos “normais”, mesmo que tenham suas limitações por sua condição, mas os impulsos sexuais estão presentes também e não há o que se discutir aqui. Portanto, é necessário punir quem se aproveita dessa condição, sabendo que a pessoa tem deficiência mental, desde que comprovado todas as especificidades do caso para poder aplicar a punição. Pois não é porque uma pessoa tem uma deficiência mental que ela não possa manter relações sexuais, desde que queira, possa e entenda o sentido da prática do ato sexual.