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Breves notas sobre Mário de Sá Carneiro ( Lisboa, 19-05-1890 – Paris, 26-04-1916)

Mário de Sá-Carneiro partilhou com os artistas seus contemporâneos a inquietação que,


em 1915, deu origem à revista Orpheu. (Órgão oficial do Modernismo - defendia uma arte
moderna e cosmopolita capaz de fundir e transcender os numerosos movimentos e
géneros literários que contavam com adeptos no resto da Europa.)

Algumas das palavras-chave para entender o universo simbólico de Mário de Sá Carneiro,


espelho do dualismo que atormentou o espírito e a mente, são o amor (no divórcio entre
Eros1 e Agape2) e morte, alma e corpo, ideal e real, glória e falhanço. Dicotomias vividas
visceralmente, num Fado desesperado que encontrou algum – pouco – alívio nas
memórias da infância, incapaz porém de neutralizar a instabilidade psicológica e um
masoquismo latente que o levariam ao suicídio.

1-“amor romântico”, muitas vezes associado à sexualidade e suas vertentes, com seus pecados e
prazeres.
2-amor considerado divino e incondicional.

Alcool

Guilhotinas, pelouros e castelos


Resvalam longamente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.

Batem asas d'auréola aos meus ouvidos,


Grifam-me sons de côr e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Desce-me a alma, sangram-me os sentidos.

Respiro-me no ar que ao longe vem,


Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo -
Luto, estrebucho... Em vão! Silvo pra além...

Corro em volta de mim sem me encontrar...


Tudo oscila e se abate como espuma...
Um disco de ouro surge a voltear...
Fecho os meus olhos com pavor da bruma...
Que droga foi a que me inoculei?
Ópio d'inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eterizo?

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,


Foi alcool mais raro e penetrante:
É só de mim que eu ando delirante -
Manhã tão forte que me anoiteceu.

Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'

O poema inicia com uma multiplicidade de imagens caleidoscópicas, que marcam


o estado de delírio do “eu”, tirando-lhe a lucidez. As imagens “Guilhotinas, pelouros e
castelos” (v.1), evocam sentimentos autodestrutivos / de sofrimento e de confusão. O
ser (disperso) apresenta-se “mordido”, “doentio”, a doença interior causa-lhe
alucinações físicas - visões – que impedem a compreensão clara de uma realidade
exterior. Todos os sentidos (visão, audição, olfato, tato) são “sangrados”, como se a dor
física do sangramento (masoquismo) pudesse fazer diminuir a dor psicológica (“Desce-
me a alma, sangram-me os sentidos.” - A alma evoca um poder invisível. Para Jung, é o
arquétipo da parte feminina com que e constituído o inconsciente do homem. Jung
chama-lhe anima.)

Na terceira estrofe o “eu” debate-se, interiormente, com alguma “Luz” -


sinónimo de esperança, contudo essa luta (pela procura de uma unidade interior) não
passa de mais uma derrota – “Luto, estrebucho... Em vão! Silvo pra além... “. O grito
interior que ouvimos através da palavra “Silvo” como uma serpente ou como o apito
gritante e audível de um comboio, é a angústia perante o mundo moderno que vive o
drama da existência , alguém que procura as respostas para a definição da sua
identidade e nunca as encontra, mergulhando num estado de alienação igual ao de uma
droga- álcool, ópio, morfina, contudo esse entorpecimento físico não diminui o
verdadeiro sofrimento interior, pois esse é como uma chama eterna que está sempre
ativa dentro de si, pois o ambiente que o cerca não lhe pertence e não lhe parece familiar
- não se identifica com os outros- tudo constitui um mundo de dúvidas, de ânsias, de
angustias.

Na sua realidade, na sua existência material a vida não significa nada para o
poeta – o seu drama “Como é que em dor genial eu me eterizo?”, a necessidade de
atingir o ideal, a imortalização , levá-lo-á à autodestruição. Mário de Sá-Carneiro partiu
além. Não soube, «pobre menino ide- ai», adaptar-se à vida: inadaptado, acabou por
destruí-la matando-se. Foi a impossibilidade de equilíbrio emocional que o conduziu ao
suicídio.

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